construção da idéia de ator (proissional) à luz de
Georg Simmel
Rosi Marques Machado
*Resumo: Neste artigo, analiso o processo de construção da idéia
de ator proissional, desde sua origem até a que predomina no discurso dos que se dedicam a essa atividade nos dias de hoje. Com base na bibliograia especializada sobre o ator e à luz das relexões de Georg Simmel, apresentarei quatro tipos ideais de ator que elaborei para evidenciar as mudanças ocorridas na noção de ator e as suas correspondentes formas-padrão de representação em acompanhamento às formas que a valorização do indivíduo assumiu ao longo do período moderno. Os quatro tipos ideais de ator são: o “ator-declamador-ilustrador”, o “ator-racional-realizador”, o “grande ator” e o “ator-psicológico-criador”. É neste último tipo que identiico a noção de ator de Stanislavski – que, em larga medida, marca, ainda, o discurso atual dos atores proissionais – e a associo à própria concepção simmeliana de indivíduo moderno, que se caracterizaria por sua ambigüidade.
Palavras-chave: ator proissional; indivíduo; modernidade; Georg
Simmel.
Introdução
É muito comum, na literatura especializada na história do teatro ou do ator, certa tendência a remeter a idéia de ator para um
* Doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes (Ucam).
passado bastante remoto, chegando até mesmo a se falar na existência
de “formas primitivas [de teatro] desde os primórdios do homem”
(Berthold, 2001, p. 1). Assim concebidos, teatro e ator teriam suas origens no ritual e nas iguras do xamã ou feiticeiro, o que, de certo modo, confere um caráter mágico ao teatro e à atividade do ator. Um exemplo de como essa concepção ecoa atualmente no discurso dos atores proissionais1 é a utilização, por vezes, de determinada
analogia para tentar deinir o ato de representar: “é como se tivesse baixado um santo”, denotando uma associação com o ato ritualístico
de incorporar “entidades”.
Apesar de essa relação teatro–ator e ritual–xamã ser possível e bastante sedutora à medida que permite criar, como diria Elias (1997), uma “longa e respeitável ascendência” para a idéia de
teatro e ator, a equivalência direta entre os dois pares requer alguns
cuidados. Ainal, estabelecer um continuum entre eles é o mesmo que
assumir uma atitude de olhar o passado com os olhos do presente, o
que implica renunciar à história, uma vez que são desconsiderados os signiicados especíicos atribuídos às coisas nos seus devidos contextos.
Pensando nesses signiicados e contextos especíicos, é
possível perceber outra dimensão da idéia de ator que molda o
discurso dos atores proissionais nos dias de hoje: aquela em que
se enfatiza a necessidade da separação entre ator e personagem.
Airmada como uma especiicidade que constitui a própria proissão, tal separação aponta para a deinição do termo ator como encontrada nos dicionários: “homem que sabe ingir”. Isso signiica pensá-lo como quem sabe se fazer passar pelo que não é, quem sabe exprimir
determinados sentimentos e pensamentos que, na verdade, não sente nem pensa. Isto é, o ator é aquele que sabe fazer parecer real aos
olhos de quem assiste a ele o que é “falso” ou inexiste, uma vez que é criado na imaginação. Portanto, quem tem por atividade proissional
Tendo-se em vista essa deinição, chama atenção a sua relação
com a própria noção de indivíduo que se inaugura na modernidade.
Como airma Duvignaud (1972, p. 42), a idéia de ator, de um homem que cria “com o corpo e a palavra um universo de paixões e emoções que deine uma imagem de pessoa irredutível à ordem estabelecida” vai se formando à medida que as sociedades arcaicas ou tradicionais dão lugar às sociedades históricas. O processo de
construção da idéia de ator é correlato ao deslocamento da própria concepção do homem, assim como do mundo. É a partir de um
conjunto de mudanças – econômicas, políticas, sociais, religiosas e culturais – que o homem começa a se perceber como agente, que, a
partir de seus próprios recursos, constrói o mundo a sua volta, o seu papel e a sua posição nele e, ao fazê-lo, constrói a si próprio, a sua
individualidade. Acompanhando-se esse processo, pode-se chegar à
idéia de ator tal como se apresenta como predominante no discurso
dos que se dedicam a essa atividade proissional nos dias de hoje: um ser separado dos demais (incluindo aí os personagens) e dotado de uma capacidade de observar e identiicar as emoções de outro e, ao mesmo tempo, de controlar as suas próprias emoções a tal ponto
que pode “emprestar” algumas delas a um “outro”, o personagem.
Este artigo tem por objetivo provocar uma relexão sobre a construção da idéia de ator observada na bibliograia especializada
e sobre sua relação com a valorização da individualidade na época moderna, mediante a apresentação de quatro tipos ideais de ator que
elaborei à maneira de Weber (1974) e à luz da relexão de Simmel, especialmente, em seus ensaios dedicados à atividade do ator. Os quatro tipos ideais de ator são: “ator–declamador–ilustrador”, “ator– racional–realizador”, “grande ator” e “ator–psicológico–criador”.
Os três primeiros foram concebidos em correspondência aos tipos de individualismo assinalados por Simmel, respectivamente: o da distinção, que marcaria o período da Renascença, o quantitativo do século XVIII, e o qualitativo do século XIX. Para isso, tomei como
mundial nesses períodos. Quanto ao quarto tipo, eu o concebi em correspondência ao que Simmel denomina “ator artístico”, no qual
identiico a noção elaborada por Constantin Stanislavski que, com
o seu método, marcará o universo do ator até os dias de hoje e que, a meu ver, se relaciona com a concepção simmeliana de indivíduo moderno caracterizada pela ambigüidade de ser, ao mesmo tempo, um todo em si mesmo e um elemento no todo.
Com efeito, a correspondência que faço entre os tipos de atores e as formas de individualismo tratadas por Simmel aponta para uma periodização mais ou menos precisa, o que poderia gerar
certa compreensão equivocada, como a de que o ator–declamador– ilustrador se encerrou no século XVII ou, ainda, a de que o ator– racional–realizador se esgotou no século XVIII, assim como o grande
ator no século XIX. Entretanto, é bom assinalar o caráter típico ideal que atribuo a eles. Em termos weberianos, esses tipos ideais de ator são instrumentos de análise, ou melhor, constructos intelectuais dos quais me sirvo para compreender a realidade social2, para desenvolver
uma interpretação acerca dos fenômenos assinalados. Assim sendo,
na observação da dinâmica do processo histórico, podemos encontrar esses tipos ideais de atores “contracenando” entre si no decorrer dos séculos e, por vezes, o entrelaçamento desses tipos em um mesmo
ator ao longo de sua trajetória proissional. Porém, somente para efeito de exposição de uma análise que se encontra em processo, isto é, para acentuar certas especiicidades na compreensão do signiicado
que a atividade do ator foi assumindo ao longo do período moderno, neste artigo, eu apresento tais tipos ideais de ator como atrelados a determinado século.
Individualismo da “distinção” e o surgimento de uma
idéia de ator: o declamador
–
ilustrador
pela Renascença italiana a determinados princípios que envolvem
a emancipação do indivíduo com relação às “formas comunitárias
medievais” ou tradicionais que até então o controlavam, impedindo-o de se ver como inseparável do grupo3. A ênfase renascentista em
tal emancipação acabou por propagar “a vontade de poder, fama, prestígio e distinção em um grau desconhecido até então” (Simmel,
1998, p. 109). Como os seus próprios exemplos apontam, Simmel identiica esse tipo de individualismo entre os nobres, assinalando
que a motivação básica, aí, é a busca de distinção, ou melhor, o “desejo individual de aparecer”.
Como esse primeiro tipo de individualismo se mostra central
para pensar o surgimento da idéia de ator proissional, e como ele é pouco enfatizado na relexão simmeliana, recorro, aqui, à análise de Elias (2001) sobre a sociedade de corte. Buscando esclarecer teoricamente as propriedades estruturais – tais como urbanização, monetarização e comercialização – do estágio de desenvolvimento
atingido com o funcionamento efetivo dos controles centrais na sociedade de corte, Elias analisa três aspectos de um “impulso de distanciamento mais abrangente”. O primeiro diz respeito a
um distanciamento em relação à natureza, a constituição de uma
vida urbana de corte cada vez mais diferenciada da vida rural, impulsionando as pessoas a vivenciarem a natureza como “mundo
dos ‘objetos’, como o que deve ser explorado” (Elias, 2001, p. 243) e, por conseguinte, controlado. O segundo aspecto trata de um distanciamento entre os indivíduos, que se relaciona à “couraça das autocoerções” desenvolvida pelos homens das elites no convívio na
corte, levando-os a conter “os impulsos espontâneos” e, ao mesmo tempo, a observar e calcular o movimento dos seus pares e as suas
chances de prestígio – o que aponta, mais especiicamente, para
uma racionalidade de corte4 ou ainda para o “desejo individual de
mais forte para proteger o indivíduo, na forma de um autocontrole,
às vezes mais, às vezes menos automático” (Elias, 2001, p. 245-246).
À medida que uma vida urbana de corte se constitui e à medida que, conforme assinala Duvignaud (1972), o ator surge
acompanhando o movimento dos nobres, é possível pensar que esse ator também tenha começado a vivenciar a “natureza” cada vez mais como algo contraposto a ele, como “mundo dos objetos”. A tradução disso na idéia de ator que se esboça nessas sociedades seria o estabelecimento de uma diferenciação entre a pessoa do ator e o personagem-objeto: personagem a tal ponto objetivado, que adquire
a forma de texto, propriamente, o que remete para o desenvolvimento
de uma dramaturgia que caracteriza o teatro neoclássico, em contraste com o teatro medieval e a commedia dell’arte. Isso, por sua vez, é
um bom indicador de que essa idéia de ator nasce entrelaçada com
o próprio desenvolvimento da igura do autor e de uma forma de representação especíica: a de ator-declamador.
Tal forma de representação vem anunciada no texto, ao qual
o ator deve submeter-se, e equivale ao tipo de controle privilegiado em uma sociedade de corte. Portanto, diz respeito a uma “couraça de
autocoerções”, que se traduz por um reinamento do comportamento
e por um cuidado com as palavras. Nesse sentido, pode-se dizer,
inicialmente, que se tornar ator-declamador acaba por conigurar um
tipo de distinção que reproduz, de certa maneira, a separação mais ampla da sociedade de corte. Assim como esta se dividiria, em linhas gerais, entre “quem é nobre” e “quem não é”, haveria, também, uma espécie de distinção entre “quem é ator” e “quem não é ator”. Com efeito, a separação entre nobres e não-nobres obedece, sobretudo,
ao critério do nascimento – os laços consangüíneos, o “sangue azul” –, enquanto a distinção entre ator e não-ator se apoiaria, antes, na
capacidade do indivíduo de desenvolver ou não uma “couraça de
Assim sendo, o não-ator é aquele que não possui tal capacidade
à medida que se confunde com a personagem e dá vazão a “impulsos espontâneos”, ou seja, utiliza-se de formas de expressão “exageradas” para desempenhar um “papel” – até mesmo social, como parece ser
o caso dos bobos da corte. O ator, por sua vez, é, antes de tudo,
o indivíduo que, ao desenvolver uma “couraça de autocoerções”,
distancia-se do personagem, observa e calcula o movimento desse personagem com os demais. Sem dúvida, isso requer também uma capacidade de autodistanciamento, um autocontrole, que traduz, por
sua vez, o controle sobre um saber especíico.
O saber do ator assim caracterizado compreende: extrair do texto os elementos dados pelo dramaturgo para caracterizar o seu personagem – denotando a “autoridade” do texto; controlar tais elementos e, assim, expressar o personagem-objeto por meio de
uma forma de representação que traduz o comedimento e polidez
exigidos pelos nobres, e que se caracteriza por controlar os gestos e
a voz. Saber conter os gestos e valorizar a palavra é atender ao gosto
cortesão expresso no texto. Saber controlar a voz, modulando-a de acordo com os versos decassílabos, é declamar o texto. Portanto, aqui, ator é sinônimo de ator-declamador, cujas “chances de prestígio” se associam a agradar o gosto cortesão expresso no texto. É dessa maneira que ele realizaria o seu “desejo individual
de aparecer”. Aparecer aos olhos da nobreza, já que é esta que lhe confere legitimidade.
Dentro dessa sociedade regida por uma racionalidade de corte, ser reconhecido como “artista sério”, um “artista-artesão”, ou seja, ser serviçal de um nobre é sinal de prestígio, logo, uma forma de atender ao “anseio de se distinguir da massa dos homens” (Elias, 2001, p.
113). Além disso, sob a “pressão de uma competição contínua”
pelo poder-prestígio, os atores-declamadores buscam destacar-se
entre si. Quanto mais capaz for de tornar o texto compreensível e
ator de elucidar, de materializar o texto no palco, servindo-lhe como
uma ilustração. Nesse sentido, esse ator pode, também, tornar-se ilustre, reconhecido pelas principais cortes, quem sabe, a corte do rei. Por isso, pode-se chamá-lo de ator-declamador-ilustrador.
Com efeito, à medida que a rede de interdependências humanas vai se tornando mais e mais complexa, o individualismo
de “distinção” vai se esgotando, pois, como ressalta Simmel, “reside na própria natureza das coisas [...] que esse desejo (individual de
aparecer) e essa satisfação não possam ser um traço permanente
do homem ou da sociedade, tendo de desaparecer da mesma forma
que um estado extático” (Simmel, 1998, p. 109-110). Assim, se,
nas sociedades de corte, se desenvolve uma determinada idéia de ator fundamentada em uma concepção de indivíduo cuja motivação
básica é o “desejo individual de aparecer”, que se expressa na forma-padrão de representação do ator declamador-ilustrador, à medida que
essas sociedades começam a se desestruturar, ou, melhor dizendo,
à medida que a rede de interdependências vai se tornando mais complexa com a ascensão da burguesia como força econômica e
política, a tendência de valorização do indivíduo na modernidade assume outra forma de individualismo que irá caracterizar o século XVIII, qual seja, a do “individualismo quantitativo”, e, com ele, outra idéia de ator vai se esboçando.
Individualismo “quantitativo” e o
ator-racional-realizador
De acordo com Simmel (1998, p. 109-110), a forma que
a valorização do indivíduo assume no século XVIII tem como motivação a liberdade individual, fundamentada na perspectiva de
que os homens são naturalmente iguais. Nesse sentido, à medida que
iguala todos os homens como os liberta das “correntes opressivas”
da sociedade – as “amarras sociais” representadas pelas instituições do Antigo Regime. Logo, aqui temos a airmação do indivíduo como
separado, isolado do grupo. Porém, resta a questão: então, como é
possível a existência da sociedade? A resposta é encontrada na noção
de fraternidade: a “renúncia eticamente voluntária”, que integraria esses indivíduos “livres-isolados” e tornaria possível a vida social,
compondo um “ambiente social” harmônico.
Com efeito, nessa resposta se encontra a perspectiva de sociedade própria ao liberalismo racional inglês e francês, ou seja,
a que corresponde à noção da livre concorrência. Trata-se de uma
sociedade vista como composta por indivíduos que têm as mesmas
capacidades – razão – e que têm liberdade para dar vazão à sua
própria “ambição” e, assim agindo, isto é, competindo com os demais, cada um dá o “melhor” de si e contribui para o equilíbrio do
todo, em outras palavras, para a “riqueza das nações”.
Desse modo, Simmel considera esse tipo de individualismo como derivado do desenvolvimento da economia monetária, daí a sua denominação, quantitativo, pois é na medida em que a troca
supõe algo de comum, o dinheiro, que este se transforma no suporte das relações entre os homens, tornando-as impessoais. Isto é, ao
afastar tudo que é pessoal, o dinheiro acaba nivelando os indivíduos,
tornando-os indiferenciados, anônimos, iguais. Ao mesmo tempo,
passa a ser o suporte da liberdade individual: seu caráter móvel permite a ampliação dos círculos sociais, vinculando o sujeito ao todo, não como pessoa por inteiro, mas, sobretudo, “pela doação
e recepção de dinheiro”. É nesse sentido que Simmel airma que o dinheiro vem a ser “um novo io condutor para os conteúdos de vida que podem ser associados” (Simmel, 1998, p. 25).
Até mesmo em correspondência às características do dinheiro
ser genérico, universal e abstrato. A meu ver, essa concepção de indivíduo fundamenta a idéia de ator racional contida no método
proposto por Diderot (1993), método este elaborado a partir de observações feitas entre alguns atores reconhecidos pela sociedade de
sua época, vale lembrar, uma sociedade monárquica centralizadora já
em processo de desestruturação. Isso signiica dizer que é a partir dos
atores-declamadores que Diderot estabelece uma diferenciação. Por um lado, os atores que “interpretam com a alma” ou intuitivos, que
“viveriam” as emoções do personagem e, com isso, apresentariam uma irregularidade em suas representações; atores que representam
dentro das “amarras” do comportamento cortesão, comportamento não mais visto como comedido, mas, sim, afetado. Por outro lado,
Diderot identiica os que considera bons atores: os de “cabeça fria”. Estes são os que sabem controlar não só as características externas do personagem, como também as internas, as emoções do personagem e as suas próprias emoções.
É nesse sentido que Diderot redimensiona a relação entre ator e personagem, aprofundando a esfera do controle que o ator deve ter, atribuindo-lhe uma característica central: a razão. A essência racional do ator é que o torna capaz de decifrar a “verdade do personagem”,
o modelo criado pelo dramaturgo – que, sendo um “iluminista”,
escreve para um “homem genérico, abstrato e universal”5, isso que é
o fundamento do drama burguês. Essa essência também se anuncia na capacidade do ator de observar, no “palco da comédia do mundo”
– o mundo real, espécie de laboratório para o ator – as “características mais genéricas e mais marcantes” dos homens que se aproximam do modelo concebido pelo dramaturgo. Por im, torna o ator capaz
de “revelar” a verdade ou essência do personagem transpondo-as
para o “mundo do palco”, portanto, adequando-as às “leis cênicas”.
Assim, ele deve utilizar os gestos e a voz de maneira mais “natural” que condiga ao “mundo da realidade”, porém deve dar-lhes uma
amplitude que preserve o “exagero” requerido pelo “mundo do palco”, possibilitando ao espectador sentado na última ileira do
teatro assistir ao espetáculo.
Desse modo, o ator de “cabeça fria” sabe que não é o personagem que representa, ele não se ilude. Ele domina as suas
próprias emoções. Nesse sentido, é livre, “um indivíduo em si
mesmo”. O que o ator faz, diz Diderot, é promover a ilusão do espectador. Racionalizando a sua emoção no palco, o bom ator é capaz de destacar a singularidade do personagem e, assim, representa “o Tartufo”, e não “um tartufo” encontrado na realidade. Representando a essência do personagem, o bom ator é capaz de conduzir a emoção do espectador a tal ponto que este acaba por confundi-lo com o personagem. Aos olhos do espectador, também dotado de uma essência racional, o personagem é real, ou, melhor
dizendo, o espectador identiica todos os tartufos do mundo naquele
que está no palco. Concebido dessa forma, o ator seria um realizador
do personagem, à medida que lhe confere uma concretude.
Essa idéia de ator parece estar em conformidade com um tipo de movimento teatral: o naturalismo, tratado por Simmel em seus ensaios sobre o ator. Ao que tudo indica, Simmel se refere ao
chamado naturalismo teatral lançado por Zola no inal do século XIX, porém, devido à inluência de Diderot sobre Zola – claramente manifesta por este em seu texto “O naturalismo no teatro” –,
utilizo-me da análise de Simutilizo-mel sobre o moviutilizo-mento do século XIX para tratar do método desenvolvido por Diderot.
Segundo Simmel (1967, 1992, 1994), o naturalismo teatral
parece se fundamentar em uma primeira impressão, e popular, que se tem da arte: a de que a sua matéria é fornecida pela realidade
a forma de obra de arte, para “algo além da vida”. Essa primeira impressão se inverte quando se trata da arte dramática. Como esta apela, mais do que qualquer outra arte, ao público imediato, e como a matéria do ator já é obra de arte, caberia a ele transportar esta para a realidade. Apoiado nessa compreensão, o naturalismo teatral concebe que é por meio do ator que a obra poética se faz real e, com
isso, tem a pretensão de atar a arte dramática à esfera da realidade. Dentro dessa pretensão, Simmel identiica uma concepção “sutil e tentadora” – na qual identiico a de Diderot – que compreende
que o ator deve representar seu personagem, simplesmente, de acordo com a literatura. Aqui se parte da seguinte idéia: do personagem
objetivado em um texto são “demandadas exigências rígidas às quais
o ator deve submeter-se”. Assim, a maneira ideal de representar um personagem é determinada pelo personagem em si, pela intenção do
escritor, pela questão “objetiva e ixa” contida no texto. Daí a idéia
de que todo personagem teria “uma única representação dramática
‘correta’, da qual o ator empírico se aproximaria” (Simmel, 1967, p. 78).
Para esse autor, essa objetividade conferida ao trabalho do
ator não signiica um ideal dramático, mas, sim, literário, pois, à
medida que o ator forma de modo conseqüente o personagem, ele materializa o que foi idealizado pelo escritor, ele é um mero realizador de seu personagem, uma “marionete do seu papel”. Essa “concepção literária” do ator traz consigo uma “tentação secreta”: a de dar uma
aparência de realidade à obra literária. Assim, conclui Simmel, por
mais bonita que seja a frase de que “o ator dá vida ao drama”, isso
leva à negação da arte dramática como arte propriamente – ou seja,
como algo “autêntico e incomparável”. Dividido entre os princípios da obra literária e os da realidade, ao ator caberia somente compor mecanicamente o seu personagem de acordo com tais princípios.
plano mental e unidimensional, em que o escritor ou dramaturgo
traça o destino e a “alma” do personagem, por outro lado, o texto
não pode dar conta, nem dar “premissas inequívocas” da entonação
e velocidade da fala, dos gestos, da “atmosfera” visual da igura ou de sua vivacidade (“o calor da vida”). É o ator quem transfere esse
plano unidimensional para o plano tridimensional da sensibilidade
plena. Para Simmel, o ator não torna o drama – ou obra literária –
real, mas, sim, o torna sensível. É nessa transferência que o ator desempenha a sua tarefa artística, ou seja, ele cria.
Ao que tudo indica, o ator “cabeça fria” de Diderot expressa essa “falsa objetividade” à medida que, para ele, o bom ator “observa os fenômenos; o homem sensível serve-lhe de modelo e ele medita-o, por relexão encontra o que é preciso acrescentar ou cortar para icar melhor” (Diderot, 1993, p. 53). Observar os “fenômenos” e meditar
sobre o modelo do “homem sensível”, o personagem literário, é perceber-se como “um indivíduo em si mesmo”: um ser separado dos demais, mas que tem uma “essência racional” comum com eles,
o que permite ao ator reletir sobre a coerência, a lógica intrínseca ao
personagem que conduz a certa emoção. Emoção do personagem. O ator “acrescenta” ou “corta” essa emoção, ele calcula, separa as suas
emoções reais e as domina a tal ponto que o resultado do seu trabalho,
ou seja, o personagem pronto que se realiza diante do público não tem nada de seu. Considerando isso, eu o denomino de
ator-racional-realizador e o relaciono à forma de “individualismo quantitativo”
que caracteriza o século XVIII e servirá de contraponto, junto ao ator-declamador-ilustrador, ao tipo de individualismo que se funda no século seguinte: o “qualitativo”.
Individualismo “qualitativo” e o “grande ator”
universais, pois ele é uma reação ao individualismo do século XVIII e ao nivelamento causado pelo dinheiro. Trata-se de uma criação do “espírito germânico”, cujo fundamento artístico foi dado por Goethe,
enquanto o metafísico, ilosóico, foi dado por Schleiermacher.
Complementando essa criação germânica, há “a base sentimental, da vivência” fornecida pelo romantismo, principal canal de propagação da concepção de Schleiermacher na qual cada indivíduo é “chamado a tornar realidade o próprio destino”, buscando em si o que lhe é único e distinto. Essa concepção, nas palavras de Simmel, “desaguou
na consciência do século XIX” (Simmel, 1998, p. 115).
A motivação básica desse tipo de individualismo se encontra na busca da desigualdade, que se fundamenta em “uma lei interna”: a necessidade de originalidade. Na busca do que lhe é único e distinto, o indivíduo deve “voltar-se para si”. Assim, a “alma romântica”
busca o sentido da sua existência distanciando-se da “realidade exterior”, do modo de viver burguês impregnado pelo dinheiro que
transforma o indivíduo que “se apega a apenas um ponto” em uma “ostra racional” e valorizando os aspectos qualitativos do indivíduo, as suas particularidades e sentimentos. Por isso, como ressalta
Waizbort (2000), o individualismo qualitativo é antiliberal e hostil à economia monetária, à impessoalidade produzida pelo dinheiro,
que liga indivíduos que nem se conhecem. Mas, ao mesmo tempo, é derivado do desenvolvimento dessa mesma economia, que, no século XIX, atua sob dois princípios: a concorrência, fundamentada na teoria da liberdade e da igualdade do século XVIII, e a divisão do trabalho, cujo fundamento é a “personalidade diferenciada”
(Simmel, 1998, p. 117).
A noção de originalidade que se contrapõe à impessoalidade, à racionalidade e ao universalismo vai marcar a teoria romântica teatral francesa. Conforme assinala Roubine (2003), as idéias de
de “frustração”, pois acontecimentos como o Terror e as guerras
napoleônicas logo lhes mostraram que tais ideais “não se
cumpriram”. Vale lembrar que esses acontecimentos acompanham
o movimento mais amplo da sociedade francesa em direção à nova ordem econômica, isto é, a airmação de uma sociedade que está se
industrializando e que promove um “nivelamento” dos indivíduos, tornando-os tão “pálidos” quanto o que serve de símbolo a essa sociedade, o dinheiro.
Dentro desse contexto, a doutrina romântica teatral francesa
vai se aprimorando, especialmente, entre os anos 1820 e 1830. Não
por acaso, nessas mesmas décadas, a França é marcada por um determinado debate que a concebe, de acordo com Ortiz (1991), como dividida em duas: a França do Norte, industrial, “rica e esclarecida”, e a França do Sul, agrária, “obscura e atrasada”. Tal discussão revela o conlito ideológico entre progressistas e conservadores franceses
sobre a conveniência e as conseqüências da Revolução Industrial. Por um lado, os progressistas defendem a industrialização e a nova sociedade que se anuncia com ela. Por outro, os conservadores, que, inicialmente, viam essa industrialização e o “caos” que ela gerava como passíveis de serem evitados com o retorno de “um Antigo Regime idealizado”, mas, depois, aceitam esse “presente” e buscam
se airmar diante do novo quadro social, desenvolvendo uma série de questões em reação ao modo de viver e de pensar burguês. É
essa reação conservadora que ilumina vários aspectos da reação romântica e do individualismo qualitativo.
Segundo Mannheim (1963), o pensamento conservador
tergiversou sobre o postulado de igualdade dos liberais do século XVIII. Se estes pensaram a igualdade em termos do possível
(abstrato), os conservadores do século XIX a traduziram em termos do real (concreto). Assim, converteram o postulado liberal em uma airmação, fazendo parecer que os liberais reivindicavam que todos
lógica da forma concreta de perceber o mundo dos conservadores
consiste em: uma vez que o real é apenas algo que existe, e uma
vez que a realidade é marcada pela desigualdade em todos os seus aspectos, o que se conclui é que a “promessa” liberal, iluminista de uma “igualdade de fato” entre os homens não se cumpriu. Os românticos compartilham essa visão, daí a “frustração” assinalada por Roubine.
Em sua forma concreta de perceber o mundo a sua volta, de acordo com Mannheim, o pensamento conservador “aceita o
presente”, experimentando-o não como “o começo do futuro”,
mas “apenas como o último momento do passado” (Mannheim,
1963, p. 125). Desse modo, ataca somente detalhes particulares
do presente, procurando substituir “fatores individuais” por outros “melhores”6. É esse tratamento que os conservadores dispensam
à noção de “liberdade individual” preconizada pelos liberais. Eles
não a rejeitam como um todo, mas atacam um de seus aspectos: a idéia de igualdade que lhe serve de fundamento. Diante da própria
necessidade de se airmarem na esfera política, os conservadores
criaram o seu próprio conceito de liberdade, recuperando um “modo
anterior e quase extinto de pensar e experimentar as coisas”, no qual
“o simples hábito de viver” se dava de maneira “mais ou menos inconsciente”, ou seja, sem a “liberdade da mera racionalidade” do modo de viver burguês. Com isso, os conservadores desenvolvem a “idéia qualitativa” de liberdade, cujo fundamento está na noção de que os homens “são essencialmente desiguais tanto em suas atitudes e talentos como no núcleo mesmo de seu ser” (Mannheim, 1963,
p. 119). Como chama atenção Mannheim, é essa idéia que Simmel
denominou de “lei individual” de desenvolvimento.
só pode estar no lado privado, na habilidade de cada um para se desenvolver de acordo com o princípio de sua própria personalidade.
Por outro lado, submeteram as relações sociais externas ao princípio
da ordem e disciplina, e, para impedir que as esferas da “liberdade
subjetiva” e da “ordem externa” se chocassem, o pensamento
conservador se apoiou no pressuposto de que há “uma espécie de ‘harmonia preestabelecida’, garantida já diretamente por Deus ou pelas forças naturais da sociedade e da nação” (Mannheim, 1963, p.
121). Esse conceito de nação é a forma conservadora de “fornecer um conjunto mais amplo”, de conceber a signiicação das coisas,
em reação ao modo liberal-revolucionário. Enquanto o progressista
usa o futuro para interpretar as coisas, as pessoas e as instituições, o conservador atribui sentido a elas “arredondando-as” e encaixando-as em um contexto mais amplo por meio do que está “por trás”
delas, seja o seu passado temporal, seja o seu germe evolutivo. Nessa perspectiva, parte-se do princípio de que “o passado vive no
presente”; dessa maneira, a interpretação do mundo ao redor, do
presente, só é possível quando se volta para o passado.
Nesses vários aspectos do pensamento conservador pode-se reconhecer a perspectiva dos dramaturgos românticos franceses e, dentro desta, o surgimento de um determinado tipo de ator no século XIX: o “grande ator”.
Como ressalta Prado (1972, p. 51), o teatro romântico francês
vai recuperar “a ingenuidade dos ‘romanceros’, o primitivismo genuíno da Idade Média” para libertar a dramaturgia “da tirania dos gregos e romanos”. Segundo ele, essa recuperação é “apenas para variar de passado, como se fosse viável esquecer o século dezenove”. A meu ver, seguindo a linha de Mannheim, parece haver algo mais na “variação” desse passado, pois se trata da escolha de um passado
especíico, aquele contra o qual se voltou a estética da “bela natureza”
Nesse sentido, em seus dramas, os românticos voltam-se para um passado idealizado no qual se vivia de maneira mais ou menos
inconsciente, distante da realidade exterior impregnada por uma
racionalidade simbolizada pelas regras neoclássicas. Ao mesmo tempo, o artista romântico se refugia dentro de sua subjetividade, buscando sua “lei original artística”. Assim, quando Victor Hugo adverte que um romântico que imita outro romântico está se traindo,
ele parece atentar para aquela “tarefa ética” que Simmel identiica em Schleiermacher, ou seja, para o caráter de dever com relação à
originalidade.
Os dramaturgos românticos franceses vislumbram, em grande parte, tanto esse passado como essa originalidade no gênero teatral que surge nesse momento: o melodrama, que institui um mercado teatral. Como o sucesso ou não do espetáculo, nesse caso, depende
diretamente dos públicos que compõem o cenário dos centros
urbanos e industriais em formação, torna-se necessária a busca de uma comunicação “mais fácil” com esse público diverso e tão distinto daquele público “letrado” das peças neoclássicas. O resultado é uma
valorização da ação e dos gestos – da pantomima – em detrimento da palavra, do texto. Por conseguinte, tal resultado signiica, também,
uma valorização dos “artesãos da cena”, os atores. Como destaca Prado, no melodrama, o teatro é concebido “como representação, e
não como texto literário”, possibilitando a “função criadora do ator”,
uma vez que é “da sua imaginação, da sua capacidade de infundir
sangue e nervos às palavras, é que dependia o espetáculo” (Prado, 1972, p. 117). Desse modo, o texto era pretexto para o que ocorria em cena, airmando uma forma de representação marcada por: sua tendência para o “exagero” – a “busca do patético a qualquer custo”; sua extroversão, “sem preocupações com a elegância ou com a pureza estilística”; e, ainda, “um realismo elementar, populista, visando sobretudo o pitoresco” (Prado, 1972, p. 116).
Prado, Lemaître foi “o maior de todos esses atores populares,
educados através dos aplausos e das vaias da platéia, formados em
companhias baratas, à margem dos textos clássicos e da ‘Comédie Française’”, e que representava seus personagens dando ênfase à
“parte da caracterização física, da mímica, do jogo de cena” (Prado,
1972, p. 113). Tal ênfase, como observa Duvignaud, fazia com que Lemaître reunisse as “impressões e observações transpostas”, isto é, os elementos esparsos “em uma igura e, partindo desses dados, constrói[-uísse] um tipo” (Duvignaud, 1972, p. 140). Esse “tipo” corresponde à maneira que o ator encontra para impor-se perante os públicos dos quais depende diretamente, airmando-se por “um
personagem ao qual condiciona todas as peças que representa”
(Duvignaud, 1972, p. 146).
O “tipo” que o ator do melodrama constrói e “vive” no palco se associa, conforme chama atenção Duvignaud, ao “engrandecimento sistemático de uma personalidade, de um caráter” que acaba por
transformar o ator em “vedette”. Ou seja, à medida que o ator “vive” no palco, nas palavras de Prado, “a emoção em estado nativo”, e à medida que a sua “grande personalidade” se expressa no tipo que constrói, sobrepondo-se às características particulares que cada
personagem possa conter, o ator acaba por se tornar um símbolo de liberdade, sobretudo, para os românticos.
Tais como os conservadores, os românticos partem do
princípio de que “o passado vive no presente”; assim, interpretam o mundo ao seu redor, ou seja, atribuem sentido às coisas, às pessoas e às instituições do presente voltando-se para o passado, o que dá o tom saudoso à “alma romântica”. É isso que Simmel parece
dizer quando assinala que a “alma romântica” busca, de maneira incessante, um “equilíbrio” entre as “duas grandes forças da cultura moderna”, que podem ser traduzidas pelas duas esferas separadas da vida que os conservadores reproduziram do liberalismo: a da
(1998, p. 116), os românticos experimentaram essas “duas grandes
forças” como “saudades”: “a saudade da personalidade
auto-suiciente” e “a saudade da singularidade da própria vida com o
outro”. De qualquer forma, trata-se de “saudades” de algo que nunca se viveu, seja de algo que foi prometido e não cumprido ou de um passado idealizado.
Segundo Duvignaud (1972), a “paixão romântica e os símbolos
que ela cria” foram testemunhas da “tentação” predominante nos homens desse período, que se resume no desejo de “um desenvolvimento completo do homem, sob todos os seus aspectos”,
mas que encontra limites nas “coações” e na “própria liberdade coletiva”. Assim, diante da perplexidade de se proclamarem livres e se sentirem incapazes para realizar essa liberdade, a igura do ator do
melodrama se acentua aos olhos desses homens como um “indivíduo atípico”. Seguindo essa linha de argumentação, pode-se dizer que ele
se torna um símbolo da paixão romântica pela liberdade: tanto de uma liberdade artística, expressa na espontaneidade e originalidade com que se apresenta nos palcos, quanto de uma liberdade individual, à medida que a exaltação da “grande personalidade” do ator transborda
dos palcos para a sua própria vida particular, marcada por inúmeros
episódios que denotam a mesma “explosão de emoções” vista no palco e que se tornam públicos, com a publicação de suas biograias
e de notícias que envolvem o culto da vedette.
Nesse sentido, pode-se falar de uma ressigniicação da idéia
de ator no século XIX, na medida em que o “indivíduo atípico”
entrevisto no ator do melodrama parece se conigurar em uma espécie
de versão romântica do “gênio criador” para a arte de representar:
o “grande ator”. Para perceber essa ressigniicação, considero pertinente voltar à análise de Mannheim sobre a aproximação entre
o romantismo e o pensamento conservador.
romantismo também parte “sempre do caso particular que está à
mão” e o seu interesse recai nos “detalhes concretos cambiantes”, não na “estrutura do mundo em que vive”. Assim, a meu ver, os dramaturgos românticos franceses atacaram um “detalhe concreto” no neoclassicismo: o “imperialismo da palavra”, com suas regras que se fundam na estética da bela natureza de Aristóteles e o racionalismo dos “requintes técnicos” presente na forma de representar dos seus
atores. Em substituição, os românticos propõem outro e “melhor”
detalhe, a “lei original artística”. Do mesmo modo, atacaram um
“detalhe concreto” no melodrama: o texto. Com a pretensão de “melhorá-lo”, buscaram dar-lhe: a) um conteúdo histórico, aproximando-se do sentido de conceito de nação do pensamento conservador; e b) uma dimensão literária ou ilosóica, como Victor Hugo, ou uma dimensão dramatúrgica especíica, como Alexandre Dumas. Isso signiica que os românticos não atacaram a estrutura do
plano literário como um todo, mas os que o tinham sob seu domínio naquele momento, os neoclássicos. Da mesma maneira, não atacaram a estrutura como um todo do melodrama, no caso, a “estrutura da
narrativa”, fundamentada na valorização da ação e das emoções, que também signiica a valorização da “função criadora” do ator.
A meu ver, os românticos identiicam, na forma de representar
do ator do melodrama, algo que o distancia da racionalidade imposta pelo Conservatório, e a associam a uma forma de representar que se
encontra no passado, no qual não havia um texto elaborado, mas,
sim, um “esqueleto”, uma “estrutura da narrativa” que parece aludir
à commedia dell’arte; ou ainda, associam-na à forma de representar
dos atores ingleses que tanto admiravam, cuja característica
fundamental é a originalidade, a explosão dos sentimentos.
Nesse contexto, os românticos reconhecem o ator do
melodrama, conferindo-lhe prestígio e certa “densidade conceitual”: a sua liberdade é uma reação ao racionalismo do modo de viver
racionalidade de corte quanto a burguesa; ele não se contém em uma
forma, ele cria a sua própria forma. Isso o torna um “grande ator”, um “gênio criador”. Se, antes, o ator oriundo do melodrama era visto
apenas como “extrovertido”, com o reconhecimento dos românticos, ele torna-se “original”. Ele se legitima. Assim, Frédérick Lemaître,
um ator formado nas peças melodramáticas sob o “calor” da sua relação com o público, acaba por se tornar um “grande ator”. De
acordo com Prado (1972), Lemaître parece ser a expressão do
que Victor Hugo defendeu no prefácio de sua peça Cromwell: a
substituição do belo pelo característico, recusando, assim, “qualquer esforço de estilização”7. Para Victor Hugo, Lemaître é “inigualável”,
portanto, único, à medida que obedece a sua própria “lei individual
e artística”.
Essa “originalidade” é que permite falar de uma “autonomização da arte do ator”, no sentido que Duvignaud atribui ao “grande ator”: “esse ser sobrecarregado de um imenso prestígio afetivo não é em primeiro lugar o servidor de uma obra”. É o “grande
ator” que imprime o seu estilo às “formas dramáticas”; pode-se dizer que ele se sobrepõe ao autor. E o estilo do “grande ator” está no fato
de “viver” os “seus” personagens. Essa forma de representar vai se impor até mesmo na tragédia, revigorando-a, como diz Roubine ao
tratar do estilo da atriz Rachel: “A inluência da estética romântica
lhe sugere um ‘realismo’ novo no palco trágico, no sentido de que pantomima e declamação são agora organicamente necessários a uma interpretação regida pela singularidade do personagem e da
situação” (Roubine, 1987, p. 73-74).
Nesse sentido, essa forma de representar “vivendo” os personagens, no caso francês, parece se desenvolver seguindo um
curso particular: nasce do melodrama, das exigências que os seus
públicos fazem aos atores, que, por sua vez, dependem diretamente
desses públicos; adquire prestígio por meio dos românticos, à medida
que falta aos atores neoclássicos; e acaba se conirmando como a
forma-padrão de representação do século XIX, adentrando pela tragédia. Entretanto, essa forma de representar “vivendo” os personagens dá margem para pensar que esses atores “representam
a si mesmos”. É aqui que se pode identiicar a falsa subjetividade
desse tipo de ator de que nos fala Simmel.
Se a concepção de representação dramática do século XVIII
– a de Diderot, com sua teoria da representação “correta” – expressa
uma falsa objetividade do trabalho do ator, para Simmel, a concepção de que o ator deve atuar “só ele mesmo, isto é, de acordo com o que a natureza o criou” é uma “falsa subjetividade”.
Trata-se de uma falsa subjetividade porque o personagem só seria a “roupagem” na qual, por acaso, a individualidade do ator se
apresenta. Nesse contexto, o ator que “vive” o personagem acaba por “interpretar a si mesmo”, o que, para Simmel, tem o signiicado
de um realismo subjetivo: o conteúdo do personagem seria apenas
um pretexto para o ator airmar a sua individualidade. Desse
modo, quando esse tipo de ator se “sai bem” ao desempenhar um
personagem, quando ele “toca na profundidade do contexto”, isso é
resultado de “uma coincidência do acaso” entre a subjetividade do ator e o personagem.
Na perspectiva de Simmel, tal forma de representação “efetuada de modo temperamental, do impulso em si” ainda não é a forma artística de representação. Pois, “representar a si mesmo” é algo que todos os indivíduos fazem na vida cotidiana, sobretudo, na modernidade. Todos nós somos “atores” na vida, desempenhamos inúmeros papéis sociais, o que não nos torna atores no sentido artístico.
Ao que tudo indica, a questão que o “grande ator” apresenta para se pensar a idéia de ator moderno é também o seu limite
personalidade. Por um lado, o “grande ator” se sobrepõe ao texto e, com isso, se autonomiza do autor; desse modo, contrapõe-se à idéia
do ator como uma “ostra racional”, cuja tarefa seria apenas compor mecanicamente o personagem de acordo com os princípios da obra literária ou da realidade. Por outro lado, o “grande ator” também
sobrepõe a sua personalidade ao personagem e, assim, “nega” a sua
arte: passar-se por outro.
De qualquer maneira, a contribuição do “grande ator” está dada: ele alerta para uma subjetividade do ator, que é individual, mas que só se traduzirá em uma subjetividade propriamente artística
no tipo de ator que nasce a partir da “complexiicação” da vida moderna que se desenvolve nas metrópoles e vai ganhar expressão, especiicamente, na concepção de Stanislavski.
O ator-psicológico-criador a partir de Simmel e de
Stanislavski
Para Simmel (1998), os “aspectos metafísicos” dos individualismos quantitativo e qualitativo aparecem como “projeções econômicas”, como dois grandes princípios que se reúnem na
economia do século XIX. A liberdade individual fundamentada na igualdade natural entre os homens se projeta no princípio da livre concorrência. A ênfase na originalidade, ou melhor, a radicalização da “individualidade até a singularidade do ser e do desempenho” se projeta no princípio da divisão do trabalho. A união desses dois princípios se manifesta na vida metropolitana, dando-lhe duas características marcantes: por um lado, o intelectualismo e a
calculabilidade; por outro, a indiferença.
que faz com que cada um calcule seu tempo, suas ações e seus
resultados no seu dia-a-dia. À medida que o dinheiro se torna um
im em si mesmo, em busca dele, o indivíduo nivela, quantiica ou,
ainda, monetiza todos os valores não monetários.
Para Simmel, a calculabilidade e o efeito nivelador do dinheiro produzem a indiferença, uma vez que comprometem a capacidade de sentimento e de vontade do indivíduo. Melhor dizendo, são
tantos e tão diversos os “estímulos” das grandes cidades – com a sua
“multidão’ e os vários “símbolos” criados para organizar essa vida
em multidão – que iso resultaria em um “excesso” para os “nervos”
do indivíduo. Desse modo, para se adaptar a esse ritmo de vida, o indivíduo acaba desenvolvendo, nas palavras de Velho, “uma espécie de capa protetora, uma indiferença, como defesa da ameaça
de fragmentação” (Velho, 1999a, p. 18).
Concebida nesses termos, a indiferença corresponde ao movimento do indivíduo qualitativo de “distanciar-se” da realidade
exterior e refugiar-se dentro de si mesmo, reservar-se. Portanto, nessa
atitude de reserva encontra-se a possibilidade do desenvolvimento
da subjetividade, ou seja, de o indivíduo se airmar como único e distinto. Trata-se de uma forma especíica de “sociação” que se desenvolve na vida metropolitana, na qual experimentamos a
liberdade de seguir “as leis de nossa própria natureza” (Simmel,
1976, p. 21). É a isso que Simmel chama de “liberdade individual possível” que, conforme advertem Souza e Berthold (1998), não é sinônimo de ausência de vínculos; ao contrário, tal liberdade é
derivada da “multiplicidade de vínculos” que a vida metropolitana, sob o signo do dinheiro, oferece ao indivíduo.
No palco da metrópole, o sujeito se insere em um amplo
contexto de “constrangimentos e obrigações”, se vincula aos outros,
para essa liberdade de movimento, que também é a possibilidade de escolha individual, é considerar a sociedade não somente pelos seus fatores estruturais, mas também, como observam Souza e Berthold
(1998), pelos aspectos mais cotidianos da vida dos indivíduos, na
qual cada um age, cria o mundo a sua volta e a si mesmo, mas sempre em relação com os outros.
Por isso mesmo, a concepção de sociedade de Simmel é
deinida como uma realidade inter-humana: as “múltiplas interações
de uns-com-os-outros, contra-os-outros e pelos-outros” (Moraes
Filho, 1983, p. 21). A sociedade, portanto, é algo que está se
constituindo, que está em processo. Assim, a análise simmeliana
trabalha com a ambigüidade da experiência social moderna, ou seja,
consegue perceber que a vida na sociedade moderna não implica
só nivelamento ou integração; ela também implica distinção, o que sugere conlito, tensão, pois, por um lado, o indivíduo tem a necessidade de se integrar, de pertencer à sociedade (aos seus vários grupos constitutivos), de se “nivelar” aos outros. Por outro lado,
há a necessidade de se distinguir da “massa homogênea”, de se
singularizar, de airmar a sua individualidade perante os outros, de
ser único e distinto. Nesse duplo movimento do indivíduo dentro da vida moderna, Simmel chega a sua concepção de indivíduo moderno como tendo um caráter duplo: ele é um elemento no todo e, ao mesmo tempo, um todo em si mesmo.
Da mesma forma que concebe o indivíduo moderno a partir
das duas dimensões da vida social expressas no individualismo
quantitativo e no qualitativo, a meu ver, Simmel também desenvolve a sua noção de “ator artístico” a partir do que estou chamando de “ator-racional-realizador” e “grande ator”.
Simmel segue a perspectiva de Schiller, segundo a qual
da existência real, na qual cada io ou fragmento não é uma unidade fechada em si, portanto, não pode ser decomposta em impressões sensoriais, a arte se situa no sensitivo – sua essência está em “projetar nesse fragmento de realidade o conteúdo da existência como um todo” (Simmel, 1994, p. 154); em outras palavras, conigurar o conteúdo da existência em uma unidade. Portanto, de acordo com Simmel,
o artista sempre nos conduz para o sensitivo, não para a realidade.
Do mesmo modo, a arte dramática não é uma ponte que conduz à inalidade da realidade. A arte dramática, a arte do ator, tem raiz e inalidade próprias que são o desempenho artístico, dramático, em si. Assim como existe uma atitude pictórica e literária na vida real, há
também uma atitude dramática, mas essas atitudes, por si mesmas,
não são um desempenho artístico: elas dizem respeito às funções que
constituem a nossa vida real, ou seja, inserem-se na prática da vida
real, onde, por exemplo, todos nós, inevitavelmente, representamos certos papéis que podem se adequar à nossa individualidade, mas
que também são algo diferente dessa individualidade.
Portanto, a representação de um papel na vida real é a raiz da arte dramática, a sua forma preliminar. Todavia, segundo Simmel, a representação de um papel, de um personagem, só se torna arte quando se abstrai da realidade, quando se eleva do interior da vida, da qual se alimenta, para tomar uma forma artística própria. Ou seja, quando se coloca no outro plano da vida, que se encontra além da realidade. Desse modo, a arte do ator se autonomiza, mostra seu caráter independente.
Para esse autor, a forma de representação de determinado personagem não é deduzida do objeto em si (do próprio personagem
objetivado no texto pelo autor), nem do sujeito em si (da personalidade do ator por si só), mas, sim, da relação entre sujeito e objeto: da
relação ideal entre o “eu real” e a “obra literária real”, logo, da maneira pela qual determinada individualidade dramática (o ator
artístico) deve ser moldada de acordo com determinado personagem
Nesse sentido, de acordo com Simmel, o ator não se submete
à realidade – nem à realidade exterior, nem à realidade subjetiva.
O ator se eleva sobre a “realidade do domínio do drama”. Isto é, o personagem contido no drama, na obra poética, não é um ser
humano no sentido material, mas, sim, “um complexo do tangível literário de um ser humano” (Simmel, 1967, p. 75). Portanto, o texto
se encontra em um plano mental e unidimensional, em que o escritor traça o destino e a “alma” do personagem. Entretanto, o autor não pode dar conta, em sua obra, das “premissas inequívocas”, da entonação e velocidade com que se fala, dos gestos, da “atmosfera”
visual da igura ou de sua vivacidade (“o calor da vida”). É o ator quem transfere o texto desse plano unidimensional para o plano
tridimensional da sensibilidade plena.
A meu ver, a idéia de ator artístico de Simmel pode ser
relacionada à idéia de ator contida no método que Stanislavski desenvolveu ao longo de sua trajetória como ator e diretor – o que signiica dizer entre o ano de 1877, quando estreou, aos quatorze
anos, como ator, e o ano de 1939, quando faleceu.
Partindo de certa insatisfação com a artiicialidade do representar simbolizada pela igura do grande ator – artiicialidade esta que, como vimos, traduz uma “falsa subjetividade” –, Stanislavski busca formas teatrais e, portanto, de representação que se aproximem do “movimento da vida”. Inicialmente, ele
percorre os caminhos naturalistas que se voltam para a tentativa
de transpor a “realidade exterior” – da pura realidade ou da pura literatura – para o palco. Mas, como sempre estava atento para a
forma artística, talvez tenha percebido, em certa medida, a “falsa
objetividade” dessas iniciativas. Assim, à frente do “Teatro de Arte de Moscou”, que formou com Vladimir Nemírovitch-Dântchenko
(crítico, dramaturgo, diretor e professor da escola de atores da
Filarmônica de Moscou), Stanislavski desenvolveu um tipo de teatro
“naturalismo espiritual”, em contraste com a “materialidade” que
caracterizava, de maneira geral, as encenações naturalistas da época – mais preocupadas, por exemplo, com o “realismo” dos cenários e igurinos.
Como chama a atenção Carvalho (1985), até o inal do século
XIX, um ou outro ator se mostrou interessado em sublinhar, na
publicação de suas biograias, “esta ou aquela característica sobre as relações ator-texto, ator-espetáculo, ator-público”, mas foi Stanislavski que sistematizou o conjunto dessas relações denotando
o aspecto psicológico do trabalho do ator. Para Carvalho, essa
preocupação de Stanislavski se associa ao impacto causado pelas considerações de Freud na vida social e teatral do período, em que
“o diretor, o ator, o público querem descobrir o núcleo de sentimento que vive em cada personagem, e no fundo da obra dramática”
(Carvalho, 1985, p. 105).
É nesse sentido que o naturalismo “espiritual” de Stanislavski
é também denominado de “psicológico”. Por isso mesmo, estou chamando o novo tipo de ator, que surge, principalmente, a partir de
suas contribuições, de ator-psicológico-criador. Essas contribuições se difundiram pelo mundo por meio de publicações de sua obra
teórica, mas tal teoria é resultado de uma prática que se fundamenta na busca por uma forma de teatro e de representação que se revelasse
inovadora e artística, algo que marca a trajetória de Stanislavski. O método de Stanislavski busca conciliar duas dimensões do
trabalho do ator. A primeira compreende ao “trabalho interior” do
ator, ou seja, é como se Stanislavski deslocasse o “engrandecimento
da personalidade” do ator para a sua vida interior, sua subjetividade “real”. É a partir de sua vivência que o ator se torna capaz de desenvolver uma interpretação, uma leitura subjetiva sobre
determinado objeto – o personagem elaborado pelo dramaturgo e objetivado no texto. Esse é um dos momentos cruciais para que um
que é fruto de sua interpretação. A segunda dimensão diz respeito
à “construção exterior do personagem”: o seu modo de andar, falar,
gesticular, criado a partir da leitura subjetiva do ator e equilibrado
com os diversos elementos cênicos – igurinos, maquiagem, cenários, luz, som, etc. – que possibilitam ao ator representar no palco de maneira natural, no sentido do “como se fosse” aquela alma exposta
no palco.
Com efeito, esses dois momentos não podem ser pensados como desenvolvidos de forma isolada, pois o princípio que revolucionou a
prática teatral do inal do século XIX, cujo mérito é do naturalismo,
de forma geral, é o da compreensão do espetáculo como composto de
diversos elementos que recebem uma forma harmônica, um conjunto,
pelas mãos do encenador ou diretor. Portanto, o trabalho do ator se
desenvolve em uma “teia” de relações: com o próprio personagem
a ser interpretado, o que requer uma compreensão da peça como um
todo; com os demais personagens que se relacionam com o seu e, por conseguinte, com os outros atores com quem contracena; com os
outros elementos que também estarão “representando algo” no palco
– os objetos, a luz, o som, etc., e, sobretudo, com o diretor.
É nesse sentido que Guinsburg (2001, p. 42) se refere ao
princípio do “ensemble artístico, a equipe que materializa a peça como uma produção conjunta”. Como adverte ele, não se trata de criação coletiva, mas, sim, de “trabalho em equipe”, no qual todos os membros da realização cênica são conjugados e estruturados, de maneira adequada, pelo diretor, que não dá margem para “o simples capricho da improvisação”. Esse é o princípio das novas leis
cênicas que Stanislavski, mais do que qualquer outro, estabeleceu
especialmente para o ator.
contexto de obrigações. Ao contrário, a sua liberdade advém da “multiplicidade de vínculos”; cada elemento ou recurso cênico
pode contribuir para ele ampliar o seu “campo de possibilidades” na criação do seu personagem. Da mesma forma, a liberdade do ator advém, ainda, da sua própria vivência, da subjetividade artística que foi desenvolvendo ao longo de sua trajetória, da sua formação, que amplia a sua capacidade de compreensão e interpretação dos
símbolos contidos no texto.
O método de Stanislavski propõe uma forma de representação
que se torna predominante ao longo do século XX, servindo como referência para os atores ainda nos dias de hoje. A meu ver, essa
forma de representação pressupõe a concepção simmeliana de
indivíduo moderno que apresenta o duplo caráter de ser, ao mesmo tempo, “um todo em si mesmo” e “um elemento no todo”, uma vez
que aponta para a proximidade e a distância que caracterizam o modo especíico como os indivíduos interagem na experiência ambígua da
vida moderna.
Dessa maneira, com relação ao personagem, o ator se aproxima
e se distancia no seguinte sentido: com sua “personalidade artística”,
ou seja, como “um todo em si mesmo”, o ator se aproxima do personagem contido no texto, mergulhando em sua “alma” e lendo-a de acordo com a sua vivência; a partir dessa leitura subjetiva, o ator cria uma “imagem” ou igura cênica única, distanciada dele mesmo,
embora tenha algo de si. Com relação aos outros atores e ao público,
o ator também se distancia e se aproxima. A própria criação de uma “imagem” ou igura cênica única já signiica um distanciamento
elementos em cena que formam um conjunto, a harmonia, que é uma das principais características do teatro moderno, como “o todo da realidade”, a comunicação com o público.
Simmel e Stanislavski se encontram na valorização da
relação entre a subjetividade do ator e a objetividade do personagem
contida no texto. Ambos concebem o ator como criador, airmando a dimensão artística do ator, que, em suas concepções, não se perde, ao contrário, se realiza como arte autônoma. Para Simmel (1967, 1992),
a atuação do ator parte de dentro de si para fora: é a partir da relação de sua subjetividade artística com a imagem objetiva que o escritor
estabeleceu no texto que o ator cria uma igura, o conteúdo que o ator
oferece no palco, e seu desempenho é marcado por uma contradição interna: no palco, ele age com “uma espontaneidade irrompendo do fundo do ser” e apresenta “uma vida imediata” (Simmel, 1992, p.
424). Essa contradição parece signiicar que, embora o ator saiba o
que acontecerá com o personagem na seqüência da cena, o próprio personagem que ele representa não sabe, logo, o agir espontâneo do ator no palco busca dar a dimensão de uma vida que se desenrola,
que pulsa diante o espectador. Stanislavski parece dizer o mesmo com seu “naturalismo espiritual”: é a partir da objetividade do texto
que o ator começa a interpretar o personagem e a criar uma imagem artística que representará no palco. Ou seja, é a partir do estudo do
contexto da peça e do contexto em que o dramaturgo escreveu o texto
que o ator compreende e percebe as particularidades do personagem,
recorrendo à sua “memória emotiva” para lhe “emprestar” as emoções, os movimentos naturais que propiciam a esse “não-ser”
parecer ser no palco.
No palco, não estão nem o ator, nem o personagem tal como se
encontra escrito no texto. Ali, o que vemos é uma imagem criada por
um ator. Se outro ator interpretar e representar o mesmo personagem, a imagem será diferente. Daí a possibilidade de se falar de tantos Hamlets quantos forem os atores a representarem o personagem de
O exemplo que Simmel utiliza é bastante esclarecedor dessa idéia de ator. Diferentemente do tartufo da vida real – o vigarista e hipócrita – que quer ser julgado como sendo realmente um asceta
devoto, o ator que representa o Tartufo de Molière não quer provocar uma impressão da realidade, mas, sim, fazer ressurgir a imagem
sensitiva daquilo que está no texto do autor. E, uma vez que o único
ser real que está no palco é o ator, ninguém no palco “é realmente devoto ou hipócrita”, já que o ator não é nenhum dos dois. Portanto,
conclui Simmel (1967, p. 76), “o ser não tem o que fazer no palco”.
O palco é o lugar do não-ser, do sensitivo, não da realidade.
Como já indiquei, essa compreensão sobre a arte do ator parece ser a que predomina nos dias de hoje. Por certo, isso não
signiica dizer que os outros tipos ideais de ator assinalados aqui
desapareceram dos palcos contemporâneos. Muitas vezes, eles
podem ser identiicados em uma mesma peça, por meio de dois atores com formações distintas que contracenam, ou podem ser
observados como entrelaçados na trajetória de um mesmo ator, seja em decorrência do momento particular de sua formação, seja como
uma “exigência” do personagem a ser representado8. De todo modo,
para além da atuação no palco, o que prevalece, pelo menos no
discurso dos atores proissionais da atualidade, deixa transparecer a
inquietação artística entre o ser e o não-ser.
Agradecimentos
Agradeço os comentários preciosos de Glaucia Villas Bôas,
Maria Claudia Coelho e Valter Sinder, assim como dos participantes do II Encontro Temático: Sociologia do Teatro da Pós-Graduação
Notas
1 Quando falo em discurso atual dos atores proissionais, utilizo como fonte tanto entrevistas dos que se dedicam a essa proissão, recolhidas ao longo da última década dos meios de comunicação – jornais, revistas, programas de televisão –, como também, e mais especiicamente, os depoimentos de atores proissionais concedidos a mim por ocasião da realização de minha tese de doutorado, defendida em junho de 2005 pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ.
2 Vale lembrar que, para Weber, a construção de tipos ideais abstratos é um meio de conhecimento da realidade; trata-se, nas palavras do autor, “de um quadro do pensamento, e não da realidade histórica, e muito menos da realidade ‘autêntica’, e não serve de esquema no qual se pudesse incluir a realidade à maneira de exemplar. Tem antes o signiicado de um conceito limite puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a im de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comparada. Tais conceitos são imagens sobre as quais construímos relações, pela utilização da categoria da possibilidade objectiva, que a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realidade, julga adequadas” (Weber, 1974, p. 81).
3 Simmel pensa o mundo medieval, especialmente a aldeia medieval, como um “círculo relativamente pequeno irmemente fechado contra círculos vizinhos, estranhos ou sob qualquer forma antagônicos” e “cerradamente coerente”, que, para se autopreservar, “só permite a seus membros individuais um campo estreito para o desenvolvimento de qualidades próprias e movimentos livres, responsáveis” (Simmel, 1976, p. 18). Essa estreiteza de possibilidades inviabilizaria a liberdade individual e, por conseguinte, o próprio desenvolvimento da subjetividade; portanto, o homem se pensaria como atrelado ao seu grupo.
(Elias, 2001, p. 110). Vale ressaltar que poder, aqui, não se confunde com poder econômico, uma vez que o “capital” era visto apenas como um meio para se alcançar um objetivo que, nas palavras de Elias, era “conservar uma ‘realidade’ social, no centro da qual estava o anseio de se distinguir da massa dos homens” (Elias, 2001, p. 113).
5 Como observa Berthold, a peça O pai de família, de Diderot, foi o
“grande modelo” do drama burguês, do novo drama de classe média, que, na avaliação do autor e crítico alemão Lessing, não era “nem francês nem alemão, nem de qualquer outra nacionalidade, mas simplesmente humano” (apud Berthold, 2001, p. 381).
6 De acordo com Mannheim (1963, p. 116), o pensamento progressista se caracteriza pela “consciência do possível”. Isso signiica dizer que os progressistas experimentam o presente como “o começo do futuro”, pensam-no em termos abstratos e de conjunto. Nesse sentido, o seu reformismo ataca “o sistema”, ou seja, “tende a suprimir um fato indesejável reformando todo o mundo circundante que torna possível sua existência”.
7 A peça Cromwell, de Victor Hugo, foi publicada em 1827, entretanto,
nunca fora encenada. Em seu prefácio, Hugo defende, conforme salienta Braga, “a utilização do ‘grotesco e do sublime’, não só no mesmo texto, como também no mesmo personagem” (Braga, 1994, p. 153).