• Nenhum resultado encontrado

Mulheres de vida dupla: as singularidades de Virgília, de Machado de Assis e de Lavínia, de Marçal Aquino

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Mulheres de vida dupla: as singularidades de Virgília, de Machado de Assis e de Lavínia, de Marçal Aquino"

Copied!
126
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

GISELE MONTOZA FELICIO

MULHERES de VIDA DUPLA:

as singularidades de Virgília, de Machado de Assis e

de Lavínia, de Marçal Aquino

(2)

GISELE MONTOZA FELICIO

MULHERES de VIDA DUPLA:

as singularidades de Virgília, de Machado de Assis

e de Lavínia, de Marçal Aquino

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Helena Bonito Couto Pereira.

(3)

F314m Felicio, Gisele Montoza.

Mulheres de vida dupla: as singularidades de Virgília, de Machado de Assis e de Lavínia, de Marçal Aquino / Gisele Montoza Felicio – 2013.

125 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2013.

Referências bibliográficas: f. 120-124.

1. Literatura brasileira. 2. Literatura contemporânea. 3. Aquino, Marçal, 1958-. 4. Machado de Assis, 1839-1908. 5. Nar-rador. 6. Personagem. 7. Voz social. I. Título.

(4)

GISELE MONTOZA FELICIO

MULHERES de VIDA DUPLA:

as singularidades de Virgília, de Machado de Assis

e de Lavínia, de Marçal Aquino

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovado em: 16/12/2013

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Helena Bonito Couto Pereira - Orientadora Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Profª Drª Marlise Vaz Bridi

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

(5)

Aos homens da minha vida:

Meu marido, Samuel, que me ensina a sonhar cada vez mais alto.

(6)

AGRADECIMENTOS

À vida, pela oportunidade de conhecer um mundo novo por meio da literatura.

Ao meu marido, Samuel, companheiro e cúmplice de uma vida.

Aos meus filhos Sahelê e Hailê, maiores incentivadores da minha carreira.

À minha orientadora, Profª Drª Helena Bonito de Couto Pereira, pelo sorriso e carinho sempre presentes. Generosidade que excede em muito as páginas de seu currículo Lattes.

À banca de defesa, pela avaliação preciosa do meu trabalho.

Aos mestres que me conduziram ao mundo da Literatura, Prof. Luiz Camilo Laffalce, Prof. Wagner Madeira, Profª Maria Thereza Zambonim e em especial, à Profª Marlise Bridi que tanto na minha juventude quanto maturidade esteve presente na minha vida acadêmica.

Aos amigos sempre presentes nas alegrias e agonias do trabalho acadêmico, Sheila, Ed e Marcelo.

À Eli, pela amizade, apoio e ajuda nos assuntos técnicos e burocráticos.

(7)

Não há caminho mais direto para que os povos se conheçam uns aos outros do que esta concepção do mundo manifestada nas letras.

(8)

RESUMO

Conhecer o comportamento humano e as sociedades por meio do texto literário, sem perder seu caráter artístico, torna-se uma pesquisa possível ao considerar que cada romance traz várias vozes sociais que revelam o pensamento ou a ideologia de uma época, de acordo com Mikhail Bakhtin. Será analisado no presente trabalho de que modo as sociedades oitocentista e contemporânea reagem diante de mulheres que vivem uma vida dupla. Machado de Assis nos apresenta, em Memórias Póstumas de Brás Cubas (2012), Virgília que por meio da dissimulação mantém uma vida dupla; Marçal Aquino, em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), apresenta uma protagonista – Lavínia que por meio de sua instabilidade emocional e psicológica mantém uma vida dupla.

(9)

ABSTRACT

Knowing human behavior and the societies through the literary text, without losing its artistic character, it becomes a research as possible when considering that each novel brings various social voices that reveal the thought or ideology of an age, according to Mikhail Bakhtin.. It will be analyzed in this study how the 19th century

and contemporary societies react in front of women who live a double life. Machado de Assis introduces us, in Memórias Póstumas de Brás Cubas (2012), Virgília that through dissimulation maintains a double life. Marçal Aquino, in Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, features a protagonist – Lavínia, which by means of psycho-emotional instability also maintains a double life.

(10)

SUMÁRIO

PRIMEIRAS IMPRESSÕES 9

1 UMA SOCIEDADE ILUDIDA EM BUSCA DE PRESTÍGIO 16

1.1 SÉCULO XIX - O MUNDO BURGUÊS 16

1.1.1 A literatura realista 17

1.1.2 A mulher no contexto patriarcal 20

1.2 VIRGÍLIA, A DISSIMULADA 27

1.2.1 A obra 27

1.2.2 Falemos de Virgília... 48

2.UMA SOCIEDADE FRAGMENTADA EM BUSCA DE IDENTIDADE 62

2.1 PRIMÓRDIOS DO SÉCULO XXI - O MUNDO PÓS-MODERNO 62

2.1.1 A literatura pós-moderna: o hiperrealismo 63

2.1.2 A mulher liberada 66

2.2 LAVÍNIA, A INSTÁVEL 69

2.2.1 A obra 69

2.2.2 E por falar em Lavínia... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS 115

(11)

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Minha consciência tem milhares de vozes, e cada voz me traz milhares de histórias.

William Shakespeare

Ao propor a análise de um único tema, no caso, a vida dupla das protagonistas, em duas obras de contextos e autores distintos, queremos afirmar que isso não só é possível como podemos estabelecer pontes de ligação entre ambas. O objetivo principal do presente trabalho é conhecer, através do texto literário, como a sociedade se comporta diante de mulheres que vivem uma vida dupla. Para a elaboração argumentativa da dissertação, partimos do princípio de que o narrador representa uma voz social e a medida que ele vai construindo sua protagonista vai revelando essa voz.

A literatura é arte, portanto não tem compromisso com a realidade, mas sim com a representação estética, contudo, ela nos permite vislumbrar o que poderia pensar o narrador e as personagens dos romances e por meio destes pensamentos conhecer a voz social que está orquestrando todas as suas ações. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho é observar o papel da mulher na sociedade em que está situada por meio da construção das protagonistas feita pelos narradores. O discurso narrativo revela não somente a voz social do narrador e da personagem como também do autor.

(12)

assim, sempre um posicionamento parcial e ideológico. Entenda-se por ideológico, todo o universo que engloba as áreas de criatividade intelectual e cultural do ser humano como arte, ciência, filosofia, direito, religião, ética, política etc. Sendo assim, não existe enunciado neutro, tudo possui significação.

Entretanto, a significação advinda por meio dos signos só pode ser compreendida e interpretada no âmbito sociocultural, uma vez que o ser humano é um ser social e está inserido em uma cultura. Os signos cumprem a sua função de carregar a significação somente entre os indivíduos socialmente organizados, portanto, precisam ser analisados dentro de um contexto social global. Segundo o Círculo de Bakhtin, os indivíduos se relacionam com a realidade que os cerca

mediados pelas linguagens, signos e significações, e como a “significação dos

signos envolve sempre uma dimensão axiológica, nossa relação com o mundo é sempre atravessada por valores” (FARACO, 2010, p. 49). Dessa forma, qualquer

palavra manifestada está recoberta de qualificações e de um discurso heteroglóssico, isto é, constituído de diversos e diferentes tipos de linguagem.

Os intelectuais russos apontam ainda para o efeito de refração que os signos possuem, pois eles não apenas refletem o mundo como o refratam, isto quer dizer que os signos adquirem valorações diferentes por parte dos grupos humanos em sua práxis, gerando diferentes modos de dar sentido ao mundo. Seguindo essa perspectiva, entendemos então que um enunciado pode responder a outro

enunciado, entrando em acordo ou não com o anterior, “a relação contratual com um

enunciado, a adesão a ele, a aceitação de seu conteúdo fazem-se no ponto de tensão dessa voz com outras vozes sociais” (FIORIN, 2010, p. 25). Além disso, o

enunciado é uma articulação de várias vozes sociais, assim, podemos afirmar que todo enunciado possui uma dialogicidade interna. A palavra é perpassada pelas palavras do outro.

(13)

a própria língua, a concepção linguística do mundo (a forma interna do discurso), onde o diálogo de vozes nasça espontaneamente do diálogo social das línguas, onde a enunciação de outrem comece a soar como língua socialmente alheia e, finalmente, onde a orientação do discurso para as enunciações alheias passe a ser a orientação para as línguas socialmente alheias, nos limites de uma mesma língua nacional (BAKHTIN, 2010, p. 92-93).

Dessa maneira, qualquer enunciado se colocado ao lado de outro no plano do sentido acaba por estabelecer uma relação dialógica. A vida é dialógica por

natureza, pois “o ser significa comunicar-se” (idem, 2011). O tempo e o espaço não são impedimentos para esse tipo de análise. E é justamente o que faremos ao analisar a vida dupla das protagonistas femininas, construída pelos narradores protagonistas em dois recortes distintos no tempo e no espaço da literatura brasileira.

A constatação de que não existe um único discurso pressupõe a existência da voz do outro, da cultura do outro. Por essa afirmação, os limites são ampliados e a dimensão do plurilinguismo ganha força. A língua, como um meio vivo e em constante mudança, não pode ser única. E é dentro desse universo heteroglóssico que nasce o sujeito. No confronto gerado pelo diálogo discursivo surge o sujeito. Podemos afirmar que um sujeito não possui um discurso uno, pelo contrário, seu enunciado é a réplica para tantos outros enunciados. Os enunciados surgem como respostas das vozes interiorizadas, vozes estas já tão amalgamadas no interior do ser que sequer são notadas.

Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível (idem, 2010, p. 88).

(14)

No romance, as diferentes vozes sociais se encontram e manifestam diferentes perspectivas sobre o mesmo objeto. É o espaço discursivo e dialógico. A linguagem é um ponto de vista de grupos sociais reais e de seus representantes personificados. Essas perspectivas são frutos de discursos anteriores e do seu próprio tempo, pois cada período histórico da vida ideológica e verbal possui sua própria linguagem. Em cada momento coexistem línguas de épocas, culturas e ideologias diferentes.

Cada época histórica da vida ideológica e verbal, cada geração, em cada uma das suas camadas sociais, tem a sua linguagem: ademais, cada idade tem a sua linguagem, seu vocabulário, seu sistema de acentos específicos, os quais, por sua vez, variam em função da camada social, do estabelecimento de ensino (a linguagem do cadete, do ginasiano, do realista são linguagens diferentes) e de outros fatores de estratificação. Trata-se de linguagens socialmente típicas por mais restrito que seja o seu meio social (BAKHTIN, 2010, p. 98).

É justamente por meio da análise do discurso de cada época que podemos traçar o caminho da dialogicidade interna. A voz de cada enunciado anuncia o seu próprio tempo. Ideologias, valores e tabus são conhecidos por meio da voz do narrador e das personagens do romance, mesmo sabendo que a literatura é arte, ou seja, uma elaboração textual esteticamente dirigida. Ao ouvirmos a voz de Brás Cubas e de Virgília saberemos como se comportava parte da sociedade de meados do século XIX assim como Cauby e Lavínia nos levam a conhecer parte da realidade

“moderna” no interior do Brasil do final do século XX.

(15)

os relacionamentos ali implicados. Interessa-nos saber como tais narradores, respectivamente cada um em seu contexto, desempenham sua função no que diz respeito à construção de suas protagonistas, considerando sempre que por não se tratar de um estudo comparativo, não se pretende estabelecer uma hierarquização entre as obras e seus autores.

Portanto, a presente dissertação inicia-se com a apresentação do seu objetivo e das concepções teóricas de Mikhail M. Bakhtin sobre voz social, a qual será analisada na função do narrador e da protagonista. Se o romance tem como principal objeto o homem e a sua linguagem então o texto literário revela a condição do ser humano como ser social e muitas vezes manifesta as suas ideias e até sua ideologia. Posteriormente, o trabalho será dividido em dois capítulos os quais abrangem períodos históricos e obras literárias diferentes.

O primeiro capítulo contém duas partes, a primeira apresenta um breve painel histórico sobre meados do século XIX, período em que a burguesia capitalista está iludida com seu poder político e econômico e busca de todas as formas conquistar o prestígio social que pertencera à aristocracia. Em seguida, é apresentado o realismo como manifestação literária do período a partir das considerações de Alfredo Bosi (1982), que apresenta Machado de Assis como maior precursor do movimento e

Memórias Póstumas de Brás Cubas (2012) como primeira obra realista do Brasil. Terminando a contextualização histórica, o papel da mulher na sociedade patriarcal oitocentista é analisado de acordo com as mudanças sociais provocadas pelo capitalismo sobre a burguesia e que por fim resultaram em um novo posicionamento feminino diante da sociedade no final do século XIX.

(16)

tipos, são analisadas segundo à categorização de Edward Morgan Forster (1998) e reinterpretadas por meio das considerações de James Wood (2011). Um foco maior de atenção é dado à análise da protagonista Virgília, uma vez que ela é a mulher de vida dupla analisada nesse período histórico e outras obras de Machado de Assis, como Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Quincas Borba são referências para a definição da característica máxima de Virgília – a dissimulação.

O segundo capítulo também é subdividido em duas partes. A primeira tenta definir o que vem a ser o mundo pós-moderno do começo do século XXI, baseado nos conhecimentos de Fredric Jameson, e apresenta uma sociedade calcada no consumismo que aos fragmentos procura descobrir sua identidade, ou de acordo com os estudos de Stuart Hall, suas possíveis identidades. Na sequência, o hiperrealismo é apresentado como o movimento literário que corresponde às demandas do presente século, de acordo com as observações de Beatriz Resende e Karl Erik Schøllhammer; Marçal Aquino com Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), representa, entre outros autores, esse momento literário. Para finalizar esta parte, o papel da mulher moderna é colocado em discussão e apresenta uma mulher que conseguiu se libertar da opressão patriarcal do século XIX, mas ainda precisa lutar para se firmar na sociedade e romper com os modelos produzidos pelo mundo capitalista e midiático.

(17)

Lavínia ganha maior espaço, uma vez que é analisada de acordo com as identidades duplicadas, portanto é vista pela perspectiva do duplo estudada por Nicole Fernandez Bravo (1997) que tenta explicar o porquê da instabilidade psicoemocional de Lavínia.

Para concluir, serão consideradas as singularidades das duas protagonistas e como seus narradores representam as vozes sociais que punem o comportamento duplo. Será observado como os narradores traçam destinos diferentes para suas protagonistas, o que nos fará ver como a punição moral recai de maneira mais cruel sobre a protagonista moderna, do mesmo modo que é ela que ainda mantém acesa a chama da esperança pela organização do caos humano.

(18)

1 UMA SOCIEDADE ILUDIDA EM BUSCA DE PRESTÍGIO

1.1 SÉCULO XIX - O MUNDO BURGUÊS

O contexto histórico-social, em que o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas1 está inserido, cria o cenário ideal para o desenvolvimento da trama. A

sociedade burguesa do final desse século, cujos princípios estavam fundamentados no capitalismo moderno, é uma sociedade que quer se desligar do passado e viver novas situações e novos modos de vida. “O século XIX, ou o que usualmente entendemos por esse termo, começa por volta de 1830” (HAUSER, 2003, p. 728). A burguesia está no auge do seu poderio econômico e político enquanto que a aristocracia se recolhe diante desse cenário. O romantismo, como movimento essencialmente burguês, mas ainda atrelado à aristocracia na tentativa de atraí-la como seu público, fenece diante do racionalismo econômico, avanço da industrialização e vitória do capitalismo.

Tanto o racionalismo econômico quanto o pensamento político, em termos de lutas de classes, remetem o romance para o estudo da realidade social e dos mecanismos sociopsicológicos. A temática e o ponto de vista estão de pleno acordo com as aspirações da classe média, e o resultado, o romance naturalista, serve para essa classe ascendente como uma espécie de manual que a ajuda a assegurar-se do completo domínio da sociedade. Os escritores do período convertem o romance naturalista num instrumento para sondar o homem e auscultar o mundo, adequando-o desse modo ao gosto e às necessidades de um público que odeiam e desprezam (ibidem, p. 730).

A sociedade burguesa caracterizada na figura do capitalista detém o poder econômico e através deste o poder político, entretanto trava constantes lutas pelo prestígio social. Isoladamente, cada indivíduo vê-se cercado de aliados e rivais e em

uma batalha constante, “toda propriedade, posição e influência têm de ser permanentemente adquiridas, conquistadas e validadas dia após dia” (HAUSER,

1 O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, será referido, no presente trabalho,

(19)

2003, p. 737). O mundo está dividido entre a aristocracia conservadora e em franca decadência e a burguesia progressista. O primeiro grupo está arraigado aos valores tradicionais e seculares pretendendo impô-los como absolutos, enquanto que para o segundo grupo, a relativização desses valores existe paralelamente a outros mais modernos. Com o triunfo do capital financeiro, surge um novo antagonismo – o capitalismo industrial diante dos trabalhadores assalariados e a pequena burguesia. O dinheiro domina toda a vida pública e privada; os políticos, os servidores públicos, os homens de negócio e as damas da sociedade alimentam o caráter plutocrático da sociedade do século XIX.

1.1.1 A literatura realista

O foco de interesse da literatura na segunda metade do século XIX é a psicologização do romance, de acordo com nomenclatura utilizada por Arnold Hauser (2003, p. 752). Fruto de uma época em que o individualismo está acima de qualquer outra fonte cultural, o romance torna-se o principal gênero literário ao expor os conflitos existentes entre o indivíduo e a sociedade. A partir do momento em que o capital financeiro movimenta todas as engrenagens sociais, as tensões subjetivas passam a ser uma realidade captada pelos autores dispostos a revelá-las. O romance social preocupa-se com a história do desenvolvimento das personagens dentro do seu universo. Um mundo marcadamente dominado pela monetização das relações individuais e sociais permite a existência de um amplo espectro de tensões a serem desenvolvidas pelos autores, os quais procuram cada vez mais cercar-se de impessoalidade e objetividade na análise dos objetos, pessoas e des faits divers.

De acordo com Alfredo Bosi, o escritor realista tem como regra fundamental o distanciamento do teor subjetivo de análise, e diante do desenvolvimento científico

(20)

personagens, causas estas que podem ser naturais e determinadas pela raça, clima ou temperamento; ou culturais, impingidas pelo meio social ou pela educação.

Se o romancista de ontem escolhia e narrava as crises da vida, os estados agudos da alma e do coração, o romancista de hoje escreve a história do coração, da alma e da inteligência no estado normal. Para produzir o efeito que ele persegue, isto é, a emoção da simples realidade, e para extrair o ensinamento artístico que dela deseja tirar, isto é a revelação do que é verdadeiramente o homem contemporâneo diante de seus olhos, ele deverá empregar somente fatos de uma verdade irrecusável e constante (MAUPASSANT apud BOSI, 1982, p. 189).

No Brasil, o realismo começou em 1881, com a publicação da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, cujo autor, Machado de Assis, foi o principal precursor, sendo que tal romance chega ao público-leitor por meio do feuilleton. Trata-se de um período da história do Brasil em que a cidade do Rio de Janeiro era o centro produtor, quase exclusivo, das manifestações artísticas e que possuía, por volta de 1860, no máximo 270.000 habitantes (RIBEIRO, 2008, p. 43). Dentre esses milhares de habitantes há que se considerar que a metade era constituída de escravos, sem contar um número grande de imigrantes, portanto, o número de leitores era insignificante. Entretanto, havia a preocupação em resgatar a identidade nacional dentro da literatura, uma vez que o ínfimo público-leitor lia a tradução dos folhetins franceses; dessa forma, surge a crônica da cena urbana brasileira, mais pontualmente, carioca. Machado de Assis manifesta-se a respeito da nacionalidade

na literatura brasileira por meio do ensaio “Instinto de Nacionalidade”:

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (ASSIS, 1994).

(21)

homens preocupavam-se com o mundo dos negócios, portanto, as mulheres é que podiam preencher suas tardes entediantes com romances escritos por homens, sobre mulheres e dirigido às mulheres (RIBEIRO, 2008, p. 50). Contudo, os romances geralmente possuíam um teor moralizante, pois eram utilizados como instrumento pedagógico para educar a mulher e ensinar-lhe o seu lugar na sociedade.

Machado de Assis logo percebeu a importância da mulher na sociedade burguesa do século XIX, principalmente no que diz respeito à manutenção da estrutura patriarcal, pois a ordem social estava estruturada sobre os pilares do matrimônio. Os números da distribuição social indicavam que na segunda metade do século XIX havia mais homens do que mulheres, em 1872, 42,26% de mulheres para 57,74% de homens (ibidem, p. 44), portanto, muitas vezes conseguir uma esposa era uma questão de ordem pública e não de um desejo subjetivo. Tal questão histórico-social faz com que o casamento torne-se uma temática constante nos romances produzidos nesse período. Entretanto, como parte dos matrimônios não passava de arranjos comerciais, a insatisfação feminina ficava cada vez mais evidente no seu comportamento determinando o seu deslize, daí a temática do adultério ser tão recorrente como em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1856, O primo Basílio, de Eça de Queirós, em 1878 ou em Anna Karenina, de Liev Tolstói, em 1873. Sendo assim, Machado de Assis procura desconstruir a imagem feminina em seus romances; se nas temáticas românticas a mulher era colocada em um pedestal inatingível e inacessível, agora ela é apresentada como uma mulher feita de carne e osso, sujeita às virtudes e aos vícios.

[Machado de Assis] não construiu um mundo de bacanais, nem um antro de perdições; apenas nos ofereceu mulheres de carne e osso, capazes de assumir um corpo e os desejos dele constitutivos, sem nunca cair na grosseria e na exaltação gratuita de uma genitalidade mal resolvida (RIBEIRO, 2008, p. 15).

(22)

insinuados ou sugeridos como o relacionado à personagem Sofia em Quincas Borba

(1997) ou a suposta traição de Capitu em Dom Casmurro (1981); O conto “Uns Braços” (2007) caracteriza muito bem a insinuação e não consumação do delito matrimonial; portanto, adultério plenamente concretizado é o de Brás Cubas e Virgília, ao qual dedicaremos atenção na análise.

1.1.2 A mulher no contexto patriarcal

De acordo com a historiadora Mary Del Priore, em seu livro Histórias Íntimas,

“No céu do século XIX brilhou uma estrela. A do adultério” (2011a, p. 57).

A relação de dominação que houvera entre o senhor e as escravas no período do Brasil-Colônia deu lugar às relações clandestinas, cobertas pelo véu da hipocrisia. O Direito Civil no Brasil foi regido até 1890 basicamente por leis portuguesas, as Ordenações Filipinas (STEIN, 1984, p. 27-28). O primeiro Código Civil brasileiro propriamente dito passou a vigorar somente em 1917. Portanto, no que tange ao relacionamento conjugal, as Ordenações Filipinas declaravam que o

marido era o “cabeça do casal” e que somente após sua morte a mulher poderia ocupar tal posição. O rompimento do contrato matrimonial por questões de fidelidade era considerado um delito grave para ambos os cônjuges, entretanto do ponto de vista jurídico, a mulher estava em desvantagem. Ficava evidente que os critérios para a punição eram distintos para os dois sexos. Diante do menor deslize por parte da esposa, o homem tinha a sociedade a seu favor. Os crimes eram admitidos para se ter a honra preservada.

Na história do Brasil, durante muito tempo, a violência sofrida pelas mulheres não era considerada um problema social que exigisse a intervenção do Estado, pelo fato de ocorrer, sobretudo, no espaço doméstico e em meio a relações conjugais e familiares. Apesar de um grande número de mulheres de todas as classes sociais serem cotidianamente submetidas à violência de vários tipos, isso era visto como questão de ordem privada (LAGE; NADER, 2012, p. 287).

Não havia desrespeito maior que ser considerado traído, assim, somente o

sangue poderia “lavar” tal mácula. As Ordenações Filipinas declaravam que

(23)

a ela, como o adúltero” (STEIN, 1984, p. 29). Já, tanto o Código Criminal de 1830 e de 1890 como a Consolidação das Leis Penais de 1932, determinam que a mulher casada que cometer adultério será punida com pena de um a três anos de reclusão, enquanto que o homem em situação semelhante seria preso somente em caso de sustentar uma amante. Contudo, na prática o que se aplicava é que a mulher por um suposto indício poderia ser incriminada enquanto que para o homem era necessário haver provas concretas da existência de uma concubina.

Entretanto, com a consolidação do capitalismo, a vida urbana passa a ter cada vez mais eventos públicos propiciando a convivência social da ascendente classe burguesa. No período entre 1840 e 1867 ocorre uma verdadeira febre de reuniões, bailes, concertos e festas (ibidem, p. 19). A mudança no estilo de vida desencadeará uma série de transformações no comportamento e no pensamento da sociedade. A mulher começa a colocar os pés para fora dos umbrais do seu lar. Ela passa a ser cada vez mais vista nas confeitarias, bailes, teatros e eventos que envolvam as famílias da elite brasileira. Em decorrência dessa mudança, a mulher que outrora fora vigiada pelo marido e filhos mais velhos passa agora a ser vista e vigiada também pelos olhares atentos da sociedade (PRIORE, 2011b, p. 228).

O caráter do consumismo burguês ajudou a tirar de casa algumas mulheres da elite, introduzindo-as em seus novos papéis de consumidoras no fim do século. As senhoras não tinham mais que mandar suas criadas às compras ou esperar que um vendedor ambulante as visitasse. As compras, assim como agradáveis passeios à tarde ou o chá em cafés elegantes, passaram a fazer parte do lazer das mulheres privilegiadas nos meios urbanos (HAHNER, 2012, p. 57).

(24)

eventos sociais citados e esse espaço congrega também a nata política da sociedade. Surge um novo padrão de família em que a mãe passa a dedicar mais

tempo aos filhos assumindo a posição de “rainha do lar”, entretanto, se faz

importante apontar que tais valores familiares apenas foram assimilados por uma parcela das famílias brasileiras.

Nem todos quiseram ou puderam adaptar-se aos modos burgueses. Em uma sociedade profundamente diversa e desigual, hierarquizada a partir de elementos socioeconômicos e étnicos (com base,

sobretudo, na “cor da pele” – herança do escravismo), não é de espantar que, ao se comparar famílias de áreas mais urbanizadas com as de áreas predominantemente rurais, as compostas por negros, brancos ou mestiços, as imigrantes e as locais, as ricas e as pobres, houvesse grandes diferenças. Entretanto, embora não tenha sido abraçado (pelo menos com a mesma intensidade) por toda a população, o ideal de família que as novas classes dominantes, com seus modos burgueses, estimulavam tornou-se o novo parâmetro (SCOTT, 2012, p. 17-18).

O status da mulher, mesmo com essa mudança de comportamento, ainda é garantido pelo contrato de casamento, o qual ocorre entre as famílias mais abastadas a fim de garantir ascensão social. Para a mulher só havia duas alternativas: o celibato ou o casamento. O celibato dividia-se em ficar “solteirona” e

eternamente dependente da casa paterna ou a vida religiosa dentro de um convento, instituição muitas vezes utilizada por pais ou maridos como casa de correção para mulheres com conduta considerada imoral. Dessa forma, o casamento ainda era a alternativa mais atrativa e a única maneira de garantir ascensão social feminina. As mulheres casavam-se cedo, por volta dos treze ou catorze anos e os fatores político-econômicos permeavam as escolhas matrimoniais, deixando pouco espaço para ser ocupado com o afeto ou a afinidade sexual.

(25)

A mulher só poderia realizar-se por meio do matrimônio e jamais por seus próprios méritos. O diálogo entre a personagem Virgília e seu marido Lobo Neves, do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas comprovam tal afirmação.

Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ministro. – Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui um ano. Virgília replicou: - Promete que algum dia me fará

baronesa? – Marquesa, porque eu serei um marquês (ASSIS, 2012,

p. 102).

O relacionamento sexual só era admitido dentro do matrimônio. Esse caráter moral estava calcado nos princípios católicos uma vez que até 1890 a instituição casamento era validada pelo sistema de união entre Estado e Igreja Católica Romana. Entretanto, mais uma vez a vida cotidiana era diferente da estabelecida pelos cânones religiosos. Havia uma moral sexual dupla, permissiva para com os homens e repressiva com as mulheres, que com certeza ainda sobrevive em tempos atuais. O universo conjugal, sem dúvida alguma, dava espaço para as relações extraconjugais, sendo que no seio do lar, as relações sexuais ocorriam apenas com o fim de procriação, o prazer masculino era obtido com “a outra”. Cabia então à mulher casada mais uma função, a de manter a fidelidade conjugal. A estabilidade e felicidade do casal repousavam sobre a honra e fidelidade da esposa.

Havia um pensamento, vindo da Europa, de que existia uma divisão no campo de atuação, tida como própria da natureza, entre homens e mulheres. Segundo esse pensamento, os homens eram mais ativos e possuíam uma sexualidade mais acentuada enquanto que as mulheres naturalmente desenvolviam sentimentos mais puros e bondosos em detrimento da sua sexualidade.

Elle veut le plaisir? Oui, mais médiocrement. Elle est sensible et abstinente, plus tendre, mais plus pure que nous2 (MICHELET apud

STEIN 1984, p. 35).

Tal visão de mundo aliada à ausência de poder político e econômico nas mãos femininas, fez com que a mulher do século XIX se tornasse o pilar central do conservadorismo da sociedade brasileira. A mulher da elite fazia parte de um

2

(26)

pequeno segmento da população que se distinguia pela condição econômica e racial, entretanto, ela vivia em estruturas culturais, sociais e econômicas criadas pelos homens e para beneficiá-los.

Fossem elas esposas ou filhas de membros de alto escalão do governo imperial, de homens de negócios, fazendeiros, mercadores, banqueiros ou de donos de fábricas (mais no final do século) –

membros das famílias que controlavam a riqueza nacional -, seu

status era derivado de suas famílias e não de si mesmas (HAHNER, 2012, p. 43).

Contudo, a mãe ganha cada vez mais espaço na educação dos filhos, outrora relegados às mãos das mucamas e aias, e no seu convívio social passa a cuidar da imagem do homem, seu marido e filhos, diante da sociedade. Sobretudo na Corte, exigia-se da mulher que soubesse ser boa anfitriã e se necessário fosse até representar seu marido socialmente. A mulher passa a ser a incentivadora e colaboradora para o sucesso político econômico dos homens da casa.

Num certo sentido, os homens eram bastante dependentes da imagem que suas mulheres pudessem traduzir para o restante das pessoas de seu grupo de convívio. Em outras palavras, significavam um capital simbólico importante, embora a autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas, do pai ou do marido. Esposas, tias filhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais) cuidavam da imagem do homem público; esse homem aparentemente autônomo, envolto em questões de política e economia, estava na verdade rodeado por um conjunto de mulheres das quais esperava que o ajudassem a manter sua posição social (PRIORE, 2011b, p. 229 – 230).

(27)

ainda é uma temática recorrente, mas passa a ser vulnerável aos mais diversos ardis.

Se para Mary del Priore, no século XIX brilhou a estrela do adultério, podemos afirmar que foi uma estrela cadente cuja cauda foi a hipocrisia. A partir do momento em que os círculos sociais ampliam-se, com a circulação cada vez maior

das mulheres nas ruas e o ingresso às profissões liberais por parte dos homens, “as

normas de comportamento tornam-se mais tolerantes, desde que se mantenham as aparências e o prestígio das boas famílias não fique abalado” (PRIORE, 2011b, p. 238).

Uma mudança comportamental prenuncia-se. No final do século XVIII e início do XIX, a mulher casada tinha o seu modo de vestir modificado após o matrimônio; os adereços e adornos, assim como perfumes, faziam parte do passado, da sua condição de mulher solteira. Era comum, nas classes menos abastadas, o uso de vestimentas pretas, roupas essas que eram usadas até ficarem puídas, pois não havia o costume de se comprar roupas novas. Sua obrigação era ser mulher casada, portanto, ser vista apenas pelo seu marido. Beleza, erotismo e prazer eram dons e privilégios das cortesãs. A sensualidade da mulher, independentemente de seu estado civil, manifestava-se através das extremidades do corpo, mãos e pés. Estas partes eram as únicas visíveis em um corpo totalmente coberto. Não é difícil associar ao culto fetichista que se iniciou. As mãos e os pés desencadeavam os jogos eróticos possíveis e imagináveis para a época. Uma das excelências da obra de Machado de Assis é observar como assuntos tão polêmicos recebem um tratamento permeado de delicadeza e elegância conferindo ao autor a sua marca estilística.

(28)

com Borges, mas vivia com ele maritalmente. Seria esta a condição necessária para lhe atribuir uma carga de sensualidade que não caberia a uma senhora bem casada? Uma mulher que vivia maritalmente, já havia quebrado as convenções rígidas de sua época, portanto, não se conformar com sua posição de submissão e começar a flertar com a possibilidade de um adultério não causariam assombro. Os braços desnudos de Severina provocavam e manifestavam uma sensualidade que poderia ser ou não inconsciente, o texto não nos revela isto. A sexualidade de Inácio, que também traz significação na escolha do nome: nascer, é despertada e nasce com uma mulher mais velha e casada. Contudo a genialidade do autor manifesta-se na urdidura da trama em que cada ponto é tecido.

A tensão se cria nos dilemas vivenciados pelas personagens Inácio e Severina. Inácio apaixona-se por uma mulher mais velha e que também é casada; por sua vez, Severina não sabe se rejeita ou aceita o flerte do rapaz. Quando ela aceita a ideia do flerte, ela está aceitando o fato de que mesmo vivendo maritalmente, pode despertar paixão em outra pessoa, pode ser desejada por outro homem. E passa a ter um comportamento semelhante ao de Inácio, próprio dos apaixonados, devaneando e sonhando. Os conflitos de Severina aumentam, pois no mesmo instante em que aceita a paixão de Inácio, com relação ao marido apresenta a sujeição característica da mulher oitocentista. Teme fazer uma carícia em Borges e acabar irritando-o um pouco mais. Severina então assume mais uma vez o papel da mulher do século XIX que sublima seus sentimentos libidinosos com o sentimento maternal e procura ver a paixão de Inácio como coisa de criança e assim não tem nada a temer.

(29)

soluções ou julgamentos; e dessa forma valoriza o trabalho do leitor, pois é a ele atribuída a compreensão da obra.

Entretanto, a segunda metade do século XIX reserva para a mulher o começo de suas mudanças comportamentais. Como já dissemos anteriormente, com uma vida urbana tão ativa, os hábitos e costumes femininos passam também por transformações. Enquanto que o reconhecimento social para a mulher chega por meio do homem, ela descobre que a sedução possibilita o controle e a indução do seu destino. As festas e os salões são os espaços perfeitos para a exibição da figura feminina; os vestidos procuram valorizar partes do corpo outrora veladas por trajes que mais se assemelhavam a mortalhas. Os decotes ousados e a visão dos pés faziam parte do jogo de sedução. As mulheres casadas com seus vestidos e acessórios ostentavam maior riqueza e beleza do que as mulheres solteiras. Apesar de parecer paradoxal, uma vez que as mulheres solteiras é que deveriam se exibir mais a fim de conquistarem um pretendente, a ostentação da casada apontava para a posição social do seu marido, assim, a vestimenta oferecia a oportunidade para a mulher dar vazão aos seus instintos sexuais sem macular a sua moral e acima de tudo, sem comprometer seu status.

1.2 VIRGÍLIA, A DISSIMULADA

1.2.1 A obra

Para Alfredo Bosi, “o ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista

brasileira acha-se na ficção de Machado de Assis” (1982, p. 193). Escrever sobre

(30)

poucas palavras; a habilidade em perceber as nuanças, os detalhes e por meio dessa meticulosa percepção revelar o que está encoberto. Principalmente, deixando para o leitor a missão de relacionar o que dizem as entrelinhas, as quais muitas vezes falam mais do que o próprio texto.

Notações fixando minúcias desse gênero enxameiam na ficção principal de Machado de Assis, denunciando-lhes o afã de apreender a experiência emocional até o imperceptível ou quando ela se deixa apenas entrever furtivamente, através de um gesto nem sempre adivinhável (GOMES, 2008, p. 65).

A história e a sociologia devem muito a esse consagrado escritor, pois as suas narrativas podem levar à reconstituição da época em que viveu. Antonio Candido aborda, em Literatura e sociedade (2010), as possíveis influências efetivas do meio sobre a obra literária, e afirma ser a literatura um produto social. Dessa forma, os narradores machadianos são vozes sociais que revelam o modo de ser, agir e pensar da sociedade do seu tempo. “Toda a atmosfera social, política e humana do Segundo Reinado está retida em sua ficção” (OLIVEIRA, 2008, p. 81). O

século XIX representa o fim de uma era na sociedade brasileira, e apresenta um Brasil em crise. A economia açucareira tem sua decadência acelerada com a extinção do tráfico de escravos (1850), isso faz com que o poder político se desloque para o sul do país e revela uma classe média urbana incipiente que possui anseios e ideias liberais, abolicionistas e republicanas. Nesse momento histórico, o pensamento europeu está baseado no positivismo e evolucionismo através de seus representantes, Comte, Taine, Darwin, entre outros. No plano da ficção, os autores se posicionam contra tudo o que possa remeter aos ideais românticos, e sob influência do momento cientificista, buscam a objetividade em suas narrativas. A narração de costumes assim como o desvelamento das mazelas da vida pública são temas recorrentes e cabe ao narrador realista buscar para os desvios de comportamento das personagens as causas naturais ou culturais. Sendo assim, o

idealismo romântico abre espaço para o fato realista, e “A ficção machadiana

(31)

Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicado pela primeira vez, no

formato de folhetim, na “Revista Brasileira”, no Rio de Janeiro, de 15 de março a 15

de dezembro de 1880. No formato de livro, foi publicado no ano seguinte. É considerado pela crítica um divisor de águas na carreira de Machado, pois dá início a sua fase mais madura. Ele propõe um novo olhar quando em Memórias Póstumas

coloca no “primeiro plano os indivíduos com suas contradições e ambiguidades,

passando os casamentos e casos amorosos em si para um plano secundário”

(STEIN, 1984, p. 55). O enredo gira em torno da narração do protagonista que depois de morto passa a contar suas aventuras e desventuras. O narrador-protagonista Brás Cubas, através do seu discurso, revela ser um homem sem apegos morais nem sociais. Era formado em Direito, porém não teve nenhuma conquista profissional. A sua trajetória é narrada do nascimento até sua morte (1805-1869), delimitando assim o período histórico do Brasil no século XIX, revelando os hábitos, costumes e tabus da sociedade do Rio de Janeiro. Foi uma personagem com algumas iniciativas frustradas e de realização pouco eficaz. O romance constitui-se da sucessão de relações amorosas de Brás Cubas. A primeira, aos 17 anos, com Marcela, uma espanhola de vida desregrada; a segunda com Eugênia – filha ilegítima de Dona Eusébia; a número três foi Virgília, a noiva prometida e sonegada; e por fim Nhã-Loló (RIBEIRO, 2008, p. 267). Brás Cubas descreve as mulheres de sua vida como as vê: dissimuladas, sensuais, interesseiras, traiçoeiras. Marcela é promíscua, pensa só no dinheiro e não tem escrúpulos. Virgília é sensual, dissimulada e mentirosa. Eugênia carrega a deficiência física e a culpa pelo relacionamento dos pais. Nhã-Loló é boa para casamento, mas adoece e morre.

(32)

memorialista. Como duvidar de alguém que conta sua própria história com riqueza de detalhes? O pacto com o leitor fica estabelecido. Entretanto, não se pode ignorar o fato de que se trata de um narrador defunto. Essa escolha já encerra várias questões. Primeiro, um morto pode falar o que quiser e como quiser; é inquestionável. Segundo, ele não precisa de credibilidade ou aceitação; ele venceu a barreira da morte, conhece o outro lado, daí, é superior a qualquer mortal. Esse narrador assume um estatuto, dentro da obra, que o torna verossímil em uma narrativa que não apresenta verossimilhança. A magia fica por conta da maestria do escritor.

O tom do deboche e da ironia permeia a narrativa do início ao fim, dada a condição do narrador, o que faz perder a seriedade e compostura. Brás Cubas narra do além-túmulo sob uma perspectiva atemporal, sem se importar com a opinião pública. Possui uma posição privilegiada e se dá o direito de evitar explicações de como se dá esse fenômeno. Não podemos esquecer que a obra foi escrita em um período marcado pelo cientificismo, portanto, todos os eventos precisavam ter uma explicação lógica e objetiva.

Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e, aliás, desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparopago-te, e adeus (ASSIS, 2012, p. 5).

A seleção precisa e adequada das palavras fecha a questão de como um morto pode narrar suas aventuras. A palavra dá conta dessa questão, pois a obra em si mesma é tudo, e com esta frase Machado não quer dizer que comunga dos mesmos credos que os parnasianos, pelo contrário, sua afirmação garante a liberdade necessária ao seu narrador para escrever o que ele quer sem ter que seguir as regras e convenções do objeto literário que quer elaborar. Por meio da retórica, Machado consegue estabelecer um gênero que seria largamente estudado no século XX – o realismo fantástico. “As leis da lógica do cotidiano estão

definitivamente suspensas, em prol da construção de um tipo de imaginário

(33)

O primeiro interlocutor de Memórias Póstumas é um verme. “Ao verme que

primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas

Memórias Póstumas” (ASSIS, 2012, p. 2). Em um processo alegórico, as frias carnes

de Brás podem ser as páginas do livro, assim, o verme é o leitor (PORTELA, 2008, p. 87). O primeiro contato entre narrador e leitor abarca um sentimento de hostilidade que permite a preservação da identidade do livro. Entretanto, o leitor novamente é instigado. O prólogo é dedicado ao leitor, mas não se trata de qualquer leitor. Tem que ser um leitor que não se encaixe nas duas colunas máximas de opinião: os graves e os frívolos.

Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião (ASSIS, 2012, p. 5).

O narrador quer um leitor capaz de entender alegorias e metáforas, que não encare tudo com uma seriedade sisuda, mas que não se deixe levar pela banalidade. Mais uma vez, o narrador trava um embate com o leitor, pois procura estabelecer que tipo de leitor quer como cúmplice em sua narrativa. Partindo do princípio de que a narrativa possui um pé no fantástico, o leitor precisa estar desacreditado do realismo a fim de estabelecer o pacto da ficção. O leitor frívolo é capaz de não exigir maiores explicações e entrar no jogo. Brás Cubas tem também a missão de prender a atenção do seu leitor, uma vez que a primeira publicação do romance foi feita em folhetins, criando assim, promessas de revelações nos

próximos capítulos. “Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas” (ibidem, p. 16).

O narrador machadiano constantemente faz interrupções na sua narrativa para conversar com o leitor, contudo, sempre direcionando o tom da conversa. Por

vezes, aconselha o leitor a “pular” um capítulo ao julgar que o mesmo não terá paciência para ler tais informações, “Se o leitor não é dado à contemplação destes

(34)

explanações, pois considera seu leitor atento a cada detalhe, “Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada” (ASSIS, 2012, p. 29). As construções semânticas são feitas de maneira que a impressão que se tem é que a narrativa está sendo elaborada de acordo com a vontade e disposição do leitor; ledo engano, pois na verdade quem está sempre no comando é Brás

Cubas, “Se não conto os mimos, os beijos, as admirações, as bênçãos, é porque, se

os contasse, não acabaria mais o capítulo, e é preciso acabá-lo” (ibidem, p. 30).

A consciência do narrador machadiano quanto à limitação do tempo da narrativa nos leva a pensar nesta categoria específica: o tempo. Para Mikhail Bakhtin, o tempo associado ao espaço configura o que ele chamou de cronotopo. O tempo e o espaço seriam elementos inseparáveis e geradores de sentido além de serem fundamentais na concretização do enredo.

O cronotopo, como materialização privilegiada do tempo no espaço é, o centro da concretização figurativa, da encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do romance - as generalizações filosóficas e sociais, as ideias, as análises das causas e dos efeitos, etc. - gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e de sangue, se iniciam no caráter imagístico da arte literária. Este é o significado figurativo do cronotopo (BAKHTIN, 2010, p. 356).

Embora tempo e espaço sejam inseparáveis e consigam determinar a imagem do homem na literatura, a perspectiva bakhtiniana coloca o tempo como princípio condutor do cronotopo, pois as categorias temporais são capazes de transformar o homem a cada época. O tempo é a dimensão do movimento, da ação e das transformações. Sua obra Questões de Literatura e de Estética preocupa-se justamente em mostrar a evolução dos cronotopos ao longo dos tempos e as transformações pelas quais o homem passa ao viver em um determinado tempo e espaço. Dessa forma, pode-se afirmar que os cronotopos colaboram na construção das personagens do romance moderno uma vez que as mesmas apresentam-se inacabadas e em constante evolução.

(35)

em literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica (BAKHTIN, 2010, p. 212).

Bakhtin analisa vários tipos de cronotopos que podem ser encontrados em uma obra literária, contudo será dado um destaque especial a dois deles por serem pertinentes a análise dos romances Memórias Póstumas e Eu receberia...:

cronotopo da “estrada” e cronotopo da “soleira”. O cronotopo da “estrada”, do

caminho da vida é onde ocorrem os encontros das mais diferentes pessoas:

O cronotopo da estrada, que se liga a ele (cronotopo do encontro), possui volume mais amplo, porém um pouco menos de intensidade

de valor emocional [...] Na estrada (“a grande estrada”) cruzam-se num único ponto espacial e temporal os caminhos espaço-temporais das mais diferentes pessoas, representantes de todas as classes, situações, religiões, nacionalidades, idades (ibidem, p. 349).

Dessa forma, o cronotopo da estrada permite o cruzamento de destinos e caminhos de pessoas completamente diferentes em um mesmo espaço e tempo. No romance Memórias Póstumas, podem ser identificados alguns cronotopos da estrada em conformidade à complexidade da trama ficcional. Logo no início do romance, precisamente no capítulo VI, Brás Cubas encontra-se moribundo sobre a cama, onde recebe a visita diária de um homem que lhe traz notícias do câmbio e da via férrea; o homem não tem nome, como o próprio narrador diz é um estranho, uma pessoa desinteressante assim como os assuntos que trata (ASSIS, 2012, p. 16-18). Contudo, nessa cena, o quarto de Brás representa um local e um momento de encontro. A situação física estática do doente não impede que pessoas cruzem seus derradeiros dias, e o que é mais importante, cruzam trazendo todo um percurso histórico vivido com o narrador.

(36)

relacionamento extraconjugal da mãe e que agora se apresenta como um mero acompanhante.

Outro episódio que vale ser analisado como um cronotopo da estrada é o referido no capítulo XII, quando Brás era menino e presenciou o beijo entre Vilaça e d. Eusébia (ASSIS, 2012, p. 36-42). O momento é o de um grande almoço entre convidados que representam a elite burguesa do Rio de Janeiro. O Dr. Vilaça cruza o caminho do menino Brás quando acaba indiretamente impedindo-o de usufruir a tão desejada sobremesa, em contrapartida, Brás procura vingar-se do “algoz”. Ele presencia um beijo entre Vilaça e Eusébia, um fato pitoresco e inocente que acaba por influenciar o comportamento de várias personagens. A imagem do beijo, dado atrás da moita, selou a imagem que Brás faria de Eugênia no futuro. Um momento que foi capaz de impingir uma condição inferior à Eusébia e posteriormente à Eugênia. Tal situação pode também ser compreendida como um cronotopo da soleira segundo a perspectiva das personagens da mãe e da filha.

Na literatura, o cronotopo da “soleira” é sempre metafórico e

simbólico [...] são os lugares onde se realizam os acontecimentos das crises, das quedas, das ressurreições, dos renascimentos, das clarividências, das decisões que determinam toda uma vida. (BAKHTIN, 2010, p. 354).

Quanto ao cronotopo da soleira, pode se afirmar que existem momentos que determinam o fim de um ciclo, ou uma transformação ou até um recomeço. Como citamos anteriormente, o episódio da moita acaba por se tornar um cronotopo da soleira para Eusébia e Eugênia, pois marca o destino das duas. A filha é fruto do relacionamento clandestino entre sua mãe Eusébia e Vilaça. Brás Cubas revelou o beijo da moita entre o casal para todos os convidados do almoço e selou o destino da mulher diante da sociedade; em sua fase adulta, ao encontrar Eugênia, trata-a com superioridade, pois a condena por causa do delito da mãe (ASSIS, 2012, p. 88-90).

(37)

descrição pitoresca, o espaço em que o pecado se transveste de virtude deixando o mundo vulgar à porta, ou seja, à soleira (ASSIS, 2012, p. 142-144). Tal cronotopo também pode ser observado no capítulo VII que descreve o momento de delírio de Brás Cubas. As imagens, as aparentes incoerências ou loucura possuem significação e são utilizadas para dar mais força ao que se quer revelar. Não é por menos, que o delírio de Brás começa quando está moribundo e recebe a visita de Virgília. A descrição e narração do delírio apontam para um momento crucial da existência humana em que o sentido da vida é questionado. Saber de onde se veio e para onde se vai faz parte de cada indivíduo.

Dentro do contexto de narrador realista, Brás só poderia perder a racionalidade em um momento de delírio, e neste recorte de tempo e espaço, tudo é possível, até conhecer os mistérios da vida. Essa caminhada em busca de respostas é acompanhada por um animal, no mínimo inusitado se pensarmos na fauna brasileira, um hipopótamo. Contudo, tudo ganha sentido e significação ao sabermos que o hipopótamo representa “a força bruta que Deus subjuga, mas que o homem é incapaz de domesticar”, isto é, “o conjunto dos impulsos humanos e dos vícios que o homem não consegue eliminar por si só, manchado como está pelo pecado original”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 493). Imagem adequada para justificar as fraquezas de caráter do narrador, pois este já carrega a tendência natural e determinista do ser humano em errar. O momento de delírio acaba quando a racionalidade toma seu lugar e tenta restituir a ordem mental do narrador. O que importa é que o delírio leva ao questionamento e cumpre o seu papel de soleira, ainda que Brás não tenha mais tempo e talvez nem vontade para mudar o rumo de sua história (ASSIS, 2012, p. 18-27).

(38)

linearidade na apresentação dos fatos. O narrador direciona a exposição dos fatos de acordo com o seu grau de importância, garantindo a verossimilhança do enredo.

Para Osman Lins, a personagem é espaço e, portanto suas recordações que constituem o tempo psicológico tornam-se também o espaço psicológico (1976, p. 69). Dessa maneira, o espaço assume uma categorização diferente da avaliada por alguns críticos que o considera estático funcionando apenas como um pano de fundo (LINS, 1976, p. 72). Em concordância com as características do romance realista, o tempo e o espaço atuam sobre o comportamento das personagens. A relação personagem-tempo-espaço se mistura e em dados momentos a personagem influencia e altera o espaço-tempo e em outros é influenciada por ele, daí a possibilidade de conhecermos uma sociedade ou época por meio do discurso literário, embora essa não seja a sua finalidade.

A casinha da Gamboa pode caracterizar muito bem a relação de espaço e personagem. Em um pequeno parágrafo, e de maneira econômica, a casa é descrita como em um poema árcade; é uma casa com o frescor de cal novo; muito arejada e iluminada, pois tem seis janelas; todas as janelas têm folhas de venezianas avermelhadas; as trepadeiras sobem pelos cantos das casas e na frente existe um jardim. Uma descrição imagética que imediatamente remete o leitor a um universo bucólico, no entanto, esse universo cresce em significação quando o narrador descreve suas impressões e expectativas com relação a esse tempo e espaço. O que Osman Lins disse acerca de tempo e espaço psicológicos se configura:

Para mim, era aquilo uma situação nova do nosso amor; uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro. Já estava cansado das cortinas do outro, das cadeiras, do tapete, do canapé, de todas essas coisas, que me traziam aos olhos constantemente a nossa duplicidade [...] A casa resgatava-me tudo; o mundo vulgar terminaria à porta; - dali para dentro era o infinito, um mundo eterno, superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem baronesas, sem olheiros, sem escutas, - um só mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição, - a unidade moral de todas as coisas pela exclusão das que me eram contrárias (ASSIS, 2012, p. 143-144).

(39)

A carga afetiva e psicológica depositada pelo narrador sobre o espaço da casinha da Gamboa ultrapassa os limites físicos das quatro paredes. Brás leva o leitor a acreditar que ele quer a restituição da sua dignidade moral através desse espaço; suas palavras beiram o discurso romântico, mas encarna a hipocrisia da sociedade burguesa e volúvel do século XIX. A casinha representa o ideal que não se tem e que na verdade não se quer ter, é um espaço de discurso vazio, pois o desenvolvimento da trama mostra que tanto Brás como Virgília não vão alterar em nada seus comportamentos. O narrador aproveita esse momento “bucólico” para

revelar uma sensibilidade e um brio que não convence ninguém; aproveita também para fortalecer a imagem de mulher dissimulada que Virgília tem, pois para ela não há problema algum em manter a vida dupla. É o que o narrador Brás Cubas quer que o leitor pense sobre a protagonista, mas que narrador é este?

O narrador Brás Cubas é um narrador-protagonista e um narrador-defunto, como ele mesmo se define. Portanto, a sua narrativa é feita na primeira pessoa e construída sobre suas memórias. Como muitos autores escreveram teorias sobre o narrador e a personagem, ao longo deste trabalho, serão escolhidos aqueles que julgamos ter maior pertinência com o objeto analisado. Tzvetan Todorov (1976)

apresenta em seu capítulo “As categorias da narrativa literária”, uma classificação

dos aspectos da narrativa baseada na nomenclatura elaborada por Jean Pouillon (1974):

a) Narrador > Personagem. Baseado na visão “por trás” de Pouillon (1974, p. 62-74), ocorre quando o narrador sabe mais que sua personagem.

Não se preocupa em nos explicar como adquiriu este conhecimento: vê através dos muros tanto quanto através do crânio de seu herói. Seus personagens não têm segredos para ele. Evidentemente, esta forma apresenta diferentes graus. A superioridade do narrador pode manifestar seja em um conhecimento dos desejos secretos de alguém (que este alguém ele próprio ignora), seja no conhecimento simultâneo dos pensamentos de muitos personagens (do que nenhum deles é capaz), seja simplesmente na narração dos acontecimentos que não são percebidos por um único personagem (TODOROV, 1976, p. 236-237).

(40)

Neste caso, o narrador sabe tanto quanto os personagens, não pode fornecer uma explicação dos acontecimentos antes de os personagens a terem encontrado [...] De um lado, a narrativa pode ser conduzida na primeira pessoa (o que justifica o processo) ou na terceira pessoa, mas sempre segundo a visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos: o resultado, evidentemente, não é o mesmo [...] Por outro lado, o narrador pode seguir um único ou muitos personagens (TODOROV, 1976, p. 237).

c) Narrador < Personagem. Quando o narrador sabe menos que as personagens; é a visão de “fora” de Jean Pouillon (1974, p. 74-84).

Pode-nos descrever unicamente o que se vê, ouve etc., mas não tem acesso a nenhuma consciência. Certamente, este puro

“sensualismo” é uma convenção, pois uma tal narrativa seria

incompreensível; mas existe como modelo de uma certa escritura [...] O narrador é pois uma testemunha que não sabe nada (TODOROV, 1976, p. 237-238).

Portanto, o que pode ser afirmado é que o narrador Brás Cubas apresenta-se como um narrador que sabe mais que as suas personagens. Como já foi citado, o fato de ele vir do além-túmulo para narrar sua trajetória enquanto vivo, garante-lhe um status superior ao de qualquer mortal. Ele tem a autoridade de quem já viveu o que tinha para viver e passou para o outro lado, portanto conhece os mistérios da vida e da morte. É um narrador que não só sabe mais que suas personagens como ousa conhecer seu leitor conforme os fragmentos citados anteriormente.

(41)

enxergar as suas limitações na vida prática. Essa ilusão pode ser resquício de um período em que se sentia um cidadão superior como quando andava montado sobre as costas de Prudêncio, escravo da casa, como se o mesmo fosse um animal (ASSIS, 2012, p. 32).

O narrador Brás Cubas representa a mentalidade dominante das elites escravocratas do Império e como tal apresenta a volubilidade característica da sociedade do século XIX. A impressão que se tem é que as suas ideias não devem ser levadas tão a sério, tornando-o uma personagem superficial e que, portanto vai estabelecer relacionamentos também superficiais, a sua volubilidade manifesta-se na manipulação das aparências, a qual, de acordo com Roberto Schwarz, é o princípio formal do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, trazendo consigo sempre um tom de afronta e desrespeito no discurso narrativo, e que pode caracterizar em certa medida o entendimento histórico-social do escritor com relação à conduta da classe dominante.

O volúvel Brás Cubas, entretanto desde a primeira linha do romance vai sentar-se no banco dos réus, verdade que para rir do leitor. Não quer defender a volubilidade, que de fato é culpada, mas evidenciar a impotência de seus adversários, e gozar da própria impunidade (SCHWARZ, 2008, p. 38).

O desejo do narrador em mostrar que a personagem pretende prolongar a juventude e sua consequente irresponsabilidade aponta para uma personagem que

quer viver de ilusão e fantasia, “e eu ficava-me ali numa ponta de mesa, com os

meus quarenta e tantos anos, tão vadios e tão vazios” (ASSIS, 2012, p. 211). Essa condição parece que não lhe importava, exceção feita ao episódio em que não consegue se tornar ministro. Pode-se dizer que a personalidade Brás é marcada pela sua falta de determinação, sua tendência à superficialidade e à sua vaidade. Vaidade que começa a ser manifestada no evento com o emplasto.

(42)

talento me hão de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: - amor da glória (ASSIS, 2012, p. 10).

A “sede da nomeada” é outra maneira de nomear a vaidade. A vaidade de

Brás, associada à futilidade, é transportada para os relacionamentos que o cercam. Exemplo claro pode ser encontrado quando após a morte de Nhã-Loló, o narrador fala sobre a dor de Damasceno em perder a filha e a dor pela ausência de alguns convidados ao velório, comparando a tristeza do pai à ausência das pessoas (ibidem, p. 226-227). Tal comparação indica a superficialidade e vaidade de um narrador-personagem preocupado com o mundo das aparências. É esse narrador que sem nenhum pudor revela seus traços de personalidade e constrói as suas personagens a medida que vai relatando os episódios de sua vida terrena.

Antes de focar na análise nas personagens femininas que rodeavam Brás Cubas, principalmente Virgília, a protagonista, se faz importante abrir um espaço para o pressuposto teórico adotado no estudo da personagem em Memórias Póstumas. Em Teoria do romance, György Lukács (2007) relaciona o romance com a concepção do mundo burguês, sendo assim, o romance é o espaço em que se travam os conflitos entre as convenções e tabus da sociedade burguesa e as personagens. As personagens se posicionam ora em acordo ora em desacordo com as convenções estabelecidas, levando assim a personagem à submissão das tais convenções; lembrando mais uma vez o que Bakhtin disse acerca de dialogicidade interna, na qual todo enunciado é uma articulação de várias vozes sociais (2010, p. 92-93). Dentro desse universo heteroglóssico, o herói problemático de Lukács toma conhecimento de si mesmo e se posiciona diante do mundo que se apresenta.

Referências

Documentos relacionados

No Estado do Pará as seguintes potencialidades são observadas a partir do processo de descentralização da gestão florestal: i desenvolvimento da política florestal estadual; ii

Dessa forma, a partir da perspectiva teórica do sociólogo francês Pierre Bourdieu, o presente trabalho busca compreender como a lógica produtivista introduzida no campo

Neste tipo de situações, os valores da propriedade cuisine da classe Restaurant deixam de ser apenas “valores” sem semântica a apresentar (possivelmente) numa caixa

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

3.3 o Município tem caminhão da coleta seletiva, sendo orientado a providenciar a contratação direta da associação para o recolhimento dos resíduos recicláveis,

Para analisar as Componentes de Gestão foram utilizadas questões referentes à forma como o visitante considera as condições da ilha no momento da realização do

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Afinal de contas, tanto uma quanto a outra são ferramentas essenciais para a compreensão da realidade, além de ser o principal motivo da re- pulsa pela matemática, uma vez que é