1 Esteartigoresultadadissertaçãodemestrado“Doscomplexosfamilia-resaoDiscursodeRoma:Lacanrumoàracionalidadeestruturalista”, defendidanaUniversidadeFederaldeSãoCarlos,orientadapeloProf. RichardTheisenSimankeefinanciadapelaCAPES.
2 Endereço:RuaRafaeldeAbreuSampaioVidal,2729,ap.64TijucoPreto, SãoCarlos,SP,Brasil13566-220.E-mail:lea_silveira@uol.com.br 3 Doravante,referidoapenascomoDiscursonopresentetrabalho.
Linguagemno
DiscursodeRoma
:
ProgramadeLeituradaPsicanálise
1LéaSilveiraSales2
UniversidadeFederaldeSãoCarlos
RESUMO–Omaiscaracterísticoprogramalacanianodeleituradapsicanálise–aquelequeconclamaretornaraFreud–é paradigmaticamenteanunciadoem1953noDiscursodeRoma.Nessaconferênciacapital,apsicanáliseésubmetidaauma “tradução”baseadaeminstrumentaisbastanteespecíficos,notadamente,nosqueprovêmdasfilosofiasdeKojèveedeHeidegger edaantropologiadeLévi-Strauss.Comumaanáliseinternadessetexto,buscaremosacompanharalgunscomponentesdesse programa–especialmenteosqueserelacionamaostemasdaoposiçãofalavazia/falaplena,daintersubjetividadeedaordem simbólica–comointuitodepromoverumaaproximaçãodeseusentido.
Palavras-chave:epistemologiadapsicanálise;psicanáliselacaniana;linguagem;fala.
Languageinthe
RomeDiscourse
:
ProgramtoReadPsychoanalysis
ABSTRACT–Themostcharacteristiclacanianprogramofreadingpsychoanalysis–theonewhichclaimsareturntoFreud –isparadigmaticallyannouncedin1953intheRomeDiscourse.Inthiscapitalconference,psychoanalysisissubmittedtoa “translation”basedonveryspecificinstruments,mainlythosewhichcomefromKojève’sandHeidegger’sphilosophiesand fromLévi-Strauss’santhropology.Withaninternalanalysisofthistext,wewilltrytofollowsomecomponentsofthisprogram –speciallythoserelatedtotheoppositionemptyspeech/fullspeech,theintersubjectivityandthesymbolicorder–withthe purposeofpromotinganapproachingtoitsmeaning.
Keywords:epistemologyofpsychoanalysis;Lacanianpsychoanalysis;language;speech.
forçadadeLacanàpresidênciaeafundaçãodaSociedade FrancesadePsicanálise(SFP).Osmotivosdadissidência giravamemtornodedoisprincipaispontos,ambosrelacio-nadosadivergênciasteóricas:afaltadeortodoxiadoestilo deLacannaefetuaçãodeseustratamentosearigidezdo programadoentãonascenteinstitutodepsicanáliserespon-sávelpelaformaçãodosfuturospsicanalistas.Esseinstituto eraencabeçadoporSachaNachtqueescolheraparaepígrafe deseusestatutos–e,portanto,comolemadoinstituto–uma citaçãoqueindicavaqueaexistênciadapsicanáliseeraape-nasaexpressãodeumramodaneurobiologia.Éomesmo trechoqueLacan,porsuavez,citacomdesdémeironiacomo epígrafedeseuprefácio.Decertaforma,comoindicaMacey (1988),aspropostasformuladasnoDiscursoconstituemuma resposta,emcontraponto,aodirecionamentoconferidopor Nacht à formação dos psicanalistas e, por conseguinte, à psicanálisecomoumtodo.
OpúblicodestinatáriodoDiscursoeraemsuamaioria compostodaquelesqueapoiavamomovimentoseparatista encabeçadoporDanielLagache,quereconheciamemLacan umdoslíderesdessemovimentoeparaquemelepoderia exporlivrementetantoarevoltaeacontundênciadesuas tesescontrapostasàortodoxiadaSPP,quantoadiferença marcantedeseuestilo.Porisso,essetextofoiconsiderado a magna-carta desse importante capítulo da história das instituiçõespsicanalíticasfrancesas.
QuantoàtécnicadeLacan,elaserecusavaasesubmeter àsnormasipeístas–especialmenteàquelarelativaàdura-çãodassessõesestipuladanecessariamenteemtornode50
Funçãoecampodafalaedalinguagemempsicanálise éotítulodeumrelatórioproduzidoporLacan,em1953, e que é mais comumente conhecido como oDiscurso de Roma3. Texto considerado programático – pois defende a tese característica ao pensamento lacaniano da década de 50 – seu tom polêmico deve-se a uma circunstância históricaespecíficacujaexplicitaçãooautorsededicano prefácio: trata-se, para ele, de se opor radicalmente tanto àteoriaquantoàtécnicadadoutrinaclássica,abrindoum novo horizonte de inteligibilidade para a psicanálise. É o próprioLacanquemconfirmaaimportânciadareferência aocontexto:“Odiscursoqueencontraremosaquimerece serintroduzidoporsuascircunstâncias.Poiseletrazdelas amarca.”(1953b/1966,p.237).
minutos–inaugurandoassimasfamosas“sessõescurtas”. Ainsistêncianessetipodeprática,acompanhadadadefesa teóricadaduraçãovariáveldasessão–cujosprimórdiosse localizamnotextosobreotempode1945–,foioestopim deseuposteriorafastamentodecisivodaIPAnoinícioda décadade60,quandosedesfezaSFPeolacanismoencon-trouenfimseulugarcomovertentepsicanalíticaespecífica, emsuadoutrinaeemsuatécnica,quenãomaisprocurariao reconhecimentodainstituiçãofundadaporFreud.
AntesdeaparecernosEscritos,otextoforapublicado noprimeirovolumedeLapsychanalyse,de1956,revista fundadapelaSFPapósareferidadissensão.Entreosdoispe-ríodos,Lacansubmeteuotextoapequenasrevisões,algumas dasquaisconsistiram,segundoWilden(1968),emamenizar umpoucoaentusiásticaacolhidadispensadaàantropologia estruturaldeLévi-Straussem1953eem1956.Valelembrar queasegundametadedadécadade60correspondejusta-menteàfaseinicialdodeclíniodoparadigmaestruturalista, durante a qual diversos desdobramentos do pensamento francêspropunhamumareflexãoemtornodecríticas,fissuras erevisõesdaquiloqueoutroraganharaaadesãodealguns deseusgrandesexpoentes.Umavoltahistóricacomeçoua indicarnovascoresparaopensamentoemuitasdaquelasque tinhamsidopersonagensestruturalistasemblemáticas,senti-ramnecessidadederecusaressaprocedência.NoDiscurso, mesmotendoelesofridoessasalterações,aaproximaçãocom oestruturalismorevelaseuprogramateóricoesemeiauma reflexãosobreaclínica,destacandoopapelexercidopela linguagem,segundoconcepçõesafinadascomalingüística ecomaantropologiaestruturais.
ÉclaroqueosdiálogosteóricosdeLacansãomultifaceta-dosequeépossívelencontrarnessetextoumaricaexplosão dereferências–semcontarseudébitoparacomtodooper-cursoanteriordopsicanalista.Contudo,todosessesaspectos, aomarcarempresençanessemomento,ofazemdesfilando emtornodeumatesecentralpelaprimeiravezdefendidae desdobradaemsuasconseqüênciasparaoscamposteórico, epistemológico e prático da psicanálise, tese que tem sua condiçãodepossibilidadenoencontrocomaracionalidade estruturalista,emgeral,ecomopensamentolévi-straussia-no,emparticular,equeconheceráumcaminhoinovadore insuspeitadoapartirdessadata.OobjetivodoDiscursoé claro:umadefesaoriginaldequeajustacompreensãodo empreendimento freudiano só pode ser alcançada quando sereconheceacentralidadeefetivadalinguagem.Issodeve ocorrerapartirdequatropontosinterconectadosquecom-põemoalicercedapromulgaçãodeum“retornoaFreud”e queconduzemàtesedequeocampodapsicanáliseseiden-tificacomocampodalinguagem.Sãoeles:1)alinguagem éoelementodaexperiênciapsicanalítica;2)alinguagem éomaterialconstituintedohomem;3)oinconscienteéa própriaestruturadalinguagem,otextodesconhecidoque determina a subjetividade para além da consciência, isto é,oinconscienteéo“discursodooutro”;4)apsicanálise, aoestabelecerseuparentescocomoparadigmacientífico inauguradopelalingüísticaestrutural,vêasseguradoparasi umlugarlegítimonorigordaciênciamoderna.
Todavia,aapropriaçãolacanianadoestruturalismoconti-nuaarevelarnoDiscursoseusentidobastantepeculiar,pois aí,osaspectosapresentadosacimavêmacompanhadosda
necessidadedeseconferirumdestaqueespecialnãoapenas aosujeitoeàdialética-comojáocorria,porexemplo,em
Omitoindividualdoneurótico(Lacan,1953a/1978-como também à dimensão histórica envolvida no fenômeno em questão.Osdoisprimeirostemasindicamapermanênciada influênciadeAlexandreKojèveeoterceiroaparecefiltrado pelopensamentodeHeidegger.Apartirdisso,oessencial doDiscursopodeentãoserformuladoemoutraspalavras: aestruturadalinguagem,sendoopróprioinconsciente,se articulanafaladosujeitoque,emsuahistoricidadeefinitude, entra,comopsicanalista,numprocessodetrocadialéticaque sedirecionaparaaverdadedeseudesejo.
Críticacomointrodução
Todo o texto de Lacan volta-se para um exercício de persuasãoemtornodadefesadaidéiadequeoinconsciente deveserdefinidoporremissãoàlinguagem.Comela,Lacan pretende denunciar a desordem presente na psicanálise quelheeracontemporânea,apresentandoaalternativaque favoreceriaacorreçãodeseusrumosemdoissentidoscon-comitantes:seuencaminhamentocientíficoesuafidelidade ao sentido dos conceitos freudianos, os quais, ao mesmo tempo, devem ter seu valor histórico original recuperado eque“(...)sópodemesclarecer-seaoestabelecermossua equivalênciacomalinguagematualdaantropologiaoucom osúltimosproblemasdafilosofia,comosquais,muitasvezes, apsicanálisesótemasebeneficiar.”(Lacan,1953b/1966,p. 240).ParaLacan,retomarosverdadeirosfundamentosdesses conceitos e enxergar seu sentido original significa, então, lê-losapartirdeinstrumentoscontemporâneos.
Acríticaàinstituiçãopsicanalíticafuncionapreparandoa formulaçãodo“retornoaFreud”;éprecisomostraroquanto ela evita reconhecer no campo da linguagem e na função dafala,osfundamentosdesuadisciplina.ParaLacan,essa aversão foi o que afinal motivou mudanças de objetivo e de técnica relacionadas com o amortecimento da eficácia terapêutica.Aanálisedosestudospsicanalíticosexistentes revelaria,aoladodesuaineficiência,oquantoelesestariam longe de perceber a verdade da psicanálise, pois esta, só podeserencontradanum“(...)retornoaoestudo,noqualo psicanalistadeveriatornar-sesenhor,dasfunçõesdafala.” (Lacan,1953b/1966,p.244).Assiméqueseteriatornado impossibilitadaacompreensãodosentidodaobrafreudia-na,sentidoqueforasubstituído,aseuver,porumatécnica enfadonha, opaca e arredia a qualquer crítica, padecendo deumexcessodeformalismoestéril.Apsicanálisedepois deFreudproduziuencaminhamentosteóricosquetendem adesconheceraverdadeiraestruturadaanálise,queéuma estruturadialética4.Atendênciaconhecidacomo“análisedas resistências”,porexemplo,afasta-seessencialmentedeum conhecimentodosujeitoporquenãotemcomoprincípioa intersubjetividadedafala.Tendeaseeternizarnoregistrodo imaginárioe,portanto,apromoverumaobjetivaçãosempre maiordosujeito.
Lacandestacaemsuacríticaasituaçãodogruponorte-americano, então hegemônico: suas características – cujo
parentescocomummeioculturalligadoaoanti-historicismo e ao mercantilismo e com uma psicologia dominada pelo behaviorismoteriaengendradoumaconcepçãodapsicanálise comoinstrumentoparaaadaptaçãodoindivíduoaomeio socialeparaabuscadepadrõesdecondutaedeobjetivação dosujeito–teriamcontribuídodemodoespecialparaaobli-teraçãodainspiraçãodeFreudsintomatizadapelaofuscação dosseustermosmaisfecundosquesãooinconscienteea sexualidade.Resultariaqueocomumentreospsicanalistas formadosnessecontextoseriaofatodeseencontrarempresos aconvençõestécnicaseignorantescomrelaçãoàdoutrina.
Urgenteera,emconseqüência,atarefadelerFreud.Com aressalvadequeosucessodesseempreendimentoestaria necessariamenteatreladoaqueessaleiturafosserealizada atravésdeumprismaespecífico:
(...) a técnica não pode ser compreendida, nem, portanto, corretamenteaplicada,sedesconhecermososconceitosquea fundamentam.Nossatarefaserádemonstrarqueessesconceitos sóadquiremseusentidoplenoaoseorientaremnumcampo delinguagem,aoseordenaremcomafunçãodafala.(Lacan, 1953b/1966,p.246).
Fala
ÉdefatoincontesteapresençadainfluênciadeSaussure noDiscurso.Nãopoderiamesmoserdeoutromodovisto que,aqui,Lacandácontinuidadeàsuaaproximaçãocomo estruturalismoeasraízesdessaformadepensamentoestão fortementeatreladasaessenome.Todavia,essaafirmação, aoquetudoindica,maisganhariaemconsistênciasenu-ançada,pois,porumlado,oacessodeLacanaSaussureé filtradoporJakobsoneprincipalmenteporLévi-Strausse, poroutro,seémesmopossívelindicaraexistênciadeuma filiaçãodapsicanáliselacanianaàlingüísticasaussuriana,é precisolembrarqueseustermoseconcepçõesjáaparecem naslinhasdenossoautortendorecebidoaimpressãodesua marca,ouseja,tendosofridoalteraçõesesidosubmetidosa acréscimosapartirdagradedeconceitosedaracionalidade quepossuioseuprópriopensamento.Macey(1988)explica queLacannãorestringeaconstruçãodeseuargumentoa umateorialingüísticaespecíficaequeoconceitodesím-bolo,oracentral,nãoseapresentacomoalgopertencentea essecampo.SofrendoosefeitosdoencontrocomKojève, símbolosignificapactooureconhecimento,comoindicaa referênciaàfiguradatéssera5;ofatode“símbolo”derivarde “sumbolon”–apalavragregaparatéssera–érequisitadopara funcionarcomogarantiadajustezadadedução.Coexistem noDiscurso,segundoMacey,elementosoriundosdamatriz saussurianaeareferênciaimplícitaaJakobson–influências mais aparentadas com o estruturalismo e, portanto com a prevalênciadaperspectivasincrônica–comareverberação
dagramáticadeDamouretteePichon–baseada,nacontra-corrente,emprincípioshistórico-filológicos–eaindacom exploraçõesetimológicas“selvagens”6.
ParaMacey(1988),oesforçodeLacanestámaisligado àgeraçãodeumafascinaçãoamplificadapelalinguagemque inclusiveculminanumafilosofiaqueatomapelaessência doseremummovimentoquechegaaconfundirosníveis deanálise.Conformepropõeesseautor,Lacantransitasem muitashesitaçõeseindiscriminadamenteentreadescrição dopapeldalinguagemnodiálogoterapêutico,umateoriada intersubjetividadehumanaeumadescriçãouniversalistada linguagemtomadacomoobjetofilosóficopuro.
Um dos desdobramentos que a lingüística sofre no
DiscursoéqueLacanestabeleceumaoposiçãoentrefala (parole) e linguagem (langage) diferente da oposição de Saussurequeeraentrefalaelíngua(langue).Deummodo geral,paraSaussure,alinguageméconstituídapeladicoto-miadialéticaentrelínguaefala,pelatensãoentreumobjeto social e um ato individual. Enquanto a língua significa o conjuntodasconvençõesenvolvidasnacomunicação,sejam elasregras,elementosfonéticosouvalores–umaespéciede contratocoletivo–afalaéoatodeseleção,combinaçãoe atualizaçãodessescomponentes(Barthes,1964/1993).Di-ferentemente,paraLacan,atensãoqueexisteéentrefalae linguagem.Desnecessáriolembrarquesuapreocupaçãonão émesmoofatolingüístico.Aexistênciadeumobjetosiste-mático,talcomoumalínguaparticular,nãoatraiseuinteresse namedidaemqueoqueestáemjogoéumaredescriçãoda psicanálise.Paratanto,oquelheépertinenteéconsiderar o fato mais abstrato de que possa haver signos, símbolos ousignificantes.Ouseja,trata-sedepensar,aexemplode Lévi-Strauss,aordemsimbólicaenãoumalínguaconcreta particular.Assim,alinguageméoveículodacomunicaçãoe ocampoemquesedefineoinconscienteetodaapsicanálise. Mastambéméo“murodalinguagem”queopõeresistência à liberação da fala que reside transmutada no sintoma. É pensada,portanto,aexistênciadeumatensãoentrefalae linguagem; esta sempre se opondo à plena realização da falaverdadeira.
Entre os paradoxos que Lacan denuncia existirem na psicanálise,porreferênciaàrelaçãoentrefalaelinguagem, encontra-seumquetalvezpossaserapontadocomoopara-doxocentraldesuaprópriateoria.Eleépensadocomoum traçodacivilizaçãocientíficaquesemanifestadeprontona experiência analítica.Trata-se da radical alienação vivida pelosujeitonamodernidade:nasobjetivaçõesdodiscurso, ele perde seu sentido; encontra na ciência o álibi para se esquecerdesuaprópriacondição.Quantomaisseaproxima doconhecimentocientífico,maisosujeitosedistanciade suaprópriaverdade.Adoutrinapsicanalítica,porexemplo, fornececomsuasproduçõesteóricasmíticas,taiscomoos conceitosdeego,idesuperego,maisumaocasiãoparaa alienaçãodosujeito,contribuindoparaaespessuradomuro delinguagemqueopõeresistênciaàliberaçãodafalaplena.
5 DeacordocomWilden(1968),atésseraéumapeçaquefuncionacomo senhaousinaldereconhecimento.Eraempregada,porexemplo,em algumasantigasreligiõesnasquais“(...) juntar novamente as duas metadesdeumpedaçodecerâmicaquebradafuncionavacomomeio de reconhecimento entre os iniciados (...).”(Wilden, 1968, p. 101). Trata-sedeumafiguraqueresumeessaidéia,preciosaparaLacan,de símbolocomolaçoereconhecimento.
Nalinguagem,ohomemestátãoalienadoquantoolouco em seu delírio. Lacan cita o ensinamento de Pascal:“os homenssãotãonecessariamenteloucosqueseriaserlouco porumaoutraformadeloucuranãoserlouco.”(conforme citadoporLacan,1953b/1966,p.283).Ditodeoutraforma, oparadoxoéque,nãoobstante,odiscursotendaaobjetificar osujeito,ealinguagemaengrossarcadavezmaissuafunção debarreira,épelodiscursoecomalinguagemqueaanálise vaialmejarinstaurarno sujeitouma falaverdadeira.Ora, masessepareceseromesmoparadoxoqueexistenomovi-mentodoprópriopensamentodeLacaneaqueleriscoque eledenunciavanadoutrinapsicanalíticatalveznãolheseja menosestranho.Pois,damesmaforma,existedesuaparte atentativadeconstruirumaciênciadosujeito.Esteperde suacondiçãoquandoobjetivadonumdiscursocientífico.Eis ograndeproblemarelacionadoaessanoçãoqueenvolveo projetoteóricodeLacanequeatingeoclímaxdeseuca-ráterparadoxalquandoesseprojetosefiliaàracionalidade estruturalista,pois,apartirdela,osujeitoéditocomoalgo totalmentedeterminadopelopoderdosignificante.
Falavaziaversusfalaplena
Lacan reconhece a existência de dois tipos de fala na análise e encontrou na distinção que traça a filosofia de HeideggerentreRede(discurso)eGerede(conversa,fala),os subsídiosparanomeá-los“falaplena”e“falavazia”(Evans, 1996;Macey,1988eWilden,1968).SegundoWilden(1968), emHeidegger,Gerede,aocontráriodafalavaziaemLacan, nãopossuisentidopejorativo:significaum“discursoque perdeusuarelação-de-Serprimáriaparacomoexistenteso-breoqualsefala,ouentãoquenuncaalcançoutalrelação.” (Heidegger,conformecitadoemWilden,1968,p.201).Aí, apalavraassumeolugardacoisaeacomunicaçãopossui aformadatagarelice,da“conversafiada”,nãopermitindo queoexistentesejadesignadoemumsentidoprimordial.
Geredeéumfenômenopositivoporqueconstituiomodode compreensãoedeinterpretaçãodoDasein,muitoembora não promova, segundo Macey (1988), nenhuma interpre-taçãorealdoSereindiqueaseparaçãodosujeitodeseu modo primordial de “ser no mundo”. Dessa maneira, sua positividade é bastante restrita. SomenteRede é capaz de apreenderverdadeiramenteoSereessaapreensãosópode ser efetivada na relação com o outro. Em Lacan, isso se refletenaimportânciadaintersubjetividadecomoelemento essencialdoencontroanalítico,inclusivesearespostaqueo sujeitorecebeéosilênciodoanalista,poisoprimeiroapelo quelheédirecionadoéqueelesimplesmentesejatestemunha deumafalafundandoadimensãododiálogo.Heidegger, aliás,destacaserosilêncio“umapossibilidadeessencialdo discurso”(conformecitadoemMacey,1988,p.148)capaz deinstaurarodiscursoeabolirGerede.Lacantraduz,então,
Redeparaocampopsicanalítico:“Afalaplenaéaquevisa, queformaaverdadetalcomoelaseestabelecenoreconhe-cimentodeumpelooutro.Afalaplenaéfalaquefazato.” (1953-1954/1975,p.125/6).Ouseja,afalaplenaestabelece oreconhecimentodialéticodosujeitopeloanalista.Também recebeaalcunhade“verdadeira”poisjustamenteconstitui otipodediscursomaispróximodaverdadedodesejodo sujeito.NesseperíododaobradeLacan,aliberaçãodafala
plena–ditodeoutromodo,acumplicidadeentrearealização, peloprópriosujeito,desuahistória,oanúnciodaverdade dodesejoeoreconhecimentodessedesejopelooutro–é, portanto,oobjetivodeumaanálise.
ParaLacan,asprimeirasmanifestaçõesdopacientesão dominadasporseunarcisismoeseexprimememtentativas deseduziroanalista.Essaqueéafalavaziahabitaoregistro imaginárioe,porconseguinte,dizrespeitoaoeueaoproces-sodeidentificaçãonoqualosujeitoseperdenalinguagem comoobjeto.Funcionacomoobstáculoaoestabelecimentoda transferênciapositiva,emperrandoaengrenagemdoprocesso analítico.Essemomentodemonólogointrospectivodeveser ultrapassadopeloempenhonotrabalhodaassociaçãolivre.
Pormaisquesejaalgoaserultrapassadonadireçãoda falaplena,afalavaziaéaúnicacoisadequeoanalistapode dispor para, subvertendo-a, alcançar a verdade do desejo. Nãohácomodeixardepassarpelaestruturaimagináriado eu.Odiscurso,mesmoquandomaisseaproximadaverdade subjetiva,mesmoquandosetratadafalaplena,ésempre filtradopeloregistroimagináriodonarcisismo.
A fala plena, objetivo – pelo que foi dito acima utó-pico,assintótico–daanálise,écaracterizadapelafunção da anamnese, da referência à história do sujeito tal como relatadanocontextodaintersubjetividade.Osujeitodeve serpostodiantedasintimaçõesdessafala.Elaéosolopara ainterpretaçãosimbólicacujoobjetivoéadesalienaçãodo sujeitoecujopontodepartidaéosentidodeseudiscurso. Suaatividadeserestringeaconferirumapontuaçãodialé-ticaaessafalaplenaqueseproduznaverdadehistóricado sujeito, servindo-lhe de eco, pois essa fala já contém em siasuaprópriaresposta.Ahistória,afirmaLacan,possui valordeíndiceemoladoprogressoterapêutico.Quandose valorizaainterpretaçãosimbólicadahistóriadosujeito,ao invésdaanálisedasresistênciasedohicetnunc,começaa realizaçãodafalaplena.
Essas construções teóricas, tão valorizadas nesse mo-mento, passam, no entanto, paulatinamente para segundo planonaobradeLacan.Macey(1988)consideranãoterem elassidoelementoestruturaldessaobravistoteremgradu-almente desaparecido dos outrosécrits; ou melhor, o que teria desaparecido seria a oposição entre fala vazia e fala plena,poisLacanaindateriarecorridobastanteaestaúlti-maisoladamente,especialmentenaformadeparolevraie [falaverdadeira]7.Oqueéprecisoressaltaraquiéocaráter problemáticoenvolvidonessaquestão.Lacanreconheceesse aspectoaofalardoassuntonoSeminário1:“Desdequeeste pontofoicolocado(..)muitascoisasseorientameseescla-recem, mas muitos paradoxos e contradições aparecem.” (1953-1954/1975,p.126).Aseuver,oméritodesseesforço conceitual foi exatamente fazer aparecerem esses parado-xoseessascontradições.Umdessesproblemaséindicado nofatodeométodoanalíticovisaratingirafalaplenaao mesmotempoemquepartedeumaviaqueéopostaaela: aassociaçãolivre,jáqueesta“(...)dácomoconsignaao sujeitodelinearumafalatãodesligadaquantopossívelde
todasuposiçãoderesponsabilidade,equeoliberamesmode todaexigênciadeautenticidade.”(Lacan,1953-1954/1975, p. 126). Paradoxo talvez mais aparente do que real pois, em termos freudianos, embora se saiba que a expressão “associação livre” contenha mesmo algo de inadequado frenteàescolhadeterministadeFreud,seu“livre”significa apenasqueéjustamentenatentativadeeliminaracensura dosistemapré-consciente/consciente,ouseja,desuprimir aseleçãovoluntáriadospensamentos,queseabreespaço para a revelação de materiais inconscientes (que não são, noentanto,indeterminados)e,portanto,da“autenticidade” dodesejodosujeitoqueconstituiafalaplena(Laplanche& Pontalis,1967/1992).
Outros problemas relacionados à oposição fala vazia/ falaplenapoderiamsermencionados.Talcomotrabalhado naseçãoIVdoSeminário1,otemaseligaàsquestõesda transferênciaedaresistênciadeformaque,grossomodo, porumlado,falavaziasignificaresistência,falaque,porse esquivardoinconsciente,aoinvésdesecentrarnafunção darevelação,liga-seàmediação;osujeitoseprendeaohic etnunccomoanalistaeseperdenosistemadalinguagem. ComoafirmaLacan:“(...)énamedidaemqueaconfissãodo sernãochegaaoseutermo,queafalaselançainteiramente navertenteemqueelaseagarraaooutro.”(1953-1954/1975, p.59).Ou:
Aresistênciaseproduznomomentoemqueafaladerevela-çãonãosediz,emque(...)osujeitonãotemmaissaída.Ele seagarraaooutroporqueaquiloqueéimpelidoemdireção àfalanãoacedeuaela.(...)Seafalafuncionaentãocomo mediação,épornãoseterrealizadocomorevelação. (1953-1954/1975,p.59/60).
Poroutrolado,falaplenasignificaaproximaçãodaverdade do desejo e, portanto, substitui a mediação pela revelação. Dissosededuz,então,umaconclusãoprovavelmenteinsusten-tável:queatransferência,funçãodamediação–poiséaíque osujeitosedirigemaisintensamenteaooutro–surgecoma resistência,comafalavazia.Mas,comopodeatransferência –queapesardesuafacevoltadaparaaresistênciaéoprincipal motordaanálise,aespecificidademaiordoprocessoanalítico, semaqualnadasepassa–estarligadaàfalavaziaenãoàfala plena?Assim,transferência,resistência,falaplena,falavazia, revelaçãoemediaçãoencontram-seenvolvidaseminterrela-çõesaomenosaparentementecontraditórias.Talvezessenó mesmotenhasidoamotivaçãoinicialparaodesenvolvimento subseqüentedadiferenciaçãoentretransferênciaimaginária –algoasersuperado,poisimpedeodesenrolardoprocesso analítico, funcionando como resistência – e transferência simbólica–essasim,oinstrumentodapsicanálise,indicando ocampodosignificantecomoseuespaçodetrabalho.Lacan identificouumaspectodesseparadoxodaseguinteforma:
(...)vejamoparadoxodaposiçãodoanalista.Énomomento emqueapalavradosujeitoéamaisplena,queeu,analista, poderiaintervir.(...)Ora,quantomaisodiscursoéíntimopara osujeito,maiseumecentronessediscurso.Masoinversoé igualmenteverdadeiro.Quantomaisoseudiscursoévazio, maissoulevado,tambémeu,ameagarraraooutro(...). (1953-1954/1975,p.61).
E estipulou que a forma de sair desse círculo vicioso da relaçãocomooutroésercapazdeultrapassaroregistrodo imaginário,entenderquequantomaisosujeitoseafirmar comoeu,maiseleseenredaránaalienação,ebuscaruma respostaparaaseguintepergunta:“(...)queméentãoaquele que,paraalémdoeu,procurafazer-sereconhecer?”(Lacan, 1953-1954/1975,p.62).
Outroproblemaquepodeseridentificadonesseassunto é que, de uma parte, como afirma Macey (1988), na fala vazia,osujeito,aoinvésdefalar,éfaladopelalinguagem,é inautêntico,alienado,despossuídoe,deoutra,afalaplenaé relacionadacomaverdadedosujeitoinconsciente.Ocorre que,maistardenaobradeLacan,osujeito“verdadeiro”, osujeitodoinconsciente,serájustamentealgofaladopela linguagem,determinadopelosignificante.Sobretudo,anoção defalavazianãopodeconvivercomaidéiadoprimadodo significante,poistodoequalquerdiscursorevelaosujeito doinconsciente.Nãoseráprecisoestarfalandodeassuntos íntimos,daprópriahistória,paraqueosujeitoestejaaíim-plicado.Existem,aliás,passagensnopróprioDiscursoque apontam,decertaforma,oreconhecimentodessainconsis-tência.Porexemplo,quandoLacanafirmaqueumdiscurso qualquer,mesmoquandopareceservaziodesentido,revelao sentidodoexercíciodesuafunção.Assim,dizoautor:“(...) afala,mesmonoextremodesuausura,guardaseuvalorde téssera”(1953b/1966,p.251)e“Mesmosenãocomunica nada, o discurso representa a existência da comunicação (...).”(1953b/1966,p.251).Emvistadisso,comopodehaver umafalavazia?Dedentromesmodoreferenciallacaniano, é possível afirmar que um discurso, mesmo que tente se prenderàilusãonarcísica,nãopodedeixardeapontarpara ofatosimbólicodesuaprópriaexistência.
Intersubjetividade
A essência de intersubjetividade e de interlocução da análise constitui as funções de locutor e ouvinte nela en-volvidaseestabeleceacontinuidadedodiscursonoqualse desenrolaahistóriadosujeito.Aintersubjetividadeefetivada pelafunçãosimbolizadoradafalatransformaacondiçãodo receptor da mensagem, que a partir daí tem acrescentada emseumundo,arealidadedeumarelaçãocomoemissor. Amaisimportantefunçãodafalaé,portanto,implicar“(...) seuautoraoinvestirseudestinatáriodeumanovarealidade (...)” (Lacan,1953b/1966,p.298),comoporexemplo,quan-doumcônjugedizaooutro“Tuésminhamulher”8.Esseato quecriaparaooutroumanovarealidadeé,segundoLacan,a formaessencialdafala.Aí,suasimplesexpressãoécapazde definirasubjetividadealheia.Nessaformaessencialreside opoderoriginaldosignificante,afaculdadequeelepossui deimplicardeimediatoarespostaquelhecabe–poistodo discurso já traz em suas lacunas um sentido inconsciente –ededeterminararealidadeeosujeito.Ovalordafala nãoestá,então,nainformaçãoobjetivaquetransmite,mas na reverberação do discurso do outro que constitui a fala plena.Assim,oqueéredundâncianoníveldainformação funcionacomoressonâncianoníveldoinconsciente,oque
éfuncionalparaalinguagem,éirrelevanteparaafala.Na fala,oqueimportaéoatodeendereçamentoaooutro.“Pois, nela,afunçãodalinguagemnãoéinformar,masevocar.” (Lacan,1953b/1966,p.299).Falarésobretudorequisitara respostadooutro,provocá-loporumnomequeeleassume ourecusa.
Lacanrelataquecertavezfoi-lhecolocado,atítulode objeção, que seus ensinamentos enunciavam o paradoxo dequealinguagemseria“(...)umacomunicaçãoemqueo emissorrecebedoreceptorsuaprópriamensagemsobforma invertida(...).”(Lacan,1953b/1966,p.298).Paraoautor,a críticasócontribuiparaexpressarmelhoroqueelequeria mesmodizer,poisquandooanalistarespondeaodiscurso dosujeitoéparalhesublinharaparteavessa,ouseja,para destacaremsuafalaplena,omovimentodaverdadedodesejo inconsciente. Isso significa reconhecer a subjetividade do paciente,ouseja,produzirneleumatransformaçãoefetiva. Aoutraalternativaparaoanalistaéaboliropacientecomo sujeito,afastá-lodoconhecimentodesuaprópriarealidade, oqueLacanvêocorrernascorrentespsicanalíticasemvigor naquelaépoca.Reconhecerosujeitoéindicarsuaimplicação emseuprópriodesejoepromoveraenunciaçãodafalaplena. Aboli-loéfomentaramanutençãodesuaalienação,desua identificaçãoobjetivantenafalavazia.
Quandoacontinuidadedodiscursodoanalisandoéin-terrompida,revela-seoinconscientecomoterceirotermoda situação.Elenãoéumaindividualidadepulsionalrecôndita, masumelementododiscursoconcretotransindividual:“O inconsciente é essa parte do discurso concreto, enquanto transindividual,quefaltaàdisposiçãodosujeitopararesta-beleceracontinuidadedeseudiscursoconsciente.”(Lacan, 1953b/1966,p.258).Comessaleituradofenômeno,Lacan entendetersuperadooparadoxoqueelevêresidirnanoção de inconsciente quando relacionada com uma realidade individual,questãoqueremontaaoproblemadaexpressão “representaçãoinconsciente”.Aqui,eledizqueFreud,ao usar a expressão “pensamento inconsciente” conjuga ter-moscontráriosetantoosaberiaque,nocasodoHomem dosLobos,desculpou-seporissocomumsitveniaverbo. Quenãosãocontráriosnoslimitesdopsiquismoindividual éjustamenteatesequeFreudprocuroudefendercomsua obra.Masoimportanteparaessemomentoésublinharque, nessapassagem,Lacanconfirmasuamovimentaçãoemtor-nodoconceitodeinconsciente,quesóagora,aohaver-lhe encontradoumaleituraintersubjetiva,distantedarealidade biológicaindividual,podedesignarparaesseconceitoum lugar num pensamento que desde a origem já recusava o recursoàbiologia9.Aexpressão“pensamentoinconsciente” deixadesercontraditóriaporquearealidadedodiscursoé transindividual. O objeto da psicanálise, para Lacan, não éumarealidadeindividual,masarealidadeintersubjetiva concretaeautônomadodiscurso.Daíafamosadeclaração
“oinconscienteéodiscursodooutro”(Lacan,1953b/1966, p.265).Logo,oinconsciente,apesardenãoremeteràmira-gemdeumacoletividade,éumaestruturasimultaneamente singular,porquedeterminaaurdidurasubjetivadodesejo e,social,porquesinônima,emúltimainstânciadaestrutura
dodiscursohumanoemgeral,poissuasubsistênciacomo sistemadeoperaçõeséconseqüênciadiretadarelaçãohu-manacomalinguagem,éexpressãodesuafaculdadepara a simbolização.Assim, a verdade mais íntima é também umaverdadeuniversal.Lacanencontranomotehegeliano daidentidadedoparticularedouniversalmaisumgancho paradesenvolveressaidéia.Dizqueapsicanáliseforneceu oparadigmadessaexigênciajáquealinguagemdosujeito emanáliseremetetantoaumsimbolismouniversalquantoà articulaçãosignificantesingulardeseuprópriodesejo.Assim, oindivíduonãopodeconsistirnumatotalidade.Aidéiade queohomemsejaumserinteiro,completo,indivisívelnão passadeumailusão,poisoqueeleexprimecomseuseré uma condição de divisão devida a esse sujeito que, à sua revelia,revelaemseucorpo,emseucomportamento,emsua fala,emsuavida,enfim,aconstruçãodesentidoresultante dafunçãohumanauniversaldacomunicação.
A dualidade implicada nas relações imaginárias, na operaçãodeidentificaçãocomumaimagem,é,apartirde então–medianteomovimentoqueincorporaoconceitode inconscienteàdoutrinaequeafastaLacandesuaspretensões deconstruirumapsicologia–suplementadapelareferência aoregistrosimbólico,aquelequeabrigaaautenticidadedo desejoedosujeito.
Olugaremqueoinconscientesemanifestasãoasdescon-tinuidadesdessediscursotransubjetivo:“Oinconscienteéo capítulodeminhahistóriaqueémarcadoporumbrancoou ocupadoporumamentira:éocapítulocensurado.”(Lacan, 1953b/1966,p.259).Osentidodessasdescontinuidadespode serrecuperadopormeiodeumaexegeseporqueaverdade nelascontidanãodeixadeganharinscriçãoemlugares(to-dosapontadosporFreud)comoocorpo–noqualosintoma revela possuir“a estrutura de uma linguagem” (Lacan, 1953b/1966,p.259)–,aslembrançasdainfância,ovoca-bulário,oestilodevida,astradiçõeselendas,asdistorções dodiscursoconsciente,etc.Paraindicaresseslugares,Lacan sevaledemetáforascomo“monumentos”parasignificaro corpoou“documentosdearquivo”paraindicaraslembran-çasdainfânciaeafirmaque,numaanálise,elasperdemsua dimensãometafóricaporqueénametáforamesmaqueageo analista,ouseja,elenãorecorreàmetáforaparaalcançaralgo queestariaalémdela,alémdafalaedopróprioregistrosim-bólico.Essametáforasobreaqualatuaoanalistaéomesmo queaoperaçãodaformaçãodosintomaquesedátambémpor deslocamentosimbólico.Donascimentodosintoma,alvodo tratamentoanalítico,aoregistrodeatuaçãodopsicanalista, passandopeloestofodoconceitocentraldeinconsciente,a psicanáliseétodarecobertaedefinidaporsuaidentidadecom aordemsimbólica,comocampodalinguagem.
Significanteeordemsimbólica
Quealinguageméaleinãosódoinconsciente,masdo próprio homem, é então a bandeira do projeto lacaniano relativoàdécadade50.“Reconhecimento”e“dádiva”serão aspalavras-chaveaindicaremosentidoemqueesselemaé empunhado.Noprimeiro,residetodoodesdobramentodos temasdialéticosquetêmnafiguradeKojèveseuemblemae dostemasfenomenológicosoriundosespecialmentedaleitu-radeHeidegger.Nosegundo,reverberamosensinamentos
daantropologiaestruturalista.Asleiturasdecadaumadessas matrizesnãoadquiremsignificadoseparadamente,mas,ao contrário,seinterconectamdemodobastanteíntimo,che-gando,àsvezes,asemanifestarememummesmogolpedo pensamento.Éocaso,porexemplo,dareflexãoarespeito dolivroDoKamo:apessoaeomitonomundomelanésio, deMauriceLeenhardt.Aí,Lacanpretendeterencontrado elementosparaconfirmarque“(...)aleidohomeméalei da linguagem, desde que as primeiras palavras de reco-nhecimentopresidiramasprimeirasdádivas(...).”(Lacan, 1953b/1966,p.272).Paraele,essapesquisaantropológica, aomostrarque,paraos“pacíficosArgonautas”(expressão queremeteaoestudodeMalinowskiequeaquisubstitui, obviamente, os melanésios), a mesma palavra utilizada paradesignar“fala”serviaigualmenteparadesignarasdá-divas,oatodedoar,osobjetosdoados,afabricaçãodesses objetoseainstituiçãodasdádivascomosignos,confirmaa veracidadedarelaçãodeidentidadeentrereconhecimento, dádivasepalavras.
Lacan,seguindoatemáticalevantadanaobradeMarcel Mausspelostermosmanaehau,colocaqueessasdádivas são em si mesmas, símbolos, pois, tal como indica a eti-mologia que remete à téssera, os símbolos são“(...) sig-nificantesdopactoqueconstituemcomosignificado(...)”
(Lacan,1953b/1966,p.272).Asdádivassãosímbolos,não doobjetodoadonumarelaçãorepresentativafixacomum significadoinconsciente–eéporissoqueessesobjetossão sempresupérfluos,abundantes,alheiosaqualquerintenção pragmática–,masdaprópriatrocasimbólica,atoquefunda acondiçãocoletivadahumanidadeque,deoutraforma,não poderiaexistir.Paraoautor,atrocasimbólicadasdádivas naneutralizaçãodosignificante–istoé,emsuaseparação dosignificado–representaaexistênciadalinguagemcomo leidohomem.Emconsonânciacomaracionalidadeestru-turalista,elevênissoaverdadeiraessênciadalinguagem,ou seja,nofatodequeosignificanteremetenãoaosignificado, masaumsistemainconscientedetrocassimbólicas,aoato necessáriodapermutação.Assim,seLacanprefereo“no inícioeraoverbo”deSãoJoãoao“noinícioeraoato”de Goethe(que,porsuavez,erapreferidoporFreud),épreciso lembrarqueesseverbojáéemsiato.Aliás,oatohumano porexcelênciaporqueafala,aoinstituirumpacto,consiste noatosimbólicodoreconhecimentoedoestabelecimento deumaordemdeexistência.
Relatandoaliçãoaprendidadosprospectosdelingüística estruturalista, Lacan anuncia sua compreensão do signifi-cante:“(...)oquedefinecomopertencenteàlinguagemum elementoqualquerdeumalínguaéqueelesedistinguecomo tal,paratodososusuáriosdessalíngua,nosupostoconjunto constituído pelos elementos homólogos.” (1953b/1966, p. 274).Oqueimportanaconsideraçãodosignificantenãoé queeleserelacionecomumsignificado,masqueseulugar sejareferenciadoaoconjuntodosoutrossignificantesque compõemalíngua.Esseconjuntodeelementoséaestrutura dalínguaàqualsedevemosefeitosdelinguagemquesãoas formaçõesdoinconsciente.Aviaqueligatalestruturaàex-periênciasubjetivaédemãoúnica:seutráfegopartesempre daprimeiraparachegaràsegundaenuncaocontrário.Em outraspalavras,osujeitoé,depontaaponta,umfenômenode linguagemcomotalinteiramentesubmetidoaodeterminismo
daordemsimbólica.Lacaninsurge-se,assim,contraaidéia dequealinguagemseriaconstituídaporrelaçõesfixasde representação,oumelhor,poderíamosdizer,contraainserção doconceitoderepresentaçãonateorizaçãodalinguagem, fazendo, com isso, coro a um refrão tipicamente estrutu-ralista. O significante (ou o signo porque nesse momento essestermosnãoparecemserusadossegundoespecificações teóricas10)nãoexpressaarealidade.Emúltimainstância,ele ésímboloapenasdaprópriacomunicação.
Asorigensdocomportamentosimbólicopodemserpro-curadasforadodomíniohumano.Porexemplo,asgaivotas, emsuaespontaneidade,realizam“festas”emqueumpeixe, queaífuncionacomosímbolo,épassadodebicoembico.No entanto,umobjetosimbóliconãoésuficienteparaconstituir aleiealinguagem.Lacanestipulaquemesmoquehouvesse exploraçãodeumanimalpelooutroissonãobastariapara queumuniversoespecíficoemergisse.Continuariafaltando o“algo”queprecisacompletarosímboloparaaconstituição dalinguagemeonascimentodahistória.Essealgoépalavra. Assim,adialéticadosenhoredoescravoprecisachegarao pontomáximodeabstraçãoparaqueumuniversohumano encontresuaspossibilidades.Noserevanescentedapalavra quesedeslocadasrelaçõesdiretascomaatualidade,oobjeto simbólicodescobreoconceito:“Paraqueoobjetosimbólico, libertodeseuuso,transforme-senapalavralibertadado
hicetnunc,adiferençanãoéaqualidade,sonora,desua matéria,masseuserevanescente,ondeosímboloencontra apermanênciadoconceito.”(Lacan,1953b/1966,p.276).A palavraéapresençadeumaausência;indica,porsuaexistên-cia,afaltadoobjetoe,comisso,engendraoconceitoqueéa própriacoisa.Sónapalavraacoisaexisteconcretamente(ao mesmotempoemquedeixadeexistir).Assim,seoconceito éacoisaeéapalavraquegeraoconceito,então, “Éomun-dodaspalavrasquecriaomundodascoisas,inicialmente confundidasnohicetnuncdotodoemdevir(...).”(Lacan, 1953b/1966,p.276).
Mas, poderíamos então questionar, se Lacan costuma, comosesabe,privilegiarradicalmenteosignificanteemdetri-mentodosignificado,porquepareceaquiater-seaoconceito, algomaispróximo,àprimeiravista,dosignificado?Éque aidéiadeconceito–queprovémdopensamentohegeliano –medianteumamanobraqueatravessanummesmogestoa filosofiadeHeidegger,oestruturalismoeaanálisefreudiana doFort-da,aparentementepassaasersinônimadapalavra, ouseja,dosignificante,queapontainexoravelmenteparaa finitude da existência humana. Nesse ponto, Lacan segue odesenvolvimentodeumaequaçãológica:seoidealismo absolutoidentificaorealaoconceitoeaoperaçãointelectual emjogoconsisteemidentificarconceitoapalavra,então, torna-sepossíveltercomoconclusãoqueaprópriapalavra sejaidênticaaoreal.Oobjetivodessemovimentoconsiste exatamenteemdeslocaralinguagemdeumpóloatreladoao significadoparaumoutroquebuscaconfirmarsuaessência
metafórica.Tendoessedeslocamentoemvista,oautorre-torna,então,àanálisedofenômenodoFort-da,quejáfora objetodereflexãonoartigosobreafamíliade1938,enri-quecendo-ocomoutrosconceitosecomoutrasidéias.Existe aíumcruzamentodematrizesconceituaisqueoautorfaz explodirnumprocedimentoqueécaracterísticodessetexto. OjogosimbólicoinfantilanalisadoporFreudépensadocomo paradigmadomomentooriginal,denascimentodafalasobre afalta,emqueapalavraserevelacomoapresençadeuma ausência,ouseja,apalavratornaacoisapresenteporsigni-ficaraausênciadessacoisamesma.Oobjetotem,então,sua realidadedestruídanoprocessodesimbolizaçãoquegesta o desejo e a dialética, própria à existência humana, entre presençaeausência,símboloecoisa,eueoutro,identidade ediferença,etc:“(...)osímbolosemanifestainicialmente comoassassinatodacoisa,eessamorteconstituinosujeitoa eternizaçãodeseudesejo.”(Lacan,1953b/1966,p.319).No instanteemqueacriançanomeiaaoposiçãopresença/ausên-ciadamãeporumaoposiçãofonética,nasce,deumasóvez, todoouniversodesentidodalinguagemquesesobrepõeao universodascoisas.Talcomonoartigosobreafamília,há, nessanovainterpretaçãodoFort-da,afortepresençadomote hegeliano.Lembremos:em1938,oFort-daeraentendido,a partirdaquestãodadominaçãoedadialéticadosenhoredo escravo,comoomomentoemqueacriançareencenavaseu mal-estarparaexercersobreelealgumaespéciededomínio e,assim,superarsuacondiçãoqueeradeestritapassividade. Sóqueagoraoutromotivohegelianotambémévalorizado: adialéticaentrepalavraecoisaouentrepalavraeconceito. Essa mudança de estratégia é devida ao fato de que, no
Discurso, os motivos hegelianos devem se encaixar num diálogocomostemasdisponibilizadospeloestruturalismo etambémpelafilosofiadeHeidegger.Lacanpareceelaborar explicitamenteesseenriquecimentodesuainterpretaçãono trechoaseguir:
Podemosagoradiscernirqueosujeitonãodominaaíapenas suaprivação,assumindo-a[essaeraaexplicaçãofornecidaem 1938],masqueelevaseudesejoaumapotênciasecundária. Poissuaaçãodestróioobjetoqueelafazapareceredesa-parecernaprovocaçãoantecipatóriadesuaausênciaesua presença.Elanegativizaassimocampodeforçasdodesejo, parasetornar,emsimesma,seupróprioobjeto.(1953b/1966, p.319).
Essaelevaçãododesejoàsegundapotênciasignifica, então,queaopassarparaalinguagem,oobjetodeixade existiremsuarealidadeespecíficaeaação,pelarepetição do jogo, torna essa ausência presente, transformando-se elamesma,poressemovimento,nonovoobjetododesejo. Assim,oFort-daéagoraparadigmáticodetodacondiçãode fala.Se,comoafirmaalingüísticaestrutural,todalínguaé compostadeumconjuntodeoposiçõesbináriasdefonemas, oFort-daconstituiexatamenteumadessasoposições.Esse instanteemqueacriançaprocuracontrolaraausênciada mãeéomomentodonascimentodosímboloetambéma ocasiãoemqueodesejosetornahumano.Desdeesseponto, acriançasofrenãomaisdeumanecessidade,masdeuma faltaaser.Acedeàcondiçãode“derrelição”–presumivel-mente,segundoMullereRichardson(1982),atraduçãode
LacanparaotermoGeworfenheitdeHeidegger–estadode abandono,dedesamparoqueéconstitutivodoserhuma-no.Elapercebearadicalalteridadedamãeedesejasero objetodeseudesejo,serreconhecidaporelaou,segundo olemakojèviano,seudesejoédesejododesejodooutro enãodeumobjeto.NossímbolosForteda,odesejoda criançaéfragmentadoearticuladosegundoacomunidade lingüísticaemqueelavive11 .Emoutraspalavras,aestru-turadalinguagem,comodiscursodooutro,determinaos caminhosdafala.
Essadiscussãosobreoassassinatodacoisa,queéamorte do sujeito, encabeçada peloFort-daintenciona mostrar a relaçãoentreafaculdadedafalaeoinstintodemorte,oque conduzàafirmaçãodequeestenãoéumconceitobiológico. ParaLacan,éimportanteentenderseuverdadeirosentido porque esta é uma noção fundamental para a realização de uma leitura adequada do sentido dialético da obra de Freud;elaéa“(...)primeiraviadeacessoparapenetrar emseusentidoedimensãoessencialparacompreendersua repercussãodialética(...).”(Lacan,1953b/1966,p.317).É preciso,maisumavez,superarospossíveislaçosqueaobra freudianaaindapudesseesboçarcomocampodabiologia e, em razão disso, indicar a direção que deve tomar uma correta interpretação da função da morte em psicanálise. A repetição envolvida na operação simbólica doFort-da nãoérepresentativadeummasoquismoprimordial,como oqueriaFreud,masdaexperiênciadacondiçãodefinitude queacriançaviveemsuaseparaçãodamãe.Aí,elaexpe-rimentaalimitaçãodesuaprópriarealidade.Oquesefaz presentenoqueFreudchamoudecompulsãoàrepetiçãoe queLacan,emdívidacomClérambault(Macey,1988),traduz por“automatismoderepetição”é,paraeste,ahistoricidade comocondiçãoprimeiradaexperiênciahumananosentido do“ser-para-a-morte”descritoporHeidegger.Notextoso-breoscomplexosfamiliares(Lacan,1938),agênesedesses fenômenosdemorteederepetiçãoerareputadaaotrauma dodesmameeàsuasublimaçãomalsucedida,aoprocesso deidentificaçãocomooutroeàexperiênciadocorpodes-pedaçado.Encontrava-seaíigualmenterelacionadoauma análisedoFort-da.NoDiscurso,essareflexãoganhauma extensãobemmaioreamorteéinvestidacomtantaabstração quesetornamevidentesseusaresmetafísicos.Elaé,então,o signomaiordessaprimeiraexperiênciadelinguagem,tanto emfunçãodaprimeiraexperimentaçãoquetemacriança desuaprópriafinitude,quantoemrazãodoassassinatoda coisaexigidopelousodasimbolizaçãonafala.Encontra-se implacavelmente implicada na ordem simbólica:“(...) quandoqueremosatingirnosujeitooquehaviaantesdos jogosseriaisdafala,vamosencontrá-lonamorte,deonde sua existência retira tudo o que tem de sentido.” (Lacan, 1953b/1966,p.320).Talleiturapareceserfundadamuito maisnafilosofiaheideggereanado“ser-para-a-morte”doque nostextosfreudianosounopróprioexercíciodaclínica.Éa partirdaestruturaontológica-existencialdoDaseinenãoda pulsãoque,napresentevisãodeLacan,devemsercompre-endidasamorteearepetiçãonapsicanálise.Numapalavra, oFort-daéemblemáticodainterrelaçãoedaconcomitância