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Outras verdades, muito extraordinárias, do grande sertão

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO

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MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GUTERRES DE SOUSA

OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO

Dissertação apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, como requisito parcial à obtenção do título de mestre na área de concentração de Literatura Comparada.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros

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Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Sousa, Maria do Perpétuo Socorro Guterres de.

Outras verdades, muito extraordinárias, do grande sertão / Maria do Perpétuo Socorro Guterres de Sousa. – 2010.

99 f.

Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, 2010.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros,

1. Literatura comparada. 2. Grande Sertão: veredas – Guimarães Rosa. 3. Crítica literária. I. Falleiros, Marcos Falchero. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A dissertação OUTRAS VERDADES, MUITO EXTRAORDINÁRIAS, DO GRANDE SERTÃO, apresentada por Maria do Perpétuo Socorro Guterres de Sousa, como parte dos quesitos necessários para a obtenção do grau de mestre, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelo PPgEL – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em 09 / 11 / 2010.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. Marcos Falchero Falleiros

(Orientador – UFRN)

_____________________________________________ Profº. Drº. Manoel Freire Rodrigues

(Examinador Externo – UERN Pau dos Ferros)

_____________________________________________ Prof ª. Dr ª. Ana Lúcia Barbosa Moraes

(Examinador Interno – UFRN)

_____________________________________________ Profº. Drº. Andrey Pereira de Oliveira

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e irmãos, que compartilharam comigo os primeiros livros. Ao meu marido e aos meus filhos, pelo respeito a este trabalho.

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Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo.

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RESUMO

Este trabalho de dissertação examina a simbologia do trato diabólico no romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em relação ao pacto fáustico, de Goethe, e assim tenta apreender como na linguagem rosiana estão dispostas as estratégias que põem em suspense a efetividade do acordo demoníaco e possibilitam, com intensividade poética, diversas interpretações, sobretudo no que diz respeito às angústias da condição humana. Para tanto, a pesquisa respalda-se na Simbologia Mítica, na Crítica Literária e em aspectos da Metafísica, além da análise de clássicos ensaios literários, na abordagem da estrutura da obra-prima de Rosa. Busca-se demonstrar que a incorporação da lenda de Fausto em Grande sertão reflete o mesmo desejo de felicidade que não se realiza por completo e, destarte, instiga a discussão sobre os limites à satisfação do ser humano. Desse modo, observa-se que a épica narrativa do ex-jagunço Riobaldo ao doutor da cidade especula sobre o homem humano, na aprendizagem contínua de sua travessia.

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ABSTRACT

This study explores the symbolism of evil way in the novel Grande sertão: veredas, by Guimarães Rosa, regarding faustian pact by Goethe, and so tries to understand how the rosiana language are present to the strategies which put in suspense the effectiveness of the demonic agreement and enable, with poetic intensity, different interpretations, especially as regards the anguish of the human condition. This research thus has drawn upon the Mythical Symbolism, in Literary Criticism and aspects of Metaphysics, in addition to analyzing classic literary essays in approaching of Rosa‘s masterpiece structure. It has also demonstrated that the incorporation of the Faust legend in Grande sertão reflects the same desire for happiness that is not done completely, and in this manner, instigates a discussion about the limits to the satisfaction of being human. Therefore, it has observed that epic narrative of ex-gangster Riobaldo to the doctor of city speculates on human man, in the continuous learning of his passing.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 09

1 FORMA LITERÁRIA – O ROMANCE... 12

REGISTROS DE SABEDORIA... 12

LITERATURA E SOCIEDADE ... 18

LÍRICO DISCURSO... 23

2 RECURSOS MITOPOÉTICOS ... 32

SIMBOLISMO ... 32

MEMÓRIA CULTURAL ... 36

O ESPRAIAR POÉTICO ... 42

3 O TEMA DO PACTO ... 47

ABSOLUTAS ESTRELAS... 47

MITO E GENERALIZAÇÕES LITERÁRIAS ... 56

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 93

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INTRODUÇÃO

Como aluna de graduação em Letras tive a oportunidade de apreciar a ficção de Guimarães Rosa que, sob o ponto de vista de Antonio Candido, transcende a ingenuidade do regionalismo pitoresco e a denúncia das mazelas humanas do romance social ou regionalista de 30, deixando transparecer uma adesão ao povo e às crenças populares e proporcionando (por meio de uma linguagem requintada) uma dimensão universal aos enfoques regionalistas, trazendo inovação ao campo literário.

Dessa forma, cresceu meu interesse em relação a Grande sertão: veredas, a fim de especular um dos temas em destaque no romance: “O diabo existe e não existe?”. Portanto, minha dissertação acadêmica procura refletir sobre a saga de Riobaldo no que diz respeito ao episódio das Veredas Mortas e ao suposto pacto com o mal, que proporciona ao jagunço Riobaldo, conforme esclarece Antonio Candido, “assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias” (Candido, 1991, p. 303), pois a busca pela compreensão das aspirações e limitações humanas, que em Grande sertão alegoricamente se expressa no desejo de desvendar os enigmas da existência, é a questão constante que motiva este trabalho. Para o pesquisador Willi Bolle, Grande sertão: veredas é uma glosa de mais de quinhentas páginas sobre o acordo maligno, no que então se fundamenta toda a narração: “Atormentado pela culpa, Riobaldo quer saber se de fato ele firmou um pacto com o Diabo, sendo que ele não tem certeza de que o Cujo existe” (Bolle, 2004, p. 144). Assim, Riobaldo narra sua história para um interlocutor, doutor da cidade, na esperança de que ele confirme que o Diabo não existe.

O propósito de um minucioso estudo acerca da imagem do demônio no caminho de Riobaldo conduz às características míticas das Veredas Mortas, ou como diz o poeta Pedro Xisto, “o mito do encontro (no duplo significado de luta e de pacto) entre o homem (Riobaldo, por exemplo) e o Espírito do Mal – um mito de todas as eras e de todas as terras” (Xisto, 1991, p. 134-135). Sabe-se que o mito como realidade antropológica expressa o modo de um povo interpretar suas origens e, conforme o pensador romeno Mircea Eliade, o mito conta como qualquer coisa “foi efetuada, começou a ser” (Eliade, 1992, p. 85). Para Mircea Eliade é o mito que revela como uma realidade veio à existência, seja a realidade total, um fragmento dela ou o Cosmos.

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narrativas. Por conseguinte, Grande sertão: veredas, que guarda aspectos de cunho épico, retrata uma concepção da experiência humana, configurada na trajetória de Riobaldo e ilustrada pelos problemas metafísicos que o personagem tenta elucidar e que o levam a recorrer ao ajuste diabólico. Desse modo, Riobaldo busca compreender e justificar a culpa de ter consignado tal trato, o que pode ser visto como o fato que fundamenta as mudanças na vida do personagem. O conceito de mito, segundo o etnólogo Eleazar Mielietinsky, estendeu-se a generalizações literárias. Assim, examino a aventura de Riobaldo à luz do drama fáustico de Goethe. Ademais, procuro analisar as diferenças no enfoque da simbologia fáustica dessas respectivas obras, as quais podem ser evidenciadas sobretudo na cena das Veredas Mortas.

Especulando ideias é como Riobaldo rememora a travessia pelo grande sertão – fonte e razão desse perscrutar – travessia que, como explica Walnice Nogueira Galvão, empregada amiúde na narrativa, guarda metaforicamente o “sentido existencial do processo de mudança que os percalços de uma vida implicam” (Galvão, 2001, p. 264). No destino de Riobaldo essas mudanças intensificam-se após a passagem pelas “Veredas Tortas – veredas mortas” (Rosa, 2006, p. 97), as quais, conforme retifica o narrador quase ao término da história são, na verdade, Veredas Altas, marco das transformações do personagem que, no afã do poder, alteia-se e passa a ter como seu pertencente “o brinquedo do mundo” (Rosa, 2006, p. 440). A primeira referência às Veredas Tortas em Grande sertão, conforme observa Francis Utéza (1994, p. 230), está grifada em itálico e com letras maiúsculas iniciais, enquanto que Veredas Mortas mostra-se em caracteres normais e sem maiúsculas. Essas sutilezas que acumulam incógnitas na escritura rosiana estimulam ainda mais esta análise.

Por tudo o que foi elencado, o pacto celebrado nas Veredas Mortas do Grande sertão especifica-se como corpus desta pesquisa, em uma interação com o acordo fáustico, no propósito de acrescentar aos estudos já existentes sobre o romance de Rosa um olhar comparativo acerca dos aspectos luciferinos presentes no livro em relação ao Fausto, de Goethe, no sentido de, nessa intertextualidade, aproximar os contextos dessas criações literárias cujas temáticas procuram discutir a condição humana através da simbologia codificada na forma mítica do pacto com o demônio.

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No capítulo 2, Recursos Mitopoéticos, busco sobretudo ressaltar a análise do romance de Rosa estipulada por Leonardo Arroyo, enfocando ainda o Simbolismo, a Memória Cultural e o Espraiar Poético. Esse último é quase uma redundância, pois o romance em sua completude é poesia.

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1 FORMA LITERÁRIA – O ROMANCE

REGISTROS DE SABEDORIA

A peculiaridade formal da obra de Guimarães Rosa sempre provoca reflexões sobre a natureza da narrativa. Para isso nada melhor que apreciar o célebre ensaio de Walter Benjamin, “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, em relação à preocupação com a função da memória como guardiã do passado evidenciada em Grande sertão: veredas, pois apesar da contemporaneidade, a obra de Rosa traz a oralidade das

narrativas tradicionais. O texto de Benjamin, escrito em 1936, analisa o narrador através de histórias de grandes narradores, com destaque para o escritor russo Nikolai Leskov, cujo talento só foi reconhecido pelos críticos em seus últimos anos de vida. Benjamin evidencia, no pós-guerra e em decorrência do desenvolvimento do capitalismo, que a experiência já não é mais passada em forma de estórias, fato que compromete a narrativa. Isto ocorre

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes. (Benjamin, 1993, p. 198)

O autor alerta que a experiência passada de pessoa a pessoa é tão importante porque é a “fonte a que recorreram todos os narradores” (Benjamin, 1993, p. 198). Benjamin relata a existência de dois grupos de narradores: o viajante (pelo deslocamento espacial) e o camponês sedentário (através do deslocamento temporal), exemplificados respectivamente por Hebel e Gotthelf e por Sielsfield e Gerstäcker, autores alemães que expressaram essencialmente tais características. Segundo Benjamin, o declínio da experiência levou ao desaparecimento da narrativa e, assegura o ensaísta, a rememoração se faz necessária como forma de resgatar experiências comunicáveis por meio da arte de narrar.

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está sendo narrada” (Benjamin, 1993, p. 200). A seguir, o filósofo questiona o advento do romance como possível efeito histórico-formal. Expõe então as modificações na maneira de contar, distinguindo o romance “de todas as outras formas de prosa” (Benjamin, 1993, p. 201). Benjamin expõe que o isolamento do romancista na sociedade burguesa é contraposto à coletividade conferida pela situação de narrar. Mostra ainda a informação em oposição à narrativa: a informação é explicativa, precisa e momentânea; a narrativa é ampla, provocando subentendidos e diversas reflexões. Exemplifica esses dados com a história de Psammenit, narrada por Heródoto, que relata a derrota do rei egípcio Psammenit, reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, o qual, humilhando seu cativo,

Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero. (Benjamin, 1993, p. 203-204)

Benjamin compara essa história a “[...] sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas”(Benjamin, 1993, p. 204), ou seja, a narrativa oral não tem um tempo psicológico fixo e mesmo muito tempo depois é fonte de espanto e reflexão, pois a arte de contar não se preocupa em dar explicações e não encerra uma única versão e assim, o presente pode reencontrar o passado e tecer-lhe uma continuação, como em Proust o gosto da madeleine revive múltiplas lembranças.

Outro traço importante da narrativa destacado pelo autor é a concisão, o que efetivamente facilita a memorização. Prosseguindo em sua exposição Benjamin transcreve as palavras de Paul Valery “[...] O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado” (Benjamin, 1993, p. 206), desse modo justifica o aparecimento da short story, ao mesmo tempo que dispõe a literatura não como arte, mas como trabalho manual:

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‘Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... – todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado’. Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias o nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição das camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas. (Benjamin, 1993, p. 206)

A autoridade da morte (relacionada à sabedoria) na narrativa é outro ponto investigado pelo autor, observando que na antiguidade o espaço da morte era coletivo e na atualidade é individual, refletindo que no momento da morte toda a experiência vivida assume “uma forma transmissível” (Benjamin, 1993, p. 207). Benjamin expõe, para ilustrar a morte como algo altamente significativo, a narrativa de Johann Peter Hebel, a qual descreve a passagem do tempo na história, já que todos os acontecimentos mencionados se relacionam com a morte, como se exemplifica no romance rosiano, em que o narrador Riobaldo, à semelhança de Hebel, inscreve profundamente sua história na história natural.

Prosseguindo em seu estudo, Benjamin diferencia o relato histórico (que exige a explicação dos fatos) da crônica, pois “o cronista é o narrador da história” (Benjamin, 1993, p. 209) e, portanto, fica à vontade para sentir os fatos por ele narrados, não sendo obrigado a explicá-los. Outro destaque no texto é dado ao romance, esclarecendo que “a rememoração, musa do romance, surge ao lado da memória, musa da narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência” (Benjamin, 1993, p. 211). Segundo o autor o romance se movimenta em torno do “sentido da vida” (Benjamin, 1993, p. 212).

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Uma breve retrospectiva de tudo o que foi observado em “O Narrador” é brilhantemente conduzida por Jeanne Marie Gagnebin, em Walter Benjamin, Os cacos da história (1982).

Em seu ensaio O Narrador. considerações sobre a obra de Nikolai Lesskov, Benjamin formula uma espécie de tipologia da comunicação literária, e opõe a forma do conto (narrar uma história) ao romance e à informação jornalística moderna. Procura explicar por que a arte de narrar histórias perde-se gradualmente, e por que é tão raro encontrar atualmente um verdadeiro contista (narrador). Para Benjamin, a verdadeira narração toma sua fonte de uma experiência no sentido pleno do termo (Erfahrung), progressivamente abolida pelo desenvolvimento do capitalismo. Essa experiência está ligada a uma tradição viva e coletiva, característica das comunidades em que os indivíduos não estão separados pela divisão capitalista do trabalho, mas onde sua organização coletiva reforça a vinculação consciente a um passado comum, permanentemente vivo nos relatos dos narradores. Nessas comunidades pré-capitalistas – que não são por isso forçosamente idílicas! – a experiência do trabalho e do passado coletivos (Erfahrung, no vocabulário de Benjamin) predomina sobre a experiência do indivíduo, isolado em seu trabalho e em sua história pessoal (Erlebnis). A obtenção de uma memória comum, que se transmite através das histórias contadas de geração a geração, é hoje destruída pela rapidez e a violência das transformações da sociedade capitalista. Agora, o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido à sua história privada, tal como ela é reconstruída no romance. (Gagnebin, 1982, p. 67-68)

Para Günter Karl Pressler, em Benjamin, Brasil, (2006), o ensaio “O Narrador”, planejado como resenha acerca de uma antologia de contos de Leskov é acrescido pelas ideias de Benjamin sobre o romance e a arte de narrar, legando uma “reflexão profunda para os estudos filosóficos sobre a questão da ‘experiência’ e ‘vivência’ na transição do século XIX a XX – além de um ensaio fundador para os estudos sobre narração e narrativas” (Pressler, 2006, p. 305).

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Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov como narrador não significa trazê-lo mais perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa dele. Visto de uma certa distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte está em vias de extinção. (Benjamin, 1993, p. 197)

Pressler destaca também que Jeanne Marie Gagnebin, pensando epistemologicamente a questão da memória e do esquecimento, chama a atenção a respeito da apropriação rápida e aplicativa do ensaio “O Narrador”. A pesquisadora, de acordo com Presler, relata que a tendência “nostálgica” do ensaio deve ser vista no contexto memória/esquecimento da obra benjaminiana e não “isoladamente como identificação acrítica de uma tendência melancólica de reclamar a perda da experiência” (Pressler, 2006, p. 312). Davi Arrigucci Jr. igualmente expôs o declínio da arte de narrar, pois na civilização industrial moderna, “dos homens divididos e das relações reificadas entre todos e tudo, como pode alguém ter algo especial e de seu para contar?” (Arrigucci, 1979, p. 160). O crítico encontra a resposta na prosa do cronista Rubem Braga, na qual o momento “é surpreendido vivamente em toda a sua intensidade, mas sob o prisma da recordação contemplativa” (Arrigucci, 1979, p. 161). Acredito que a tradição de uma literatura impregnada pela oralidade (ainda que, obviamente, diferenciada do narrador de contos e do cronista) pode ser exemplificada em Guimarães Rosa, que a concilia com o romance, em especial o Grande sertão: veredas, no qual as lembranças das histórias vividas pelo narrador Riobaldo são escritas pelo ouvinte-doutor, no claro intuito de conservar ou de retransmitir o que foi contado. Rosa traz por meio da reminiscência de seu narrador o arrebatamento da tradição oral. A obra de Rosa esboça o que Benjamin diz ser o centro em torno do qual se movimenta o romance, ou seja, “o sentido da vida”, mas, além de convidar o leitor a refletir sobre isso, também, como nas narrativas tradicionais, deixa em aberto o questionamento sobre o que aconteceu depois.

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foge às condições idealizadas por Benjamin na narrativa tradicional, mas parece criar uma nova forma de narrar, uma “Erfahrung” reconstruída a partir de experiências isoladas, “Erlebnis” (representativa do romance), mas que se mantém como obra aberta. Jeanne Marie Gagnebin, no prefácio de Magia e técnica, arte e política, enfatiza os seguintes aspectos:

O leitor atento descobrirá em ‘O Narrador’ uma teoria antecipada da obra aberta. Na narrativa tradicional essa abertura se apóia na plenitude do sentido – e, portanto, em sua profusão ilimitada; em Umberto Eco e, parece-me, também na doutrina benjaminiana da alegoria, a profusão do sentido, ou, antes, dos sentidos, vem ao contrário, de seu não-acabamento essencial. O que me importa aqui é identificar esse movimento de abertura na própria estrutura da narrativa tradicional. Movimento intenso, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da memória, notadamente popular. Memória infinita cuja figura moderna e individual será a imensa tentativa proustiana, tão decisiva para Benjamin. Cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos. Mas também um segundo movimento, que, se está inscrito na narração, aponta para mais além do texto, para a atividade da leitura e da interpretação. (Benjamin, 1993, p. 12-13)

Saber contar sem dar explicações definitivas como Heródoto, é prática na narrativa de Rosa. Além disso, diversas histórias tecem o enredo do Grande sertão. Carmem Lucia Tindó Secco lembra, em A magia das letras africanas (2008), que “Envoltas em sacralidade, as histórias orais se faziam instrumento dos mais velhos que passavam ensinamentos e conselhos aos mais jovens, fundando dessa maneira, a ‘cadeia da tradição’, imprescindível ao desenvolvimento das sociedades” (Secco, 2008, p. 26). Em Rosa o narrador tece enredos configurados nas lembranças, que se constituem como testemunhos de experiências de vida. Benjamim, em outro célebre ensaio, “Experiência e Pobreza”, datado de 1933, expõe que em tempos passados:

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Apesar de o contar artístico de Rosa ser configurado na forma romanesca, natureza que o distinguiria fundamentalmente da tradição oral, conforme as observações de Benjamin (1993, p. 201), a vivência do narrador dessa história é a substância que torna possível a permuta da oralidade com a escrita. Assim, resgatam-se testemunhos que preservam aspectos culturais expressos em Grande sertão: veredas, dispondo-os como registros de sabedoria, pois como esclarece Lucília Delgado,

Os melhores narradores são aqueles que deixam fluir as palavras na tessitura de um enredo que inclui lembranças, registros, observações, silêncios, análises, emoções, reflexões, testemunhos. São eles sujeitos de visão única, singular, porém integrada às referências sociais da memória e da complexa trama da vida. (Delgado, 2006, p. 44)

“Contar é muito dificultoso”, diz Riobaldo em Grande sertão: veredas, mas, situando a linguagem ao nível da oralidade e misturando realidade e devaneio, Rosa representa perfeitamente as características dos grandes narradores, preservando a tradição em novas veredas do cenário literário.

LITERATURA E SOCIEDADE

Uma breve análise da obra do filósofo, escritor e crítico literário húngaro, Georg Lukács, “O Romance como Epopeia Burguesa” (publicado originariamente em Moscou no ano de 1935) e as relações, que dele possam advir, com o Grande sertão: veredas, também se faz necessária, já que o ensaio de Lukács, bem como as perspectivas anteriores, dispostas em seu livro, A teoria do romance, redigido por volta de 1916, são de fundamental importância para o estudo acerca do gênero romanesco, especificamente no que diz respeito à forma aberta do romance, em contradição ao contexto histórico em que surgiu a epopeia, isto é, um

mundo fechado, estático e harmoniosamente perfeito. Além disso sob uma visão lukacsiana, pode-se observar Riobaldo como o “herói problemático”, ou seja, como explica Arrigucci, em O mundo misturado (1994, p. 25), o homem sem certezas que luta contra o medo e busca um sentido para a vida e que, ao final da aventura, com a trágica morte do amado Diadorim, busca reconciliar-se com a realidade concreta e social.

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diz respeito a um poema heroico, no qual o protagonista caracteriza-se por ações grandiosas e ideais elevados, que pretende celebrar os feitos representativos de toda uma coletividade, tendo como predomínio a objetividade e como herança as tradições nacionais orais. É notório que as epopeias gregas e romanas como exemplificam respectivamente, a Ilíada e a Odisseia, de Homero e a Eneida, de Virgílio, tornaram-se paradigmas para a literatura ocidental. No entanto, no final do século XVIII, o gênero épico entra definitivamente em decadência, sobretudo em decorrência dos novos caracteres nacionais e políticos assumidos na Europa, cedendo, então, lugar ao romance, o qual modela a experiência humana em diversificados tipos de enredo e forma, como os romances de cavalaria, os romances históricos e os psicológicos, dentre outros.Um excerto de A teoria do romance ilustra essas concepções:

O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência. A segurança interior do mundo épico exclui a aventura, nesse sentido próprio: os heróis da epopeia percorrem uma série variegada de aventuras, mas que vão superá-las, tanto interna quanto externamente, isso nunca é posto em dúvida; os deuses que presidem o mundo tem sempre de triunfar sobre os demônios. (Lukács, 2006, p. 91)

Ademais, Lukács esclarece que o romance só adquire suas características típicas na sociedade burguesa, na qual, então, surge como uma “forma artística substancialmente nova”. No ensaio em estudo, o filósofo dispõe suas perspectivas em sete tópicos. No primeiro deles, “O Destino da Teoria do Romance”, relata que o romance desenvolveu-se independentemente dos primeiros teóricos burgueses, graças, principalmente, às observações isoladas dos grandes romancistas. Isto porque, de acordo com Lukács, a burguesia mantinha-se próxima aos modelos antigos, enquanto que o romance estabelecia ligações com a arte narrativa da Idade Média. Assim, diz Lukács, “a forma do romance surge da dissolução da narrativa medieval como produto de sua transformação plebeia e burguesa” (Lukács, 1999, p. 88).

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indivíduo com a sociedade” (Lukács, 1999, p. 89). A proposta de Hegel seria “conciliar as exigências da poesia com os direitos do prosaísmo e achar uma ‘média entre eles’” (Lukács, 1999, p. 90), ou seja, uma dialogicidade entre o eu do individualismo burguês e as “finalidades da totalidade” do mundo antigo. Conforme Lukács, a estética alemã revelou o elo entre a epopeia e o romance, pois esse último apesar de tender para a epopeia, principalmente por representar um quadro de sua época, é um gênero artístico tipicamente novo, caracterizando-se pela possibilidade de “criar e representar um ‘herói positivo’” (Lukács, 1999, p. 91), isto é, aquele capaz de atuar sobre a realidade com o intuito de transformá-la e até mesmo melhorá-la.

A seguir, Lukács explana sobre “A Forma Específica do Romance”, assegurando que as bases para a criação “de uma autêntica teoria científica do romance foram colocadas pela primeira vez na doutrina de Marx e Engels sobre a Arte” (Lukács, 1999, p. 92). De acordo com Lukács, apesar de o romance apresentar os elementos que caracterizam a forma épica, não pode alcançar os mesmos fins a que aspira esse gênero, porque, justifica o pensador, o romance é, na verdade, “a epopeia de uma sociedade que destrói as possibilidades da criação épica” (Lukács, 1999, p. 93), pois a sociedade moderna caracteriza-se por uma ausência de totalidade, que o homem tenta em vão buscar para seu mundo fragmentado. Esse fato que aparentemente constituiria um defeito artístico para o romance em relação à epopeia, contudo, confere-lhe uma série de vantagens, pois, “O Romance abre caminho para um novo florescimento da epopeia, de cuja dissolução ele nasce, e revela possibilidades artísticas novas, que eram desconhecidas da poesia homérica” (Lukács, 1999, p. 93). Nesse aspecto, em que do antigo brota o novo, pode-se fazer um paralelo com as perspectivas de Walter Benjamin, em “O Narrador”, a respeito dos rumos tomados pela narrativa na sociedade capitalista do pós-guerra, ou seja, a perda gradual da arte de narrar em decorrência de a experiência ser progressivamente abolida pelo desenvolvimento do capitalismo, como esclarece Jeanne Marie Gagnebin em Os cacos da história. Além disso, como muito bem expõe Günter Karl Pressler, em Benjamin, Brasil, enquanto Lukács confronta o romance com a epopeia e a tragédia, ou seja, no contexto intraliterário, Benjamin coteja o romance com a narração e a informação jornalística (Pressler, 2006, p. 308).

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reconhece Lukács, é diametralmente diferenciada na epopeia e no romance, pois a ação da epopeia é resultado da luta de uma “sociedade enquanto coletividade contra um inimigo externo”, enquanto que no romance “cada indivíduo representa apenas uma das classes em luta, pois, esclarece Lukács, “Uma vez surgida a sociedade de classes, a grande epopeia não pode extrair sua grandeza épica a não ser da profundidade e tipicidade das contradições de classe em sua totalidade dinâmica” (Lukács, 1999, p. 99). Em relação a esse aspecto, tomando como fonte Willi Bolle, em Grande sertão.br (2004), pode-se ver na obra rosiana a construção da paisagem e de um retrato do país, mesmo que em uma geografia empírica e alegórica.

O terceiro tema abordado por Lukács em sua explanação é “O Nascimento do Romance”. Observa, então, que o romance moderno, ou melhor, o conteúdo do romance moderno, nasce da luta ideológica entre a burguesia e o feudalismo, fato que não impede aos primeiros grandes romancistas aproveitarem “a herança da arte narrativa medieval”, cujos elementos, como as aventuras isoladas e ligadas entre si, são reelaboradas de modo inovador, tanto na forma quanto no conteúdo, destacando-se nessa reelaboração, sobretudo “o afluxo cada vez maior de elementos plebeus nessa composição” (Lukács, 1999, p. 99). O filósofo cita Cervantes e Rabelais como os criadores do romance moderno, os quais refletem em suas obras um fato importantíssimo, ao lado da renovação da temática de aventuras, qual seja: o “prosaísmo da vida”. Ademais, Lukács explica que Cervantes e Rabelais cultivam um original realismo fantástico (também caracterizador do romance em sua fase inicial), explicado do seguinte modo:

Os grandes princípios ideológicos e sociais da época são percebidos e representados pelo romancista de modo realista; realistas são os tipos representados que, por meio da heterogênea variedade das aventuras, são conduzidos pelo artista a verdadeiras ações, a uma verdadeira manifestação de sua essência; realista é o modo da representação, o desenho preciso dos pormenores necessários na sua ligação orgânica com as grandes forças sociais, cuja luta se manifesta nesses pormenores. Mas a história narrada é conscientemente fantástica, não realista. Esse elemento fantástico nasce, de um lado, da visão utópica das grandes forças sociais da época e, de outro, da comparação satírica entre o velho mundo em dissolução e o novo que está nascendo, com os grandes princípios humanistas da luta contra a degradação do homem. (Lukács, 1999, p. 101)

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literatura” (Lukács, 2006, p. 102). A própria burguesia torna-se objeto da épica, tendo como ênfase seu princípio ativo, isto é, o progresso, explica Lukács em “Nota sobre o romance” (1981). O romance então desprende-se do fantástico e passa a representar a vida privada do burguês e, como exemplo do incipiente domínio da sociedade sobre a natureza, Lukács cita a primeira parte do Robinson, de Defoe, que aproxima-se da epopeia clássica.

A seguir, Lukács discorre sobre “A Poesia do ‘Reino Animal do Espírito’” (reportando-se nesse título, à Fenomenologia do Espírito, de Hegel). Relata que no período compreendido entre a Revolução Francesa e a autonomia do proletariado “o romance retorna ao fantástico do seu período inicial”, que nessa fase é a expressão “de um pressentimento trágico do fim inevitável da civilização burguesa” (Lukács, 1999, p. 106).

Lukács revela que os grandes escritores dessa época não se rendem ao avanço da prosa da vida burguesa, procurando representar os elementos da atividade espontânea. O crítico coloca que quanto mais o artista descobre as contradições da sociedade burguesa, menos realizável se torna a exigência de Hegel de um herói positivo, já inaceitável no Século XIX. Mesmo que a exigência burguesa desse herói positivo dirija-se ao escritor, para que ele não revele as contradições advindas da sociedade capitalista, mas “as disfarce e as concilie”. Os grandes clássicos não cumprem essa instância, tornando-se, por esse motivo, “impopulares no ambiente burguês”.

A penúltima explanação de Lukács é sobre “O Novo Realismo e a Dissolução da Forma do Romance”. Lukács observa que no período da decadência ideológica burguesa, em que mais nitidamente se apresentam as contradições do capitalismo, “mais grosseiros se tornam os meios para glorificá-lo de maneira falsa e para caluniar o proletariado revolucionário e os trabalhadores rebeldes” (Lukács, 1999, p. 109). Mas, segundo ele, o romance sério, a partir de 1848, afasta-se dessa tendência, o que leva o escritor burguês a isolar-se social e artisticamente. Exemplificando esse período, Lukács cita Flaubert e Zola. Critica então, nesses escritores, o distanciamento actancial de suas narrativas, as quais evidenciam aspectos de uma realidade que foge às verdadeiras condições sociais vivenciadas nessa época. Em relação a Zola, Lukács expõe que “A representação épica das ações é substituída, nele, pela descrição dos estados e das circunstâncias” (Lukács, 1999, p. 111), o que representaria a inutilidade da vida que é ilustrada, segundo Lukács, pelo fato de as ações humanas no romance serem suplantadas pela descrição das coisas e dos estados, proporcionando assim a “decadência narrativa do romance moderno”.

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“As Perspectivas do Romance Socialista”, capítulo que encerra o ensaio do crítico húngaro e aborda a tomada de poder pelo proletariado. Lukács recapitulando sua análise expõe que “o problema da degradação do homem na sociedade capitalista se tornou inevitavelmente o problema central da estética do romance” (Lukács, 1999, p. 114). O romancista socialista intensifica a luta do homem tanto pela “sua existência material, quanto pelo seu bem-estar espiritual”, assim o indivíduo proletário envolvido nessa luta, “deve necessariamente se tornar um ‘herói positivo’” (Lukács, 1999, p. 115), o que identifica uma nova aproximação com a epopeia antiga. Lukács explica ainda que o socialismo destrói a reificação, própria da natureza da sociedade capitalista, cujas relações sociais são “coisificadas” e impedem o surgimento de uma consciência de classe. Todas essas etapas de desenvolvimento e da luta do proletariado vão gerar, segundo Lukács, uma tendência para a epopeia,”uma tendência e não uma realidade acabada” (Lukács, 1981, p. 187), fazendo surgir na vanguarda do socialismo uma forma artística inovadora, caracterizada por traços próprios da epopeia, mas guardando, também, “os caracteres essenciais do romance, isso porque, “a edificação do novo e a destruição subjetiva e objetiva do velho estado de coisas constituem uma unidade dialética” (Lukács, 1981, p. 187).

Portanto, em “O Romance como Epopeia Burguesa”, Lukács situa o romance como a forma artística de grande significado na sociedade burguesa, mostrando, desse modo, a relação existente entre essa modalidade literária e a época em que surge, como gênero dominante. Nesse aspecto creio poder estabelecer um diálogo entre as teorias de Lukács e o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no que diz respeito à tensão que se estabelece

entre Riobaldo, herói do romance que busca compreender o sentido de sua existência, e o ambiente em que vive, possibilitando uma interpretação social dos aspectos míticos encontrados na obra rosiana: perspectiva que pode ser analisada sob a ótica de Lukács em relação ao tema de consciência de classe e das relações entre literatura e sociedade.

LÍRICO DISCURSO

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as conjeturas da crítica imanente, observando então na configuração artística a manifestação de um teor social, pretendido pela própria expressão subjetiva, revelando-se, portanto, como imprescindível para a apreensão das contradições que envolvem arte e sociedade na contemporaneidade. Procuro, assim, cotejar alguns aspectos da análise adorniana com meu objeto de pesquisa: a interpretação do pacto fáustico no Grande sertão: veredas, já que o acordo maligno é de suma importância no desenrolar do enredo do romance de Rosa, autor que posiciona a linguagem e a vida como “uma coisa só” (Lorenz, 1991, p. 83).

A filosofia de Theodor Adorno (que também foi estudioso de música, psicologia e sociologia) fundamenta-se, sobretudo, na perspectiva da dialética. Assim, em uma de suas principais obras, Dialética do esclarecimento, escrita em parceria com Max Horkheimer, Adorno expõe sua visão referente à lógica cultural do sistema capitalista e o domínio racional deste sobre a natureza e, consequentemente, sobre o homem, considerações que, a meu ver, encontram relações (como num encadeamento de acordes) com a “Palestra sobre lírica e sociedade”, texto elaborado posteriormente, em uma fase de dedicação à crítica literária (década de 1950), no qual se pode depreender que o poema para ter um verdadeiro cunho artístico necessita transcender a expressão de emoções e experiências individuais, por meio de uma generalidade do conteúdo lírico, o qual, na verdade, é antes de tudo social, expondo assim a dialética do individual com o universal. Portanto, procurarei destacar os pontos que, creio eu, ajustam-se ao meu propósito de compreender melhor a dimensão lírica do sertão de Guimarães Rosa, sobretudo no que diz respeito ao redemoinho de dúvidas do personagem Riobaldo quanto à interpretação de sua realidade expressa na tradição literária de homem pactário.

No discurso sobre lírica e sociedade, Adorno expõe o caráter social da universalidade lírica e sua relação com a individualidade do sujeito poético, pois, segundo o crítico literário, as composições líricas no que se referem ao social revelam nelas próprias sua essencialidade, já que ao voltar-se para a sua individualidade o poeta revela sua incompatibilidade social, assim, na própria recusa do sujeito lírico ao fator social se revela a instância do social. Além disso, Adorno relata que a referência ao social “Não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela” (Adorno, 2008, p. 66). Adorno explica que o teor de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais, pois estas só se tornam artísticas quando “justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética comportam sua participação no universal” (Adorno, 2008, p. 66).

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da lírica como de todas as obras de arte. Contudo, recomenda cuidado em relação ao conceito de ideologia, a que chama de “falsa consciência”. Esclarece então que obras de arte “têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde” (Adorno, 2008, p. 68). Prosseguindo em sua explanação, Adorno diz que o conceito de lírica contém em si mesmo “o momento da fratura”, no qual o eu lírico perde a unidade com a natureza, a que sua expressão se refere, e então empenha-se em restabelecê-la por meio do animismo ou do mergulho no próprio eu. Observa ainda Adorno que a filosofia – de Hegel – “conhece a proposição especulativa que diz que o individual é mediado pelo universal e vice-versa” (Adorno, 2008, p. 73). Adorno nega que o poema lírico tenha uma só voz, ressaltando, porém, que quanto maior a ascendência da sociedade sobre o sujeito mais precária é a situação da lírica. Assim, exemplifica efetivamente com a obra de Baudelaire, a qual na aparência está negando o social, mas por meio da mediação ela está, na verdade, propagando esse mundo. Portanto, mais uma vez Adorno enfatiza que através da mediação acontece sim o fator social, o qual é dialógico, pois o poeta quando usa a palavra, mesmo não querendo, carrega o teor social, mantendo então a linguagem como o elo entre lírica e sociedade e, desse modo, configurando objetividade à expressão da subjetividade. A aparente contradição entre lírica e sociedade, ou ainda a subjetividade que se reveste, por meio da linguagem, em objetividade, estaria ligada, segundo Adorno, “a primazia da conformação linguística na lírica, da qual provém o primado da linguagem na criação literária em geral, até nas formas em prosa” (Adorno, 2008, p. 74), pois, ressalta o crítico, a própria linguagem é algo duplo, já que além de ser a expressão da individualidade subjetiva é o meio, ou a mediação, dos conceitos. Para assegurar suas proposições Adorno elucida:

O que afirmei foi que a configuração lírica é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social. Mas como o mundo objetivo, que produz a lírica, é um mundo em si mesmo antagonístico, o conceito de lírica não se esgota na expressão da subjetividade à qual a linguagem confere objetividade. (Adorno, 2008, p. 76)

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que o poema bem mais antigo de Mörike exalta a felicidade em cada esquina, enquanto que a poesia aristocrática de George distancia-se do mundo, interditando assim a felicidade das coisas próximas. No processo de concretizar a relação do sujeito poético com a realidade social que lhe é antitética, Adorno explica que tanto os elementos materiais quanto os formais necessitam de interpretação, principalmente acerca do modo como ambos se interpenetram, “pois somente em virtude dessa interpenetração o poema lírico captura realmente, em seus limites as badaladas do tempo histórico” (Adorno, 2008, p. 78). O excerto abaixo, referente à poesia de George, torna claro o que Adorno chama de estilo elevado:

Esse estilo é alcançado não pelo recurso fácil a certas figuras de retórica e a determinados ritmos, mas na medida em que economiza asceticamente tudo aquilo que poderia diminuir a distância em relação à linguagem degradada pelo comércio. Aqui, para que o sujeito seja capaz de, em sua solidão, resistir verdadeiramente à reificação, ele não pode nunca mais se refugiar no que lhe é próprio, como se fosse sua propriedade; os vestígios de um individualismo que, nesse meio-tempo, já se entregou à tutela do mercado, nos suplementos literários, assustam: o sujeito precisa abandonar a si mesmo, na medida em que se cala. Ele precisa se converter no receptáculo, por assim dizer, da idéia de uma linguagem pura, que os grandes poemas de George buscam resgatar. (Adorno, 2008, p. 87)

Expressando-se sobre a lírica de George, Adorno expõe que o poeta consegue captar na própria linguagem a “idéia que lhe foi negada pela marcha da história”, bem como articula versos que soam como se não fossem dele, mas como se tivessem existido desde o começo e para sempre assim devessem permanecer.

Após essa breve exposição das reflexões de Adorno no texto em discussão e antes de relacioná-las à obra de Guimarães Rosa é importante lembrar, para dar mais harmonia a esta composição, outro grande nome da crítica literária, Alfredo Bosi:

Não há grande texto artístico que não tenha sido gerado no interior de uma dialética de lembrança pura e memória social; de fantasia criadora e visão ideológica da História; de percepção singular das coisas e cadências estilísticas herdadas no trato com pessoas e livros. (Bosi,1988, p.278)

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Willi Bolle procura evidenciar em Grande sertão: veredas a história social do Brasil, traçada por meio de uma linguagem cifrada, através da história de Riobaldo e somente desvendada por seu destinatário (o leitor). Bolle explica que no romance de Guimarães Rosa há uma gritante desigualdade social aliada à falta de diálogo entre as classes dominantes e as classes populares, o que pode ser visto “como uma coisa do Diabo – entendendo-se o diabolos, no sentido etimológico, como a entidade que ‘se interpõe’, entre as pessoas, entre,

as classes” (Bolle, 2004, p. 18). No livro de Rosa, o protagonista, Riobaldo, narra sua história (ou fala consigo mesmo?) para um interlocutor, doutor da cidade, na esperança de que ele confirme que o Diabo não existe. Segundo Bolle:

Ao estabelecer esse diálogo entre o universo arcaico e ‘atrasado’ das crenças do povo sertanejo e a mentalidade esclarecida dos habitantes das grandes cidades, Guimarães Rosa estimula em seus leitores a curiosidade de decifrar o(s) significado(s) do pacto, sendo o pacto com o Diabo em termos da história cultural, uma forma mítica popular de codificar questões do poder e da lei, o romance nos transporta para os domínios da história mítica. (Bolle, 2004, p. 144)

Todavia, como mito e literatura estão ligados, à medida que esta última tende a adaptar o pensamento mítico ao cotidiano da vida humana, faz-se necessário também recapitular o motivo fáustico que se inseriu na cultura ocidental no século XVI, proveniente de remotas lendas medievais que culminaram, em 1592, no Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, bem como, no século XIX, no grandioso Fausto, de Goethe, tema que posteriormente destacou-se em Doutor Fausto de Thomas Mann, o qual antecedeu em nove anos Grande Sertão: veredas, publicado em 1956.

Então, a fantasiosa imagem do demônio no caminho de Riobaldo me leva a investigar o conceito de mito que, segundo o etnólogo Eleazar Mielietinsky (1987, p. 119), “estendeu-se paulatinamente a generalizações amplas puramente literárias”, que são às vezes denominadas ‘imagens eternas’, como Don Juan, Fausto, Don Quixote, Hamlet, Robinson. Ademais, discorre Mielietinsky:

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Lembrando que, para Adorno, a universalidade do teor lírico é essencialmente social, o que proporciona o caráter dialético da individualidade com a universalidade, associo esse pensamento ao grande sertão rosiano que reflete em suas veredas a exterioridade expressa no desejo de compreender as aspirações e limitações humanas por meio de uma linguagem dialética, na qual a configuração linguística destaca-se e promove a palavra poética, porém sem perder de vista o mundo objetivo, cuja interpretação social pode ser condicionada à visão histórica evidenciada no romance, pois entremeada ao especular ideias de Riobaldo (rememorando na paisagem sertaneja, rios, fazendas e cangaço) está o panorama de uma sociedade. Contudo, a ficção de Rosa transcende o regionalismo pitoresco e proporciona uma dimensão universal aos enfoques regionalistas.

Para especificar adequadamente o lirismo e a complexidade formal que se estampa no épico relato da travessia de Riobaldo, carregada de ingenuidade e da imaginação que motiva a vida nos sertões, recorro às palavras de Roberto Schwarz:

Grande Sertão: Veredas não se passa no recesso de uma consciência, onde sua ousadia linguística poderia ser reduzida aos delírios de um espírito modorrento: faz-se do diálogo de duas personagens, entre as duas, no espaço social que exige a objetivação das relações por meio da língua falada. Trata-se de um fluxo oral. Em contraste com a maioria de Trata-seus pares na grande literatura contemporânea, a obra de Guimarães Rosa tem a virtude de colocar o experimento estético no nível da consciência, de reivindicar para ele a condição acordada. Não partilha a profunda nostalgia de irracionalismo representada, em última análise, pela pesquisa exclusiva dos níveis pré-conscientes. Sua audácia é mais audaz, pois não se escora no caráter informe dos estados anteriores à formulação; realiza-se ao criar um poderoso jôrro verbal, em cujo curso e sintaxe a palavra adquire qualidade poética. Não fica essa qualidade restrita a determinadas passagens do livro, que impregna todo. Independe da temática, é produto de um fluxo retórico peculiar, no qual, veremos, o vocábulo é valorizado a ponto de reviver com a intensidade que identificamos ao lirismo. (Schwarz, 1981, p. 39)

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Na verdade, ‘o conteúdo da poesia lírica é (...) a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo’; ‘Com efeito, o que interessa antes de tudo é a expressão da subjetividade como tal, das disposições da alma e dos sentimentos, e não a de um objeto exterior, por muito próximo que seja’. (Moisés, 2004, p. 261)

Mas, conforme Adorno, na própria recusa do sujeito lírico ao fator social se revela a instância do social. Igualmente ressalto, na conceituação de Massaud Moisés, a seguinte explanação: “Quanto ao tempo verbal, a lírica transcorre no presente, ainda quando o tempo referido seja o passado ou o futuro. É que, ao debruçar-se sobre o seu mundo interior, o lírico procede como quem se recorda” (Moisés, 2004, p. 263). E o que faz Riobaldo em seu monólogo-diálogo senão recordar? Rememorando ele reconstrói para o seu ouvinte (e para o leitor) sua travessia, em que, de quando em quando, repercute a balada de Siruiz. Assim, a canção que conquista Riobaldo não poderia faltar neste raciocínio que procura discorrer acerca da “Palestra sobre lírica e sociedade”, de Adorno, mesmo porque na toada encontra-se a pura emoção do cantador Siruiz, espelhada na configuração da realidade sertaneja.

Urubú é vila alta, mais idosa do sertão: padroeira, minha vida – vim de lá, volto mais não... Vim de lá, volto mais não?...

Corro os dias nesses verdes, meu boi mocho baetão: burití – água azulada, carnaúba – sal do chão...

Remanso de rio largo, viola da solidão:

quando vou p’ra dar batalha, convido meu coração...

(Rosa, 2006, p. 119)

Posteriormente, Riobaldo acrescenta a esses versos algumas estrofes que parecem expor na objetividade do mundo material uma reflexão de sua própria condição.

Trouxe tanto este dinheiro o quanto, no meu surrão, p’ra comprar o fim do mundo no meio do Chapadão.

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é o dizer das claras águas que turvam na perdição.

Vida é sorte perigosa passada na obrigação: toda noite é rio-abaixo, todo dia é escuridão...

(Rosa, 2006, p. 317-318)

Retomando o ensaio de Adorno, observa-se que, para o filósofo alemão, a obra lírica é aquela em que o sujeito se faz presente na linguagem até que se evidencie. Assim, a lírica se mostra social quando a subjetividade alcança a expressão adequada. Em Grande sertão: veredas é perceptível a expressão individual subjetiva que procura, simbolicamente, discutir

os conflitos do homem, pois em Riobaldo encontra-se o desejo de aclarar o incompreensível, conforme revela o personagem:

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! (Rosa, 2006, p. 100)

Portanto, Guimarães Rosa produz uma literatura universal, apesar de centrada no espaço (real e fictício) do sertão norte-central de Minas, e por meio do mítico tema do pacto maligno procura representar as angústias da condição humana, em uma espécie de colóquio entre mito e esclarecimento. Sobre isso é perfeita a visão do ensaísta Davi Arrigucci Jr.:

Na realidade, no interior do Grande Sertão, a relação entre mito e esclarecimento parece repetir e desenvolver em enredo narrativo o mesmo esquema da dialética do esclarecimento que Adorno e Horkheimer apontaram já no interior da epopeia homérica. ‘Desencantar o mundo é destruir o animismo’, conforme notaram aqueles autores, e não é outra coisa que se registra na obra rosiana, na travessia de Riobaldo, que acaba, a seu modo, por exorcizar a projeção antropomórfica do homem na natureza do sertão, que é o demônio, reconhecendo por fim a objetividade do mundo desencantado. (Arrigucci, 1994, p. 28)

Desse modo, na dramatização poética dos conflitos humanos, iniciando-se in medias res, Grande sertão: veredas traz a lírica inovadora de Guimarães Rosa, expondo elementos

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fáusticos, imprime objetividade à subjetividade. Na verdade, Grande sertão é como uma partitura na qual vocais e instrumentais (ou conteúdo e forma) permitem a leitura simultânea de literatura e arte.

Outrossim, Arrigucci no já citado “O mundo misturado” (1994) ressalta que o romance rosiano (épico e moderno), como história do esclarecimento de um destino individual, retoma o começo na tentativa de responder os questionamentos sobre o sentido da travessia solitária e enigmática de Riobaldo, o que, entretanto, segundo o ensaísta, não pode ser respondido.

Porque esta é a história do romance: ‘O caminho acaba, e a viagem começa’, como bem afirmou Georg Lukács, na sua Teoria do romance, na década de 20. Espécie de peregrinação errante num labirinto desencantado que é o mundo moderno, o mundo sem Diadorim, o mundo sem sol do sertão que já não há, da aventura esvaziada e do encanto desfeito. (Arrigucci , 1994, p. 28)

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2 RECURSOS MITOPOÉTICOS

SIMBOLISMO

Em relação à diversidade de interpretações a que o simbolismo do Grande sertão pode induzir, é fundamental a análise do gênero romanesco na obra rosiana equacionada por Leonardo Arroyo, em A cultura popular em Grande sertão: veredas (1984):

A própria palavra ‘romance’ revela sentido ambíguo na obra. Tanto é tomada em seu sentido atual, como no sentido tradicional de composição, isto é, cantado ou narrado pelo povo (simbolizado por Riobaldo) com um núcleo central e aspectos formais submetidos a variações no tempo e no espaço pela contribuição do próprio povo e da tradição. (Arroyo, 1984, p. 7)

Segundo Arroyo, o romance tradicional se faz presente no texto rosiano tanto pelas “reminiscências temáticas”, quanto pela linguagem arcaica empregada, revitalizando a fala da região que serve de palco à história e trazendo por meio de “processos narrativos modernos” as simultaneidades das histórias expressas em livros antigos, como as 1001 noites, de Scheherazade. Analisando o erudito e o popular na escritura do Grande sertão, Arroyo observa que Rosa “ao invés de contar estórias, como ouvia e aprendera desde criança, passou a escrevê-las criando ‘lições’ novas da imensa literatura oral. Daí, particularmente, o tônus da oralidade da estória de Riobaldo e mesmo porque nesse tônus remanescem os vestígios da cantilena e do pranto” (Arroyo, 1984, p. 20). Desse modo, Guimarães Rosa utilizou os

elementos das narrativas populares não se submetendo, porém, “à tirania da gramática e dos dicionários dos outros”, como disse em entrevista a Günter Lorenz (Lorenz, 1991. p. 70), deixando, assim, fluir, num idioma próprio, um estilo inovador, lírico, delta de muitos rios.

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Riobaldo, ex-jagunço, é o protagonista e narrador da história que é relatada em um pressuposto diálogo com um doutor proveniente da cidade. A fala do sertanejo, que se inicia por um travessão, estende-se por todo o romance, como um caudaloso rio, sendo apreendida pelo interlocutor, que parece mostrar-se ávido em ouvir as experiências vivenciadas pelo contador. Estórias que exigem tempo e para isso o ouvinte é convidado a permanecer alguns dias nesse intento, tomando notas em uma caderneta, tal qual um avatar do autor. Walnice Nogueira Galvão em “Riobaldo, o homem das metamorfoses”, expõe a seguinte análise:

Tudo indica que João Guimarães Rosa tenha contrabandeado um simulacro seu para dentro do livro. E isso porque muitas vezes se colocou na posição de ouvinte de um narrador sertanejo, cujo relato provocou. Ele mesmo oriundo da vila de Cordisburgo, no sul do sertão de Minas Gerais, onde seu pai, Florduardo Rosa (de nome eminentemente rosiano), era dono de uma venda que ainda hoje lá está, preservada como museu. Todavia, o escritor partiria para a cidade, primeiro para São João del Rei e em seguida para Belo Horizonte, em função de seus estudos secundários e depois superiores, em medicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomática, passaria a viver no exterior; e só na última fase de sua vida moraria no Rio de Janeiro. (Galvão, 2001, p. 239-240)

O velho Riobaldo que rememora o passado acolhe o visitante, segundo ele, “assisado e instruído”, na propriedade herdada do padrinho, Selorico Mendes, de quem, na verdade, era filho bastardo. No proêmio de sua narrativa – relato não linear – explica ao interlocutor que os tiros que este ouvira nada significavam:

– Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos – O senhor tolere, isto é o sertão. (Rosa, 2006, P. 7)

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Prosseguindo no resumo do relato de Riobaldo, este relembra as andanças pelo sertão, primeiramente como professor de Zé Bebelo, uma espécie de representante dos poderosos da região na intenção de extinguir a jagunçagem das terras sertanejas, que o âmbito do romance circunscreve a regiões interioranas de Minas, Bahia e Goiás. Posteriormente, Riobaldo se integra ao bando de Joca Ramiro, combatido pelos bebelos, mas admirado por seus comandados como verdadeiro “par-de-frança” do sertão, em que mandava por lei, “de sobregoverno”. Como homens de confiança de Joca Ramiro, “ombreavam com ele” Ricardão e Hermógenes os quais, traiçoeiramente o assassinaram. Antes disso, entre os companheiros do famoso chefe, Riobaldo reencontra o “Menino”, que conhecera ainda mocinho, por volta dos quatorze anos de idade, à beira do Rio São Francisco, agora tornado no jagunço Reinaldo, ou melhor, Diadorim – “O nome perpetual” – como se diz chamar secretamente o jovem de enigmáticos olhos verdes, que desperta a afeição de Riobaldo e lhe corresponde nesse sentimento, chegando a sofrer por ciúmes, tanto em relação à Otacília, moça a quem Riobaldo prometera casamento, como a Nhorinhá, meretriz de lindo nome. Riobaldo é impulsionado a vingar a morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim, e para isso percorre os sertões em busca do pactário Hermógenes, “Homem sem anjo-da-guarda”. Para realizar seu objetivo, Riobaldo procura acordar com o Diabo, invocando-o na encruzilhada das Veredas Mortas, a fim de conquistar as forças que acredita não dispor.

Diversas circunstâncias fazem com que o bando de jagunços, seguido por Riobaldo, passe por várias chefias: Medeiro Vaz, Sôr Candelário, Marcelino Pampa e até mesmo Zé Bebelo, que parte em captura dos assassinos de Joca Ramiro, de quem obtivera o favor da vida em uma situação adversa. Após a evocação demoníaca, Riobaldo torna-se chefe, com o cognome de Urutú-Branco e segue em busca dos hermógenes, convocando para isso até os catrumanos, moradores das mais remotas regiões, levando ainda em sua companhia o menino Guirigó e o cego Borromeu, na épica jornada em que atravessa, com sucesso agora na segunda tentativa, uma grande extensão desértica, o liso do Sussuarão, para assim atacar de surpresa a fazenda de Hermógenes e raptar-lhe a mulher, a fim de forçá-lo a um confronto.

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Com o passar do tempo, Riobaldo volta às Veredas Mortas e constata que este local não existe, já que o real nome do lugar é Veredas Altas. Doente, devido à perda de Diadorim, Riobaldo é visitado por Otacília, com a qual contrairá matrimônio, fixando residência em uma das fazendas herdadas do pai, Selorico Mendes, de onde conta sua história para o ouvinte- doutor da cidade, refletindo sobre a dúvida que lhe atormentara, a qual em relatos anteriores sempre expunha ao espiritualizado compadre Quelemém de Góis: “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactuário?” Incerteza que parece desanuviar-se nas palavras finais da narrativa:

Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.O Rio de São Francisco que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou, que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... existe é homem humano. Travessia. (Rosa, 2006, p. 607-608)

No propósito de analisar a simbologia mítica do romance rosiano dentre a diversidade de interpretações que o texto pode induzir, é importante destacar a representação do pacto maligno no imaginário sertanejo, assunto estudado por Leonardo Arroyo na intenção de “colocar teses sobre o conteúdo e a origem de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, de filiação e raízes na cultura popular” (Arroyo, 1984, p. 4).

Especificando o título “A Megera Cartesiana” dado à introdução do seu livro, Arroyo procura informar o quanto de intuição se sobrepõe à racionalidade na obra de Rosa, traduzida nas próprias palavras do autor mineiro (em carta ao tradutor italiano, Edoardo Bizzari) como antiintelectual:

Seria longo enumerar a série de estudos inspirados na saga riobaldiana. Parece difícil a abordagem de Grande Sertão: Veredas em termos de objetividade crítica. Esta dificuldade seria decorrente das próprias formas da obra, dos valores múltiplos que a integram e definem como síntese de uma herança cultural de profundas ressonâncias. O romance é uma acumulação cultural, por isto se entendendo o resumo da experiência humana na sua frequência cósmica e na sua formação de camadas de mistérios e espantos do homem. Por isso, por exemplo, o cartesianismo peca por si mesmo e por sua natureza de racionalismo feroz no exame do livro, tais os elementos subjetivos, tradicionais, de folk que dominam e informam o texto. (Arroyo, 1984, p. 4)

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fonte de toda a sabedoria é o próprio homem do povo”, fato muito bem aproveitado por Guimarães Rosa, homem de grande cultura, conhecedor de vários idiomas, que no exercício da medicina percorreu lugarejos perdidos no interior de Minas Gerais, convivendo assim com a cotidiana expressão da cultura popular, a qual em sua obra é ressaltada sobretudo em forma de provérbios. Arroyo observa que temas da literatura popular, como o da “donzela que vai à guerra” motiva a narrativa riobaldiana na emblemática figura de Diadorim, mulher que se faz passar por homem nos embates travados no sertão, despertando em Riobaldo um tumultuado sentimento. Do ponto de vista formal, conforme Arroyo, a história de Riobaldo assimilaria elementos característicos da novela de cavalaria especificados pelo estudioso na forma de cantilena anônima, poema de aventuras, novela em prosa, além do “uso dos processos orais de narrativa com a interposição e alternatividade confusa dos planos discursivos como é característico do caso oral contado” (Arroyo, 1984, p. 88).

MEMÓRIA CULTURAL

Sedimenta-se, no que Arroyo intitula de “Cultura de Herança”, ou seja, superstições, crenças, usos e costumes, no relato riobaldiano a explicação para a questionada “agilidade mental, discursiva e metafísica num homem ignorante do sertão”, tal qual Riobaldo, que define-se como leitor de almanaques e fazedor de versos, alguns destes, já ilustrados anteriormente, humildemente avaliados por ele como “sem razoável valor”.

Além disso, Arroyo destaca o contato de Riobaldo com um livro muito conhecido em todo o interior brasileiro, o Saint Clair das Ilhas, obra encontrada pelo jagunço em um sítio denominado “Currais do Padre”, que curiosamente, “não tinha curral nenhum, nem padre” (Rosa, 2006, p. 379): trecho emblemático do romance, que me inspirou a dar título a esta dissertação de mestrado.

Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava ‘Senclér das Ilhas’, e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias. (Rosa, 2006, p. 380)

Referências

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