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Urbanidade rural, território e sustentabilidade: relações decontato em uma comunidade indígena no noroeste amazônico.

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Academic year: 2017

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1Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais – NPCHS, Manaus – AM, Brasil

2Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisas Leônidas e Maria Deane, Manaus – AM, Brasil

3Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – FSP/USP, Prática de Saúde Pública, São Paulo – SP, Brasil Autor para correspondência: Renata Ferraz de Toledo, Endemias em Áreas Indígenas da Amazônia Brasileira, Laboratório de Etnoepidemioligia e Etnoecologia, Departamento Núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais – NPCHS; Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, Rua Sapucaia, 655, CEP 03170-050, São Paulo – SP, e-mail: renataft@usp.br Recebido: 7/3/2008. Aceito: 16/9/2008.

Urbanidade rural, território e

sustentabilidade: relações de

contato em uma comunidade

indígena no noroeste amazônico

RENATA FERRAZ DE TOLEDO

1

LEANDRO LUIZ GIATTI

2

MARIA CECÍLIA FOCESI PELICIONI

3

1

Introdução

O presente artigo propõe uma reflexão sobre as expressões urbanidade rural, território e sustentabilidade, representadas especialmente no cotidiano e na história de uma dada localidade e de seus habitantes; reflexão viabilizada pelo desenvolvimento de processo de pesquisa-ação e de estudo bibliográfico sobre a temática.

Trata-se da sede do distrito de Iauaretê, no município de São Gabriel da Cachoeira , AM, localizado no extremo noroeste do estado do Amazonas, na fronteira com a Colômbia, aos arredores da foz do rio Papuri e às margens do rio Uaupés, afluente do rio Negro.

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rios Uaupés e Papuri, estes indígenas têm migrado para o distrito em busca dessas ofertas (ANDRELLO, 2004).

Quanto à população não-indígena habitante de Iauaretê na atualidade, destaca-se que é constituída apenas por missionários salesianos, militares e funcionários da saúde. Comerciantes não-indígenas habitavam também o povoado, controlando a maior parte da entrada e da saída de mercadorias, quando em 1999 foram retirados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e pela Polícia Federal, após forte pressão de organizações indígenas (ANDRELLO, 2004).

Apresenta-se, portanto, um núcleo com feições urbanas, mas, apesar da relativa infra-estrutura oferecida pela sociedade não-indígena, a população local constituída por 15 etnias, pertencentes a três famílias lingüísticas, Tukano Oriental, Arawak e Maku (ANDRELLO, 2004), mantém algumas práticas e hábitos milenares, tanto sanitários como alimentares, além de um eficiente sistema de organização comunitária.

Por outro lado, a elevada concentração populacional, acompanhada de visíveis alterações no modo de vida, tem constituído uma precária situação sanitária e de saúde, principalmente devido à disposição de dejetos humanos e de resíduos sólidos em locais inadequados e pelo consumo de água contaminada.

Com esta preocupação, uma equipe multiprofissional atua nessa região desde o ano de 2004, por meio de uma pesquisa-ação que objetiva identificar os principais problemas socioambientais e de saúde pública locais, bem como propor melhorias e promover intervenções educacionais baseadas na realidade sociocultural dos moradores.

Em um total de seis visitas à área de estudo realizadas até o momento (fevereiro/2004, março, maio e julho/2005; maio/2006; e junho/2007), foram aplicadas distintas técnicas de pesquisa como a observação participante, a realização de entrevistas, e a construção de mapas-falantes1 e de painéis de fotos (TOLEDO et al., 2006). Realizaram-se, ainda, estudos

sobre a qualidade das fontes de água e a disposição de resíduos sólidos (GIATTI et al., 2007), a contaminação do solo por ovos ou cistos de parasitos intestinais, o inquérito parasitológico e o georeferenciamento de informações obtidas em campo (RIOS et al., 2007).

Assim, por meio principalmente de reuniões comunitárias com a participação dos indígenas e de pesquisadores de distintas áreas, foi possível identificar demandas da sociedade local, bem como promover discussões de conteúdos interdisciplinares, beneficiando a população não só com os resultados da pesquisa, mas também com o desenvolvimento do seu processo, o que é próprio da pesquisa-ação (TOLEDO et al., 2006).

Tendo descrito brevemente a área e o estudo, pode-se dar início às reflexões propostas partindo-se de breve contextualização sobre as relações de contato entre as sociedades indígenas e não-indígenas.

Ao longo desses mais de 500 anos de contato com a chamada sociedade envolvente, as populações indígenas têm enfrentado diversos tipos de impactos que se inter-relacionam, como os ambientais, os sociais, os culturais, os econômicos e os epidemiológicos (CARVALHO, 1997; SANTILLI, 2000).

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machados, etc.), principalmente por meio de comércio interétnico. Após a dizimação de etnias do Médio Rio Negro e, posteriormente, com a derrota da resistência dos índios Manáo nessa região, as agências de contato chegam ao Alto Rio Negro conduzindo processos de escravatura, violentas incursões militares e catequese realizada por distintas congregações católicas. Registra-se um hiato da presença missionária na região entre 1887 e 1914, quando chegaram os missionários salesianos que permanecem até a atualidade. Especificamente em Iauaretê, estes se instalaram no ano de 1929 (RAMIREZ, 1997).

Para Santilli (2000), as relações de contato podem acontecer tanto pela força bruta como por meio da guerra ou por indução, como por oferta de presentes, em processos que acabam por gerar a dependência.

Alguns efeitos de dilemas contemporâneos do contato com a sociedade envolvente devem também ser destacados, como os resultantes da circulação de dinheiro entre os indígenas, do comércio de produtos industrializados e do acesso a meios de comunicação, como a TV. Quanto à monetarização da economia em Iauaretê, no final da década de 1960, a Missão Salesiana, com recursos da Aeronáutica, inicia pagamentos aos indígenas por trabalho na construção de uma pista de pouso; em 1976, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) passa a pagar aposentadorias aos indígenas com mais de 65 anos de idade; recentemente, 375 recebiam rendimentos mensais entre aposentadorias e salários provenientes de trabalho na escola, na prefeitura, na agência postal e no hospital (ANDRELLO, 2004).

O acesso dos indígenas ao que Andrello (2004) chama de “suportes materiais da civilização”, como emprego, dinheiro e determinadas mercadorias, baseados muitas vezes em uma lógica capitalista influenciada pela TV, tem provocado modificações até nos sistemas hierárquicos locais. Arruda (1992) reconhece que as novas funções exercidas pelos indígenas, como de professores, motoristas, agentes de Saúde, dentre outras, ocupações almejadas em função do prestígio que passaram a representar, criaram ou alteraram hierarquias, as quais anteriormente diziam respeito principalmente ao domínio de conhecimentos tradicionais ou aos sistemas de parentesco.

De acordo com Diegues e Arruda (2001, p. 28),

“no Brasil, os povos indígenas sobreviventes do genocídio e da espoliação – típicos da primeira fase de contato com a sociedade nacional – que têm conseguido conservar um território minimamente adequado à manutenção de seu modo de vida, tendem a reconstruir sua sociedade recriando laços de continuidade com o passado, mas já num contexto de reduzida autonomia política e econômica, forçados a se ‘reinventarem’ numa velocidade vertiginosa, desencadeando processos de reordenação sociocultural muito contraditórios e ambíguos”.

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indígenas com agências de contato e com outros grupos indígenas, serão apresentados neste texto para descrever as peculiaridades dessa área em processo de urbanização.

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Urbanidade rural

A esse processo de transformação em curso nos territórios rurais, Moquay (2001) chama de urbanidade rural, ou seja, a transposição aos espaços rurais das práticas de planejamento urbano, onde por meio de novos modos de organização busca-se a construção de uma identidade territorial própria. Essa aproximação do meio rural e do urbano permite aos poucos um alinhamento progressivo dos modos de vida entre os habitantes desses dois tipos de espaços, bem como constatar até que ponto as dinâmicas urbanas são absorvidas pelo meio rural.

Ressalta-se que a urbanidade rural não é a assimilação do espaço rural pela cidade. Ao contrário, é uma maneira que os responsáveis rurais têm de se apoiar no saber-fazer urbano para preservar a especificidade do espaço rural e lhe conservar certa autonomia. Além disso, neste território em construção, incluem-se preocupações que não se limitam à valorização agrícola, mas também se inclui a demografia, a saúde, a oferta de serviços para atender necessidades básicas, dentre outras.

Pode-se, então, fazer um primeiro paralelo, procurando identificar a representação de urbanidade rural no distrito de Iauaretê. Como descrito anteriormente, por meio do contato com a sociedade não-indígena, Iauaretê assimilou características urbanas, como: a oferta de empregos; a pequena, mas crescente circulação de dinheiro acompanhada de comércio de produtos industrializados; a oportunidade de estudo até o Ensino Médio; o acesso aos meios de comunicação, principalmente televisão e rádio, dentre outras; porém a população local possui uma identidade étnica e territorial própria, baseada em conhecimentos tradicionais2.

Dentre esses conhecimentos, pode-se mencionar, por exemplo, o cultivo da mandioca em roça itinerante, a caça e a pesca, sendo estes a base da alimentação indígena local, já que a maioria da população tem assim a sua subsistência. Observa-se dessa forma, a valorização de uma identidade rural, ao mesmo tempo em que se tem acesso a incrementos urbanos do mundo globalizado. Apesar desses aspectos de subsistência não diferenciarem os indígenas de Iauaretê de demais populações ribeirinhas, ressalta-se que, mais adiante, serão abordadas no texto outras e distintas características fundamentando especificidades da territorialidade indígena e das relações interétnicas.

Baseada em uma gestão participativa, a urbanidade rural é apresentada por Moquay (2001) como sustentada por três pilares essenciais, a saber: o princípio da semeadura,

que corresponde a um conjunto de instituições em associação, responsáveis pela tomada de decisões, cuja organização possibilita estabelecer novos laços sociais entre os habitantes; o funcionamento por carta, que diz respeito a acordos estabelecidos em função de objetivos

estratégicos comuns e de uma distribuição de papéis; e o espírito de país, relacionado a valores

e a uma ética de responsabilidades pela qual a sociedade deverá basear-se.

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vínculos sociais entre seus habitantes. Cada comunidade possui lideranças denominadas de líder ou capitão, vice-líder ou vice-capitão, animador, catequista e agente indígena de Saúde, as quais, juntamente com os outros moradores de cada vila, reúnem-se semanalmente para discutir assuntos do interesse de todos, além de proporem coletivamente um trabalho comunitário (ajuri) para ser realizado no decorrer da semana. Percebe-se, portanto, um

sistema de organização e coordenação entre os atores, baseado em acordos prévios que guiam as ações de modo transversal, como estabelecem os dois primeiros pilares.

Vale esclarecer, como bem afirmou o cacique Guarani Marcos Tupã, da aldeia Krucutu, SP, em evento realizado em abril de 20063, sobre o papel do capitão enquanto

liderança indígena, que

“a parte espiritual era muito bem conduzida pelo pajé, mas as negociações com os não-indígenas eram sempre mais difíceis. Nessa necessidade por novas lideranças para intermediar esse contato e atender às novas necessidades dos povos indígenas, por exemplo, o direito à terra, surge a figura do cacique, chamado também entre alguns grupos de capitão”.

Em Iauaretê, o líder (capitão) e o vice-líder são os principais responsáveis por essa interlocução.

Quanto ao papel exercido pelo animador, dentre suas responsabilidades, está o de propor um trabalho comunitário, o ajuri, para ser realizado no decorrer da semana, como

trocar o revestimento de palha de um centro comunitário ou capinar uma rua. Lembra-se aqui que o ajuri é uma prática introduzida no local por missionários salesianos.

No tocante à atuação dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), por serem representantes das comunidades, têm maior facilidade tanto para compreender os processos de saúde-doença dentro do universo mitológico e cultural indígena como também maior aproximação com o cotidiano das famílias, podendo, se devidamente preparados, desenvolver ações de prevenção e de promoção da saúde no ambiente domiciliar e no entorno.

Em diálogo durante a pesquisa, uma agente indígena de Iauaretê assim descreveu o seu trabalho:

“uma vez por semana, geralmente de terça, visito as casas da comunidade para ver se tem alguém doente, se sim, vejo o que é e peço medicamento no Pólo Base ou encaminho a pessoa para lá. Para ser AIS, fazemos um curso de capacitação com os enfermeiros do Pólo Base do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), de dez a dezoito dias. No período de janeiro a março, faço o cadastramento das famílias e moradias. Também faço palestras para a comunidade sobre diarréia, higiene ambiental. Gosto bastante do meu trabalho”.

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Entretanto, em estudo realizado sobre a formação e o trabalho desenvolvido por agentes indígenas de Saúde, Souza e colaboradores (2002), identificaram dificuldades por parte dos AIS no desenvolvimento da educação em saúde, principalmente pela diferença entre o processo educativo tradicional indígena e as estratégias que vêm sendo utilizadas.

Além dessas lideranças assim denominadas, reconhece-se em Iauaretê a existência de outras que exercem importantes papéis junto aos moradores, como os pajés e os benzedores (lideranças espirituais) e os professores indígenas, que, recentemente, assumiram a direção da escola estadual local, função esta que era exercida até então por representantes da Igreja Católica.

Outro aspecto marcante é a presença em Iauaretê de quinze organizações indígenas, que se agregam pela Coordenação das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê (COIDI).

Assim, verifica-se que essa participação dos atores na tomada de decisões envolve a incorporação de valores culturais tradicionais, o que reforça a identidade étnica e territorial. Baseados na ética e na busca por atender as necessidades de seus moradores, esses valores demonstram um desejo de tomar nas próprias mãos o destino de sua coletividade, e essa dinâmica local pode aqui representar o terceiro pilar que fundamenta a urbanidade rural.

Diante de contextos como este de Iauaretê, marcado por fortes vínculos sociais e culturais, influenciando diretamente na maneira como seus habitantes relacionam-se entre si e com o ambiente, a noção de território, que será discutida a seguir, pode ser abordada sob vários enfoques, como o geográfico, o econômico, o cultural, o político, dentre outros.

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Território

Em primeira análise, o território associa-se a um espaço político baseado no “fazer juntos” por aqueles que querem ser sujeitos do seu próprio futuro e, tendo objetivos comuns, lutam por seus direitos (MOQUAY, 2001).

A luta pela demarcação das terras indígenas do Alto Rio Negro é um exemplo disso, a qual começou em 1971, quando lideranças do Alto Rio Tiquié e Uaupés foram incentivadas por missionários católicos a participar. Iniciou-se aí um processo de grandes logros, tanto no direito à terra como no aspecto organizacional, pois, em 1987, foi fundada a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) (CABALZAR e RICARDO, 2000), que na atualidade agrega mais de cinqüenta organizações indígenas de base comunitária, como a citada COIDI, em Iauaretê. Com o decorrer do tempo, membros da sociedade civil do Alto Rio Negro também foram organizando-se na captação de recursos, interlocução e parceria com agências governamentais e não governamentais de expressão, inclusive do exterior, e na elaboração e execução de projetos com temáticas culturais, educacionais e de desenvolvimento sustentável.

Com relação à constituição do território a que Iauaretê pertence, Faria (2003, p. 4) afirma que

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seu território, além de conter dimensões sociopolíticas, também contém uma ampla dimensão cosmológica (...). A importância do território está no seu significado, pois as nações indígenas do Alto Rio Negro constroem sua identidade por meio da relação mitológica que mantêm com o território, considerando-o como sítio de criação do mundo. Trata-se de uma identidade criada em relação a uma geografia determinada”. (FARIA, 2003, p. 4). Para Carvalho (1997, p. 15)

“o território indígena não se caracteriza fundamentalmente por estatuto de ‘produtividade’. Os fatores que consideram essenciais para integrá-lo decorrem de coordenadas culturais particulares, oriundas das relações sociais de parentesco e organização social”.

Portanto, a noção de território adquire aqui claramente valores sociopolíticos, e acredita-se que, dentre outros aspectos, são as ações sociais de mobilização que garantem o contínuo e permanente processo de construção de um território, pois sem essa ação social o território torna-se apenas um lugar.

Semelhante a essa dicotomia entre lugar e território, Santos (2002) apresenta uma distinção para as expressões paisagem e espaço. Segundo este autor, a paisagem é constituída por aquilo que se vê, é uma configuração territorial. Já ao espaço associa-se um sistema de valores em constante transformação, incluindo-se, portanto, a sociedade em si.

A noção de território amplia-se podendo contribuir para a compreensão das práticas sociais, pois é por meio das relações com o outro, do confronto com o outro, que um território constitui-se na historicidade das relações sociais estabelecidas. Relações estas que muitas vezes são de conflito.

Diante do exposto, procurou-se identificar quais situações de conflito estão presentes em Iauaretê. A que parece mais óbvia é a relação entre a sociedade indígena e a não-indígena, estabelecida no local desde a chegada dos primeiros missionários salesianos, em 1929, até mais recentemente, pela presença do Exército brasileiro. Essa situação tem contribuído para os fluxos migratórios e, conseqüentemente, para a transformação do modo de vida tradicional desses indígenas.

Para Andrello (2004), de certa maneira, a chegada dos missionários nessa região ajudou na melhoria da situação de grupos indígenas que, naquele período, estavam sendo explorados por comerciantes e seringueiros, pois os missionários opunham-se às práticas realizadas por eles. Até certo ponto, Doethyró Tukano/Machado (2003, p. 216) compartilha da mesma opinião ao afirmar que “o contato com os missionários trouxe também a proteção dos índios em relação a outros grupos nacionais hostis, educação e assistência médica”.

Por outro lado, são inegáveis os efeitos do confronto cultural do contato entre indígenas e missionários, principalmente porque os últimos subestimavam e denegriam valores e crenças dos indígenas, como afirma Doethyró Tukano/Machado (2003, p. 216) sobre suas impressões dos primeiros contatos de seu povo com os missionários:

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ser nosso Deus, passamos a ter um Deus que ficava preso em um altar. Um Deus que não podíamos ver e escutar, um Deus distante, um Deus estranho a nós. Passamos a ver o mundo com olhos diferentes”. Doethyró Tukano/Machado (2003, p. 216).

O primeiro internato da Missão Salesiana de Iauaretê, criado para alfabetizar e catequizar os indígenas começou a funcionar em 1930. Para Arruda (1992), esse regime de internato era uma forma de melhor atingir os objetivos de catequese, pois sendo os mais velhos muitas vezes resistentes às doutrinas dos missionários, manter as crianças e os jovens afastados do convívio daqueles e do cotidiano das aldeias era uma forma de minimizar possíveis recaídas aos hábitos e costumes indígenas.

Da mesma maneira, Lasmar (2002), ao referir sobre as posturas dos missionários salesianos e aos meios adotados por eles em sua missão de “catequizar e civilizar os indígenas”, afirma que “um dos artifícios utilizados para levar a cabo este projeto era o de minar as bases tradicionais de autoridade através da formação de lideranças jovens, educadas nas missões” (p. 14). A autora lembra também da repressão efetuada frente aos costumes e rituais indígenas.

Em 1950, a Missão de Iauaretê já tinha o maior internato da região, e, em 1958, com a instalação de uma pista de pouso em Iauaretê, construída por 9 anos com mão-de-obra indígena, a Força Aérea Brasileira (FAB) passou a prestar apoio à missão, o que se refletiu no binômio FAB/Missões, cuja ideologia era a de integração nacional na Amazônia. Assim, as Missões Salesianas na região desempenharam por várias décadas o papel de autoridade local, pois seu projeto de civilizar e catequizar os índios contava com o apoio financeiro do Estado (ANDRELLO, 2004).

Ao final dos anos de 1960, com a instalação das primeiras escolas rurais e a criação de um Grupo Escolar Misto em Iauaretê, onde começaram a atuar os primeiros professores indígenas, iniciou-se a decadência do internato. O regime de internato encerrou-se em 1988, com o aumento da grade curricular até o segundo grau no Colégio São Miguel, presente em Iauaretê e responsável por um processo de deslocamento das comunidades para a sede do distrito. O colégio permanece até os dias de hoje como uma das principais motivações para a concentração populacional local (ANDRELLO, 2004). A presença ainda de um Pelotão Especial de Fronteira desde 1988, enquanto oportunidade de emprego, somou-se como atrativo para o processo de migração.

Vale lembrar que, em 1970, o governo federal brasileiro, sob comando dos militares anunciou o Plano de Integração Nacional, que objetivava integrar a região amazônica ao restante do país. No final dos anos de 1980, a região tornou-se campo de teste de um experimento militar de colonização das fronteiras, por meio da instalação de quartéis e núcleos de povoados, o Projeto Calha Norte.

Na atualidade, sete pelotões são responsáveis pelos 1,6 mil km de fronteira no noroeste do Brasil, um deles é o de Iauaretê. Esses pelotões têm recrutado já há algum tempo soldados das comunidades indígenas, e como afirma Oliveira (1995, p. 131)

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A esse respeito, Ab’saber (2005, p. 32) afirma que “ninguém pode avaliar o que seja a colocação de grupos humanos de um só gênero no ambiente singelo de distantes cidades amazônicas, como é o caso da região de São Gabriel da Cachoeira”.

Além disso, identificou-se, com o processo de pesquisa, que trabalhar na atualidade para o Exército Brasileiro parece ser algo almejado por muitos indígenas de Iauaretê, não somente pelo salário, mas também pelo prestígio que essa ocupação passou a representar entre eles, prestígio que antigamente estava relacionado prioritariamente às posições que ocupavam hierarquicamente nos grupos étnicos.

Evidencia-se, porém, que o “modo de pensar” dos militares, pautado no autoritarismo, é bastante diverso do “modo de pensar” desses povos, onde, de maneira geral, questões do cotidiano são discutidas democraticamente e pautadas em lógicas míticas. E, como afirma Martins (2003), esses movimentos migratórios não ocorrem sem conflito. De um lugar a outro, o processo é caracteristicamente dramático, especialmente para os indivíduos e as suas individualidades, pois a memória fica em um lugar que não o dela, é o lugar de outra subjetividade e muitas vezes em uma espacialidade descontínua e fragmentada. Assim, os laços de identidade vão sendo redefinidos e a cultura agora será a síntese de dois lugares, um do imaginário e outro do vivido.

Outra situação presente em Iauaretê é a relação de conflito e dominação entre etnias que ali convivem. O principal exemplo é a relação entre grupos: os Tukano e Tariano, distribuídos em nove das dez vilas, visivelmente dominadores; enquanto os Maku-Hupda, na posição de dominados, habitam exclusivamente a Vila Fátima na margem direita do rio Uaupés e são a minoria em Iauaretê.

Sendo os índios Tukano de hábitos ribeirinhos, acabam por depender dos recursos provenientes do interior da floresta amazônica, trazidos pelos índios Maku-Hupda, caçadores-coletores que transitam pelos interflúvios. Porém, por uma explicação mitológica, relatada a seguir, são os índios Tukano que dominam os índios Maku-Hupda.

O Trovão do Céu desceu para o Lago de Leite, transformando-se em Cobra Grande ou Cobra Canoa, uma embarcação que conduzia em seu bojo a futura geração humana rio acima. Os representantes das tribos Tukano, posicionados na cabeça da Cobra Grande, ao desembarcar, tocaram a terra pela primeira vez. Já os representantes Maku, posicionados na cauda da Cobra Grande, foram os últimos a desembarcar, e quem tocasse primeiro a terra ganharia o maior respeito daqueles que desembarcassem atrás. Por meio desse gesto simbólico, criou-se a hierarquia e a relação de dominação presente até os dias atuais (DOETHYRÓ TUKANO/MACHADO, 2003).

Durante o processo de pesquisa-ação, em conversa com um indígena da etnia Tukano, obteve-se o seguinte relato sobre a maneira como se relacionavam com os indígenas do grupo Maku/Hupda: “eles eram nossos empregados”. Da mesma maneira, identificaram-se casos de internação no hospital local, em que funcionários da Saúde pertencentes a etnias ribeirinhas não forneciam alimentos a pacientes indígenas Maku/Hupda.

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Rio Negro, “floresta e rio representam dois aspectos importantes na territorialidade das diversas nações indígenas dessa região”.

Percebe-se, portanto, como afirma Barth (1998), que a diversidade cultural não depende de um isolamento geográfico, assim como o contato interétnico também não levará necessariamente a uma perda das diferenças culturais ou a uma aculturação. Os grupos étnicos são para o autor uma forma de organização social e categorias de atribuição e identificação realizadas pelos próprios atores. Além disso, lembra o autor que, na maioria das vezes, as categorias étnicas levam em consideração apenas o que ele chama de conteúdos culturais: sinais ou signos manifestos, como o vestuário, a língua, a moradia ou o estilo geral de vida; e orientações de valores, como padrões de moralidade e excelência pelos quais as ações são julgadas. Porém, como dimensionar a relevância de tais traços culturais? Para o autor “a pertença étnica é, ao mesmo tempo, uma questão de origem, assim como de identidade corrente” (p. 214).

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Sustentabilidade

De acordo com Barth (1998), o uso dos recursos naturais em áreas ocupadas por sistemas poliétnicos caracteriza-se, na maioria das vezes, por um controle diferencial destes, o qual se orienta, dentre outros aspectos, por escalas de valor e hierarquia.

Sobre esse aspecto, como mencionado anteriormente, famílias provenientes de comunidades distantes mudam-se por distintas razões para Iauaretê. Identificou-se que pessoas que não possuem origem local não costumam pescar nas imediações, direito reservado aos tradicionais ocupantes, por meio da organização social reinante. Do mesmo modo, as escassas áreas próprias para cultivo das roças nas proximidades da sede de Iauaretê são preferencialmente utilizadas pelas famílias de clãs mais prestigiados, de tradição local.

A impossibilidade dos ambientes de entorno de oferecer fartura a toda a população, associada à migração e ao crescimento populacional pela oferta de ensino, condicionam um peculiar processo de evasão em períodos de férias escolares. Nessas ocasiões, muitas famílias viajam para as suas comunidades de origem em busca de farta alimentação, sobretudo de pesca e de caça, acarretando uma significativa redução momentânea da população da sede do distrito de Iauaretê.

Chernela (1987), em seu estudo sobre a pesca na região do Alto Uaupés, também discute a ocupação territorial relacionada a sistemas hierárquicos, e afirma que cachoeiras e igapós, áreas onde a pesca é mais abundante, são geralmente ocupadas por grupos de maior hierarquia.

Neste ambiente peculiar, e em constante transformação, regras voltadas para assegurar a sobrevivência do grupo, a sua reprodução e também para atender às necessidades básicas são freqüentemente recriadas, e, como afirma Melucci (2004, p. 39), “são elaboradas regras até mesmo para funções fisiológicas, delimitando o limpo e o sujo, o puro e o impuro”.

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não ocorria da mesma maneira. Isto porque evidenciava-se maior capacidade de resiliência do ambiente para receber os resíduos gerados, a maioria de origem orgânica, e também pela existência de melhores alternativas de fontes de água para atender grupos menores. Assim, em pequenas comunidades, a separação do “limpo” e do “sujo” era facilitada.

Em depoimento colhido de um respeitado pajé Tukano, de acordo com afirmação transmitida por seu pai, no passado, um dos motivos que levava as comunidades a mudanças de local era afastar-se da sujeira proveniente da própria ocupação, assim, sempre que julgavam necessário, construíam suas malocas, antigas residências comunais, em novas áreas.

Observa-se que os indígenas habitantes da região do Alto Rio Negro possuem diversas técnicas e costumes bastante adequados à subsistência nos ambientes que ocupam, tais como tabus alimentares, manejo de recursos naturais e especialização na produção de utensílios (RIBEIRO, 1995). Dessa forma, a escassez de recursos naturais na região tem seu enfrentamento na organização social local, constituída por um modelo de ocupação de pequenas comunidades indígenas dispersas ao longo de rios, conforme comentado anteriormente.

Com efeito, na análise das relações entre natureza e cultura, cabe ressaltar que a unidade de ordem cultural tem em sua constituição o significado, ou seja, o componente de subjetividade humana que define a funcionalidade dos elementos ambientais perante as finalidades da ordem cultural, delineando as relações entre ser humano e ambiente (SAHLINS, 2003). Nesse sentido, aspectos dessas relações em âmbito regional e local, serão apresentados a seguir, com vistas a diferenciar a urbanidade rural e os aspectos da sustentabilidade da área de estudo de demais comunidades ribeirinhas.

Hildebrand (1993) descreve, a partir de grupos Tukano colombianos, notáveis características de manejo de ecossistemas com base na reciprocidade entre ambiente natural e humano, em processos que possibilitam tanto a subsistência individual quanto a grupal. O pesquisador relata um tabu alimentar relacionado ao consumo de carne de animais de sangue quente, como pacas, antas, dentre outros. De acordo com a interpretação dos indígenas, esses animais possuem certo tipo de energia que é assimilada por aqueles que consomem sua carne. O acúmulo excessivo desse tipo de energia desperta a atenção de entes da natureza para com a pessoa, que assim passa a correr maior risco de sofrer doenças ou outros agravos como, por exemplo, o ataque por um animal peçonhento. Esse aspecto cultural, segundo o autor, conduz a um processo de divisão de produtos de caça e realização de refeições comunais. Por outro lado, também contribui para o manejo dos recursos de caça, algo que é efetuado com auxílio de pajés, que em estado de alteração de consciência negociam com entes da natureza onde, como e o que se pode caçar.

Em Iauaretê, pelo fato da pesquisa realizada voltar-se, dentre outros aspectos, para o entendimento do processo saúde-doença, restrições alimentares foram, de modo recorrente, registradas no tocante ao processo de cura e prevenção de doenças. Salienta-se ainda, quanto a aspectos organizacionais de manejo tradicional praticados pelos indígenas de Iauaretê, que, em certa ocasião de viagem pelo Rio Papuri, uma liderança indicou um lago onde, segundo ela, havia espíritos ruins, cobras-grandes, onças e boraró4. Segundo a

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Ainda nesse sentido, o fato da pesca e da escolha de locais para roçar ser privilégio dos tradicionais moradores, como já relatado, permite associar essa prática à cosmogonia local, tendo a sua referência na chegada das etnias na “cobra-canoa” e a ocupação das cachoeiras mais piscosas, como Iauaretê, pelos mais prestigiados.

No decorrer do processo de pesquisa, identificou-se ainda a importância das refeições comunais entre os indígenas locais e, desse modo, o compartilhamento de alimentos protéicos derivados de caça e pesca, recursos escassos nos ecossistemas da região, além dos tradicionais derivados da mandioca, frutos e sementes. Conforme comentado anteriormente, semanalmente os moradores reuniam-se nos centros comunitários de cada uma das vilas/ comunidades, geralmente nas manhãs de sábado, para discutir assuntos de interesse coletivo. Terminada a reunião, iniciava-se uma refeição comunitária, na qual, os indígenas pareciam reviver as partilhas de alimentos que eram realizadas nas antigas malocas habitadas por seus antepassados, onde também prevalecia a transmissão oral de conhecimentos.

A oferta e a partilha de alimentos são também praticadas em Iauaretê durante alguns rituais tradicionais, como nos dabucuris, onde além de alimentos, são ofertados artefatos e

celebradas alianças entre grupos.

Antigamente, os dabucuris eram grandes festas que envolviam alguns requintes.

Caixas de ornamentos rituais eram abertas e instrumentos musicais e cantos específicos eram apresentados de acordo com o que fosse oferecido: peixe, caça, frutos do mato ou artefatos (bancos ou cestarias). O alucinógeno caapi (Banisteriops caapi) era consumido

pelos mais velhos, o que lhes permitia entrar em contato com o mundo mítico invisível. Comida e bebida eram preparadas para todos os participantes com antecedência e a festa podia durar até dois dias (RIBEIRO, 1995; ANDRELLO, 2004). Nos dias atuais, apesar da ausência de alguns adornos e instrumentos cerimoniais permanece a oferta de grandes quantidades de alimentos, danças e uma espécie de confronto verbal entre os participantes, o que segundo Andrello (2004) parece reforçar ou criar novos vínculos entre diferentes grupos que convivem no mesmo local.

Outro aspecto aparentemente importante para a organização e sustentabilidade dos povos da região é a exogamia lingüística – a prática de realização de matrimônios entre pessoas que falam línguas distintas. Tradicionalmente, como já mencionado, os indígenas do Alto Rio Negro ocupavam a região em comunidades dispersas, estas, por sua vez, caracterizavam-se por identidade étnica que correspondia ao grupo lingüístico. Assim, para todo o conjunto dos grupos indígenas do rio Uaupés, das famílias Tukano ou Arawak, ainda na atualidade, a ninguém é permitido o matrimônio dentro do mesmo grupo étnico e lingüístico. Os filhos e filhas irão falar a língua e pertencer ao grupo étnico do pai, porém, geralmente compreendendo a língua da mãe (RAMIREZ, 1997).

Essa tradição regional é componente de um processo de seleção cultural que, por sua vez, incide na seleção de fatores naturais relevantes (SAHLINS, 2003), no caso, constituindo situação capaz de evitar o declínio genético de populações isoladas em pequenas comunidades.

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multilingüismo, onde crianças falam em casa a língua do pai e compreendem a língua da mãe. Nas ruas e nos espaços coletivos, prevalece a língua Tukano como oficial. Na escola, as crianças são alfabetizadas em português, contudo explicações são normalmente proferidas em língua Tukano por parte dos professores nativos. Em adição, a exogamia lingüística praticada em Iauaretê é parte de um complexo modo de reorganizar a estrutura urbana, pois interfere na mobilidade e estabilidade de grupos étnicos nas vilas. Para ilustrar, as comunidades Santa Maria, Dom Bosco e Aparecida, em que predominam a etnia Tariana, dependem, desse modo, de mulheres de outras etnias vindas de outras vilas para proceder aos matrimônios, gerando novos núcleos familiares.

Ainda no tocante à sustentabilidade, Barth (1998), ao apresentar os limites de capacidade do ambiente natural e de suporte dos diferentes nichos ecológicos lembra que

“cada vez que uma população depende da exploração de um nicho natural, isso implica um limite superior na altura que ela pode atingir, correspondente à capacidade portadora daquele nicho; e qualquer adaptação estável implica um controle do tamanho da população” (p. 203).

Nesse sentido, sabe-se, por exemplo, que a exploração excessiva dos recursos naturais, com a substituição gradativa da vegetação original por áreas de cultivo ou pastagens, tem dificultado o atendimento às necessidades dos habitantes que dependem dessas áreas. Assim, algumas civilizações antigas acabaram por se desintegrar justamente por terem devastado o ambiente natural no qual se apoiavam, já que muitas vezes não se conhecia a capacidade limite do ambiente. Porém, nos dias atuais, mesmo com descobertas a esse respeito, o ser humano tem continuado a se apropriar dos recursos naturais de forma intensiva, e ao mesmo tempo tem se afastado culturalmente da natureza, vendo-a apenas como fonte inesgotável de recursos.

Com efeito, as práticas agrícolas nas regiões do Médio e Alto rio Negro são milenares, e a concentração populacional aumenta uma demanda localizada por áreas de cultivo, fator que esbarra na capacidade de suporte do ambiente, pois são escassas as terras cultiváveis nessas áreas. Tradicionalmente, o modelo de ocupação multisecular parece ter ocorrido, dentre outros fatores, em razão de indisponibilidade de terras cultiváveis, bem como da baixa produtividade pesqueira da região (nos chamados rios da fome). Fazendo, portanto,

com que em situação original os indígenas dessas regiões vivessem em pequenos grupos de cerca de 100 a 150 habitantes, o que não ameaçava nem o equilíbrio demográfico nem os limites naturais.

Destaca-se, nesse contexto, a importância de se valorizar a identidade dos lugares, pois é nas relações estabelecidas ao longo dos tempos, entre a comunidade e o meio natural, que civilizações passadas produziram sua qualidade territorial.

Sabe-se que essas relações também estiveram e ainda estão presentes em Iauaretê, por meio, por exemplo, da prática da agricultura itinerante, que intercala períodos de cultivo e pousio (descanso) da terra, permitindo a regeneração do solo e da floresta, ou ainda

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água e nutrientes. Esse sistema á chamado por Martins (2005) de habilidade de combinação ecológica.

Destacam-se também algumas especializações de grupos étnicos quanto aos artefatos que produzem e por meio dos quais estabelecem relações de troca que persistem com o tempo. Os Tukano, por exemplo, produzem bancos de madeira escavados em um único tronco, cuja forma e cujos desenhos pintados têm uma simbologia muito bem definida; os Baniwa confeccionam ralos de mandioca, feitos em uma tábua côncava e incrustados com pedrinhas de quartzo; os Maku produzem os aturás, cestos cargueiros feitos de cipó-imbé, utilizados principalmente para o transporte e armazenamento da mandioca, além de fornecerem também sarabatanas e curare.

Assim, faz-se fundamental valorizar e perpetuar essa sabedoria ambiental e assim se apropriar do território. É preciso ficar claro, como afirma Magnaghi (2003, p. 48), que “a verdadeira conservação patrimonial é sempre resultado de uma transformação ativa: o patrimônio, com seus valores culturais e econômicos, não existem em si mesmo, mas unicamente através da interpretação daqueles que os utilizam”.

Dessa forma, na busca da tão almejada sustentabilidade, deve-se levar em consideração não apenas aspectos físicos ou biológicos, mas da mesma maneira os processos históricos e culturais de construção do território, os quais deram origem à sociedade ali estabelecida, com sua identidade e sua sabedoria ambiental, construídas ao longo dos tempos, por meio de um constante trabalho da natureza e da cultura. E no caso específico de Iauaretê essa representação apresenta-se de forma bastante clara, pois o entendimento da importância de se valorizar a sociodiversidade local pode contribuir para a manutenção dos sistemas de organização ali presentes, e conseqüentemente para a contínua busca por uma melhor qualidade de vida da população. Em profundidade, afirma-se que o pano de fundo cultural presente em Iauaretê, exercendo forte papel em sua organização interna e, sobretudo, nas relações ser humano-ambiente, diferencia substancialmente esta de demais comunidades ribeirinhas, algo que seria possível comparar apenas sob um olhar superficial.

A partir das discussões aqui propostas, espera-se estimular novas reflexões acerca do assunto, principalmente no sentido de minimizar visões estereotipadas e românticas sobre os indígenas, as quais permanecem ainda presentes na atualidade, reforçadas muitas vezes pela literatura e pelos meios de comunicação. Envolvendo aspectos econômicos, políticos e socioculturais, sabe-se que esses estereótipos influenciam constantemente a opinião pública, afetando diretamente, de forma negativa, a auto-estima desses povos.

Considerando-se, portanto, algumas peculiaridades presentes em Iauaretê destacadas ao longo do texto, no tocante a características ambientais e a relações interétnicas, baseadas em um sistema de valores míticos, ou ainda no tocante a relações estabelecidas entre a sociedade indígena e a não-indígena, marcadas muitas vezes pelo assistencialismo, deve-se ressaltar que podem ser situações geradoras de movimentos de luta e de conquistas sociais, e que, portanto, podem contribuir para a transformação da sociedade e a sua reorganização.

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de saúde coletiva, com o envolvimento direto da população local, visando assim a contínua melhoria das condições de vida desses indígenas.

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Notas

1 O mapa falante é uma técnica que objetiva representar graficamente uma situação problematizada da

realidade comunitária, a qual deve ser elaborada coletivamente por pessoas interessadas em conhecer e resolver problemas identificados. É recomendável a sua aplicação quando se deseja a participação da população na realização do diagnóstico de determinada situação que os envolve e na formulação de planos e programas de ações, visando mudar a situação diagnosticada (TOLEDO et al., 2006).

2 Para Diegues e Arruda (2001, p. 31), o “conhecimento tradicional é definido como o conjunto de

saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração”.

3 Tratou-se da 4ª Semana Villas Boas – Fórum Nacional de Identidade Brasileira -, realizada na Assembléia

Legislativa do Estado de São Paulo, entre os dias 26 e 28 de abril de 2006. O cacique Marcos Tupã falou no dia 26, sobre o tema Conflitos de Terras.

4 Segundo esclarecimentos colhidos com indígenas locais, esse ente corresponde ao curupira, descrito na

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Urbanidade rural, território e sustentabilidade:

relações de contato em uma comunidade

indígena no noroeste amazônico

RENATA FERRAZ DE TOLEDO

LEANDRO LUIZ GIATTI

MARIA CECÍLIA FOCESI PELICIONI

Resumo: Este artigo objetiva discutir representações de urbanidade rural, território e

sustentabilidade no contexto de relações estabelecidas entre a sociedade indígena e a não-indígena, ou entre diferentes grupos étnicos que habitam o Distrito de Iauaretê, situado na Terra Indígena do Alto Rio Negro, no noroeste amazônico. Objetiva também discutir as relações dos moradores desta localidade com o ambiente por eles ocupado.

Palavras-chave: Alto Rio Negro. Relações de contato. Sustentabilidade. Território.

Urbanidade rural.

Rural Urbanity, Territory and Sustainability: Contact Relations

in an Indigenous Community of the North-western Amazon

Abstract: This article discusses representations of rural urbanity, territory and sustainability in the context

of established relations among the indigenous and the non-indigenous society, or among different ethnic groups that inhabit the Iauaretê District, located at the Upper Rio Negro, North-western Amazon. It also talks about the relationship between the inhabitants and their environment.

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