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Acervos da Justiça do Trabalho como fonte de pesquisa.

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Academic year: 2017

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Resumo

O artigo descreve a trajetória do Memo-rial da Justiça do Trabalho no Rio Gran-de do Sul, relatando suas experiências de atuação na área da preservação e di-vulgação do patrimônio documental e museológico da Justiça do Trabalho no estado, discorrendo também sobre a questão dos acervos como patrimônio da sociedade, relacionando-o com as práticas de memória e pesquisa históri-ca do mundo do trabalho e dos traba-lhadores.

Palavras-chave: acervos; Judiciário; Jus-tiça do Trabalho.

Abstract

The article describes the history of the Memorial Archive of the Labor Court of Rio Grande do Sul, and looks at experi-ences of working with the preservation and dissemination of the documentary and museum heritage of the Labor Court in that state, as well as discussing the issue of collections as social heri-tage, linking this with practices of mem-ory and historical research in the world of work and workers.

Keywords: collections; Judiciary; Labor Court.

Durante sua palestra de abertura do IV Encontro Nacional da Memória da Justiça do Trabalho, realizado em Belo Horizonte, em 2009, o professor Ulpiano Bezerra de Menezes, encerrando sua fala, discorreu sobre sua expec-tativa de que as políticas de memória da Justiça do Trabalho fossem norteadas pelo espírito da busca de soluções para o presente e o futuro, como estratégias de produção memorialística.1 Essa concepção, que de certo modo inverte a lógica do trabalho em centros de memória, cuja expectativa é de preservação do passado, parece ter se efetivado, quando discorremos sobre as ações do Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul.

* Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS). Memorial da Justiça do Trabalho – Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região/RS. Rua General João Telles, 369, 2º andar, Bairro Bom Fim. 90035-121 Porto Alegre – RS – Brasil. alexandre.veiga@trt4.jus.br

como fonte de pesquisa

Labor Court archives as a research source

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Ao longo de seus quase 10 anos de existência, o Memorial tem se desta-cado por tentar cumprir esse papel. Nesse período, realizou diversas exposições – várias delas itinerantes, tendo sido apresentadas nas unidades da Justiça do Trabalho no interior do estado – e vem realizando ou participando e colabo-rando em eventos que se propõem a efetuar um debate sobre a função da história, da memória e da pesquisa em acervos e documentos do Judiciário Trabalhista.

Essas atividades buscam, sobretudo, reforçar a especificidade dos acervos dos processos judiciais como fontes privilegiadas para a produção de conhe-cimento, não só da Justiça do Trabalho, mas de toda a sociedade. Os processos judiciais, de modo geral, configuram-se como o produto de uma disputa entre litigantes, os quais procuram construir versões de determinado episódio, pro-curando convencer o mediador dessa disputa – o juiz de direito ou desembar-gador – a atender suas solicitações, tornando-os vitoriosos no processo.

Com isso, acabam por reunir, em um mesmo conjunto de documentos, uma quantidade significativa de registros documentais, os quais versam, num primeiro momento, sobre os pontos em disputa, mas que se prestam a outras perspectivas, no sentido de propiciarem a compreensão da dinâmica social. Estão integrados num processo a proposição do autor, as ponderações do réu e a decisão do magistrado. Nas argumentações das partes, para se tornarem críveis, há um conjunto de provas dos fatos, formadas por documentos admi-nistrativos, interrogatórios de testemunhas e quaisquer outros elementos que possam servir para convencer o juiz de um ou outro argumento.

Dessa forma, há uma série de registros que, sendo incorporados aos pro-cessos judiciais, permitem novas e variadas leituras desses autos, os quais po-dem servir para reflexão nas mais variadas áreas do conhecimento. As diversas leituras do processo judicial servem como argumento para o conhecimento histórico, as ciências sociais e os pesquisadores das áreas do direito e da eco-nomia, por exemplo, que podem observar fenômenos relacionados às suas áreas de estudo com base nos documentos judiciais.

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pretende-se discorrer sobre esse trabalho, demonstrando sua pertinência frente ao tema e sua fundamental relevância para a história do trabalho e dos traba-lhadores em nosso país.

A Justiça do Trabalho no Brasil completou, no ano passado, 70 anos de existência. Trata-se de um ramo especializado do Judiciário brasileiro, e sua existência resultou, no Brasil, de um percurso histórico singular e específico, em que pesem suas semelhanças com outros episódios verificados mundo afo-ra. Nesse período, enfrentou desafios importantes, tendo sido objeto das mais diversas manifestações. Houve momentos em que foi proposta sua integração ao sistema judicial comum, mas, por sua presença significativa junto à popu-lação em geral, e para a classe trabalhadora especificamente – na medida em que garante o acesso à justiça desses cidadãos trabalhadores –, teve sua exis-tência garantida, ocorrendo até mesmo o redimensionamento de suas ativida-des. Essa trajetória também deve ser ressaltada, na medida em que se propõe o tratamento adequado de seus acervos.

Arquivos, histórias e memórias

Como espaço de trabalho, um arquivo não pode ser compreendido, na perspectiva arquivística, como um ‘local de memória’, nos termos em que Pier-re Nora2 trata essa expressão. Isso porque os documentos de arquivo seguem lógica específica, buscando, num primeiro momento, atender às demandas institucionais, definidas por sua trajetória administrativa. Com isso, estabele-cem-se como instrumentos de ação institucional, visando apenas registrar os movimentos administrativos de determinada unidade, registrando suas ações e identificando atividades, pessoas e procedimentos de trabalho. Para a Arqui-vologia, raros documentos de arquivo nascem com a alcunha de ‘históricos’ – seja qual for o significado que se queira dar a esse termo.

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termo permite várias leituras, apontando para uma presença relevante no pa-norama dos estudos da sociedade.

No caso dos arquivos do Poder Judiciário, há várias outras questões a serem consideradas, em se tratando da formação de um arquivo. Um acervo de processos judiciais configura-se, ao mesmo tempo, em documentos de or-dem administrativa e de função finalística, no sentido de que são os próprios autos o instrumento da ação e seu resultado. Um processo judicial encerra tanto os fatos que originaram sua produção quanto a definição do procedi-mento. Ao contrário de um processo administrativo, cuja função é resolver determinada atividade gerencial – denominada, em arquivística, atividade--meio –, o processo judicial é o meio pelo qual se chega a um fim, o que o torna, na maioria das vezes, fenômeno único, sem outra referência.

Exemplificando, podemos lembrar que o processo administrativo que instrui a aquisição de bens móveis para determinado setor é quase sempre constituído de documentos idênticos: o pedido de compra, sua autorização, os orçamentos, a escolha do fornecedor, os registros de aquisição e entrega, e sua conclusão. Esse mesmo procedimento será repetido todas as vezes em que se fizer necessário efetuar a mesma aquisição, ou mesmo naquelas em que muda o objeto, mas não sua tarefa.

No caso do processo judicial, a situação é diversa, ainda que se exijam também normatizações semelhantes. Um processo judicial sempre deve ter uma petição inicial, a argumentação do réu, as provas reunidas dos argumentos de ambos e a sentença ou acórdão – dependendo do seu grau de jurisdição – que é a decisão final naquela instância. Porém, essa fórmula encontra uma grande diversidade na medida em que encerra histórias diversas, todas vincu-ladas a episódios específicos da vida dos envolvidos naquela disputa.

Na área trabalhista, esse fenômeno é ainda mais contundente, já que há uma vinculação específica à trajetória dos litigantes, principalmente no que diz respeito ao trabalhador, normalmente a parte que demanda ações nesse campo jurídico. Isso significa que, mesmo nos casos em que há pedidos feitos por diversos trabalhadores de uma mesma empresa, seu percurso funcional indi-vidual (ingresso na empresa, tempo de férias, atestados médicos etc.) torna esse trabalhador diferente dos demais, permanecendo apenas a empresa como elo entre os postulantes.

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aspectos específicos, ao se estabelecer sua configuração arquivística. Ao con-trário do que ocorre em outros ramos do Judiciário – a Justiça Federal e a Estadual – onde existem demandas que são exatamente idênticas, na Justiça do Trabalho essa possibilidade é bastante reduzida, impondo mecanismos sin-gulares de organização, pois ainda que as demandas sejam idênticas, o enqua-dramento das solicitações na legislação trabalhista personaliza cada ação, pro-piciando resultados diversos.

Na medida em que há uma grande quantidade de autos em suporte papel, essa característica só amplia o desafio de sua manutenção e disponibilização. Pensar o arquivo de processos judiciais trabalhistas significa propor a compo-sição de um grande número de registros, os quais são utilizados para definir os instrumentos de avaliação e de gerenciamento dessa massa documental. Isso porque todos os processos, individualmente, podem ser objeto de estudo, con-siderando sua especificidade e seus detalhes.

Essa circunstância colabora, de modo incisivo, para a produção de conhe-cimento, principalmente nas áreas da história e da sociologia, as quais conse-guem perceber, nos acervos judiciais trabalhistas, um mural representativo das relações humanas historicamente constituídas. A produção de sentido nesses acervos, com base nos registros documentais ali reunidos, permite refletir so-bre os perfis socioeconômicos das classes trabalhadoras, além de compreender seu processo de organização enquanto classe, e mesmo como indivíduos que buscam garantir seus direitos.

Essa proposição constitui a força motriz da pesquisa em acervos judiciais trabalhistas. A produção de conhecimento originada desses conjuntos docu-mentais carrega uma grande capacidade de descortinar fenômenos que, de outro modo, permaneceriam desconhecidos, restritos aos relatos memorialís-ticos, os quais possuem significados específicos que disputam a compreensão social com variáveis nem sempre adequadas, na medida em que se estruturam nas lembranças dos diversos atores desses episódios. Seu cruzamento com os registros documentais, no entanto, configura um enriquecimento mútuo, tor-nando ambos profundamente significativos como lugares de memória.

A pesquisa em acervos judiciais

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claudicante. Em grande medida, serviram para compreender os fenômenos ligados ao que se denominava História Política, compreendendo-se com isso os estudos da chamada história ‘oficial’.3 No mais das vezes, serviam como processo de conhecimento dos estudantes da área do Direito, em seus primei-ros anos de curso, para depois serem relegadas a plano nenhum, ao longo dos anos de formação.

As mudanças decorrentes das concepções de história iniciadas sob o signo dos Annales, na França do pré-guerra, e que depois influíram de modo decisivo em outros países – tendo sido introduzidas no Brasil por volta dos anos 1970 –, trouxeram novo fôlego aos estudos relacionados à dinâmica judicial. Agora não mais a reboque de interpretações propedêuticas, mas em busca dos relaciona-mentos sociais descritos nos autos de um processo, os profissionais da História passaram a compartilhar esse objeto de estudo com seus colegas do Direito.

Com esse crescimento na busca de informações, os acervos judiciais pas-saram a ser objeto de organização por parte de seus detentores. Em grande medida, esses documentos estavam recolhidos aos respectivos arquivos públi-cos, locais até então quase que exclusivos para a remessa de documentos de origem do Estado. Ao Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, por exemplo, haviam sido recolhidos centenas de documentos originários das Cortes de Apelação, que respondiam pela aplicação da justiça no período colonial. No Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul acumulam-se outras 27 mil caixas de documentos do Judiciário gaúcho, dentre os quais os que escaparam ao incêndio criminoso ocorrido no prédio do Tribunal, em 1948, e que acabou por destruir boa parte da produção documental do Foro de Porto Alegre.

Essa realidade exigiu uma nova perspectiva com o crescimento exponen-cial no número das demandas judiciais posteriormente à promulgação da Constituição de 1988. Para se ter uma ideia, no Judiciário Trabalhista da 4ª Região (Rio Grande do Sul), as ações judiciais ingressantes passaram de 440 mil no período de 1971-1980 para mais de um milhão na última década do século. Existem diversas explicações para esse fenômeno, que não serão explo-rados neste artigo, mas pode-se ressaltar que, ao se ampliarem as possibilidades de intervenção do Judiciário na sociedade, a busca pelos direitos ampliou a busca, na Justiça, pela cidadania.

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século passado, tornou-se central na historiografia, também a partir da mu-dança do paradigma dominante. O crescente interesse pelas classes subalter-nas, até então relegadas ao rodapé da história, tornaram tais fontes extrema-mente relevantes na medida em que poucos registros do percurso escravagista haviam sido deixados. A identificação do perfil social do escravo, bem como sua trajetória social, relatados nos processos criminais ou nos inventários, tor-naram os acervos judiciais um enorme sucesso entre os pesquisadores da área. Com base na percepção de que nos acervos judiciais havia muito mais história do que se poderia supor, cresceram os grupos de pesquisa voltados às temáticas relatadas nesses documentos. Questões de família, comportamento social, boemia, relacionamento intra e intergrupos, aspectos comerciais e re-ligiosos, entre vários outros, passaram a demonstrar o enorme potencial dos registros efetuados pelos diferentes ramos do Judiciário, suscitando os mais diversos trabalhos, não apenas na área de História, mas também nas de Socio-logia, Ciência Política e Antropologia.

Uma busca no Banco de Teses Capes utilizando os termos “Justiça”, “Ju-diciário” e “Documento Judicial” permitiu a localização de, respectivamente, 6.943, 3.304 e 123 ocorrências. Diversas áreas do conhecimento utilizaram-se dessa proposta, construindo interpretações sobre os procedimentos judiciais.4 Nessas pesquisas, é possível observar uma profícua capacidade de compreen-são do mundo, consubstanciada nos documentos do Judiciário. Examinemos mais detidamente algumas dessas produções, para melhor compreensão do fenômeno.

Na área da Antropologia, Laura Lowenkron estudou a Sexualidade e (me-nor)idade: estratégias de controle social em diferentes escalas. Na área da Ciên-cia Política, Felipe Roquete discute Os dilemas judiciais e escolhas de políticas: o caso das políticas públicas de assistência farmacêutica. Paulo Roberto de An-drade Castro e Silvia Keller Villas Boas, no campo das Ciências Sociais, tema-tizaram aspectos da Construção social do delinquente menor de idade na esfera jurídica e os crimes de defloramento, respectivamente.

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historiográfica, tratou-se do concubinato no Bispado do Rio de Janeiro, da profissionalização médica nos processos-crime da capital mineira e do reco-nhecimento dos direitos territoriais da comunidade indígena Krahô-Kanela, trabalhos estes de Alessandra Silveira, Gabriela Dias de Oliveira e Victor Ferri Mauro, respectivamente.

Além dessas produções mais recentes, cabe ressaltar os textos já clássicos, como o do renomado historiador brasileiro Sidney Chalhoub, Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, em que o autor investigou aspectos do dia a dia da classe trabalhadora carioca nas primeiras décadas do século XX abordando questões como as estratégias de sobrevivência, os conflitos étnicos e as relações amorosas, e utilizando-se, co-mo base documental, de 140 processos criminais ‘aparentemente sem impor-tância’. Sua metodologia foi esta:

O fundamental em cada história abordada não é descobrir ‘o que realmente se passou’ – apesar de ... isto ser possível em alguma medida – e sim tentar com-preender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso. As diferentes versões pro-duzidas são vistas neste contexto como símbolos ou interpretações cujos signifi-cados cabe desvendar.5

Essa consideração do pesquisador aponta para outra característica insti-gante – ainda que plena de complexidade procedimental –, o uso de documen-tos judiciais como fonte de pesquisa. Esses registros, em que pese seu profundo valor como ferramenta de interpretação do mundo, como vimos afirmando, nunca devem ser descontextualizados de sua produção específica. Ou seja, não foram reunidos para produzir análises, mas como instrumento de determinado procedimento jurídico-administrativo que tem um único objetivo: fazer justiça.

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que deveria ser produzida com equidistância dos fatos, também demonstra uma visão de mundo e uma compreensão condicionadas. São questões como essas, ou as que se relacionam aos procedimentos administrativos necessários à instrução processual – como os relatados por Keila Grinberg6 – que devem ser observadas no trato com os documentos da Justiça.

Os acervos judiciais trabalhistas

A trajetória dos acervos da Justiça do Trabalho não diferiu em muito dos outros ramos do Judiciário. Mais ainda por ser uma justiça especializada, sua produção documental experimentou forte resistência, ao longo dos anos, antes de se incorporar ao ‘celeiro da história’ de que fala Bellotto.7 O uso em pesqui-sas dos processos judiciais trabalhistas, cujas características diferem daqueles produzidos nos demais ramos da Justiça, fundou-se na perspectiva de que se tratava, ‘apenas’, de questões ligadas ao mundo do trabalho.

Novamente a dinâmica historiográfica se fez presente, e a partir do final dos anos 1990, com a ampliação dos eventos memorialísticos, a Justiça do Trabalho passou a discutir a importância de seus acervos, considerando-os como documentos históricos de grande relevância para a produção do conhe-cimento. É desse período a criação dos Memoriais nos judiciários da 3ª Região (Minas Gerais, 1997), e do Ceará e Rio Grande do Norte, no ano 2000. Logo depois, foi proposta a criação do Memorial da 4ª Região, que se efetivou em dezembro de 2003.

Um dos grandes problemas enfrentados pela Justiça do Trabalho para a organização de seus conjuntos documentais foi a legislação. Uma Lei assinada em 10 de novembro de 1987 pelo presidente José Sarney autorizava a Justiça do Trabalho a eliminar seus autos judiciais arquivados depois de 5 anos. Lar-gamente utilizada – e ainda em vigor –, essa determinação legal ainda assom-bra os equipamentos envolvidos na difícil batalha pela preservação de acervos.

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as definições do Proname, em muitos casos, acabaram por referendar essa possibilidade de destruição. Nesse sentido, basta observar a Tabela de Tempo-ralidade sugerida pelo Grupo de Trabalho do Programa, que estabelece, para o Judiciário Trabalhista, os mesmos 5 anos de prazo para a destruição da maio-ria dos processos arquivados.

Na busca pela manutenção desses acervos, uma das estratégias adotadas foi a implementação de uma política de parcerias com instituições de ensino, as quais poderiam abrigar o acervo e ao mesmo tempo desenvolver atividades de pesquisa, envolvendo seus alunos na análise desses conjuntos documentais. Essa estratégia decorreu da percepção, pelos pesquisadores, da já citada valiosa qualidade informacional dos acervos, os quais permitiam visualizar elementos da sociedade brasileira que, de outro modo, permaneceriam desconhecidos.

Com base nessa concepção, por exemplo, o Tribunal Regional de Pernam-buco encaminhou proposição de trabalho mediante seu Centro de Memória. Mobilizados pela notícia da doação de um lote expressivo de processos a serem alienados como papel velho, professores do Departamento de História da Uni-versidade Federal de Pernambuco (UFPE) conseguiram impedir que esse fato se consumasse, alertando a comunidade científica e a sociedade pernambucana para os graves riscos que tal destruição iria ocasionar. Para reverter a situação, houve a assinatura de um convênio entre o TRT e a UFPE propondo a preser-vação integral do acervo, como forma de permitir o acesso dos pesquisadores. Graças a esse convênio foram preservados mais de 200 mil processos judiciais trabalhistas, os quais vêm servindo para subsidiar importantes reflexões sobre a trajetória da Justiça do Trabalho daquele estado.

Com base nessa atividade, foram possíveis análises como a de Vera Acioli (A Justiça e o Direito como estratégias de Resistência ao trabalho escravo em Pernambuco, da Colônia à República), em que a autora estuda as reclamatórias trabalhistas, percebendo as disputas como elemento de alteração da dinâmica do mundo de trabalho naquele contexto histórico; Diego Carvalho da Silva examinou questões relacionadas à atuação da Justiça do Trabalho nas disputas decorrentes da atividade rural, quando analisou o Estatuto do Trabalhador Rural no seu texto A Justiça entra em campo: a atuação da Justiça do Trabalho

em Jaboatão no Processo de decadência da Usina Muribeca; também sobre o

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Santos escreveu De avulso a estável, o voo oblíquo do trabalhador do campo por Justiça, Direito e Cidadania.

Este breve relato permite verificar algumas especificidades relacionadas aos acervos do Judiciário trabalhista. A primeira delas decorre justamente des-sa vinculação jurídica que origina tais documentos. A Justiça trabalhista, por ser especializada, trata de temas ligados ao mundo do trabalho, processando as demandas que envolvem as atividades econômicas da sociedade. Em função disso, suas perspectivas de pesquisa ensejam os aspectos conectados a essa relação social, impondo seu escopo de ação voltado para essas questões. Ainda assim, os documentos reunidos em seus autos judiciais mostram aspectos de significativa relevância, dada a centralidade da questão do trabalho em nossa organização social.

Essa circunstância impõe que tais autos sejam preservados para a poste-ridade. Sua leitura, disponibilização e interpretação permitem uma compreen-são de fenômenos sociais que marcaram seus tempos históricos, na medida em que proporcionaram acesso aos atores desses episódios, impulsionando sua dimensão efetiva. Isso significa que uma greve, nos autos judiciais, não é ape-nas uma quase-abstração – como se poderia depreender da leitura de textos acadêmicos – mas um episódio que marca a trajetória de muitas vidas, conta-das nos detalhes, mediante seu sofrimento e o empenho em obter suas deman-das. Ou então, podemos ver com notável clareza como determinado período histórico (por exemplo, a década neoliberal) impactou a vida dos trabalhado-res, pelos relatos coligidos nos documentos judiciais trabalhistas.

Os acervos do TRT da 4ª Região e o conhecimento histórico

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Ao longo de seus 10 anos, o Memorial tem realizado diversas atividades de reflexão sobre os temas da justiça, cidadania, direitos humanos e do traba-lho, história e memória do trabalho e dos trabalhadores. Já são dezenas de exposições, seminários e conferências com o grande objetivo de discutir a ne-cessidade da preservação dos acervos produzidos pela Justiça do Trabalho, buscando demonstrar a relevância e a pertinência do investimento na preser-vação desses autos judiciais, tanto para a garantia de direitos individuais dos cidadãos como também para permitir a compreensão dos fenômenos coletivos ali registrados.

Para compreender esse trabalho, faremos a seguir um relato sucinto de algumas dessas experiências, discorrendo sobre os eventos que produziram maior alcance junto aos servidores e ao público externo. Essas atividades tive-ram sempre, como pressuposto, ampliar o entendimento de todos sobre a grandeza dessa documentação que registra em detalhes significativos episódios relacionados às disputas entre os atores sociais, em torno do tema do trabalho e da atividade econômica.

Uma das primeiras atividades realizadas pelo Memorial teve como pro-posta analisar o processo de constituição da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Realizada em novembro de 2004 mediante um seminário e uma exposição, essa atividade retratou a configuração inicial da Justiça do Trabalho em painéis com réplicas de processos da década de 1940, das cidades de Rio Grande e São Jerônimo. As imagens foram apresentadas em vídeo enquanto eram expostos objetos elaborados com a técnica de origami, com textos de autoria de magistrados e advogados, além de frases extraídas dos diários de Getúlio Vargas e da peça Lisístrata.

Também nesse período houve intensa pesquisa nos acervos já recolhidos ao Memorial da Justiça do Trabalho, e que resultou na Tese de Doutoramento da Desembargadora Magda Biavaschi, sobre os primeiros anos do Judiciário Trabalhista. Nesse texto, elaborado com base nas fontes documentais do acer-vo, foi possível relatar o contexto social, político, econômico e cultural em que essa Justiça foi criada e institucionalizada.

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relevância em função do acervo de processos recolhidos na região – uma das primeiras ações do Memorial nessa área –, os quais relatavam as disputas ju-diciais causadas pelas péssimas condições dos mineiros, obrigados a condições perversas de trabalho. Serve como exemplo dessa relevância o fato de que a Vara do Trabalho de São Jerônimo foi a segunda a ser criada no estado, em 25 de junho de 1944, sendo precedida somente pelas Varas da Capital.

Em tema recente, discutiu-se a trajetória do Judiciário Trabalhista, que comemorou há pouco 70 anos de existência. Tendo sido instituída por Getúlio Vargas no dia 1º de maio de 1942, a Justiça do Trabalho teve uma trajetória significativa ao longo desse período, como se pode avaliar pelos estudos reali-zados a seu respeito, e da sua importância capital. O fato de que o Brasil é um dos poucos países do mundo onde existe uma Justiça com essa especialidade – e já se cogitou sua extinção, tendo sido a pressão dos trabalhadores um dos fatores a garantir sua continuidade – torna esses acervos ainda mais relevantes.

Outro tema sempre em pauta no Memorial foram os procedimentos re-lativos ao acervo documental. Em função disso, procurou-se localizar, junto às unidades judiciais distribuídas pelo estado, processos que poderiam ser re-colhidos, possibilitando constituir um conjunto de registros da Justiça do Tra-balho no Rio Grande do Sul. Esses processos, em grande medida, encontra-vam-se armazenados em condições inadequadas, correndo o risco de perda por conta da degradação do suporte. Houve também, de modo constante, preocupação com os preceitos legais em torno dessa documentação, pois sem-pre se entendeu a importância de tais registros para a história do país.

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As demais parcerias já efetivadas – em Pelotas e Passo Fundo – preveem, além da transferência de processos para espaços dentro das instituições, uma proposta de ação entre estas e o Memorial da Justiça do Trabalho, no sentido de estruturar programas de pesquisa nos acervos. A ideia é projetar, nesses conjuntos documentais, preocupações delineadas em questionamentos gerais, cujas especificidades regionais deverão ser analisadas pelos grupos de trabalho em cada local. Com isso, além de permitir o acesso facilitado a pesquisadores que se proponham a estudar o acervo da Justiça do Trabalho, há uma linha de ação que preconiza a integralidade entre esses diversos espaços de pesquisa, mantendo a coerência interna do trabalho com as fontes.

Já vêm sendo realizadas diversas pesquisas pelas instituições parceiras. Em Pelotas, cidade histórica próxima ao litoral gaúcho, o acervo da Justiça do Trabalho local já permitiu analisar questões relativas aos ofícios em extinção, como sapateiro, alfaiate etc. Na cidade de Passo Fundo, na região noroeste do estado, os temas de pesquisa que têm sido produzidos giram em torno das questões relacionadas ao campo – vocação socioeconômica majoritária daquele espaço geográfico –, tematizando aspectos jurídicos e históricos do vínculo empregatício, no período de 1998 a 2008, e das demandas trabalhistas naquela região do estado.

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Considerações finais

O mundo do trabalho está sendo completamente modificado pelas novas tecnologias. Em paralelo, continuamos a observar a continuidade de práticas deletérias de submissão do homem, como o trabalho infantil, o mal-remune-rado, o precário e o escravo. Tais mazelas foram e, ao que parece, continuam sendo uma constante no mundo atual do trabalho, em que pese ser essa uma condição absoluta para a manutenção da sobrevivência numa prática respon-sável e respeitosa.

Essas importantes questões estão retratadas nos acervos do Judiciário Tra-balhista. É possível descobrir, nesses registros, que os problemas ali descritos revelam aspectos de profunda significância a respeito do perfil da humanidade, mediante as demandas analisadas pelos magistrados trabalhistas ao longo do século XX. São reflexos de um modelo de organização do trabalho, mas tam-bém de uma configuração social. Esses documentos permitem perceber ques-tões que, de outro modo, teriam sido perdidas nas brumas do tempo.

Todos esses registros, portanto, devem ser disponibilizados para acesso público, pois são propriedade de todos. Os acervos judiciais, como de resto todo documento produzido pelo Estado, são patrimônio cultural da sociedade, pois é dela que se originam. Ao longo de sua existência, o Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul tem se esforçado para tornar essa ideia uma realidade por meio dos vários eventos já produzidos, como exposições, pales-tras e trabalhos científicos.

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NOTAS

1 CAIXETA, Maria Cristina Diniz; DINIZ, Ana Maria Matta Machado; CUNHA, Maria

Aparecida Carvalhais; CAMPANTE, Rubens Goyatá (Org.). ENCONTRO NACIONAL DA MEMÓRIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO, 4. Cidadania: o trabalho da memória. Belo Horizonte (MG), 2009. Anais... São Paulo: LTr, 2010. p.15.

2 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Projeto História,

São Paulo, v.10, p.7-28, 1993.

3 LARA, S. apud SCHMIDT, Benito (Org.). Trabalho, justiça e direitos no Brasil: pesquisa

histórica e preservação das fontes. São Leopoldo (RS): Oikos, 2010. p.106.

4 Apenas para conhecimento, dentro das 123 produções localizadas com o termo

“Docu-mento Judicial”, 68 delas foram produzidas por pesquisadores da área do Direito; outras 10, na área de História, sendo as demais distribuídas por áreas tão díspares como a Bioéti-ca, Contábeis, Engenharia de Transportes, Farmácia e Serviço Social. Fonte: Banco de Te-ses Capes. Acesso em 1 ago. 2012.

5 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de

Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.22-23.

6 GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de

Apelação do Rio de Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Sociais, 2008. p.10.

7 BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de

Janeiro: Ed. FGV, 2007.

Referências

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