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O amor era isso - Lão-Dalalão

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Academic year: 2017

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O A M O R E R A I S S O - L Ã O - D A L A L Ã O

T a n i a R e g i n a Cosei N A S C I M E N T O *

Não há povos sem poesia, mas existem os que não têm prosa. Octávio Paz Signos em Rotação

O tema do C o l ó q u i o Narrar e Resistir levou-nos a algumas r e f l e x õ e s . H á milhares de anos o homem resiste com pedras, paus e narrativas. Sherazade sabia mais do que n i n g u é m o que era resistir pela narrativa: sua vida dependia das h i s t ó r i a s envolventes que contava. Era preciso enternecer o c o r a ç ã o do t e m í v e l p r í n c i p e e n ã o havia nada mais poderoso que a poesia subjacente à q u e l a s fantásticas aventuras.

Pensando na poesia enquanto resistência, analisaremos, na prosa p o é t i c a rosiana, os momentos em que a poesia transforma marcha em d a n ç a . Segundo O c t á v i o Paz, " O ritmo é c o n d i ç ã o do poema, enquanto que é inessencial para a prosa" (1972, p. 11). N o entanto, nem o mais abstrato dos discursos pode prescindir do ritmo, "porque e n t ã o a linguagem se extinguiria. E com ela o p r ó p r i o pensamento". (Paz, 1972, p. 12)

Em busca da linguagem primeva, do quem das coisas, J o ã o G u i m a r ã e s Rosa mostra-nos, a t r a v é s da sua obra, que o ritmo, e por e x t e n s ã o a poesia, é m a t é r i a - p r i m a e produto final da sua prosa. N o que se refere a Corpo de Baile, n ã o por acaso, "Campo Geral", " U m a estória de amor", " D ã o - l a l a l ã o " e " B u r i t i " aparecem, no í n d i c e , classificadas pelo p r ó p r i o autor, como poemas. A camada

Aluna do Programa de Pós-Graduaçâo.

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discursiva que recobre a história de cada uma delas, chama a t e n ç ã o para o plano da e x p r e s s ã o e f o r ç a - n o s a retornar ao p r i n c í p i o , a rever palavras e c o n s t r u ç õ e s .

Se para o crítico O c t á v i o Paz, a prosa é "uma c o n s t r u ç ã o aberta e linear", que pode ser simbolizada pela linha, e o poema "uma ordem fechada", simbolizada pelo c í r c u l o (1972, p. 12-3), para o universo rosiano a m e t á f o r a mais indicada seria a do p o l í g o n o ao qual se circunscreve um c í r c u l o . Os v á r i o s pontos de tangencia marcariam os momentos em que a prosa se nega enquanto prosa e se abre para a poesia, ou ainda, os momentos em que o eterno e o infinito suplantam o temporal e o espacial.

O nosso objeto de estudo, a novela " D ã o - L a l a l ã o " , é uma das sete novelas de Corpo de baile . Uma das e p í g r a f e s que abrem o v o l u m e onde se insere esse texto, a de Platino, compara a vida à d a n ç a :

Seu ato é, pois, um ato de artista, comparável ao movimento do dançador; o dançador é a imagem desta vida, que procede com arte; a arte da dança dirige seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente. (Rosa. 1984, p.5).

Paul V a l é r y - retomando Malherbe - compara o andar à prosa e a d a n ç a à poesia ( 1 9 9 1 , 211-12). Ora, de acordo com tais a p r o x i m a ç õ e s , somos levados a crer que poesia é vida, pois como esta m a n t é m - s e em c o n t í n u a atividade, é c r i a ç ã o e t a m b é m criatura. N o entanto, n ã o podemos dizer que prosa é a n ã o - v i d a . Mesmo a prosa mais distante da poesia tem uma coreografia baseada em movimentos m í n i m o s . " D ã o - L a l a l ã o " conta a história de uma personagem que oscila entre o quase i m o b i l i s m o da realidade cotidiana e o dinamismo da fantasia às vezes compensadora, à s vezes destruidora. A poeticidade da fantasia eufórica é o que nos interessa nesta oportunidade.

Para procedermos ao exame desse aspecto, é n e c e s s á r i o retomarmos a h i s t ó r i a da novela-poema.

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Soropita é o protagonista. Personagem bastante complexa, a d q u i r i r á , no decorrer da h i s t ó r i a , inesperadas nuances. Ora surge forte e v i r i l c o m o Ares; ora feio e imperfeito como Hefesto; ora infeliz como Otelo e tresloucado como D o m Quixote; ora destemido e poderoso como um cavaleiro do Apocalipse.

N o passado, havia sido boiadeiro e ficara famoso pelo j e i t o impetuoso e aguerrido com que matara alguns v a l e n t õ e s . Tempos depois, abandona tudo

para

v i v e r "...num v â o , num saco

da

Serra dos Gerais..." (Rosa, 1984,

p.

13) com a esposa Doralda, ex-prostituta de muita fama. A g o r a , fazendeiro e dono de duas vendas, viaja pelo menos duas vezes por semana do à o para A n d r e q u i c é

para

cuidar dos n e g ó c i o s e t a m b é m para ouvir a novela de r á d i o , com o intuito de r e c o n t á - l a aos vizinhos. Durante o percurso, costuma entregar-se ao enredo de uma fantasia h á m u i t o iniciada. Nela vive Izilda, prostituta m u i t o j o v e m e fascinante que s ó lhe d á prazer.

A o retornar de uma dessas viagens, v ê - s e despertado por um tropel de cavalos que v ê m em sua d i r e ç ã o . É uma c o m i t i v a de boiadeiros chefiada por Dalberto, velho amigo de Soropita. Cauteloso, Soropita observa as armas que cada um carrega. Iládio, um dos cavaleiros, devido ao armamento, à estatura avantajada e ao t o m de pele - é negro -, deixa-o muito perturbado.

Enquanto conversa com o amigo, adivinha que os demais falam das mortes causadas por ele. Soropita, tenso, espera que passem à frente e s ó e n t ã o consegue prestar a t e n ç ã o nas palavras de Dalberto. N u m a b i f u r c a ç ã o da estrada, o grupo toma outro caminho.

Dalberto confidencia-lhe estar envolvido com uma bela prostituta de nome A n a l m a . Soropita, "sobressonhando", retoma a fantasia no ponto onde havia parado. Para sua surpresa, Doralda toma o lugar de Izilda e prazerosamente se entrega a Iládio.

Falam dos arredores e assim entretidos continuam a viagem. De repente, como uma pancada, um pensamento paralisa Soropita: Dalberto poderia ter conhecido Doralda! E naquele exato momento, r i à s suas custas! P o r é m , "Soropita bebeu um gole de t r a n q ü i l i d a d e " (Rosa, 1984, p.53): caso suas suspeitas se confirmassem, mataria Dalberto.

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A p ó s o jantar e enquanto Dalberto e Doralda falam de Montes Claros, o protagonista é conduzido pelo c i ú m e ao universo h i p e r b ó l i c o da i m a g i n a ç ã o . Sucena, nome usado por Doralda quando prostituta, sacia os desejos de muitos homens, dentre os quais Dalberto e I l á d i o . Para impedir que suas m ã o s continuem a tremer e para apaziguar seu e s p í r i t o marciano, permite-se tomar alguns goles de conhaque.

O enciumado marido s ó se convence da i n o c ê n c i a do amigo, quando este, com olhar i n g ê n u o e sincero, pergunta-lhe se deve ou n ã o se casar com A n a l m a .

N o quarto, Soropita finalmente d e p õ e as armas e livra-se das roupas poeirentas. Recostado na cama, subitamente pede para Doralda despir-se à luz do candeeiro. Envaidecida, ela coloca suavidade nos gestos e lentamente se desnuda. "Deixara s ó o colar" (Rosa, 1984, p. 75) - marca indelével de sua vida pregressa?

Desnudado o corpo, Soropita anseia por desnudar a alma de Doralda. Sem constrangimentos, mas preocupada com o c i ú m e do marido, ela lhe conta detalhes de sua vida de mulher-dama e ressalta que agora é s ó dele. Todavia, no í n t i m o , ele n ã o se satisfaz, porque sente que "...mais mesmo no profundo daqueles olhos, a l g u é m ria dele".(Rosa, 1984, p. 78)

Pela m a n h ã , Dalberto parte em busca de A n a l m a . Soropita, esmorecido, perambula pela casa pressentindo alguma d e s g r a ç a . A o s companheiros de Dalberto, informa que o amigo j á havia partido, enquanto Doralda, sem perceber a i n q u i e t a ç ã o do marido, sai à janela para observar os viajantes. A o se despedir, Iládio diz algumas palavras que Soropita n ã o compreende e j u l g a ter sido uma ofensa.

Depois de momentos de tortura e de a n g ú s t i a , Soropita arma-se de coragem e parte, montado no cavalo branco Apouco, para destruir os t e m í v e i s moinhos de vento que lhe a m e a ç a m a paz. N o à o , encontra a c o m i t i v a j á de partida. D o alto do cavalo, vocifera com o negro I l á d i o que, aterrorizado, ajoelha-se e suplica-lhe que n ã o o mate. O poderoso cavaleiro, manda que I l á d i o se v á . "Igual a um pensamento mau, o preto se sumia por m i l anos". (Rosa, 1984, p. 87)

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Sabendo que n ã o , diz: "Pois v o u . Passo em casa, p ' r a bem a l m o ç a r , e v o u ..." (Rosa, 1984, p.87)

E importante ressaltarmos que na novela h á um narrador h e t e r o d i e g é t i c o que, na maioria das vezes, utiliza-se da f o c a l i z a ç ã o interna para narrar, ou seja, temos um narrador que se exprime em terceira pessoa, mas que enuncia como se fosse uma primeira pessoa. Em certos momentos da narrativa, há um imbricamento de vozes, a voz do narrador confunde-se com a da personagem. Assim sendo, quando falarmos das fantasias e l e m b r a n ç a s de Soropita, n ã o nos furtaremos aos exemplos nos quais ocorre essa a r t i c u l a ç ã o .

C o m o dissemos, v á r i a s facetas c o m p õ e m o personagem. Inicialmente, ficamos conhecendo o seu c a r á t e r marciano. T a l qual o deus, ele habita uma r e g i ã o semi-selvagem e, como ele, destaca-se pela destreza com armas e com cavalos; a l é m disso, é instintivo, desconfiado, vingativo e i m p r e v i s í v e l .

Soropita transmitia ao animal, pelo freio, um aviso nervoso, enquanto sua outra mão se acostumara a buscar a cintura, onde se acomodavam juntos a pistola automática de nove tiros e o revólver oxidado, cano curto, que não raro ele transferia para o bolso do paletó. No coldre, tinha ainda um niquelado, cano longo, com seis balas no tambor. Soropita confiava neles, mesmo não explicando a rapidez com que, em caso de ufa, sabiam disparar, simultâneas, essas armas, que ele jamais largava de si. (Rosa, 1984, p.14)

Seus cinco sentidos eram bastante desenvolvidos e, a despeito da força física, era muito s e n s í v e l à dor: " A c h o que eu sinto dor mais que os outros, mais fundo..." (Rosa, 1984, p.19). Para ele, n ã o valia a pena viver para curtir tanta dor " . . . no coitado do corpo, na carne da gente. V i d a era uma coisa desesperada". (Rosa, 1984, p.20).

Alie-se a essas facetas a t e n d ê n c i a à i n t r o s p e c ç ã o , ao fechamento e teremos uma personagem bastante perturbada, propensa a confundir o mundo exterior e o interior.

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garantir o mesmo ao e s p í r i t o , abandona-se aos prazeres sensuais instaurados na fantasia. O sexo, para Soropita, é o bem mais precioso.

Se não, por que e para que vivia um? Tudo no diário disformava aborrecido e espalhado, sujo, triste, trabalhos e cuidados, desgraceiras, e medo de tanta surpresa má, tudo virava um cansaço. Até que homem se recomeçava junto com mulher, força de fogo tornando a reunir seus pedaços, o em-deus. (Rosa, 1984, p.29)

N o decorrer da novela, surgem v á r i a s e x p r e s s õ e s para o coito: "o fino da v i d a " , " o doce da vida", " o prazer da vida", " o prazer do prazer", "as d e l í c i a s " , "sua d e l í c i a " , e cada uma delas reitera a c o n c e p ç ã o de que sexo é o supra-sumo da vida. Sendo assim, suas fantasias n ã o poderiam ser de outra natureza.

Dentre os presentes que leva para Doralda, "...um sabonete cheiroso, sabonete fino, cor-de-rosa" (Rosa, 1984, p. 17) é o objeto que lhe d á mais prazer. A o se lembrar que o carrega num dos alforjes, abandona a á s p e r a realidade imposta pelo ambiente agreste para sonhar com o frescor de Doralda:

Do cheiro, mesmo, de Doralda, ele gostava por demais, um cheiro que ao breve lembrava sassafrás, a rosa mogorim e palha de milho viçoso; e que se pegava, só assim, no lençol, no cabeção, no vestido, nos travesseiros. Seu pescoço cheirava a menino novo. Ela punha casca-boa e manjericão-miúdo na roupa lavada, para exalar, e gastava vidro de perfume. Soropita achava que tanto perfume não devia de se pôr, desfazia o próprio daquela frescura. Mas ele gostava de se lembrar, devagarinho, que estava trazendo o sabonete. Doralda, ainda mal enxugada do banho, deitada no meio da cama. (Rosa, 1984, p. 17)

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à c o m p a r a ç ã o , a sinestesia t a m b é m contribui para isso. A o se comparar o cheiro de Doralda ao da c r i a n ç a , sugere-se igualmente o tato: a pele macia e morna do b e b ê é um convite ao toque. Da mesma forma, o sabonete cheiroso, fino e cor-de-rosa causa prazer n ã o apenas pelo perfume, mas pela textura e cor, semelhantes à pele lisa, perfumada e fresca de Doralda.

Em outros momentos, a linguagem cifrada da poesia atinge graus mais elevados. Suas fantasias carregadas de sensualismo s ã o t a m b é m m e t á f o r a s :

Chegar em casa, lavar o corpo, jantar. Da chegada, governando cada de-menor, ele ajuntava o reparo de tudo, quente na lembrança. O que ia tornar a ter. O advôo branco das pombas mansas. A paineira alta, os galhos só cor-de-rosa - parecia um buquê num vaso. O chiqueiro grande, a gente ouvindo o sogrunho dos porcos. O curralzinho dos bodes. Pequenino trecho de uma cerca-viva, sobre pedras, de flor-de-seda e saborosa. E , quase de uma mesma cor, as romãzeiras e os mimos-de-vênus - tudo flores: se balançando nos ramos, se oferecendo, descerradas, sua pele interior, meia molhada, lisa e vermelha, a todos os passantes - por dentro da outra cerca, de pau-ferro. (Rosa, 1984, p.23).

As imagens que Soropita guarda na l e m b r a n ç a mostram que, apesar de viver numa r e g i ã o agreste, perigosa, sua casa, além de fortaleza, é um verdadeiro p a r a í s o . Observe-se que aqui, o sentido mais privilegiado é á v i s ã o . De início, podemos notar que há uma g r a d a ç ã o que prepara os olhos para a v i o l ê n c i a do vermelho. Primeiro, temos o branco das pombas; depois, o rosa das flores da paineira e, por ú l t i m o , o vermelho v i v o da flor-de-seda - mais conhecida como c i ú m e s -, da saborosa, das r o m ã z e i r a s e dos m i m o s - d e - v ê n u s . Novamente, a sinestesia causa o estranhamento, a surpresa: no quintal, as flores vermelhas condicionam n ã o s ó o olhar, mas t a m b é m o olfato, o toque e o paladar.

P o r é m , isso n ã o é tudo. Esse pequeno excerto ainda nos revela maiores surpresas.

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uma s u c e s s ã o de versos. Sendo assim, os diversos paralelismos encontrados seriam os r e s p o n s á v e i s pela unidade desses versos. L o g o na primeira linha, onde se observa um ritual de chegada, a r e p e t i ç ã o , no nível s i n t á t i c o , de o r a ç õ e s coordenadas a s s i n d é t i c a s e, no s e m â n t i c o , dos verbos de a ç ã o chegar, l a v a r e j a n t a r , no i n f i n i t i v o , confere agilidade e dinamismo ao texto. Contudo, no momento em que ocorre a pausa - e passa-se a descrever e a enumerar os elementos que c o m p õ e m o quintal da casa de Soropita -, os paralelismos sofrem m u d a n ç a s no que se refere a classes gramaticais e f u n ç õ e s sintáticas. Eles agora s ã o formados, basicamente, por sintagmas nominais - artigos, substantivos concretos e adjetivos - que i m p r i m e m um c a r á t e r particular ao universo da personagem; e por apostos, cuja f u n ç ã o é detalhar as idéias resumidas no pronome demonstrativo c a t a f ó r i c o o, que aparece no início da o r a ç ã o " O que ia tornar a ter". Contudo, quando, enfim, acostumamo-nos com essa ú l t i m a estrutura p a r a l e l í s t i c a , surgem, novamente, os verbos. Eles r e a l ç a r ã o , ainda mais, a lubricidade dessas flores, que n ã o s ã o flores, mas sim m e t á f o r a s : por trás das f o r t í s s i m a s cercas, Doralda, como um fruto proibido, e despudoradamente provocante, é quem seduz.

Todavia, seus sonhos nem sempre c a r e c e r ã o de uma linguagem t ã o sutil. Observemos, no fragmento abaixo, como a poeticidade foi c o n s t r u í d a :

Tinha havido, principal, uma rapariga bonita, clara, com os olhos que riam sozinhos - a boca não ria, uma boquinha grande, dadivada de vermelha - o afilado do nariz, um pingo de ponto/inho preto por cima de um dos cantos da boca; essa se requebrava, talo de azedim, boneca de cinturinha; parecia que tinha derramado um vidro inteiro de perfume em si, encharcado no vestido, em seus cabelos: cabelo muito preto, muito liso - ela ficava ainda mais alva. (Rosa, 1984, p.30)

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mais de poesia ao texto - a ordem do j á desgastado c i n t u r i n h a de boneca, verso de uma conhecida quadrinha infantil, é invertida. Izilda n ã o tem apenas a cintura de uma boneca, ela é uma boneca de cintura fina.

Entretanto, a delicadeza de Izilda n ã o impede Soropita de e l e g ê - l a s í m b o l o maior de sua r e s i s t ê n c i a à dor. Ela fora inventada para d e f e n d ê - l o e s a l v á - l o do m a l . O prazer os unia e os protegia.

Izilda era o seu segredo: nada nem n i n g u é m poderia tirá-la dele, a s e g u r a n ç a é absoluta. A m b o s v i v i a m numa "casa de luxo, sem perigo nenhum, um sossego que n ã o se atravessava... O quarto era de paredes fortes, tranca na porta, ele tinha a chave na algibeira". (Rosa, 1984, p. 32). Dentro dessas paredes ele consegue se libertar dos temores, revelar para Izilda que é casado com Sucena e ouvir a menina, com palavras carregadas de deboche, desvendar os m i s t é r i o s de Doralda.

A história que Soropita inventa leva-o a compreender e a admirar ainda mais essas mulheres da vida. Nos devaneios, elas aparecem como seres livres e desprovidos de m a l í c i a , em nada degradantes:

Mas a rapariga descrevia o assunto daquelas Mulheres, o mundo de belas coisas que se passam num bordel, a nova vida delas - mulheres assim leves assim, dessoltas, sem agarro de família, sem mistura com as necessidades dos dias, sem os trabalhos nem dificuldades: eram que nem pássaros de variado canto e muitas cores, que a gente está sempre no poder de ir encontrando, sem mais, um depois do outro, nas altas árvores do mato, no perdido coração do mundo. Se a gente quisesse, podia pôr nomes distraídos, elas estavam na alegria, esperando: - E você? - Eu sou Naninda... - Eu? Marlice... Lulilu, Da-Piaba, Menina-de-Todos... Dianinha, Maria-Dengosa...Sucena... (Rosa, 1984, p. 33)

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O encanto desse trecho e s t á tanto na escolha e c o m b i n a ç ã o cuidadosa de palavras que adjetivam e/ou caracterizam as mulheres, como nos nomes dados a elas. Esses revestem-se de poeticidade e reverberam alegres e sensuais. O eco produzido pela a s s o n â n c i a do í\l nos nomes das demais prostitutas é u m processo c í c l i c o que nos obriga a retomar ao nome Izilda. É como se todas elas, na verdade, fossem um pouco a p r ó p r i a Izilda. T a l vogal s ó n ã o é encontrada no nome Sucena que aparece em negrito contrastando com os demais - Sucena, a n t í t e s e de Izilda?

A l é m de Izilda, t a m b é m Analma tem o poder de abrir-lhe as portas da poesia. O u v i r Dalberto falar sobre ela, leva-o a divagar sobre os p r ó p r i o s atos e sentimentos. O amigo vive s i t u a ç ã o semelhante a sua, pensa em r e c o m e ç a r a vida num local bem distante, rústico, longe de quaisquer recursos, ao lado de Analma, mulher que abandonara o conforto de sua casa e a p o s i ç ã o privilegiada de mulher de doutor para viver como meretriz. Era bela, de fino trato e completamente livre das c o n v e n ç õ e s sociais que a impediam de ser uma mulher de fato. Para Soropita, o que Dalberto pretendia fazer era um desatino.

O Dalberto era capaz; pegar na Analma, de olhos fino verde, como avenca-rainha, e aquele brilho todo de fantasia em volta, que tinha mais poder do que uma bebida brava, país de romance, e levar a Analma para a beira do mato - do jeito que se agarrasse um pássaro bonito, de lindo canto, e tirasse dele as belas penas c botasse dentro de um balaio... Que nem caçar um vaga-lume voando lanternim como a surpresa de deus no absurdo da noite, e para guardar na algibeira, já besouro frio e apagado... (Rosa, 1984, p. 72).

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si s ó , parecem ganhar ainda mais força e poder com o brilho possivelmente da maquiagem que os cinge, revelando assim, mais uma face de A n a l m a , a da mulher sonhadora que v i v e para e em função das fantasias. T a l idéia aparece reiterada nas c o m p a r a ç õ e s h á pouco citadas. Arrancar A n a l m a de seu mundo, é o mesmo que c o n d e n á - l a à morte: triste p á s s a r o que perdeu o canto.

A l é m de conter as figuras apontadas acima, podemos ler todo esse segmento como uma m e t á f o r a da s i t u a ç ã o de Soropita. Ele teme que a l g u é m r e c o n h e ç a Doralda e acredita que mudar-se para o Campo Frio, local ermo e selvagem, é a maneira mais segura de evitar tal t r a g é d i a . S ó depois de pensar na i n c o n s e q ü è n c i a dos atos de Dalberto, ele, enfim, c o m p r e e n d e r á que Doralda, tal qual A n a l m a , n ã o merecia passar por tais p r o v a ç õ e s :

Não podia tomar a resolução do Campo Frio. Não tinha direito de fazer, era uma judiação com Doralda. que não merecia. Um homem, não é um homem, se escapa de pensar primeiro na mulher. (Rosa, 1984, p. 82)

Os v á r i o s exemplos apresentados mostram-nos que a poesia presente na fantasia eufórica cumpriu aqui seu papel: alimentar de coragem e força o temeroso e h i p o c o n d r í a c o personagem.

Cada uma dessas fantasias s ã o , na verdade, p e ç a s de um intrincado q u e b r a - c a b e ç a e a Soropita coube a tarefa de decifrá-las e m o n t á - l a s . A poesia estava dentro dele e falava-lhe quase por enigmas, por trás das m e t á f o r a s havia todo um ritual de p r e p a r a ç ã o ; a cada descoberta, sentia-se com mais c o m p e t ê n c i a para conhecer a verdade.

O fruto proibido, belo e a m b í g u o , encontra-se, agora, ao alcance das m ã o s . A r e l a ç ã o de dualidade existente entre os nomes de Izilda e Sucena é s u b s t i t u í d a por uma r e l a ç ã o de contiguidade: os fonemas / 1 / , / d / e /a/ aparecem tanto no nome de Izilda, quanto no de Doralda. A mulher que tem a alma no nome mostra a Soropita que por trás dos monstros da fantasia disfórica h á um país de romance onde o c é u é sempre azul.

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R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

COHEN, J. Estrutura da linguagem poética. São Paulo: Cultrix, 1971.

NUNES, B. O amor na obra de Guimarães Rosa. In: . O dorso do tigre: ensaios.

São Paulo: Perspectiva, 1969.

PAZ, O. Signos em rotação. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972.

ROSA, J. G. Dâo-Lalalâo. In: . Noites do sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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