OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, vol. 21, nº 2, agosto, 2015
João Feres Júnior
Ver ônica Tost e Daflon
I n t r odu çã o
O debat e público sobr e as polít icas de ação afir m at iva com r ecor t e r acial,
com um ent e conhecidas com o cot as, m udou de pat am ar no ano de 2012, m ar cado
pela der r ot a da Ação de Descum pr im ent o de Pr eceit o Fundam ent al 186 ( ADPF 186)
e pela sanção pr esidencial da Lei Feder al 12.771. Por um a vot ação de 10 a 0, o
Supr em o Tr ibunal Feder al decidiu cont r a a ADPF 186 aj uizada pelo part ido polít ico
Dem ocr at as cont r a o pr ogr am a de ação afir m at iva ét nico- r acial da Univer sidade de
Br asília ( UnB) . A apr ovação da Lei Feder al 12.771, por sua vez, t or nou obr igat ór ia a
r eser va de vagas par a pr et os, par dos, indígenas, alunos de escola pública e de
baixa r enda nas inst it uições feder ais de ensino super ior e t écnico. Se ant es desses
dois event os a t ônica do debat e r ecaía sobr e ser ou não j ust o adot ar m os esse t ipo
de polít ica pública em nosso país ( Fer es Júnior , 2009, p. 41) , com o apoio decidido
dos t r ês poder es – Judiciár io, Legislat ivo e Execut ivo –, as vozes que clam avam
pela rej eição das cot as quase silenciar am , dando lugar a quest ões r elat ivas à
per for m ance dessas polít icas.
Um levant am ent o r ealizado pelo nosso Gr upo de Est udos Mult idisciplinar es
da Ação Afir m at iva ( Gem aa I esp- Uer j ) a par t ir de um a base que inclui t odos os
t ext os publicados sobr e o t em a nos j or nais O Globo e Folha de S. Paulo ent r e 2001
e 2012 m ost rou com o se deu a evolução dos argum ent os cont r ários às ações
afir m at ivas de cor t e ét nico- r acial ao longo de m ais de um a década. Dur ant e esse
per íodo, dent r e r epor t agens, ar t igos de opinião, edit or iais, car t as de leit or et c., o
j or nal car ioca publicou 1.054 t ext os lidando com essa m odalidade de polít ica,
m ost r a que na cobert ur a m idiát ica, as opiniões cont r ár ias às ações afir m at ivas
pr eponder ar am , sej a nos edit or iais, colunas e opinião ou at é nas r epor t agens1.
A análise desse cor pus de t ext os dem onst rou que os ar gum ent os cont r ár ios
às polít icas de ação afirm at iva r acial veiculados pela gr ande m ídia im pr essa
br asileir a se concent r ar am em t r ês gr upos t em át icos, que est iver am pr esent es por
t odo o período de dez anos t r anscor r idos desde a criação das prim eir as polít icas de
cot as, em 2002- 2003, at é 2012 ( Cam pos e Feres Júnior , 2013a, p. 15, 2013b, p.
16) . São eles: 1) " r aça e ident idade nacional" , que congr ega ar gum ent os em t or no
da ideia de que a polít ica im por t a um sist em a de classificação r acial binár io dos
Est ados Unidos, r acializando a sociedade br asileir a e violando, assim , a plast icidade
das r elações r aciais br asileir as baseadas na " m ist ur a" , que const it ui o cer ne da
ident idade nacional ( O Globo, 2003, 2009b; Pint o de Góes, 2001) ; 2) " Est ado e
cidadania" , que congr ega ar gum ent os em t or no da acusação de que a ação
afir m at iva am eaça a igualdade legal, que é a base da cidadania e do
const it ucionalism o dem ocr át ico; e 3) " procedim ent os e r esult ados" , que congr ega
um a plet or a de ar gum ent os que apont am par a supost os pr oblem as de
pr ocedim ent os e incapacidade de ger ar r esult ados das polít icas de ação afir m at iva
( Car doso, 2003; Ser r a, 2004) .
1
Gr á f ico 1
I n cidê n cia de a r gu m e n t os con t r á r ios à s a çõe s a f ir m a t iv a s n os t e x t os d os j or n a is O Globo e Folh a de S. Pa u lo ( 2 0 0 1 - 2 0 1 2 )
Fon t e : Elaboração pr ópria, baseada em dados da pesquisa " Ação afir m at iva na gr ande m ídia" , do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
A análise e a classificação dos ar gum ent os pr esent es nesse cor pus de
t ext os per m it em not ar que houve m om ent os de pico de det er m inados ar gum ent os
( com o, por exem plo, no ano de 2007, quando a ideia segundo a qual a ação
afir m at iva r acializa e divide a sociedade br asileir a dom inou os j or nais) e t am bém de
declínio acent uado ( a par t ir de 2008, quando esse m esm o ar gum ent o per deu
im port ância) . Hoj e, no cont ext o pós- 2012, per cebe- se que os ar gum ent os que
ganham m ais for ça são cr ít icos aos pr ocedim ent os das ações afir m at ivas, ist o é,
dizem r espeit o à ideia segundo a qual t ais polít icas são ineficient es ou m er am ent e
paliat ivas.
Ent r e os ar gum ent os cont r ár ios às polít icas de ação afir m at iva que est avam
pr esent es ant es de 2012, um dos m ais cont undent es é o de que a ação afir m at iva
t er á com o consequência som ent e o benefício de um a elit e dent r o do gr upo de
beneficiár ios. Tr aduzindo dir et am ent e par a o debat e br asileir o, t r at a- se da
acusação de que a ação afir m at iva vai som ent e beneficiar negr os ricos e de classe
m édia. No pr esent e ar t igo pr et endem os m ost r ar que esse ar gum ent o não foi
for m ulado originalm ent e no Br asil, pois apareceu ant er ior m ent e em out ros lugar es
onde a ação afir m at iva foi im plant ada, par t icular m ent e na Í ndia, país pioneiro na
adoção dessas polít icas, e nos Est ados Unidos, exem plo m ais influent e e conhecido
seguida, ident ificam os sua apr opriação pelo debat e nacional, invest igando sua
ocor r ência em um a base com post a por t odos os t ext os publicados sobr e o t em a da
ação afir m at iva nos j ornais Folha de S. Paulo e O Globo. Nest e art igo,
apr esent am os evidências da ut ilização insist ent e nos t ext os da gr ande m ídia
im pr essa do argum ent o de que a ação afir m at iva beneficia apenas a " nat a" dos
gr upos visados ( ou, com o conhecida nos Est ados Unidos e na Í ndia, o cream y
layer ) . Em sequência, dem onst r am os que essa preocupação não se baseou em
evidências concr et as, pois: a) as polít icas de ação afir m at iva de r ecor t e r acial
exist ent es no Br asil at é 2011 j á er am dom inant em ent e est r ut ur adas par a evit ar o
benefício dos m ais pr ivilegiados dent r o do gr upo de beneficiários; e b) os
disposit ivos da Lei Feder al 12.771, apr ovada em 2012, t am bém previnem cont r a o
m esm o fenôm eno, at é de m aneir a excessiva.
O be n e fício da n a t a ?
A Í ndia foi o pr im eir o país a adot ar polít icas de ação afir m at iva. Pr ovisões
par a a cr iação de progr am as de discrim inação posit iva ( r eser vat ion policies) em
benefício de gr upos despr ivilegiados com o os dalit s e t r ibos " int ocáveis" ( scheduled
cast es e scheduled t ribes)2 j á est avam pr esent es na Const it uição indiana de 1950,
docum ent o pr om ulgado logo após a independência do país. É da Í ndia que advém a
expr essão cr eam y layer, usada par a designar colet ivam ent e os indivíduos
pr ivilegiados pert encent es a um gr upo m aior de beneficiár ios de um a det er m inada
polít ica pública. Assim , a ação afir m at iva é acusada desde seus prim ór dios de
beneficiar um a cam ada de pessoas que supost am ent e j á t eriam vant agens
com pet it ivas na seleção par a em pregos ou vagas em escolas e univer sidades,
cam ada essa que, por t ant o, pr escindiria de m edidas especiais com o as ações
afir m at ivas.
Com efeit o, alguns acadêm icos sust ent am que na Í ndia as polít icas de ação
afir m at iva só t êm sido capazes de pr opiciar im por t ant es vant agens econôm icas
par a um a m inor ia m uit o r est r it a da população- alvo ( Bains, 1994, p. 85;
Mendelsohn, 1999, p. 54; Sen, 2001, p. 201) . Apesar de r econhecer em que a
com pensação discr im inat ór ia desem penha um papel sim bólico e exem plar ao
colocar m em br os desses gr upos em posições polít icas e sociais de dest aque, eles
avaliam esses efeit os sim bólicos com o secundár ios e acr edit am ser m ais
im port ant es m edidas que alt erem de fat o as cir cunst âncias em que vivem esses
indivíduos, com o sua pr esença nas escolas, por exem plo. Além disso, alegam que
as pequenas m udanças pr om ovidas por essas polít icas nas últ im as décadas
m ost r am suas lim it ações e que é possível que a insist ência nesse t ipo de program a
sej a at é m esm o um a est r at égia par a evit ar o debat e sobre a adoção de m edidas
m ais dr ást icas de r edist r ibuição.
Oliver Mendelsohn, por exem plo, ar gum ent a que os dalit s r eceber am cot as
em em pregos públicos as quais for am capazes apenas de beneficiar alguns
indivíduos e suas fam ílias sem , no ent ant o, dim inuir significat ivam ent e a pobr eza
que at inge o gr upo. O aut or alega ainda que a r eser va de vagas no Legislat ivo,
out r a m odalidade de ação afir m at iva com um na Í ndia, pr oduziu benefícios m uit o
int angíveis e sim bólicos e fr equent em ent e se quest iona o quant o os candidat os de
fat o r epr esent am seu gr upo de or igem . Além disso, Mendelsohn diz que, com o
aum ent o da com pet it ividade eleit or al na Í ndia, a população dos dalit s conseguiu
obt er um a sér ie de ganhos m ais efet ivam ent e por m eio da vot ação or dinár ia do que
dos m ecanism os eleit or ais com pensat órios. Por fim , ele alega que a pr ovisão de
educação especial aos dalit s, apesar de t er produzido r esult ados m ais subst ant ivos,
ficou lim it ada à alfabet ização e à educação básica. Segundo essa ar gum ent ação,
quando exist ent e, a assist ência financeir a aos dalit s no ensino super ior foi capaz de
beneficiar som ent e os m em br os m ais com pet it ivos do gr upo, dada a sua
insuficiência de r ecur sos par a cobr ir t odos os gast os educacionais ( Mendelsohn,
1999, p. 63) .
Ent r et ant o, essa leit ur a negat iva não é consensual ou m esm o hegem ônica
naquele país. Out r os pesquisador es cont r a- ar gum ent am que a possibilidade de
per pet uação de um a pequena elit e dalit parece incom odar m uit o m ais os m em br os
das cast as pr ivilegiadas do que a pr ópr ia com unidade. Apar ent em ent e, o que os
dalit s desej am é que os m ais pr ivilegiados do gr upo não per cam seus elos com a
com unidade e que se engaj em polit icam ent e em seu favor , conver t endo as
oport unidades r ecebidas em m eios de elevar as condições de vida de t odos.
Alega-se que o m ot ivo pelo qual esAlega-ses dalit s de clasAlega-ses m ais baixas não Alega-se Alega-sent em
pr ej udicados pelas polít icas de r eser va é o fat o de saber em que poucos ent re eles
t êm o nível de inst r ução necessár io par a com pet ir pelas r eser vas no em prego, no
par lam ent o ou no Ensino Super ior ( Mallick, 1997, p. 345- 374) .
A r espeit o das r eser vas eleit or ais par a as scheduled t r ibes, por sua vez,
Alist air Mcm illan defende que, ainda que o benefício par a o conj unt o desses grupos
não sej a subst ancial, a polít ica conseguiu t r ansfer ir recur sos par a um a classe m édia
polit icam ent e m obilizada e ar t iculada que agor a é capaz de lut ar por m ais direit os e
inclusão de m em br os do seu gr upo de or igem ( Mcm illan, 2005, p. 311) . Pr an
lider anças com alt os níveis de com pet ência. Com efeit o, o própr io B. R. Am bedkar3,
m ilit ant e dalit e president e da com issão que r edigiu a Const it uição indiana,
ar gum ent ava que apenas com a t r ansfor m ação de alguns dalit s em m em bros da
elit e seria possível m elhorar as condições de vida de seu gr upo, pois isso far ia que
eles se dessem cont a de seu pr ópr io pot encial ao pr opor cionar exem plos posit ivos
par a o gr upo ( Zelliot , 2005, p. 47) .
Out r a linha de ar gum ent ação é seguida por Ghanshyam Shah, par a o qual
não é plausível cr it icar as polít icas de reser va com a alegação de que podem , por
exem plo, beneficiar um dalit rico e pr ej udicar um br âm ane pobr e. Ainda que
per t ençam à m esm a classe social, m em bros desses gr upos não podem ser
com par ados: fat ores cult ur ais e difer enças de capit al hum ano afet am suas chances
de obt er educação e com pet it ividade no m er cado de t r abalho ( Shah, 2002, p.
296-314) . No m esm o r egist ro, Decanesan Nesiah acr escent a que os dalit s m ais
educados e econom icam ent e bem - sucedidos sofr em discr im inação por cont a do
est igm a da " int ocabilidade" e da per sist ência do pr econceit o de cast a ( Nesiah,
1999, p. 36) . Com efeit o, quando per gunt ado se seu filho dever ia ser beneficiár io
das polít icas de r eser va, Jagj ivan Ram , o pr im eiro m em br o das scheduled cast es a
adent r ar os m ais alt os cír culos da polít ica indiana, afir m ou que, com o ainda
r est avam algum as m esas em que seu filho não podia j ant ar , t alvez a
" int ocabilidade" ainda fosse um assunt o r elevant e, o que faz da ação afir m at iva
um a m edida com um papel im port ant e a cum pr ir ( Par ikh, 1997, p. 54) .
Cr e a m y la y e r n os Est a dos Un idos: Th om a s Sow e ll
Em bor a t enha sido for m ulado na Í ndia, o ar gum ent o do cr eam y layer não
ficou r est r it o àquele país. Ele est á pr esent e, por exem plo, nas cont r ovér sias acer ca
das ações afir m at ivas nos Est ados Unidos desde a década de 1960. Um dos
pr incipais propagandist as desse discur so no país é o econom ist a negr o nor t
e-am er icano Thom as Sowell, um ce-am peão ant iação afir m at iva em seu país. Sowell é
t it ular da cát edr a Milt on Fr iedm an na Univer sidade de St anfor d e um ícone do
pensam ent o conser vador am er icano. Aut or do livr o Affir m at ive act ion ar ound t he
wor ld: an em pirical st udy ( Sowell, 2004) , que é um ver dadeir o m anifest o cont r a
essas polít icas, Sowell deslinda um a m ir íade de argum ent os cont r a polít icas de ação
afir m at iva e t em com o pont o pr incipal a t ese de que elas for am exper iências
fr acassadas nos países que as im plant ar am . O livr o cont ém um capít ulo int r odut ór io
e um a conclusão, enquant o cada um dos capít ulos rest ant es é dedicado a um caso
nacional: Í ndia, Malásia, Sr i Lanka, Nigér ia e Est ados Unidos.
O pr incipal ar gum ent o de Sowell cont r a a ação afir m at iva é de or dem
m or al. Segundo ele, t ais polít icas se j ust ificam assum indo a pr em issa de que um
det er m inado padr ão desigual de dist ribuição é causado por ações int encionalm ent e
discr im inat ór ias de um gr upo cont r a out ro. Daí ser necessár ia um a ação que
r edist ribua desigualm ent e bens e oport unidades para com pensar a falt a original. O
aut or ent ão t ent a m ost r ar que em vár ios casos nacionais não há evidência sólida de
hist ór ia de discr im inação ou vit im ização dos gr upos m enos pr ivilegiados. Sowell
suger e que t ais desigualdades podem ser produt o de padr ões de com port am ent o ou
" out r as difer enças" ent r e gr upos e não de discr im inação, ar gum ent o ant eriorm ent e
ut ilizado por Fr iedr ich von Hayek par a defender a t ese de que som ent e a aplicação
univer sal da nor m a é j ust ificável ( Hayek, 1960, p. 194- 195)4.
Mas esse não é o único argum ent o cont r ário. O livr o é r echeado deles. Há
os de nat ur eza m or al, m as t am bém out ros de or dem pr át ica e em pírica, que
buscam pr ovar que a ação afir m at iva é m al concebida e não funciona dir eit o, ist o é,
não é capaz de pr oduzir os r esult ados que alm ej a. Clar am ent e decor rent e do
ar gum ent o m or al feit o pelo aut or est á a acusação, apr esent ada logo em seguida,
de que as polít icas de ação afir m at iva acabam por beneficiar " aqueles que j á são
m ais afor t unados, pr oduzindo pouco ou nenhum benefício par a aqueles que são
ver dadeir am ent e despr ivilegiados" ( Sowell, 2004, p. 195) . Sowell t ent a m ost r ar
que, ao falhar na pr át ica em at ingir os m enos pr ivilegiados, as polít icas de ação
afir m at iva est ar iam subver t endo int eir am ent e seus pr opósit os, pr ivilegiando os j á
pr ivilegiados, o que é um delit o m or al capit al.
Não deve nos escapar o fat o de t al ar gum ent o se encaixar per feit am ent e
naquilo que Alber t Hir schm an cham ou de " t ese do efeit o per ver so" , um a das t r ês
t eses da r et ór ica r eacionár ia usadas por t oda a hist ór ia do Ocident e m oder no par a
deslegit im ar conquist as por direit os civis, polít icos e sociais ( Hir schm an, 1991, p.
11- 42) . No caso, as polít icas est ar iam fazendo exat am ent e o cont r ár io daquilo par a
o qual for am pr opost as, daí o r ót ulo " efeit o per ver so" .
Sowell afir m a per em pt oriam ent e que as polít icas de r eser va na Í ndia
beneficiam m aj orit ar iam ent e o cr eam y layer ( Sowell, 2004, p. 187) e que isso é
explícit o naquele país. Com o vim os há pouco, t al opinião é cont r over sa ent r e
acadêm icos indianos, m as o aut or fur t a- se a t r azer essa cont r ovér sia par a as
páginas de seu livr o. Segundo ele, nos Est ados Unidos as pessoas ainda não est ão
conscient es desse gr ave pr oblem a. A difer ença se explicar ia pelo fat o de o sist em a
de cast as na Í ndia t or nar m ais fácil a ident ificação do cr eam y layer, em com par ação
aos Est ados Unidos, que não par t ilha de t al est r ut ur a social. Sowell t am bém acusa
o gover no nor t e- am er icano de se fur t ar a pr oduzir est at íst icas que com pr ovem o
supost o fat o de a ação afir m at iva beneficiar os j á pr ivilegiados, m as aler t a que
" um a gam a de font es privadas" m ost r am que os " afr o- am er icanos m ais afort unados
r ecebem um a par cela despr opor cional dos benefícios da ação afir m at iva naquele
país" ( p. 186) . É int er essant e not ar que nesse t recho Sowell não for nece qualquer
pist a de quais ser iam essas " font es pr ivadas" . Ainda que seu livr o sej a bem m ais
um t ext o par a divulgação e m ilit ância do que um t r abalho acadêm ico, out r as
passagens de fat o cont êm algum as r efer ências a t r abalhos de especialist as. Não é o
caso aqui.
O cr e a m y la ye r ch e ga à gr a n d e m ídia br a sile ir a
A pr im eir a r efer ência ao livr o de Sowell no debat e acer ca da ação afir m at iva
t r avado na m ídia br asileira apar ece em um a r eport agem da Folha de S. Paulo,
assinada pelo j or nalist a João Bat ist a Nat ali, de m aio de 2004. O livr o de Sowell
t inha acabado de ser lançado nos Est ados Unidos e, a despeit o de seu t ít ulo, "Livr o
de negr o am er icano condena cot as" , a r epor t agem de Nat ali é cr ít ica e balanceada.
Além de usar de um t om descr it ivo par a se refer ir ao livr o e a seu lançam ent o, o
j or nalist a adver t e que os casos nacionais exam inados por Sowell " t êm pouco a ver
com o Br asil" . Além de elencar algum as cr ít icas feit as por Sowell e adver sár ios da
ação afir m at iva nos Est ados Unidos, o aut or do t ext o t am bém expõe os ar gum ent os
daqueles que são favor áveis a essas polít icas naquele país.
A segunda r efer ência encont r ada em nossa base de t ext os dos gr andes
j or nais ocor r e em dat a pr óxim a, 29 de j unho do m esm o ano, m as cuj o t om é
com plet am ent e diver so da r epor t agem de Nat ali. Tr at a- se de t ext o de opinião
int it ulado " Cot as, um er r o j á t est ado" , da aut or ia de Ali Kam el ( 2004c) . O t ít ulo j á
indica o cont eúdo do t ext o, que é um a louvação ao livr o de Sowell; um sum ár io de
ar gum ent os sacados do livr o sem um a not a cr ít ica sequer , a não ser , obviam ent e,
às polít icas de ação afir m at iva. Kam el escreve de m odo cart esiano, enum er ando
clar am ent e ar gum ent os, par ágr afo após par ágr afo. A list a é a seguint e: as ações
afir m at ivas, um a vez cr iadas, t endem a se perpet uar, a despeit o de pr om essas em
cont r ár io; elas t am bém t endem a ser est endidas a out r as cat egor ias de
beneficiár ios, o que const it uir ia um m al aos olhos de com ent ador e com ent ado; os
gr upos não beneficiados passam a com et er desonest idades par a t ent ar am ealhar o
se apoder am da m aior par t e dos benefícios ( cr eam y layer ) ; " as polít icas de
pr efer ências e de cot as acar r et am [ ...] o ódio r acial" ; " as cot as [ sic] são
desnecessár ias, pois as m inor ias j á est ão em t r aj et ória de ascensão social, pelo
m enos nos Est ados Unidos" ; as cot as não t iver am nenhum im pact o sobre a
ascensão social dos negr os; e as cot as são cont r apr oducent es, pois gr ande par t e
dos est udant es que as ut ilizam não consegue t er m inar os cur sos.
A despeit o do er ro de cham ar as polít icas de ação afir m at iva nos Est ados
Unidos de " cot as"5, e de acusar a ação afir m at iva de causar o ódio r acial, a t ônica
do t ext o de Kam el recai sobr e argum ent os que t ent am m ost r ar que t ais polít icas
não funcionam bem , não alcançam as finalidades par a as quais são pr opost as.
Dent r e esses ar gum ent os, o pr incipal é o do cr eam y layer , pois a acusação de que
a ação afir m at iva t eve pouco im pact o é explicada por Kam el exat am ent e pelo
supost o fat o de ela ser apr oveit ada por aqueles que j á est ão ascendendo e,
por t ant o, dela não pr ecisariam .
Em nossa base de dados, Kam el apar ece em oit avo lugar ent re os aut or es
que m ais publicar am t ext os acer ca do assunt o, com 22 peças. Acim a dele t em os
som ent e Elio Gaspar i ( 44) , Dem ét rio Weber ( 41) , Ant ônio Gois ( 39) , Ediane Mer ola
( 37) , Dem ét rio Magnoli ( 29) , Mir iam Leit ão ( 28) e Fer nanda da Escóssia ( 25) . Se
levar m os em cont a som ent e os t ext os de car át er opinat ivo, sua classificação sobe.
Weber , Gois, Mer ola e Escóssia são j or nalist as, que pr oduzem r eport agens e não
t ext os opinat ivos, j á Gaspar i é aut or de t ext os de opinião, m as sua coluna é
publicada r eligiosam ent e nos dois j or nais, o que faz com que seu núm er o sej a
dobr ado. Assim , com o aut or de t ext os opinat ivos, Kam el apar ece em t er ceir o lugar
no r anking ger al, em pat ado com Gaspar i. Se levar m os em cont a o fat o de que
t ant o Leit ão com o Gaspar i expr essam ger alm ent e opiniões favor áveis às ações
afir m at ivas de r ecort e r acial, concluím os r apidam ent e que Magnoli e Kam el são os
cam peões da r eação a essas polít icas nesses gr andes j or nais. O Gr áfico 2 m ost r a a
dist r ibuição da publicação dos t ext os desses dois aut or es, t odos cont r ários às
" cot as" , no per íodo em est udo:
Gr á f ico 2
N ú m e r o de t e x t os pu blica dos por D e m é t r io M a gn oli e Ali Ka m e l n os j or n a is O Globo e Folh a de S. Pa u lo ( 2 0 0 1 - 2 0 1 2 )
Font e : Elaboração pr ópr ia, baseada em dados da pesquisa " Ação afir m at iva na grande m ídia" do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afirm at iva ( Gem aa) .
Com o podem os not ar pelo gr áfico, Kam el foi líder da oposição às cot as na
gr ande m ídia no com eço do per íodo, ou sej a, logo depois que os pr im eiros
pr ogr am as for am aprovados em 2002- 2003. A part ir de 2005, Dem ét r io Magnoli
assum e esse papel, com Kam el t endo algum a par t icipação at é 2010 e depois se
ausent ando do debat e. É pr eciso ser dit o, cont udo, que t odos os 22 t ext os de
Kam el cont r a as cot as apar ecer am em um só j or nal, O Globo, enquant o Magnoli
t em par t icipação for t e nos dois veículos: 15 t ext os em O Globo e 14 na Folha de S.
Paulo6.
Devido à sua proxim idade com a edit or ia do j or nal, do qual t inha sido
edit or - chefe, e seu car go dent r o das Or ganizações Globo, não pode ser descar t ada
a hipót ese de o j or nalist a t er t am bém escr it o ou par t icipado da r edação de
edit or iais do j or nal que t r at avam do assunt o. No m esm o per íodo, O Globo publicou
132 edit oriais com a ação afir m at iva r acial com o t em a. Ent r e eles, nenhum er a
favor ável: 123 abert am ent e cont r ár ios, 5 am bivalent es e 4 que cit avam de
passagem as polít icas sem pr ofer ir opinião explícit a. Cont udo, consider ada a
car act er íst ica dos dados dos quais dispom os, não podem os t est ar dir et am ent e a
6
hipót ese da par t icipação de Kam el nos edit or iais. Podem os not ar , cont udo, a
sem elhança ent r e as cur v as de dist r ibuição t em por al dos t ext os publicados por ele
e dos edit oriais, com o m ost r a o Gr áfico 3:
Gr á f ico 3
Ar t igos de Ali Ka m e l e e dit or ia is pu blica dos n o j or n a l O Globo ( 2 0 0 1 - 2 0 1 2 )
Fon t e : Elaboração pr ópria, baseada em dados da pesquisa " Ação afir m at iva na gr ande m ídia" do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
A m ilit ância de Kam el cont r a a ação afir m at iva de r ecor t e ét nico- r acial ganhou m ais visibilidade com a publicação do livr o Não som os r acist as: um a r eação
aos que quer em nos t r ansfor m ar num a nação bicolor ( Kam el, 2006) , publicado por
um a edit or a com er cial com ót im a dist r ibuição nacional e anunciado em painéis de ônibus ur banos e em salas de cinem a ̶ algo incom um no m er cado edit orial
br asileir o.
O livr o t r az na cont r acapa t ext o de Yvonne Maggie, acadêm ica que se not abilizou pela oposição pública às cot as7, no qual Kam el é aclam ado com o
" cient ist a social acost um ado a fazer per gunt as e a desar m ar as ar m adilhas do
óbvio, de discur sos que t êm pr et endido se im por com o discur sos de ver dade" e
7
seus t ext os são dit os com o " font e r iquíssim a de infor m ação e de discussão par a
pesquisadores pelo país afor a" .
Sowell é cit ado no livr o de Kam el no capít ulo int it ulado " As cot as no
m undo" , cuj o obj et ivo é m ost r ar , baseando- se exclusivam ent e no livr o do aut or
am er icano, que t ais polít icas fr acassar am m undo afor a, em t odos os lugar es em
que for am im plem ent adas. O t ext o do capít ulo é, na ver dade, quase idênt ico ao do
ar t igo do j or nal, com algum as poucas adições e supr essões. Pr esent e t ant o no
ar t igo quant o no livr o est á a apr esent ação que Kam el faz de Sowell com o " um dos
m ais r enom ados int elect uais am er icanos"8.
O ar gum ent o do cr eam y layer apar ece no livr o de Kam el no capít ulo " As
cot as no m undo" e t am bém no capít ulo " O dinheir o que não vai par a os pobr es" ,
dedicado a cr it icar o pr ogram a Bolsa Fam ília e a Lei Or gânica de Assist ência Social
( Loas) , dois pr ogr am as do gover no feder al, o prim eir o par a at ender fam ílias com
r enda m uit o baixa e o segundo par a at ender idosos e deficient es. Sowell é cit ado
nesse cont ext o novam ent e par a refer endar o ar gum ent o de que os j á pr ivilegiados
vão se beneficiar de m aneir a despr opor cional dos pr ogr am as de assist ência ( Kam el,
2006, p. 124) .
No final de 2004, Sowell é cit ado out r a vez em ar t igo de O Globo,
novam ent e em um a r efer ência ao ar gum ent o do cream y layer , m ais um a vez em
t ext o de Ali Kam el ( 2004a) , ender eçado nesse caso aos deput ados feder ais
br asileir os, os quais são aler t ados par a o per igo das cot as. Um pouco m enos de um
m ês depois da publicação desse art igo, Kam el cit a de novo Sowell em t ext o par a O
Globo, agor a par a cr it icar livr os favor áveis à ação afir m at iva. O ar gum ent o do
cr eam y layer aqui não é cent r al, m as sim um a cr ít ica m ais genér ica a essas
polít icas ( Kam el, 2004b) . No final de dezem bro de 2004, seis dias depois da
publicação do últ im o t ext o de Kam el, o j or nal publica um t ext o de opinião favorável
escr it o em coaut or ia por Vania Penha- Lopes, Tim ot hy Mulholland e Am ancio Paulino
de Car valho9. No ar t igo em quest ão os aut ores, a despeit o de discor dar em
8 Não m uit o t em po depois da publicação do art igo de Kam el, O Globo publicou um a car t a de leit or discor dando da opinião lisonj eir a dispensada a Sowell. Segundo o m issivist a, Sowell defende em seus art igos as seguint es ideias: " Bush não m ent iu sobre as ar m as de dest r uição em m assa no I r aque; a m ídia ( t he hyena press) prest a um desser viço ao denunciar a t or t ur a infligida a soldados iraquianos, j á que 'eles fazem pior '; Rodney King, cuj o espancam ent o pr ovocou t um ult os em cidades am ericanas em 1992, não apanhou por ser negr o, m esm o por que a polícia am ericana não é r acist a ( Are cops racist ?) ; a única m aneir a de evit ar m assacres com o o de Colum bine é ar m ar t oda a população; for necer rem édios gr at uit os a idosos carent es é fazer a m edicina do alm oço gr át is ( free
lunch m edicine) . Já ia m e esquecendo da m elhor : os negr os t êm QI inferior ao dos br ancos devido a
cer t os aspect os da cult ur a africana" ( Medeir os, 2004) .
veem ent em ent e do j or nalist a de O Globo e acusar em o livr o de Sowell de não t er
font es em pír icas sólidas, concor dam que as polít icas de ação afir m at iva podem ser
capt ur adas por est r at os m ais pr ivilegiados das m inor ias, com o no caso dos negr os
nos Est ados Unidos ( Penha- Lopes, 2004) .
O nom e de Sowell volt a a ser cit ado em 2006, em repor t agem cur t a na qual
o genet icist a Sér gio Pena se r et r at a por não t er t om ado posição cont r a as cot as em
ar t igo de 2004, e cit a Sowell par a dizer que as cot as r acializam a sociedade
( Guedes e Mot t a, 2006) . Em out ubr o de 2007, Sowell é cit ado de passagem , pela
pr im eir a vez, em ar t igo de Dem ét r io Magnoli, que, com o j á m ost r am os, t or nou- se
um cam peão da lut a cont r a as cot as r aciais ( Magnoli, 2007) . O nom e do aut or
am er icano apar eceria m ais um a vez em m at ér ia no j or nal que r eproduz t r echos da
car t a- m anifest o cont r a as " cot as r aciais" assinada por 113 acadêm icos e
celebridades e ent regue ao m inist r o Gilm ar Mendes, do Supr em o Tr ibunal Feder al.
A passagem da car t a diz que Sowell " docum ent a ext ensam ent e" que as r efer idas
polít icas " não cont r ibuír am em nada par a r eduzir desigualdades, m as apr ofundar am
o cism a r acial que m ar ca com o fer r o em br asa a sociedade nor t e- am er icana"
( Br ígido, 2008) . Ou sej a, ainda que não explícit a, a r efer ência à incapacidade de
debelar desigualdades se conect a, nos ar gum ent os do aut or , dir et am ent e ao
ar gum ent o do cr eam y layer . Fechando o conj unt o de t ext os que fazem r eferência
ao polem ist a nor t e- am er icano, Dem ét r io Magnoli cit a novam ent e, em m ar ço de
2012, sua " obr a devast ador a sobr e as polít icas cont em por âneas de r aça" , m as a
r efer ência par a por aí.
Assim com o Kam el e Sowell, Magnoli t am bém foi aut or de livr o- m anifest o
cont r a a ação afir m at iva. Um a got a de sangue: hist ór ia do pensam ent o r acial
( Magnoli, 2009) é m ais pret ensioso em seu escopo hist ór ico e geogr áfico do que o
t r abalho de Sowell, e bem m enos acadêm ico em sua concepção: Magnoli ofer ece ao
seu leit or algo em t or no de 20 r eferências a font es par a cada capít ulo da obr a,
m uit as delas r epet idas, enquant o o aut or nor t e- am ericano t r abalha na casa das 370
r efer ências em m édia por capít ulo. Há apenas um a r efer ência a Sowell no livr o de
Magnoli, e ela diz r espeit o exat am ent e ao ar gum ent o do cr eam y layer. Magnoli usa
a opinião do aut or nor t e- am er icano com o evidência de que na Nigér ia as polít icas
de " equilíbrio ét nico" beneficiar am os m em bros dos gr upos que haviam deixado a
zona r ur al e se int egr ado à vida ur bana, ist o é, elit es dent ro de seus r espect ivos
gr upos ( Magnoli, 2009, p. 254- 255) .
A r ecepção de Sowell na Folha de S. Paulo é bem m ais acanhada. Depois da
r efer ência em m at ér ia de Nat ali, j á com ent ada, Sowell apar ece em ent r evist a cur t a,
na qual se r esum iu a acusar a ação afir m at iva de pr oduzir conflit o r acial e de
beneficiar o cr eam y layer ( Folha de S. Paulo, 2004) . E, finalm ent e, seu nom e é
cit ado no t ext o da m esm a car t a- m anifest o ent r egue ao STF, em m aio de 2008,
r epr oduzida int egr alm ent e nas páginas do j or nal e j á com ent ada por nós acim a
( Br ígido, 2008) .
Out r a m aneir a de t r açar m os o im pact o desse ar gum ent o é fazê- lo
dir et am ent e, por m eio do exam e de sua incidência na am ost r a e na int er ação com
out r os ar gum ent os. Sua dist r ibuição t em por al no univer so de t ext os dos dois
j or nais est á expost a no Gr áfico 4:
Gr á f ico 4
I n cidê n cia do a r gu m e n t o do cr e a m y la y e r n os t e x t os p u blica d os n o j or n a l O Globo e Folh a de S. Pa u lo ( 2 0 0 1 - 2 0 1 2 )
Fon t e : Elabor ação pr ópria, baseada em dados da pesquisa "Ação afir m at iva na gr ande m ídia" do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
Com o se pode const at ar , o uso do ar gum ent o er a m ais com um nos anos
iniciais, dim inuindo à m edida que o t em po passou, e a par t ir de 2010 não m ais
apar eceu nos j or nais. Mais im por t ant e é not ar que ele foi usado m uit o m ais em O
Globo do que na Folha de S. Paulo. Os t r ês picos de at ivação do ar gum ent o
dos j or nais. Em out r as palavr as, quando as cot as for am m ais com bat idas, o
ar gum ent o foi m ais usado.
A m aneir a com o o ar gum ent o apar ece nas páginas de O Globo t am bém
cham a at enção. O pr im eir o m ovim ent o de at ivação at inge seu ápice em 2004, ou
sej a, ele se dá em gr ande m edida em reação à cr iação das pr im eir as polít icas de
ação afir m at iva, par t icularm ent e na Uer j e na UnB10. Vár ias m enções no ano de
2003 advêm da fala de polít icos, com o Ciro Gom es, Cr ist ovam Buar que e Jeffer son
Pér es, senador do PDT, em vir t ude do im pact o do debat e sobr e o t em a no
Congr esso Nacional. No pr im eiro m ês de 2004 foi publicada um a report agem na
edit or ia " País" do j or nal em que se afirm ava, sem cit ar font es, que " [ o] gover no
acr edit a que as cot as seriam apenas um paliat ivo e pr ivilegiariam um det er m inado
núm er o de negr os e par dos" ( Éboli, 2004) . Naquele m esm o m ês, O Globo solt a o
pr im eiro edit or ial ut ilizando o ar gum ent o do cr eam y layer par a at acar as " cot as" .
Ainda nesse ano, Kam el publica dois ar t igos ut ilizando o ar gum ent o ( Kam el, 2004a;
2004c) ̶ som ent e no ano de 2004 o j or nalist a publicou nesse j or nal quat r o ar t igos
cont r a a ação afir m at iva.
Depois de um hiat o em 2005, quando não foi usado, o ar gum ent o volt a às
páginas do j or nal em 2006, agor a im pulsionado pela for t e cober t ur a dada pela
m ídia ao caso dos gêm eos que pr est ar am a UnB, e um foi aceit o com o cot ist a e
out r o não ( Seligm an, 2007) . A pr im eir a r eferência do ano apar ece em um a
r epor t agem ent usiasm ada pelo fat o de a UFMG t er pr ivilegiado a cr iação de cur sos
not ur nos e não cot as com o solução par a a inclusão social. O j or nalist a I t am ar
Mayr ink, aut or do t ext o, pr ofer e: " Um est udo da UFMG r evelou que um r egim e de
cot as r aciais não aum ent ar ia a inclusão de est udant es de baixa r enda na UFMG. O
levant am ent o m ost r ou um peso m aior par a as difer enças socioeconôm icas" . Não
há, cont udo, qualquer infor m ação sobr e esse est udo, se há disponibilidade pública
de r esult ados, quem o fez, em que condições, m et odologia et c. A UFMG foi de fat o
um a das univer sidades que m ais t em po r esist iu à adoção de polít icas de inclusão de
r eal efeit o11. Alguns m eses depois, o ar gum ent o apar ece em t ext o de Pet er Fry e
10 Em 2003, ent r ou em vigor a Lei Est adual nº 4.151, que inst it uiu r eser va de vagas par a o ingr esso de alunos pr et os e par dos nas univer sidades est aduais do Rio de Janeir o, Univer sidade Est adual do Rio de Janeir o ( Uer j ) e Universidade Est adual do Nor t e Flum inense ( Uenf) . Na Universidade do Est ado da Bahia ( Uneb) a polít ica foi criada por m eio da deliber ação núm er o 196/ 2002 do Conselho Univer sit ário. Em 2003 os conselhos univer sit ários da Univer sidade do Est ado da Bahia ( Uneb) e da Univer sidade de Br asília ( UnB) t am bém apr ovaram a adoção de cot as. Nos anos seguint es out ras leis est aduais e resoluções de conselhos universit ár ios foram responsáveis pela am pla dissem inação de m edidas sim ilares em univer sidades de t odo o país, at é que a aprovação da Lei Feder al 12.771 t or nou obrigat ória a reser va de vagas par a pret os, par dos, indígenas, alunos de escola pública e de baixa renda nas inst it uições feder ais de ensino superior e t écnico. I sso pr om oveu cer t a hom ogeneização dessas polít icas nas univer sidades feder ais, enquant o as est aduais per m anecem r egidas por leis locais ou por resoluções univer sit árias.
I vonne Maggie, em m eio a um a sér ie de at aques vir ulent os cont r a as cot as, ent r e
eles a acusação de que est ão dest r uindo a ident idade nacional br asileira ao
im plant ar um sist em a binár io de r efor ço de ident idades r aciais e que const it uem o
ger m e do fascism o: " é o ovo de ser pent e de um a nação paut ada em difer enças
'ét nicas/ r aciais'" ( Fr y e Maggie, 2006) . O argum ent o do cr eam y layer r eapar ece
logo depois em m ais um ar t igo de Kam el.
Seguindo padr ão sim ilar de at ivação, o ar gum ent o desapar ece em 2007
par a r essur gir em 2008, agor a sob o est eio do m anifest o ant icot as. Sua pr im eir a
apar ição no ano se dá na cober t ur a feit a por O Globo da ent r ega do Manifest o ao
STF. Na m anchet e de pr im eir a página lê- se: " Gr upo ent r ega ao STF m anifest o
cont r a cot as" . O subt ít ulo cham a at enção ao apoio de " celebridades" : " Assinada por
113 pessoas, ent re elas dona Rut h [ Car doso] , Caet ano e João Ubaldo, car t a acusa
sist em a de est im ular ódio r acial" . A despeit o do uso do ar gum ent o m ais vir ulent o
ent r e t odos, o do ódio racial, j á no pr im eir o parágr afo do t ext o que segue a
m anchet e encont r am os o ar gum ent o do cream y layer: " o docum ent o afir m a que os
vest ibular es que adot am o m ecanism o das cot as acabam pr ivilegiando est udant es
de classe m édia " ar bit r ar iam ent e classificados com o negr os" . Logo em seguida, o
t ext o dá a palavr a à ant r opóloga Yvonne Maggie, lider ança do m ovim ent o ant icot as,
que em poucas palavr as diz que, além de dividir o país ent r e br ancos e negros nas
univer sidades, " as cot as favor ecem um a pequena elit e" . Em sequência, nas páginas
int er nas do j or nal, seguindo o lead, encont r am os os excer t os do m anifest o, ent r e
eles a passagem : " as cot as r aciais pr opor cionam pr ivilégios a um a ínfim a m inor ia
de est udant es de classe m édia" . E por fim , com o se não bast asse t er repet ido o
m esm o ar gum ent o t rês vezes na m esm a peça j ornalíst ica, ele é escolhido par a
ilust r ar a fot o do m inist ro Gilm ar Mendes r ecebendo a car t a das m ãos de seus
por t ador es. A legenda diz: " O PRESI DENTE DO STF, Gilm ar Mendes, com o
docum ent o levado pela com issão: cot as pr ivilegiam est udant es de classe m édia
'ar bit r ar iam ent e classificados com o negr os', cr it ica o gr upo" ( Br ígido, 2008)12.
Ainda no m ês de m aio O Globo publica edit or ial no qual cit a o m anifest o dos
113 " int elect uais" par a afirm ar que as cot as " são elit ist as, pois beneficiar ão apenas
um a fr anj a da classe m édia, m édia/ baixa, m ant endo a gr ande m assa de pobr es,
independent em ent e da cor , à m ar gem do ensino" ( O Globo, 2008) . No m ês
seguint e é a vez de Ali Kam el volt ar à car ga, agora em invect iva diret a cont r a o
r esult ados. A part ir de 2011, a univer sidade m udou para um a fór m ula m at em át ica polinom ial, para adequar o pr ocesso de seleção ao uso das not as do Enem . Para m ais infor m ações, ver < ht t p: / / vest ibular .brasilescola.com / not icias/ ufm g- alt er a- for m ula- bonus- par a- cot ist as-
no-vest ibular .ht m > . 12
pr ogr am a de ação afir m at iva da UnB, dizendo que " as cot as da UnB beneficiam
apenas os alunos m ais r icos" ( Kam el, 2008) . Em j ulho, O Globo publica m ais um
edit or ial at acando as cot as, usando novam ent e o ar gum ent o do cr eam y layer ( O
Globo, 2008) . Em set em br o, r epor t agem infor m a que pesquisa encom endada pelo
par t ido Dem ocr at as ( DEM) m ost r a que 75% da população br asileir a apoia as cot as
sociais e som ent e 11% , as r aciais. Agor a a voz é dada ao senador do DEM,
Dem óst enes Tor r es, ent ão pr esident e da Com issão de Const it uição e Just iça ( CCJ) e
pr incipal r esponsável pela ADPF im pet r ada no Supr em o Tr ibunal Feder al pelo
m esm o part ido cont r a as polít icas de ação afir m at iva de r ecor t e r acial. Dem óst enes
pr ofer e: " Exist em fam ílias negr as r icas. Os filhos dessas fam ílias, que puder am
est udar em boas escolas, t am bém t er ão dir eit o às cot as? Eu ent endo que não
devem t er " .
A cober t ur a da Folha de S. Paulo não ecoou t ant o o ar gum ent o do cr eam y
layer , se com par ada ao seu par car ioca. Há de not ar alguns fat os pit orescos com o o
apar ecim ent o do ar gum ent o em um a ent r evist a dada ao j or nal por Fr eder ik de
Kler k, líder conser vador sul- afr icano que, não obst ant e, cont r ibuiu par a o fim do
r egim e do Apar t heid. O que cham a at enção não é o fat o de De Kler k lançar m ão do
ar gum ent o, m as de a Folha de S. Paulo não fazer um a r efer ência às cr edenciais
conser vador as do ent r evist ado.
O que podem os concluir do uso do ar gum ent o do cream y layer na cober t ur a
j or nalíst ica? Cer t am ent e, que ele foi um ar gum ent o im por t ant e, prim eiro, por t er
sido ar t iculado pelos cam peões de publicação de art igos cont r a as cot as, Ali Kam el
e Dem ét r io Magnoli; segundo, por ele apar ecer at é em r epor t agens, de m aneir a
nat ur alizada e sub- r ept ícia, com o m ost r am os; e, t er ceir o, por ele t er t ido um papel
im port ant e, par t icular m ent e na cobert ur a da ent r ega do Manifest o ant icot as ao STF
feit a por O Globo, j or nal aber t am ent e cont r ário às polít icas ( Cam pos e Fer es Júnior ,
2013b) .
I sso nos conduz a um a out r a pergunt a, que é crucial par a o pr esent e
ar t igo: ser á que essa cr ít ica se aplica às polít icas de ação afir m at iva no Br asil, com o
acusam Kam el, Magnoli e os edit or iais de O Globo, ent r e out ros? Nossa r espost a é
negat iva. Most r ar em os na seção seguint e, " Ação afir m at iva no chão de fábr ica" ,
que t al acusação é leviana se levar m os em cont a o gr osso das polít icas de ação
afir m at iva de viés r acial adot adas pelas univer sidades públicas br asileir as,
est aduais e feder ais, de 2003 a 2012, ou sej a, desde a im plem ent ação dos
pr im eiros pr ogr am as à decisão unânim e do STF em favor de sua const it ucionalidade
e à apr ovação da Lei nº 12.711 que r egulam ent a o sist em a de cot as em t odas as
univer sidades feder ais, am bas ocor ridas em 2012. Most r ar em os t am bém que o
r egim e pr oduzido pela nova lei par a as feder ais t em pr ovisões cont r a o cream y
Açã o a fir m a t iva n o ch ã o de fá br ica
Quem se infor m a acer ca da ação afir m at iva som ent e por m eio da gr ande
im pr ensa cor r e o risco de adquir ir um a visão m uit o dist or cida dessas polít icas.
Enquant o na m ídia o debat e se dava em t or no da quest ão da adoção de cot as
ét nico- r aciais no Br asil, de 2002 at é pelo m enos 2009 ( ver o Gr áfico 5) , as polít icas
espalhavam - se pelo país de m aneir a im pressionant em ent e r ápida. Os
levant am ent os per iódicos pr oduzidos pelo Gr upo de Est udos Mult idisciplinar es da
Ação Afir m at iva ( Gem aa) , do I esp- Uer j , per m it em acom panhar os pr ocessos de
im plem ent ação das polít icas de ação afir m at iva nas univer sidades est aduais e
feder ais br asileir as. Tais est udos m ost r am que essas polít icas se alast r ar am m ais
r apidam ent e ent r e as univer sidades est aduais. Em 2012, 86% delas ( 31/ 37) j á
adot avam algum a polít ica de ação afir m at iva ( social, r acial ou am bas) . No Gr áfico 5
podem os obser var a sér ie t em por al de adoção de pr ogr am as de ação afir m at iva
nessas univer sidades:
Gr á f ico 5
Ade sã o da s u n iv e r sida d e s e st a du a is à s a çõe s a f ir m a t iv a s por a n o
Fon t e : Elabor ação pr ópria, baseada em dados da pesquisa "Evolução t em poral e im pact o da Lei nº 12.711 sobre as univer sidades federais" do Grupo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
Nas feder ais o padr ão foi dist int o. Com o indica o Gr áfico 6, elas com eçar am
a adot ar as polít icas um ano m ais t ar de que seus par es est aduais. At é o ano de
2007, o rit m o de adoção de ações afir m at ivas foi m ais lent o. O pico ver ificado em
2008 explica- se pelo fat o de t er sido esse o ano em que m uit as dessas inst it uições
ader ir am ao Reuni ( Reest rut ur ação e Expansão das Univer sidades Feder ais) , plano
do gover no feder al que, ent r e out r as coisas, condicionou a t r ansfer ência de
vest ibular . O segundo pico deu- se em 2013, quando a pr esença das ações
afir m at ivas nas univer sidades feder ais salt ou de 70% par a 100% . Esse foi o ano da
im plant ação da Lei de Cot as, que t or nou obr igat ór ia a polít ica par a t odas as
unidades de ensino super ior feder ais. O Gr áfico 6 m ost r a a evolução t em poral da
adoção de progr am as de ação afir m at iva nas univer sidades feder ais:
Gr á f ico 6
Ade sã o da s u n iv e r sida d e s fe de r a is à s a çõe s a f ir m a t iv a s por a n o
Fon t e : Elabor ação pr ópria, baseada em dados da pesquisa "Evolução t em poral e im pact o da Lei nº 12.711 sobr e as univer sidades feder ais" do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afirm at iva ( Gem aa) .
Com o indica o Gr áfico 6, 18 univer sidades federais haviam r esist ido à
im plant ação de pr ogr am as de ação afir m at iva at é 2012.
Par a m elhor avaliar m os a par cialidade da cober t ur a nos j or nais analisados
no que t oca à ut ilização do ar gum ent o do cream y layer com int uit o de deslegit im ar
a adoção de polít icas de ação afir m at iva r acial no Br asil, não é suficient e m ost r ar
que pr ogr am as desse t ipo de fat o exist em em profusão, m as t am bém ident ificar
quem são seus beneficiários. Aqui t am bém a cober t ur a m idiát ica pode induzir a
cidadã ou o cidadão ao er r o. Quase a t ot alidade de t ext os publicados acer ca das
polít icas de ação afir m at iva na gr ande m ídia t r at a de sua m odalidade ét nico- racial,
par t icular m ent e as " cot as par a negr os" . A r ealidade do " chão de fábr ica" at é às
vésper as da im plant ação da Lei de Cot as, cont udo, é bem difer ent e, com o m ost r a o
Gr áfico 7:
Gr á f ico 7
N ú m e r o de u n iv e r sida d e s e st a du a is com a çã o a f ir m a t iv a de a cor d o com o t ipo de be n e f iciá r io ( 2 0 1 2 )
Fon t e : Elabor ação pr ópria, baseada em dados da pesquisa " A ação afir m at iva no ensino superior br asileir o" do Gr upo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
O padr ão das univer sidades feder ais, at é 2012 – ano im ediat am ent e
ant er ior à ent r ada de vigência da Lei que hom ogeneizou os cr it ér ios ̶ , é sim ilar ,
Gr á f ico 8
N ú m e r o de u n iv e r sida d e s f e de r a is com a çã o a f ir m a t iv a de a cor d o com o t ipo ( 2 0 1 2 )
Fon t e : Elabor ação pr ópria, baseada em dados da pesquisa "A ação afir m at iva no ensino superior br asileir o" do Grupo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
Com o se pode not ar , a var iant e m ais com um de polít ica de ação afir m at iva
er a, at é 2012, escola pública, t ant o nas univer sidades est aduais quant o nas
feder ais. A propor ção de univer sidades com cot as par a alunos de escola pública em r elação a cot as par a negros nas est aduais é 25/ 18, ou sej a, 140% , enquant o nas
feder ais essa pr opor ção alcançava 37/ 21, ist o é, 176% , em 2012. Esse é um dado
m uit o im por t ant e, pois é de conhecim ent o ger al que a cat egoria " escola pública" é adot ada nos pr ogr am as de ação afir m at iva m enos com o inst r um ent o de valor ização
do ensino público m édio e fundam ent al ( um pr ovável efeit o colat er al benigno) , e
m ais com o pr oxy da r enda fam iliar . A r azão é sim ples. No Br asil de hoj e é m uit o difícil cont ar com a com provação de r enda com o cr it ér io par a polít icas públicas, pois
m uit os t r abalhadores est ão ainda no set or infor m al, ou sej a, não t êm qualquer
com pr ovação de renda. Além disso, a propor ção de pessoas que declar am im post o de r enda ainda é pequena, par t icular m ent e nos níveis de r enda m ais baixos, e
m uit a gent e subdeclar a. Em sum a, um a polít ica que adot a declar ação de renda
beneficiar um gr ande núm er o de fr ee r ider s ̶ em out r as palavr as, de r edundar em
pr oveit o de algum cr eam y layer . O cr it ér io " escola pública" é bem m ais consist ent e,
pois fam ílias com baixo rendim ent o não t êm condições de colocar os filhos em
escolas par t icular es e são, assim , for çadas a m at r iculá- los em escolas públicas13.
Há de fat o algum as escolas públicas de qualidade no país, m as elas são m uit o
poucas se com par adas à m assa do ensino público, e concent r adas em algum as
poucas cidades, com o o Rio de Janeiro. Assim , podem os concluir que, at é 2012,
t ant o nas univer sidades est aduais com o nas feder ais, a m aioria dos progr am as de
ação afir m at iva, aqueles par a alunos de escolas públicas, dist r ibuíam vagas de
m aneir a a evit ar os pr ivilégios de um event ual cr eam y layer.
Mas não podem os par ar por aqui, pois os t ext os dos j or nais, com o j á
dissem os, t r at am da ação afir m at iva de r ecort e r acial, e é cont r a ela que a
acusação pesa m ais, inclusive por m eio do uso da font e Thom as Sowell. Port ant o, é
pr eciso verificar se nessa m odalidade de ação afir m at iva o ar gum ent o do cr eam y
layer não ser ia m inim am ent e ver ossím il. Par a r esponder a essa quest ão,
analisar em os prim eiro a r ealidade ant er ior à aprovação da Lei de Cot as, que alt er ou
sensivelm ent e os pr ogr am as de ação afir m at iva em boa par t e das univer sidades
públicas, e, logo após, a r ealidade cr iada pela aplicação da Lei.
Se t om ar m os as polít icas de ação afir m at iva para pr et os, par dos e/ ou
negr os adot adas at é 2012 nas univer sidades públicas, feder ais e est aduais,
cont am os 40 casos. Desse t ot al, 36 t inham algum cr it ér io adicional que
condicionava a renda do beneficiário, ou sej a, 90% delas. Tr int a univer sidades
adot avam o cr it ér io " escola pública" ( que, com o j á m ost r am os, é um pr oxy de
r enda) , cinco, o cr it ér io " r enda" dir et am ent e e um a, a com binação dos dois. Em
out r as palavr as, som ent e quat r o univer sidades, 10% , não t inham pr ovisão
qualquer sobr epost a ao cr it ér io ét nico- r acial, com o m ost r a a Tabela 1:
Ta be la 1
Cr it é r ios de cor t e socioe con ôm ico d os be n e f iciá r ios da s a çõe s a f ir m a t iv a s r a cia is
Cr it é r ios de cor t e N º %
Escola pública 30 75,0
Renda 5 12,5
Am bos 1 2,5
Nenhum 4 10,0
Tot al 40 100,0
Fon t e : Elaboração pr ópria, baseada em dados da pesquisa " A ação afir m at iva no ensino superior br asileir o" do Grupo de Est udos Mult idisciplinar da Ação Afir m at iva ( Gem aa) .
Todas as cinco univer sidades que adot avam cr it ér io de r enda inst it uír am o
valor de 1,5 salár io m ínim o per capit a de r enda fam iliar com o lim it e par a qualificar
candidat os par a as cot as. Em sum a, da m aneir a com o as ações afir m at ivas se
im plant ar am at é 2012, a am eaça das polít icas r edundar em em benefício de um
cr eam y layer , ou sej a, de um a supost a classe m édia negr a, com o dizem vár ios
ar t igos de j or nal, er a m uit o pequena. I sso por que as polít icas desenhadas de
m aneir a m uit o diver sa em univer sidades espalhadas por t odo o país t inham em sua
m aior ia pr ovisões par a prevenir que isso ocor r esse: o uso do crit ério de lim it e de
r enda, ou de um pr oxy, a escola pública.
Aqui é im port ant e fazer um par ênt ese de car át er int er pr et at ivo, que deve
ficar com o sugest ão para fut ur as pesquisas. O m ovim ent o par a a cr iação de
pr ogr am as de ação afir m at iva no Br asil foi, em grande m edida, encabeçado por
m ilit ant es dos m ovim ent os negr os, e apoiado por m ilit ant es do m ovim ent o e por
par t e da esquer da dem ocr át ica. Não houve, cont udo, um m ovim ent o em prol da
inclusão univer sit ár ia de alunos de escola pública par alelo à m obilização do
m ovim ent o negro pelas cot as. Ou sej a, se no final do pr ocesso o núm er o de
pr ogr am as par a alunos de escola pública super ou em pr at icam ent e 50% os pr ogr am as par a negr os, isso deve ser lido m ais com o um a r espost a das
univer sidades às pr essões do m ovim ent o negr o par a a cr iação de cot as par a negr os
do que pr opriam ent e com o um a aceit ação passiva de suas dem andas.
Est udo que t em com o base t odos os t ext os cont r ár ios à ação afir m at iva de
r ecor t e r acial m ost r a que o ar gum ent o de que " classe im port a m ais do que raça"
par a polít icas de car át er r edist r ibut ivo foi o quar t o m ais usado, com 122
ocor r ências. Ou sej a, a ideia de que ações afir m at ivas sociais r esolver iam o
pr oblem a da desigualdade de oport unidades ent r e brancos e não br ancos no Br asil,
e que, port ant o, as " cot as par a negr os" são desnecessár ias, quando não danosas, é
inclusive por algum as de inclinação pr ogr essist a ̶ t om ando aqui por pr ogressist a
aquele que é a favor da int er venção do Est ado na econom ia e nas r elações sociais.
Ent ão, um a hipót ese que pode ser levant ada em est udos fut ur os é a de que as
univer sidades públicas, em gr ande m edida lugar es onde o pensam ent o pr ogressist a
é m aj or it ár io, t enham sido par cialm ent e per m eáveis às dem andas do m ovim ent o
negr o, e, m uit as vezes, m esm o não cr iando cot as par a negros, acabar am por
im plant ar cot as par a alunos de escolas públicas. E m ais, a pr eocupação com o
cr eam y layer par ece t ão for t e que, m esm o quando cr iar am cot as par a negr os,
t om ar am o cuidado de condicioná- las ao baixo r endim ent o dos beneficiár ios.
É necessár io ainda exam inar m os a sit uação cr iada pela nova Lei e t ent ar
avaliar se ela cr ia condições par a que as vagas sej am ocupadas pelos set or es m ais
pr ivilegiados ent r e os beneficiár ios. Ant es de t udo, é pr eciso com pr eender com o
funciona a Lei nº 12.711. Tr anscr evem os seus dois ar t igos pr incipais:
Ar t . 1º As inst it uições federais de educação super ior v inculadas ao
Minist ér io da Educação reserv ar ão, em cada concur so selet iv o par a
ingr esso nos cur sos de gr aduação, por cur so e t ur no, no m ínim o 50%
( cinquent a por cent o) de suas v agas par a est udant es que t enham
cur sado int egr alm ent e o ensino m édio em escolas públicas.
Par ágr afo único. No preenchim ent o das v agas de que t r at a o caput
dest e ar t igo, 50% ( cinquent a por cent o) dev er ão ser r eser v ados aos
est udant es or iundos de fam ílias com r enda igual ou infer ior a 1,5
salár io m ínim o ( um salár io m ínim o e m eio) per capit a.
[ ...]
Ar t . 3º Em cada inst it uição feder al de ensino super ior , as v agas de
que t r at a o ar t . 1o dest a Lei ser ão preenchidas, por cur so e t ur no, por
aut odeclar ados pr et os, pardos e indígenas, em propor ção no m ínim o
igual à de pr et os, par dos e indígenas na população da unidade da
Feder ação onde est á inst alada a inst it uição, segundo o últ im o censo
do I nst it ut o Br asileiro de Geogr afia e Est at íst ica ( I BGE) .
De acor do com o t ext o da lei, par a candidat ar - se às cot as, os est udant es
devem seguir com binações difer ent es de t r ês pr ocedim ent os dist int os: 1) é pr eciso
com pr ovar que est udou t odo o ensino m édio em escola pública; 2) é necessár io
aut odeclar ar - se per t encent e à et nia indígena ou de cor pr et a e par da; e 3)
apr esent ar com pr ovação de r enda no caso daqueles que concor r em às vagas par a
baixa r enda.
Figu r a 1
D ia gr a m a de dist r ibu içã o de v a ga s se g u n do a Le i 1 2 .7 7 1
Fon t e : Minist ério da Educação.
Com o podem os concluir , a m aneir a com o a Lei aloca vagas gar ant e que dos
50% das vagas r eser vadas, 25% sej am dest inadas a alunos de baixa r enda. Ou
sej a, se assum ir m os que a var iável que det er m ina o pr ivilégio r elat ivo dent ro do
gr upo de beneficiários é a r enda, ent ão essa pr ovisão evit a que o t ot al dos
benefícios sej a canalizado par a aqueles com m aior r enda ent r e os beneficiár ios. Na
ver dade, da m aneir a com o est á desenhada, a Lei gar ant e vagas t ant o par a os
" br ancos pobr es" ( r enda fam iliar abaixo de 1,5 salár io m ínim o per capit a) quant o
par a os pr et os, pardos e indígenas pobres, segundo o m esm o cr it ér io de r enda e a
pr opor ção desses gr upos na população de cada est ado. Adem ais, podem os
ar gum ent ar que m esm o os pr et os, pardos e indígenas oriundos das escolas públicas
cuj as fam ílias t êm um a r enda fam iliar super ior a 1,5 salár io m ínim o per capit a são
sub- r epr esent ados nas car r eir as m ais concor r idas de nossas univer sidades públicas
e, por t ant o, m er ecer iam ser beneficiár ios de um a polít ica de ação afir m at iva14.
14 Se levar m os em consideração a quest ão sim bólica, com o apont ado por alguns aut ores indianos e nor t e- am ericanos, a polít ica se j ust ifica a despeit o do crit ério econôm ico, pois a exist ência de r ole
É pr eciso r essalt ar que o fat o de a escola pública funcionar com o um pr oxy
de r enda, ist o é, com o um a bar r eir a inst it ucional à capt ur a da m aior par t e do
benefício pela elit e econôm ica dos gr upos beneficiados, dist or cendo assim a
finalidade da polít ica, depende de cir cunst âncias cont ext uais que est ão suj eit as ao
câm bio hist ór ico. Se houver um r et or no da classe m édia à escola pública, ou
m esm o se as escolas públicas de qualidade com eçarem a se m ult iplicar , t al cr it ér io
se t or nar á m enos oper acional no que t oca evit ar o acesso do cr eam y layer ao
benefício.
Por fim , a com binação de dois cr it ér ios de r enda, o pr oxy " escola pública" e
a m ar ca de 1,5 salár io m ínim o de renda fam iliar per capit a, pode ger ar um a
est r ut ur a de opor t unidades desigual para as quat r o cat egor ias de beneficiár ios. A
avaliação das consequências r eais dessa polít ica é de gr ande int er esse acadêm ico e
público, e est á ainda por ser feit a.
Con clu sã o
Com o m ost r am os acim a, o ar gum ent o do cr eam y layer foi pr im eir am ent e
for m ulado for a do Br asil, pr im eiro no cont ext o indiano e depois nos Est ados Unidos.
Thom as Sowell, que o adot ou par a falar da pr ópr ia Í ndia, est endendo- o t am bém
par a out r os casos nacionais, é um de seus defensor es m ais loquazes. Not am os que
os especialist as indianos sobr e o assunt o est ão longe de t er qualquer consenso sej a
sobr e aspect os em pír icos, ist o é, se os benefícios são r ealm ent e abiscoit ados pelos
indivíduos m ais pr ivilegiados dos gr upos beneficiados, sej a sobr e a quest ão
nor m at iva de se, no côm put o ger al, as polít icas devem ou não ser adot adas pelo
conj unt o dos benefícios que pr opor cionam .
Tam bém det ect am os a r ecepção do ar gum ent o no debat e acer ca da ação
afir m at iva no Br asil, focando o seu eco na gr ande im pr ensa. Nesse cor pus t ext ual
not a- se a penet r ação de Sowell com o font e legit im ador a do ar gum ent o, e o
at ivism o do j or nal O Globo, part icular m ent e de alguns de seus ar t iculist as,
not adam ent e Ali Kam el e Dem ét r io Magnoli, na sua difusão. Em seguida,
analisam os dados em píricos acer ca dos progr am as im plant ados no Br asil, a fim de
t est ar a adequação do ar gum ent o ao caso br asileiro. A conclusão, em um a palavr a,
é de que ele não pr ocede.
Se o ar gum ent o do cr eam y layer não descr evia bem o que acont ecia com os
pr ogr am as de ação afir m at iva no Br asil ant es da apr ovação da Lei, ele t am pouco
pode ser facilm ent e aplicado sobr e a realidade da ação afir m at iva nas feder ais sob
a nova Lei. É clar o que os r esult ados r eais da aplicação da Lei, assim com o das
polít icas ant er ior m ent e em voga, ou m esm o dos pr ogr am as das est aduais, ainda
advindos dessas univer sidades. Not a- se, baseado nas infor m ações que hoj e t em os
sobr e o funcionam ent o dos pr ogr am as, que eles cont êm , em sua im ensa m aior ia,
pr ovisões cont r a o cr eam y layer , o que indica que os ar gum ent os am plificados pela
m ídia for am , em gr ande m edida, especulações sem base na r ealidade das polít icas
de ação afir m at iva no Br asil – adot ar am a cr ít ica feit a por um publicist a
conser vador nor t e- am er icano, Thom as Sowell, à ação afir m at iva na Í ndia com o se
fosse ver dade absolut a, aplicável a t odo t ipo de ação afir m at iva, no m undo t odo, ou
m esm o ext ensível a out r as polít icas públicas, com o o pr ogr am a Bolsa Fam ília.
A Lei de Cot as, hoj e em pr ocesso de im plant ação nos sist em as de ensino
m édio e super ior feder ais, cont ém , com o j á m ost r am os, pr ovisões cont r a o cream y
layer . Ela im plica, cont udo, a com binação de dois cr it érios de renda, um dir et o, o
lim it e de 1,5 salário m ínim o de r enda fam iliar per capit a, e out r o indir et o, a
cat egoria pr oxy " escola pública" , o que pode ger ar r esult ados inesper ados. Um a
avaliação de qualidade acer ca dos efeit os desses pr ogr am as é fundam ent al par a
que est es possam cum prir de m aneir a eficient e a finalidade à qual se dest inam , que
é a inclusão de par celas m ar ginalizadas da população nas opor t unidades de ensino,
super ior e m édio, ofer ecidas pelas inst it uições públicas de nosso país. Par a que isso
ocor r a é pr eciso não vat icínios apocalípt icos infundados, for m ulados por publicist as
conser vador es, m as que as univer sidades fr anqueiem o acesso aos dados de seus
pr ogr am as ao público.
João Fer es Júnior - I nst it ut o de Est udos Sociais e Polít icos ( I esp) , Univ er sidade do
Est ado do Rio de Janeir o ( Uerj ) . E- m ail: < j feres@iesp.uer j .br > .
Verônica Tost e Daflon - Escola de Ciência Polít ica, Univ er sidade Feder al do Est ado do
Rio de Janeir o ( Unir io) . E- m ail: < veronicat ost e@iesp.uer j .br> .
Re fe r ê n cia s bibliográ fica s
ALBERTO, L. " Tem a em discussão: est at ut o r acial" . O Globo, 8 j an. 2007.
BAI NS, R. S. Reserv at ion policy and ant i- r eser v at ionist s. New Delhi: B.R. Publishing Cor por at ion, 1994.
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BRÍ GI DO, C. " Gr upo ent r ega ao STF m anifest o cont r a cot as" . O Globo, 1° m aio 2008