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O Museu Paulista da USP e a memória da Independência.

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Academic year: 2017

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O MUSEU PAULISTA DA USP E A MEMÓRIA DA INDEPENDÊNCIA

CECILIA HELENADE SALLES OLIVEIRA*

ABST RACT: O objetivo deste artigo é discutir os vínculos entre o Museu Paulista da USP e o movimento de construção e atualização da memória da Independência, problematizando-se por meio des-sas relações o papel pedagógico assumido pela instituição, parti-cularmente na primeira metade do século XX. Pretende-se desse modo contribuir para a reflexão sobre a maneira pela qual um mu-seu de história pode ser interpretado como “lugar de memória” e como espaço para a formulação e encaminhamento de problemas históricos.

Palavras-chave: Museu Paulista. Memória. Independência. História.

THE PAULISTA MUSEUMAT USPANDT HEMEMORYOF INDEPENDENCE

ABSTRACT: This paper is aimed at discussing the links between the Paulista Museum at the University of São Paulo and the construction and updating processes of the memory of Independence. It also focuses on the pedagogic role this Institution played, mainly during the first half of the XXth century. It thus intends to contribute to the comprehension of museums of history as “places of memory” and as spaces where historical problems are formulated and dealt with.

Key words: Paulista Museum. Memory. Independence. History.

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ão bastante conhecidas as vinculações entre o Museu Paulista da

USP e as práticas celebrativas que cercam a independência do

Bra-sil. Todos os anos, no dia de 7 de setembro, simultaneamente a desfiles e comemorações oficiais, o Parque da Independência, no bair-ro do Ipiranga, em São Paulo, recebe significativo contingente de pes-soas que ali se concentra, apropriando-se dos jardins e do espaço pú-blico, para visitar e reverenciar a Casa do Grito e o Museu, assim como a cripta, localizada no Monumento ao Centenário de 1922, onde estão depositados os restos mortais de D . Pedro, de D a. Leopoldina e de Da. Amélia.

No entanto, do mesmo modo como essas manifestações se re-vestem de complexidade muito maior do que à primeira vista fazem supor, as relações entre o Museu Paulista e a independência também apresentam importantes particularidades a serem consideradas. Abordá-las significa reconhecer, antes de tudo, que se situam no âm-bito do movimento histórico e político de conformação da memória da independência e de construção da data de 7 de setembro de 1822 como marco da história nacional, processo que se desdobrou duran-te todo o século XIX, em consonância com o delineamento da Mo-narquia Constitucional e do Estado Nacional, e que assumiu con-tornos ainda mais singulares quando da organização da República.

Ou seja, ao contrário daquilo que freqüentemente se imagina, a proclamação do príncipe D. Pedro, na colina do Ipiranga e às mar-gens do riacho do mesmo nome, não teve repercussão no momento de sua ocorrência. Além de não merecer acolhida especial da parte dos inúmeros e atuantes jornais que circulavam na Corte do Rio de Janei-ro e em várias outras regiões do então Reino do Brasil, a ela também não se referiram os membros do governo da Regência e tampouco foi àquela época interpretada como baliza definidora do curso da histó-ria. Nem mesmo D. Pedro na Carta dirigida aos paulistas, datada de 8

de setembro, deixou registros específicos a respeito do episódio do dia anterior.1 No documento, a expressão “Independência ou morte”,

lon-ge de referenciar um evento memorável ou uma situação consumada e irreversível, apresentava o caráter de palavra de ordem e sua contundência estava entrelaçada muito mais à possibilidade efetiva, naquela ocasião, da deflagração de uma guerra civil que a uma decisão que determinava um suposto desfecho para circunstâncias tão nuança-das quanto aquelas. Isso evidencia, conforme tem sugerido a mais re-cente produção historiográfica sobre o tema, que, em fins de 1822, as condições políticas e os enfrentamentos sociais estavam imbricados com

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questões, debates e lutas armadas cuja complexidade e amplitude su-peram tanto a consagrada controvérsia entre as cortes em Lisboa e o governo sediado no Rio de Janeiro quanto a recortada discussão em torno da união ou da separação em relação a Portugal.2

Neste sentido, da mesma forma como vem sendo profundamen-te inprofundamen-terrogado o processo histórico em andamento no início do século XIX, cabe questionar a sacralizada associação entre a data de 7 de se-tembro, a colina do Ipiranga e a Proclamação da Independência, problematizando-se, por essa via, o modo pelo qual o Museu Paulista e sua trajetória institucional se inscreveram no movimento de delimi-tação espacial e temporal do episódio que teria promovido o “nasci-mento da nação”.

I. A construção política da data de 7 de setembro

A proposta de considerar-se a data de 7 de setembro como dia de festa nacional comemorativo do “aniversário da independência bra-sileira”, em todo o território do Império, surgiu, pela primeira vez, em setembro de 1823, durante as discussões travadas na Assembléia Constituinte e coincidiu com a iniciativa aventada por membros do governo da província de São Paulo de erguer-se um monumento em memória ao ocorrido no “lugar denominado Piranga”. Entretanto, ne-nhuma das duas proposições chegou a concretizar-se. Em razão dos desdobramentos provocados pela dissolução da Assembléia, pela ou-torga da Constituição de 1824 e pela Confederação do Equador, esse debate foi retomado apenas em 1826, sendo significativo o fato de que, entre 1822 e 1825, a data de 7 de setembro sequer figurou no calendário de celebrações do Império, entre as quais se encontravam o Dia do Fico, 9 de janeiro, e o dia 12 de outubro, natalício de D. Pedro e data de sua aclamação popular como imperador.

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na década de 1860, dois outros integrantes da comitiva de D. Pedro – o tenente Canto e Mello, pai da Marquesa de Santos, e o coronel Marcondes – tornaram públicas suas rememorações, pouco acrescen-tando, porém, à descrição feita por Belchior.3

Concisa e concentrando-se nos instantes imediatos que cerca-ram o ato da proclamação, a narrativa recuperou o momento em que o príncipe e seus companheiros de viagem se encontraram com os mensageiros vindos do Rio de Janeiro, procurando fixar a reação do jovem regente às notícias contidas nas mensagens que recebeu. Em meio a gestos movidos pela “raiva” e pelo impulso em não aceitar a “escravidão” e a “perseguição” que pareciam emanar das decisões dos deputados em Lisboa, D. Pedro, num ato dramático de vontade in-dividual, teria arrancado do chapéu o laço azul e branco, símbolo estabelecido pelas cortes, desembainhado a espada e se decidido pela separação de Portugal, sendo imitado por toda a comitiva.

Registro fundamental na conformação da memória do 7 de se-tembro, em termos do significado conferido à data e ao lugar, essa crô-nica recriou o episódio selando a associação entre independência e se-paração de Portugal ao mesmo tempo em que minimizou confrontos, reduzindo-os à atuação das cortes, atribuiu caráter heróico ao “grito” e a seu autor. De forma muito oportuna reabilitava a imagem de D. Pedro, já que nessa ocasião o imperador enfrentava oposições e via sua popularidade esgarçar-se, seja na Câmara dos Deputados, seja na im-prensa, em virtude, principalmente, de seu envolvimento na sucessão do trono português e do encaminhamento dado aos conflitos na re-gião do Prata.

Pouco tempo depois, essa versão ganhou o estatuto de aconte-cimento histórico inquestionável com a publicação da História dos principais sucessos do Império do Brasil, elaborada por José da Silva

Lisboa, Visconde de Cairu, em cumprimento à solicitação feita pelo próprio imperador, obra esta a ele dedicada.4 Composta por quatro

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repre-sentação emblemática do episódio do Ipiranga. Erudição e aparente neutralidade foram recursos mobilizados por Silva Lisboa para a cri-ação dessa obra indissoluvelmente imbricada com a luta política. Na ocasião senador do Império e homem público de grande prestígio, havia participado da reorganização da monarquia portuguesa no Rio de Janeiro e atuara diretamente na defesa da proposta separatista e da opção monárquica. Experiência política, saber acumulado e aces-so à diversificada documentação sustentaram uma reconstituição li-near da dinâmica dos acontecimentos pautada pela inevitabilidade da separação, que foi explicada a partir do desenvolvimento social e cultural promovido pelo governo joanino e como decorrência da atu-ação “arbitrária” das cortes em Lisboa. Mas, ao lado disso, Silva Lis-boa ressaltou a atitude vanguardeira e predestinada de D. Pedro, fi-gura talhada desde a infância para ser um monarca constitucional e que por suas qualidades individuais fora capaz de intervir na escrita da história e determinar a ruptura com o reino europeu sem que, segundo o autor, a continuidade institucional fosse quebrada.

Apaziguando os conflitos, situou-os no interior de uma oposi-ção formal entre “brasileiros” e “portugueses europeus”, entre “mo-narquistas” e “recolonizadoras cortes de Lisboa”. De forma acurada, desenhou os protagonistas e dissolveu o movimento matizado de lu-tas políticas e sociais que ainda se desdobrava à época da publicação da obra. E, enquanto o espaço no qual se desenrolava a política foi preenchido pela imagem do jovem governante, a sucessão de even-tos obedeceu a rigorosa cronologia na qual se destacam cinco mo-mentos considerados como decisivos: 1808 (a chegada da Corte por-tuguesa ao Rio de Janeiro); 1820 (revolução em Portugal); 1821 (juramento de D. João VI à futura Constituição elaborada pelas cor-tes em Lisboa e início da Regência de D. Pedro); 7 de setembro de 1822 (proclamação da Independência pelo príncipe e abertura de “nova era” para o Brasil); e 12 de outubro de 1822 (coroamento do 7 de setembro com a aclamação pública do imperador).

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do 7 de abril, transformando-se em arma de oposição a D. Pedro, como se só então a liberdade política e a emergência da nação, pre-conizadas em 1822, pudessem se consolidar.

Ao longo do século XIX forjaram-se múltiplas e dissonantes memórias sobre esse momento. Tema da história e da política, a in-dependência – à qual se encontravam atreladas questões como as da cidadania, da participação popular e da natureza do Estado Nacio-nal e da Monarquia ConstitucioNacio-nal – foi reavivada de forma recor-rente, seja na fala de liberais, seja na fala de conservadores, adqui-rindo sentidos particulares dependendo das condições da luta política e do lugar social ocupado por quem a rememorava. E na década de 1870, quando da organização de agremiações republicanas, ao mes-mo tempo em que se retomes-mou, sob condições singulares, a discussão sobre o caráter da Monarquia, o exercício do Poder Moderador, a cen-tralização político-administrativa e a origem da nação, recriaram-se também versões outras acerca do movimento de independência, da data de 7 de setembro e do percurso histórico do Império.

Neste sentido, na segunda metade do século XIX, o comple-xo universo de representações sobre o passado abrigava versões con-traditórias e, ainda que seja possível estabelecer articulações entre elas, é preciso reconhecer que não apresentam linearidade, pois que iluminadas pelas circunstâncias precisas do momento de sua produ-ção. Assim, ao passo que em textos literários das décadas de 1850 e 1860, como os de Paulo Antônio do Valle, o 7 de setembro aparecia identificado ao momento em que, do alto da colina do Ipiranga, “D. Pedro protestou pelo direito sagrado da liberdade de um povo opri-mido”, o periódico paulistano O Polichinello, em 1876, observava que

“o 7 de setembro é a página mais sombria que se pode escrever no livro de uma História Nacional; é a eterna condenação de um povo inteiro porque consentiu que no seio livre e democrático da América se assentasse um trono...”.5

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I no Rio de Janeiro e o Monumento do Ipiranga em São Paulo – im-bricaram-se com os ditames das disputas político-partidárias.

Isso não quer dizer que, até então, não se houvessem enraizado práticas celebrativas, seja em relação à data, seja em relação ao lugar da proclamação, ou que gravuras e pinturas não se tivessem detido so-bre o episódio. Ao menos em São Paulo, há informações a respeito de festividades realizadas no “sítio do Ipiranga” durante as décadas inici-ais do século XX e, conforme descrição de Manuel Eufrázio de Azeve-do Marques, nos Apontamentos para a história da província de São Pau-lo (consta outro nome na nota abaixo!?) desde 1825 o provável local da proclamação fora assinalado por marco em pedra.6 Em

contra-partida, o “aniversário” da independência era geralmente comemora-do com um Te Deum patrocinado pelas câmaras municipais e, em

vá-rios anos ao longo do Império, a data de 7 de setembro coincidiu com eleições parlamentares. Além disso, havia registros iconográficos sobre D. Pedro e sobre o ato da independência, a exemplo da pintura con-feccionada em 1844 pelo artista francês François-René Moreaux, per-tencente ao acervo do Museu Imperial em Petrópolis.

Entretanto, como sugeriu Pierre Nora, na introdução à cole-tânea Les Lieux des Mémoires,7 os monumentos jogaram peso decisivo

na configuração da memória nacional no século XIX, pois expressa-vam a intenção deliberada, por parte de segmentos políticos defini-dos, de defender do movimento indeterminado da história fragmentos do passado reconstituídos por intermédio de abordagens e focos pre-cisos. Neste sentido, assumindo a configuração de “lugares de me-mória”, na feliz concepção do historiador, os monumentos não fo-ram obras pacificamente idealizadas, e sim construções destinadas a resguardar poderes e saberes sobre o passado e sobre as origens da nação que se achavam ameaçados pela própria complexidade do cur-so da história e da política.

A estátua eqüestre de D . Pedro I inaugurada, em 1862, na Praça da Constituição (hoje Praça Tiradentes), no Rio de Janeiro, su-gere não só a projeção de memória singular acerca da proclamação de 7 de setembro como indica, com clareza, a imbricação entre po-lítica e construção da memória nacional.

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con-tribuíssem com os custos da obra, vários artistas foram convidados a participar do concurso que deveria eleger o projeto estético e histó-rico considerado como mais adequado. Em 1856, foi selecionada a concepção escultural – idealizada por João Maximiano Mafra, pro-fessor da Academia Imperial de Belas-Artes e construída pelo escul-tor francês Louis Rochet – que celebra, simultaneamente, o “grito” do Ipiranga e a outorga da Constituição, e que expõe a figura de D. Pedro I sobre um cavalo, no ato da declaração de 1822, e segurando nas mãos a Carta de 1824, acima de uma base na qual se agregaram quatro agrupamentos menores, compostos por índios e animais re-presentando os rios Amazonas, Madeira, Paraná e São Francisco.8

Inicialmente prevista para 12 de outubro de 1859, a soleni-dade de inauguração foi sendo sucessivamente transferida e, por fim, deveria realizar-se a 25 de março de 1862, celebrando-se os 40 anos de independência no dia em que se rememorava a outorga da Cons-tituição do Império. No entanto, em razão da chuva intensa, mais uma vez a homenagem foi adiada.

Em seu Diário, D. Pedro II assinalou os “desgostos” e as

“con-trariedades” ensejados pelos inúmeros artigos publicados nos jornais fluminenses contra a escultura, entre os quais um em especial, es-crito pelo político liberal Teóphilo Ottoni, que apelidou a estátua de “mentira de bronze”. Preocupavam-no as implicações da soleni-dade: por um lado, orientou o gabinete conservador, chefiado por Caxias, a adiar o evento, temendo que as oposições – naquele mo-mento tanto de liberais quanto de dissidências conservadoras – ex-plorassem o fato de o governo não avaliar o estrago da chuva na saú-de e “bolsa” dos espectadores da festa, ou acusassem o gabinete saú-de valer-se da chuva para impedir “grande ajuntamento de povo” por “receio” de manifestações contrárias. Ao mesmo tempo, o imperador temia que, caso o mau tempo se prolongasse, a cerimônia ficasse ir-remediavelmente comprometida pela proximidade do 7 de abril.9

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“contra-revolução”. Como não vincular essas expressões ao momento particular em que se manifestava a chamada Liga Progressista e em que os partidos liberal e conservador encontravam-se em movimento de redefinição? De que maneira desvincular a solenidade, bem como o intuito do gabinete conservador e de D. Pedro II de patrociná-la, das disputas mais amplas que colocavam sob o crivo da crítica tanto o passado quanto o próprio sistema constitucional vigente?

II. Um monumento no Ipiranga: de marco celebrativo a Museu Paulista

Questões dessa mesma natureza podem ser levantadas em re-lação aos debates e desencontros que assinalaram a construção do Monumento do Ipiranga em São Paulo, palácio majestoso que, ide-alizado e erguido na década de 1880, demarcou definitivamente o lugar da proclamação de 7 de setembro, assinalando, de forma ima-ginária, o ponto a partir do qual teria se originado a nação.

O u seja, também nesse caso, foram circunstâncias políticas complexas e ainda não completamente desvendadas que, na Corte e em São Paulo, sustentaram a concretização de proposta já discutida inúmeras vezes ao longo do Império, mas sempre rechaçada sob a problemática alegação da falta de recursos financeiros. Basta lembrar, neste sentido, que a “questão do Ipiranga”, como foi chamada por vários órgãos da imprensa paulista, a exemplo de A Província de São Paulo, foi se definindo, principalmente entre 1885 e 1890, período

da construção do edifício-monumento, simultaneamente à intensi-ficação da propaganda republicana e aos nuançados desdobramen-tos político-partidários do debate em torno da emancipação dos es-cravos, do movimento abolicionista e da imigração.

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Sempre ameaçada, a construção do monumento, do ponto de vista da conformação da memória, era tributária, em certa medida, das matizadas recriações que cercaram o episódio durante o século XIX. Porém, os políticos do Partido Conservador que o conceberam revesti-ram-nas de dimensões inéditas que não se restringiram às linguagens específicas com as quais procuraram traduzir e perenizar um passado irremediavelmente perdido. Para eles, vencer a “ação destruidora do tempo” e a “contrariedade dos homens”, como afirmou Ramalho, que presidiu a comissão encarregada das obras, era recompor, em hora marcada por profunda avaliação da Monarquia, uma memória recor-tada, mas positiva, da independência, do Império e de seu fundador. E quanto a isso foram bem-sucedidos, pois o edifício resguardou o “fato independência” como nenhuma das outras rememorações havia fixado, projetando-o como fragmento temporal e espacial cuja reali-dade supostamente precedia qualquer interpretação.

Edificado originalmente para projetar a versão conservadora da proclamação da independência e da fundação do Império, o palá-cio-monumento adquiriu, entretanto, outros significados a partir da organização da República. A memória e a tradição que atrelaram o 7 de setembro de 1822 à emergência da Monarquia reapareceram, na década de 1890, modificadas pela articulação do ato da indepen-dência ao “renascimento da nação”, tal como proposto pelo ideário republicano. Apropriado em 1893 para se transformar em museu público, sustentado pelo governo do Estado de São Paulo, o monu-mento foi um dos suportes do entendimonu-mento, hoje banalizado, de que as origens nacionais se confundiam com o “progresso das terras paulistas”, sintetizado na colina do Ipiranga, uma das portas de en-trada da cidade de São Paulo e caminho a articular as riquezas planaltinas com o principal porto exportador em Santos.

Sob os desígnios da República, o edifício metamorfoseou-se em poderoso recurso na difusão de uma nova leitura da história na-cional, o que impingiu feições peculiares à memória da independên-cia. As lideranças republicanas sustentavam o “governo do povo pelo povo”, apregoando uma participação política ampliada. Ao mesmo tempo, acreditavam que a viabilidade deste princípio dependia da superação da “ignorância geral da população”. Assim, desse ponto de vista era imperativo “emancipar o povo”, impondo-lhe uma edu-cação preparatória da cidadania.

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pes-quisa e a instrução popular no campo das ciências naturais. No en-tanto, esse direcionamento não impediu que coleções de insetos, pei-xes e répteis, por exemplo, convivessem com a presença impactante da tela de Pedro Américo e com salas destinadas à apresentação de “objetos históricos” atribuídos a vultos renomados, como José de Anchieta e Martim Afonso de Souza. Além disso, a ênfase na histó-ria natural não colidia com as características de lugar privilegiado para a celebração da memória nacional.

Não foi por acaso, portanto, que a partir dessa época, em São Paulo, as festividades cívicas em torno da independência passaram a ser realizadas no monumento-museu, inventando-se, por essa via, o ritual de peregrinação ao sítio onde o Brasil-nação teria se origina-do, prática que continua sendo atualizada contemporaneamente. As-sim, o majestoso prédio passou a articular significações estéticas, celebrativas, científicas e pedagógicas.

E a esse respeito são sugestivas as observações feitas por Marie Robinson Wright, em 1902:

(...) O principal ponto de atração de todos os visitantes da cidade é o Ipiranga, o magnífico monumento erigido em 1885 no lugar onde foi proclamada a Independência do Brasil em 1822. É a mais bela realização da arquitetura brasileira, planejada não só para comemorar esse glorioso evento mas também para servir como “instituição de conhecimentos”. O Museu do Ipiranga possui tesouros de grande interesse histórico e cientí-fico; valiosas e curiosas relíquias e também algumas das melhores pintu-ras de artistas bpintu-rasileiros (...).10

Já em 1912, outro cronista, Archibald Stevenson Forrest, co-mentava:

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desenhada, com belas escadas e luxuosas galerias em uma das quais está um enorme quadro ilustrando o episódio “Independência ou Morte!...”11

Estas impressões testemunham a maneira pela qual, no início do século XX, o monumento-museu havia sido incorporado ao coti-diano da cidade, servindo como local de passeios e recreio para dife-renciados segmentos sociais. Além disso, nessa mesma época, torna-ra-se também lugar de visitação obrigatória para professores e estudantes, como revelam as palavras do zoólogo Hermann von Ihering, primeiro diretor da instituição:

(...) O dia 7 de setembro, que o Monumento do Ipiranga comemora, foi aqui dignamente festejado em 1912. Graças aos esforços empregados pelo governo, a solenidade teve brilho excepcional, devido ao concurso das es-colas públicas que enviaram para mais de 10.000 crianças; o monumento artisticamente ornamentado bem como o grande jardim onde se armaram barracas para os pequenos convidados, apresentavam belíssimo aspecto (...).12

No entanto, a atuação pedagógica desempenhada pelo museu ul-trapassava seu caráter de agente “conservador” de um passado heróico. A prática de rememorar acontecimentos e personagens exponenciais da história do Brasil e de São Paulo dava-se em concomitância à exposição da natureza exuberante do país. Mediatizados por um saber classifi-catório, estavam colocados à disposição do público os mais variados exemplares da fauna e da flora paulistas e brasileiras aos quais se agre-gavam rochas, minerais, vestígios arqueológicos, bem como “amostras” da cultura dos “primitivos” habitantes, grupos indígenas que teimavam em sobreviver ao avanço da “civilização”.

Em uma primeira aproximação, e levando-se em conta as consi-derações de Circe Bittencourt sobre a “escola popular” (escola primária e ginasial) do período, é possível considerar que efetivamente o Museu Paulista representava papel importante na difusão da “história pátria”, pois o ensino dessa disciplina não se limitava à sala de aula, envolvendo práticas educativas públicas, como festas comemorativas e eventos des-tinados a lembrar os “heróis nacionais”.13 E a esse respeito são

significa-tivas as palavras de José Veríssimo escritas nos fins do século XIX:

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Por outro lado, as comemorações, sejam as que se voltavam para a exaltação dos símbolos nacionais, como hino e bandeira, se-jam as que envolviam desfiles, como no caso do 7 de setembro, pos-suíam raio de ação educativa mais amplo: realizadas em lugares pú-blicos e à luz do dia serviam para “educar” e envolver pessoas que não freqüentavam os bancos escolares.

III. O Centenário da Independência e o perfil de museu de história

No entanto, a inserção do museu no âmbito das práticas pe-dagógicas e das concepções políticas republicanas adquiriu novos contornos especialmente a partir da década de 1920. Nessa ocasião, o Museu Paulista, que popularmente era (e ainda é) conhecido como Museu do Ipiranga, começou a transformar-se em museu propria-mente de história, graças às intervenções estéticas e historiográficas projetadas e consumadas por Afonso de Escragnolle Taunay, que di-rigiu a instituição de 1917 a 1945.

Durante sua gestão, Taunay, com o apoio de políticos e empresá-rios, foi gradualmente reorganizando as áreas expositivas, substituindo coleções zoológicas e botânicas por acervos destinados à rememoração de fatos históricos e tradições brasileiras e paulistas. Passo decisivo nessa direção foi dado quando da montagem conceitual e física da decoração interna do prédio, existente ainda hoje, e que visava a celebrar o Cente-nário da Independência, em 1922, o que contribuiu para reforçar ain-da mais os laços entre a instituição e a memória nacional.

Em linhas gerais, o conjunto figurativo, planejado com esmero, ocupa o saguão de entrada, a escadaria de mármore, os espaços que a cercam e o Salão Nobre, fazendo do eixo central do edifício um “ca-minho”, demarcado por episódios e personagens que representam o percurso da história de São Paulo e do Brasil, e que se inicia com a colonização encontrando seu desfecho na independência. Sob feições teatralizadas e formais, pinturas, retratos, esculturas de mármore e bronze, bem como as ânforas de cristal contendo as águas dos princi-pais rios brasileiros, compõem o cenário de um espetáculo visual, es-teticamente impressionante, e que procura mobilizar sensibilidades para a “realidade objetiva” e aparentemente inquestionável do passado ali apresentado.

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de protagonistas decisivos da definição do território e das fronteiras –, e os políticos que teriam coadjuvado D. Pedro I na concretização da obra nacional. Mas o ponto culminante é, sem dúvida, o Salão No-bre onde estão reunidas a tela de Pedro Américo, os retratos de Da. Leopoldina, Maria Quitéria, José Bonifácio, Joaquim Gonçalves Ledo, José Clemente Pereira e padre Feijó. Ali foram arranjadas mais duas telas: uma, representando o episódio de expulsão das tropas portu-guesas do Rio de Janeiro e outra, celebrativa da atuação dos deputa-dos brasileiros nas cortes em Lisboa.15

Ainda no Salão Nobre há objetos e manuscritos expostos em vi-trinas e dentre eles chamam especial atenção: porcelanas e relógios per-tencentes à família imperial; bilhetes autografados por Da. Leopoldina e José Bonifácio; um capacete em latão da Guarda de Honra do pri-meiro imperador, que reproduz em dimensão tridimensional os capa-cetes desenhados por Pedro Américo no conhecido painel; e madeixas das esposas de D. Pedro I e da princesa Isabel.

A disposição espacial de objetos, retratos e imagens que com-põem a decoração interna revela uma proposta de comunicação com o público, que ainda é capaz de motivar entusiasmo cívico, fruição estética e memorização. A narrativa histórica transformada em lin-guagem visual, ao menos nos moldes concebidos por Taunay, deve-ria convencer homens e mulheres simples, e especialmente jovens es-colares, da existência “real” das pessoas e dos eventos cuidadosamente selecionados para delinear a trajetória nacional. Neste sentido, o pro-jeto de Taunay ancorava-se em uma concepção museológica bastan-te difundida em sua época e que, em certa medida, não foi total-mente superada, apesar do enorme debate que cerca as relações entre museus e ensino de história.

Nessa concepção, o museu deveria congregar coleções ordena-das e classificaordena-das, reunindo, além disso, coisas raras e únicas (a exem-plo da mecha de cabelos de Da. Leopoldina) expostas com sabedo-ria para “instruir o olho a olhar”. Sua importância maior estasabedo-ria na conservação e exposição de “provas autênticas” das atividades e reali-zações humanas. Ou seja, os museus de história estariam destinados a promover a “visualização do passado como realidade experiencial”, conforme observou Stephen Bann, como se fosse possível traduzir em uma outra linguagem os manuais escolares.16 D aí o empenho de

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A questão é que “monumentos” e “valores de época” são em-blemas de uma celebração. Não foram escolhidos e ali colocados para suscitar questionamentos a respeito do processo histórico da independência, mas para autenticar a memória da independência inscrita nas figuras e imagens que formam a decoração interna do prédio. Isso quer dizer que, no caso específico dessa temática, a visitação ao Museu Paulista significa sobretudo presenciar um “lu-gar de memória” no qual se entra em contato com uma represen-tação singular do passado, fundada na sobreposição de duas temporalidades distintas: a da época em que o palácio-monumen-to foi construído e a do momenpalácio-monumen-to em que a ornamentação interna foi elaborada. O que se vê não é a história, e sim suportes visuais e físicos de uma memória que em torno do 7 de setembro foi criada e reelaborada.

Mas talvez resida aqui justamente uma possibilidade enrique-cedora de incorporar o museu aos pressupostos que balizam o ensino fundamental e médio: por que não interrogar os sentidos dessa me-mória, transformando-a em problema histórico sempre aberto a múl-tiplas releituras? E, neste sentido, por que não valorizar o museu como mais um espaço de reflexão no qual a convivência com objetos, com fontes históricas de natureza singular, aponte para outros referenciais de conhecimento?

Notas

1 . CINT RA, F.A. D. Pedro I e o grito da independência; transcrição de documentos. São Paulo: Melhoramentos, 1921.

2 . Ver sobre o assunto: O LIVEIRA, C.H.S. Independência e práticas liberais questões para debate. São Paulo: IEA/USP, 1997.

3 . A crônica do Padre Belchior foi reproduzida por Assis Cintra na obra já citada. 4 . LISBOA, J.S. História dos principais sucessos do Império do Brasil. Rio de Janeiro: T

i-pografia Nacional e Imperial, 1827/1830.

5 . O texto de Paulo do Valle foi reproduzido por Assis Cintra na obra mencionada. Quanto ao periódico O Polichinello, consultar a edição fac-similar publicada pelo Ar-quivo do Estado de S. Paulo, em 1986.

6 . MARQUES, M.E.A. Apontamentos históricos, geográficos, biográficos, estatísticos e noticio-sos sobre a província de São Paulo. São Paulo; Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1980. 2v.

7 . NO RA, P. (Dir.). Les lieux des mémoires. Paris: Gallimard, 1984/85. 5v. Consultar especialmente a introdução ao primeiro volume.

8 . Sobre o assunto consultar: SOUZA, I.L.S.C. Pátria coroada. São Paulo, UNESP, 1999.

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1 0 . WRIGHT, M.R. T he new Brazil (1902). Fragmentos da obra recolhidos por Ernani da Silva Bruno e editados no livro Memória da cidade de São Paulo. São Paulo: Prefei-tura Municipal/D PH, 1981.

1 1 . FORREST, A.S. A tour through South America (1912). In: BRUNO, E. S., ob. cit., p.

1 7 2 -1 7 3 .

1 2 . IHERING, H. von. O Museu Paulista nos anos de 1910, 1911 e 1912. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v.9, p. 8, 1914.

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