Leandro Antunes
Orientador: Prof. Dr. Daniel Smania Brandão
Dissertação apresentada ao Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação - ICMC-USP, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências - Matemática . VERSÃO REVISADA
USP – São Carlos
Março de 2012
Data de Depósito:
A636c
Antunes, Leandro
Comportamento genérico de difeomorfismos do círculo / Leandro Antunes; orientador Daniel Smania Brandão. -- São Carlos, 2012.
190 p.
Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Matemática) -- Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, Universidade de São Paulo, 2012.
1. Difeomorfismos do círculo. 2. Número de rotação. 3. Medida de Lebesgue. 4. Frações contínuas. 5.
À minha família, com a qual sempre pude contar, principalmente nos momentos mais difí-ceis;
Aos meus amigos, que mesmo em outras cidades estiveram ao meu lado, apoiando e incen-tivando;
Aos meus colegas de mestrado e novos amigos, pelas várias horas de estudo juntos e tam-bém pelas festas, filmes, pizzas e almoços, que tornaram muito melhores esses dois anos. Em especial ao Rodrigo, que me acompanha desde a graduação e é o grande culpado de eu ter vindo para São Carlos;
Ao professor Daniel Smania, pela orientação, ensinamentos, dúvidas tiradas e toda ajuda durante esses dois anos;
Aos meus professores, com os quais muito aprendi desde a pré-escola até a pós-graduação. Agradeço de forma especial à professora Márcia Federson, sem a qual talvez sequer tivesse iniciado o curso;
Aos professores Ali Tahzibi e Benito Pires, pelas valiosas correções e sugestões para este trabalho;
À coordenação da OBMEP e à CAPES pelo apoio financeiro;
Nós estudaremos o comportamento de difeomorfismos do círculo, tanto do ponto de vista com-binatório quanto do ponto de vista topológico e da teoria da medida, seguindo os trabalhos de Michael Herman. A cada homeomorfismo do círculo podemos associar um número real positivo, denominado número de rotação. Mostraremos que existe um conjunto de números irracionais de medida de Lebesgue total na reta tal que, se f é um difeomorfismo do círculo de classeCr que preserva a orientação, com rmaior ou igual a 3 e com número de rotação nesse conjunto, então f é pelo menosCr−2-conjugada a uma translação irracional. Além disso, mos-traremos que dado um caminho ft de classeC1definido em um intervalo[a,b]no conjunto dos difeomorfismos do círculo de classeCr que preservam a orientação, com rmaior ou igual a 3, o conjunto dos parâmetros em que ft éCr−2-conjugada a uma translação irracional tem medida de Lebesgue positiva, desde que os números de rotação em fae fbsejam distintos.
We will study the generic behavior of circle diffeomorphisms, in the combinatorial, topolo-gical and measure-theoretical sense, following the work of Michael Herman. To each order preserving homeomorphism of the circle we can associate a positive real number, called rota-tion number, which is invariant under conjugacy. We will show that there is a set of irrarota-tional numbers with full Lebesgue measure onRsuch that, if f is a circle diffeomorphism of classCr, withrgreater or equal 3 and with rotation number in that set, then f is at leastCr−2-conjugated to an irrational translation. Moreover, we will show that if ft is aC1-path defined on a inter-val[a,b]over the set of the circle diffeomorphisms orientation preserving, with r≥3, then the set of parameters where ft isCr−2-conjugated to a irrational translation has positive Lebesgue measure, since the rotation numbers of faand fbare distinct.
S1 Círculo, p. 23
˜
f Levantamento da função f, p. 24 deg(f) Grau topológico de f, p. 25 Id Função identidade, p. 25
Difr+(S1) Conjunto dos difeomorfismos do círculo de classeCr que preservam a orientação, p. 26
Difr−(S1) Conjunto dos difeomorfismos do círculo de classeCrque invertem a orientação, p. 26
Of(x) Órbita dexpela função f, p. 27
Rα Rotação ou translação pelo ânguloα, p. 27
S(J) Família de funçõesS(J), p. 30
R(f) Aplicação de primeiro retorno de f, p. 32
⌊x⌋ Função máximo inteiro, p. 43
ρ(f) Número de rotação de f, p. 51 Dist(f,T) Distorção de f emT, p. 56 Var(f,[a,b]) Variação de f em[a,b], p. 56 Dif1+vl
+ (S1) Conjunto dos difeomorfismos deS1de classeC1que preservam a orientação, com
derivada de variação limitada, p. 57
Cω Classe das funções reais analíticas, p. 59
Cr(S1) Conjunto das funções reais de classeCr 1-periódicas, p. 60
Dr(S1) Conjunto dos levantamentos das funções de Difr
+(S1), p. 60
f(x) =O(g(x)) A função f(x)é da ordem deg(x), p. 100
Introdução p. 19
1 Difeomorfismos do Círculo p. 23
1.1 Aplicações no Círculo . . . p. 23
1.1.1 Levantamentos e Grau Topológico . . . p. 24
1.1.2 Rotações . . . p. 27
1.2 A Família de FunçõesS(J) . . . p. 28 1.2.1 Aplicações de Primeiro Retorno . . . p. 31
1.2.2 Dinâmica Simbólica emS(J). . . p. 38 1.3 Rotações . . . p. 42
1.4 Número de Rotação e Frações Contínuas . . . p. 50
1.5 Conjugações Topológicas . . . p. 54
2 Critérios deCr-conjugação p. 59
2.1 Funções de ClasseCr . . . p. 59 2.1.1 Topologias emCr(S1)eDr(S1) . . . p. 60 2.2 Número de Rotação . . . p. 61
2.2.1 Propriedades do Número de Rotação . . . p. 64
2.7.1 O EspaçoC (S ) . . . p. 78 2.7.2 Conjugação de ClasseCw . . . p. 79 2.7.3 Conjugação de ClasseCr+w . . . p. 82 2.8 Conjugação de ClasseCr . . . p. 84
3 Medida e Frações Contínuas p. 87
3.1 Frações Contínuas e Aproximação Diofantina . . . p. 87
3.2 Medida de Gauss . . . p. 93
3.3 Caracterizações do ConjuntoA . . . p. 100
3.4 Números de Tipo de Roth . . . p. 105
4 Conjugação Local p. 109
4.1 Ordem dos Pontos emS1 . . . p. 109
4.2 Desigualdades de Denjoy . . . p. 112
4.3 Ergodicidade de f ∈Dif2+(S1) . . . p. 116 4.3.1 O Teorema Ergódico de Hurewicz . . . p. 116
4.3.2 Ergodicidade com Respeito à Medida de Lebesgue . . . p. 119
4.4 Convergência das Funções fn . . . p. 124 4.4.1 Convergência nas TopologiasC0eC1 . . . p. 124 4.4.2 Convergência na TopologiaC2 . . . p. 126 4.4.3 Convergência na TopologiaC2+ε′
. . . p. 130
4.5 Conjugação Local . . . p. 132
5 O Teorema Fundamental das Conjugações p. 135
5.1 Critério deC1+ε-conjugação . . . p. 136 5.2 Algumas Estimativas . . . p. 142
5.2.1 Majoração de|fqn−Id−p
5.2.3 Majoração de|D fn|0 . . . p. 148 5.3 O Teorema Fundamental das Conjugações . . . p. 156
6 O Teorema dos Caminhos p. 157
6.1 Topologia dos Conjuntos de Difeomorfismos de Número de Rotação Constantep. 157
6.1.1 Caso Racional . . . p. 158
6.1.2 Caso Irracional . . . p. 160
6.1.3 A PropriedadeA0e os ConjuntosFr . . . p. 162 6.2 O Teorema dos Caminhos . . . p. 164
Considerações Finais p. 171
Referências Bibliográficas p. 173
Apêndice A -- Topologia p. 177
A.1 Espaços Topológicos . . . p. 177
A.2 Espaços Métricos . . . p. 178
A.3 Topologia Quociente . . . p. 180
Apêndice B -- Medida e Integração p. 181
B.1 Álgebras eσ-álgebras . . . p. 181
B.2 Medida . . . p. 182
B.2.1 Medida de Lebesgue . . . p. 183
B.3 Classes Monótonas . . . p. 183
B.4 Integração . . . p. 184
B.5 EspaçosLp . . . p. 186
C.2 Ergodicidade . . . p. 188
Introdução
Nosso principal objetivo neste trabalho é estudar a relação entre a classe de diferenciabili-dade dos difeomorfismos do círculo e a classe de diferenciabilidiferenciabili-dade da conjugação topológica entre o difeomorfismo e uma rotação. Para esse estudo, associaremos a cada homeomorfismo do círculo um invariante topológico definido por Jules Henri Poincaré em 1885 (POINCARÉ, 1885): onúmero de rotação. Uma das várias formas pela qual podemos definir esse número é a seguinte: se f :S1→S1é um homeomorfismo do círculo que preserva a orientação, definimos
τ(f˜) = lim n→∞
˜
fn(x)−x
n ,
onde ˜f:R→Ré um levantamento de f. Esse limite existe, independe da escolha dexe, módulo 1, independe também da escolha do levantamento. Assim, definimos o número de rotaçãoρ(f) como
ρ(f) =τ(f˜) mod 1.
Note que se f é uma rotação da formaRα(x) =x+α mod 1, comα ∈[0,1), então um levan-tamento deRα emRéTα(x) =x+α e, portanto,
ρ(Rα) = lim n→∞
x+nα−x
n mod 1=α,
isto é, o número de rotação deRα é justamente o ângulo da rotação.
Poincaré mostrou que seρ(f) =α é irracional, então f é semiconjugada à rotaçãoRα, isto é, existe uma funçãohcontínua, sobrejetora e monótona (não necessariamente injetora) tal que
Rα◦h=h◦f.
Em 1932, Arnaud Denjoy (DENJOY, 1932) mostrou que se f é um difeomorfismo de classe
C1e sua derivada é de variação limitada (por exemplo, se f é um difeomorfismo de classeC2), entãohé um homeomorfismo. Dizemos quehé uma conjugação topológica entre f eRα.
Vladimir Igorevich Arnol’d mostrou em 1961 (ARNOL′D, 1961) que se f é real analítica,
com f próxima aRρ(f)na topologiaCω (f
satisfizesse alguma condição, sendo que o conjunto dos números reais que satisfizessem essa condição teria medida de Lebesgue total.
Essa conjectura foi provada por Michael Robert Herman em sua tese de doutorado, em 1976, republicada em 1979 (HERMAN, 1979). Herman provou que, se f é um difeomorfismo do círculo de classeCr, com 3≤r≤ω eρ(f)∈A, então f éCr−1−β-conjugado aRρ(f), para todoβ >0. O conjuntoA ⊂Rtem medida de Lebesgue total e é definido como
A =
x=a0+ 1
a1+ 1
a2+ 1 . ..
∈R\Q; lim
b→∞lim supn→∞
n
∑
i=1, ai≥blog(ai+1)
n
∑
i=1log(ai+1) =0 ,
com ai ∈Z para todo i e a1,a2,···> 0. Esse é um dos dois principais Teoremas que nos propomos a demonstrar nesta Dissertação, que faremos no Capítulo 5 (Teorema 5.22).
O outro Teorema que queremos demonstrar consiste em mostrar que dado um caminho
ft de classeC1 definido em um intervalo [a,b] no conjunto dos difeomorfismos do círculo de classe Cr que preservam a orientação, com r maior ou igual a 3, se ρ(fa)6=ρ(fb) então o conjunto dos parâmetros em que ft éCr−2-conjugada a uma translação irracional tem medida de Lebesgue positiva. Esse Teorema também foi provado por Herman (HERMAN, 1977), e é uma consequência dos resultados demonstrados em sua tese. Provaremos esse Teorema no Capítulo 6 (Teorema 6.17).
A Dissertação está estruturada da seguinte forma: o Capítulo 1 é introdutório, nele defi-nimos o número de rotação para homeomorfismos do círculo que preservam a orientação via frações contínuas, seguindo basicamente (MELO; STRIEN, 1993) e (MELO, 1989). Optamos por essa abordagem porque as frações contínuas terão um papel fundamental nos próximos re-sultados. Nesse Capítulo também provaremos os teoremas de Poincaré (Teorema 1.25) e de Denjoy (Teorema 1.33), que citamos antes.
A partir do Capítulo 2 seguiremos os trabalhos de Herman, passando a estudar não di-retamente os difeomorfismos do círculo, mas sim seus levantamentos em R. No Capítulo 2 estudaremos propriedades da função
f 7→ρ(f)
a uma rotação se, e somente se,
Hr(f) =sup j∈Z|
D fj|Cr−1 <∞.
O objetivo do Capítulo 3 é provar que o conjuntoA tem medida de Lebesgue total. Além disso, daremos caracterizações alternativas paraA e mostraremos que seα ∈A, entãoα é de tipo de Roth.
No Capítulo 4 provaremos um Teorema de conjugação local, que será essencial para poder-mos provar o Teorema Fundamental das Conjugações (Teorema 5.22). Provarepoder-mos antes a Desi-gualdade de Denjoy-Koksma e a DesiDesi-gualdade de Denjoy, e mostraremos que se f ∈Dif2+(S1), comρ(f)∈R\Q, então f é ergódica com respeito à medida de Lebesgue. Também estudare-mos a ordem dos iterados de um ponto por uma rotação no círculo.
O Capítulo 5 é inteiramente dedicado a provar o Teorema Fundamental das Conjugações, usando os Teoremas provados nos Capítulos anteriores. Por fim, no Capítulo 6 faremos um es-tudo das propriedades topológicas dos conjuntos de número de rotação constante e provaremos o Teorema dos Caminhos (Teorema 6.17).
1
Difeomorfismos do Círculo
Neste Capítulo estudaremos o comportamento de difeomorfismos do círculo principalmente do ponto de vista combinatório, visando definir o principal objeto de estudo deste trabalho, que é o número de rotação. Em geral, o número de rotação de um homeomorfismo que preserva a orientação f :S1→S1é definido como o número
ρ(f) =π
lim n→∞
˜
fn(x)−x n
,
onde ˜f : R→ R é um levantamento de f em R, x∈S1 e π(x) = x mod 1. Esse número independe do levantamento e do ponto escolhidos. Nós, porém, definiremos esse número de uma forma diferente da usual, por meio de frações contínuas, seguindo a abordagem de (MELO; STRIEN, 1993) e (MELO, 1989). Optamos por essa abordagem porque, como veremos, as frações contínuas e suas propriedades terão um papel fundamental neste trabalho.
Para definirmos o número de rotação via frações contínuas, precisaremos construir uma dinâmica simbólica para os homeomorfismos do círculo e provar uma série de propriedades aritméticas. Apesar do esforço inicial desprendido para essa construção, conseguiremos pro-var com certa facilidade os dois principais teoremas deste Capítulo: o Teorema de Poincaré (Teorema 1.25), e o Teorema de Denjoy (Teorema 1.33). O primeiro nos mostrará que, se
ρ(f) =α ∈R\Q, então existe uma semiconjugação entre f e a rotação de ânguloα, Rα. O segundo melhora esse resultado para mostrar que, que sob certas condições (por exemplo, se
f for de classeC2) tal semiconjugação é na verdade uma conjugação topológica, ou seja, um homeomorfismo.
1.1 Aplicações no Círculo
Usualmente definimos o círculoS1como o subconjunto deR2
ou como o subconjunto deC
S1={eiθ;θ ∈R}.
Porém, para nós, a forma mais conveniente de definirmos o círculo é como o espaço quociente
S1=R/Z,
que será a definição que adotaremos de agora em diante.
Na representação de S1 como o espaço quociente R/Z, intuitivamente estamos "enro-lando"a reta infinitas vezes em torno do círculo, de forma que os números que estão na mesma classe de equivalência mod 1 (ou seja, diferem por um inteiro) estão sobrepostos. Vamos denotar porπa projeção canônica
π:R → R/Z
x 7→ x mod 1,
ondeR/Zestá munido da topologia quociente.
EmS1vamos considerar a distância entre dois pontos como a induzida pela distância usual da reta, ou seja, a distância entre dois pontos será o comprimento do menor intervalo (arco) determinado por eles. Por exemplo,d(0;34) = 14,d(12,1) = 12,d(0; 0,8) =0,2, etc.
1.1.1 Levantamentos e Grau Topológico
As próximas considerações sobre levantamentos e sobre o grau de aplicações do círculo foram adaptadas de (FRANÇA, 2008).
Se f :S1→S1é uma aplicação contínua, a função ˜f :R→Ré dita umlevantamentode f
emRse ˜f é contínua eπ◦f˜= f◦π.
R
π
˜ f
/
/R π
S1 f //S1
Pelo mesmo argumento, podemos provar que se f1:R→Ré um levantamento da função contínua f :S1→S1, então f1(x+1) = f1(x) +n1, para algum inteiron1, para todox∈R. Além disso, se f2:R→Ré outro levantamento de f, e f2(x+1) = f2(x) +n2, para algum inteiron2, então, como f1−f2é constante,
f1(x+1)−f2(x+1) = f1(x) +n1−(f2(x) +n2) = f1(x)−f2(x).
Logo, n1=n2=n. Assim, o número nindepende do levantamento escolhido de f. Dizemos quené ograu topológico de f, que denotamos por deg(f).
Se f,g:S1→S1 são contínuas, com levantamentos ˜f e ˜g, respectivamente, note que ˜f◦g˜ é um levantamento de f◦g, pois
π◦ f˜◦g˜= f◦π◦g˜= f◦g◦π. Além disso,
˜
f◦g˜(x+1) = f˜(g˜(x) +deg(g)) = f˜◦g˜(x) +deg(f)·deg(g). Logo,
deg(f◦g) =deg(f)·deg(g).
Usando as observações anteriores, provaremos a seguinte Proposição:
Proposição 1.1. Se f :S1→S1é um homeomorfismo, entãodeg(f) =±1.
Demonstração. Seja Id(x) =xa função identidade. Claramente, um levantamento de Id :S1→ S1é Id :R→R. Além disso, como
Id(x+1) =x+1=Id(x) +1,
então deg(Id) =1. Como f é invertível,
deg(f◦f−1) =deg(f)
·deg(f−1) =deg(Id) =1.
Como deg(f)e deg(f−1)são inteiros, necessariamente deg(f) =deg(f−1) =±1.
Diremos que f :S1→S1 é um difeomorfismo de classe Ck se seus levantamentos forem difeomorfismos de classeCk. Em quase todo este Capítulo trabalharemos apenas com homeo-morfismos, voltando aos difeomorfismos apenas na Seção 1.5.
não-crescente (deg(f) = −1), dizemos que f inverte a orientação. Definimos os conjuntos de funções Difr+(S1)e Difr−(S1)como
Difr+(S1) ={f :S1→S1;f é um difeomorfismo que preserva a orientação, de classeCr}
e
Difr−(S1) ={f :S1→S1;f é um difeomorfismo que inverte a orientação, de classeCr}.
Os conjuntos dos homeomorfismos que preservam ou invertem a orientação serão denotados por Dif0+(S1)e Dif0−(S1), respectivamente. Graficamente, se f preserva a orientação e se par-tirmos no sentido anti-horário do pontoxe atingimos primeiro o pontoye depois o pontozdo círculo, então partindo no sentido anti-horário do ponto f(x)atingimos primeiro o ponto f(y) e depois o ponto f(z). Se f inverte a orientação, atingimos primeiro o ponto f(z)e depois o ponto f(y).
Figura 1.1: Exemplo de homeomorfismo que preserva a orientação.
A próxima Proposição nos dará uma importante caracterização dos levantamentos dos ho-meomorfismos do círculo que preservam a orientação.
Proposição 1.2. Sedeg(f) =1, então todo levantamento f˜:R→Rde f pode ser escrito como
˜
f =Id+ϕ, ondeϕé periódica de período1.
Demonstração. Sejaϕ(x) = f˜(x)−x. Então,
1.1.2 Rotações
Definição 1.3. Seja f :X →X uma função, onde X é um espaço métrico. Denotaremos por
fn(x) a aplicação f◦ f◦ ··· ◦f
| {z }
nvezes
(x). Chamamos o conjunto O+f (x) ={fn(x),n∈Z,n≥0} de
semi-órbita positivadexpela função f, onde f0(x) =x. Se f for inversível, também podemos definir a semi-órbita negativade x: O−f (x) ={f−n(x),n∈Z,n≤0}. De uma maneira geral, aórbita dexé o conjuntoOf(x) ={fn(x),n∈Z}. O conjunto dos pontos de acumulação de O+f (x)eO−f (x)são denominadosconjuntoω-limiteeconjuntoα-limite, respectivamente.
Os homeomorfismos mais simples do círculo são as rotações. Definimos a rotação no círculo por um ânguloα ∈Rcomo a aplicação
Rα :S1 → S1
x 7→ (x+α) mod 1.
Note que a rotação é uma isometria e, como um levantamento de Rα é a translaçãoTα(x) =
x+α, que é crescente, entãoRα preserva a orientação. Por abuso de linguagem, ao longo do texto chamaremos as translações de rotações e vamos denotá-las também porRα.
Se fn(x) =xe fi(x)=6 x, para todo 0<i<n, dizemos quexé umponto periódicode f, de períodon. Se f(x) =x, dizemos quexé umponto fixode f. SeRα possui um ponto periódico
xde períodon, como Rα é uma isometria todos seus pontos são periódicos de períodon. Em particular, seα é racional, digamosα =p/q, compeqinteiros eq>0, então fq(x) =x. Além disso, sepeqforem primos entre si, o período dexé justamenteq.
Para o caso em que α é irracional, a órbita de um ponto de S1 é muito diferente, como mostraremos na próxima Proposição.
Proposição 1.4. Seα é irracional, a órbita de Rα(x)é densa emS1, para todo x∈S1.
Demonstração. Seja x∈S1 eF =OR
α(x). Note que F é um conjunto invariante porRα, ou
seja, Rα(F) =F. Afirmamos que seu fecho ¯F também é invariante. De fato, sejamy∈F¯ e (yn)n∈N uma sequência em F tal que yn→y. Como Rα é um homeomorfismo (pois é uma isometria, cuja inversa éR−α), em particular é contínua. Assim,
Rα(y) =Rα(nlim
→∞yn) =nlim→∞Rα(yn).
ComoRα(yn)∈F, para todo n, segue que Rα(y)∈F¯. Portanto, Rα(F¯)⊂F¯. Mas note que
anterior, e teremos Rα(R−α(z)) =z. Logo ¯F é um conjunto invariante por Rα. Consequente-mente, seu complementarA=S1\F¯ também é invariante.
Suponha, por absurdo, que a órbita de Rα(x) não seja densa. Então o conjunto A é um aberto de S1 não vazio. Tome uma componente conexa (um arco) A0 de A, de comprimento
ε >0. Como A é invariante eRα é um homeomorfismo, Rnα(A0)também é uma componente conexa deA, para todon.
Afirmamos que os conjuntos Rnα(A0) são dois a dois disjuntos. De fato, suponha que
Rn
α(A0)∩Rmα(A0)6=∅, comm>n. Então necessariamenteRnα(A0) =Rmα(A0)(homeomorfismos levam componentes conexas em componentes conexas). Logo, como as rotações preservam a orientação, todos os pontos de Rnα(A0) são periódicos, de período m−n (ou um divisor de
m−n). Assim, tomandox∈Rnα(A0), existez∈Ztal que
x+ (m−n)α =x+z
e, portanto,
α = z
m−n∈Q,
o que contradiz a hipótese deα ser irracional. Portanto, os conjuntos Rnα(A0)são dois a dois disjuntos.
Por outro lado, comoRα é uma isometria eA0tem comprimentoε>0, então a medida de
Aé maior quenεpara todon∈N, o que é um absurdo.
1.2 A Família de Funções
S
(
J
)
Antes de continuarmos nosso estudo sobre homeomorfismos do círculo, vamos fazer algu-mas observações sobre aplicações contínuas em intervalos fechados.
Seja J = [a,b] um intervalo fechado e f :J →J contínua e injetora. Afirmamos que f possui um ponto fixo. Com efeito, se f(a) =a ou f(b) =b não há o que mostrar. Supondo então que f(a)>a e f(b)<b, pelo Teorema do Valor Intermediário (veja (LIMA, 2008), p. 234) a função f−Id se anula e, portanto, f possui um ponto fixo.
Se f é crescente, então fn(x) converge para um ponto fixo de f. De fato, se x< f(x), então{fn(x)}é uma sequência estritamente crescente, limitada superiormente. Logo, fn(x)→
y=sup{fn(x)}=limn→∞fn(x). Agora, pela continuidade de f, f(y) = f(limn→∞ fn(x)) =
limn→∞fn+1(x) =y. Portanto, yé um ponto fixo de f. Analogamente, se x> f(x), a
converge para um ponto fixo de f.
Figura 1.2: Convergência dos pontos do intervalo para um ponto fixo da função.
Suponha agora que f é decrescente. Então,
x<y =⇒ f(x)> f(y) =⇒ f2(x)< f2(y).
Logo, g= f2 é crescente. Pelo caso anterior, gn(x) converge para um ponto fixo e, portanto,
fn(x)converge para um ponto fixo ou para um ponto periódico de período 2 de f.
O estudo do comportamento de um homeomorfismo do círculo pode ser facilitado se con-seguirmos identificá-lo com uma função definida em intervalos, já que o comportamento dessas funções é muito simples, como acabamos de ver. Para fazer isso, vamos identificar cada home-omorfismo f :S1→S1 a uma funçãog:[0,1]→[0,1], da seguinte forma: escolha x∈S1, e denote porϕx:S1\ {x} →(0,1)a única isometria entre esses conjuntos tais que
lim
t→x+ϕx(t) =0 e tlim→x−ϕx(t) =1.
(Intuitivamente, estamos "cortando"o círculo no pontox e o "esticando"para transformá-lo no intervalo(0,1)). Defina a funçãog:[0,1]→[0,1]por
g(t) =
ϕf(x)◦f ◦ϕ−f(1x)(t), set∈(0,1)et=6 ϕf(x)(x); 0, set=ϕf(x)(x);
limt→0g(t), set=0; limt→1g(t), set=1.
Note que tivemos que definir g de uma forma diferente no pontoc=c(g) =ϕf(x)(x) em relação aos demais pontos de(0,1), poisϕf(x)◦f ◦ϕ−f(1x)◦ϕf(x)(x) =ϕf(x)(f(x))não está
de-finida. Porém os limites laterais nesse ponto existem: limt→c+g(t) = 0 e limt→c−g(t) =1.
contínua.
S1
ϕf(x)
f / /S1
ϕf(x)
(0,1) g //(0,1)
Claramente podemos generalizar essa construção para um intervalo fechadoJqualquer.
Definição 1.5. SejaJ= [a,b]um intervalo fechado. DefinimosS(J)como a família das funções
g:J→Jtais que:
1. g(a) =g(b);
2. existe um único ponto de descontinuidadec(g)deg, que pertence a(a,b); 3. gé monótona estritamente crescente em cada componente conexa deJ\ {c(g)}; 4. limx→c(g)+g(x) =ae limx→c(g)−g(x) =b(em particular,g(c(g)) =aoug(c(g)) =b).
Figura 1.3: Exemplo de uma funçãog∈S(J).
De maneira análoga a que fizemos para o intervalo[0,1], podemos associar cada função em
S(J)a um homeomorfismo do círculo. Em particular, as funções do subconjuntoI(J)⊂S(J)das funções lineares por pedaços com constante de inclinação igual a 1 correspondem as rotações do círculo. Analogamente, podemos construir o conjuntoS′(J), que é definido da mesma forma que
S(J), substituindo os dois últimos itens da definição por "gé monótona estritamente decrescente em cada componente conexa de J\ {c(g)}"e "limx→c(f)+ =be limx→c(f)−g(x) =a", ao qual
Proposição 1.6. Seja f :S1 →S1 um homeomorfismo do círculo que inverte a orientação. Então f possui exatamente2pontos fixos.
Demonstração. Sejax∈S1tal quex6=f(x). Sejamp,q∈S1contidos em componentes conexas distintas deS1\{x,f(x)}, e sejamA= (x,p)eB= (q,x)os arcos determinados por esses pontos. Tome Ae B maximais, de forma que A∩ f(A) =∅=B∩f(B). Note que, como f inverte a orientação,Ae f(A)estão contidos em uma componente conexa deS1\ {x,f(x)}, eB e f(B) estão contidos na outra componente. Pela maximalidade deAeB, f(p) = pe f(q) =q. Além disso, nenhum outro ponto pode ser fixo. Por exemplo, sey∈A, então f(y)∈ f(A)eAe f(A) são, a menos do pontop, disjuntos.
Figura 1.4: Pontos fixos de um homeomorfismo que inverte a orientação.
Se f :S1→S1é um homeomorfismo que possui um ponto periódico, podemos determinar a dinâmica de qualquer ponto deS1. Por exemplo, seyé um ponto periódico de f de período
k, então, yé um ponto fixo do homeomorfismo fk. Logo, a órbita de fk(x)converge para um ponto fixo de fk, para qualquerx, ou seja, para um ponto periódico de período kde f. Logo,
ω(x)é uma órbita de períodokde f.
Para estudarmos o caso em que f não possui pontos periódicos (portanto preserva a orien-tação) vamos precisar de outros conceitos, que desenvolveremos a seguir.
1.2.1 Aplicações de Primeiro Retorno
Definição 1.7. Seja f :J→Juma função eI⊂Jum intervalo fechado tal que para todox∈I
existe um inteiro positivontal que fn(x)∈I. Definimos aaplicação de primeiro retorno de f
aIcomo a função
onden(x) =min{n∈Z,n>0;fn(x)∈I}.
SejamJ= [a,b], f ∈S(J)ec=c(f), tal que f não possui pontos periódicos emJ. Note que o interior deJ\ {c}possui duas componentes conexasJ′eJ′′, tais que
f(J′)⊂J′′ e f(J′′)⊃J′.
Nosso próximo objetivo é determinar o menor inteiro positivontal que a intersecção fn(J′)∩J′
seja não vazia.
Suponha queJ′está à esquerda deJ′′, ou seja,J′= (a,c)eJ′′ = (c,b). Sejam
p0= f(a) = f(b) e pj= fj(p0),j>0.
Como f|J′ é contínua e injetora, a imagem deJ′= (a,c)por f também é um intervalo aberto, a
saber(p0,b). Se p0∈J′′, como f|J′′ também é contínua e injetora, a imagem de(p0,b)por f também é um intervalo, e f((p0,b)) = (p1,p0). Prosseguindo dessa forma, se p0,p1, . . . ,pk∈
J′′, então(pk
+1,pk),(pk,pk−1), . . . ,(p1,p0),(p0,b)são intervalos abertos adjacentes. Note que
fj(J′) = (pj
−1,pj−2), para j≥2. Afirmamos que existe um inteiroa(f)tal que fa(f)+1(J′)∩
J′6=∅.
Figura 1.5: Exemplo de f ∈S(J), coma(f) =4.
De fato, suponha que tal inteiro não exista. Então, os pontos pj formam uma sequência estritamente decrescente em J′′, que é limitada inferiormente por c. Logo essa sequência é
convergente. Seja p=limj→∞pj. Então
f(p) = f(lim
j→∞pj) = f(jlim→∞f
j(p
0)) = lim j→∞f
j+1(p
0) = lim
j→∞pj+1= p.
Seja J(f) o fecho de fa(f)+1(J′)∪J′, que é um intervalo fechado (na figura anterior, por exemplo,J(f)é o intervalo[a,p3]). Queremos determinar a aplicação de primeiro retornoR(f) de f aJ(f). Vamos analisar dois casos.
Secestá no fecho de fa(f)(J′), entãocé o ponto inicial desse intervalo, ou seja,c=p
a(f)−1. Consequentemente, fa(f)+1(J′) = f((c,p
a(f))) = (a,c) =J′. Logo, nesse caso a aplicação de
primeiro retorno de f aJ(f) = [a,c]é justamente fa(f)+1. Além disso,ae csão pontos fixos dessa aplicação.
Agora suponha que c não está no fecho de fa(f)(J′). Então c pertence ao interior
de fa(f)+1(J′) e J(f) = [a,pa
(f)−1]. Note que J(f)∩J′′ = (c,pa(f)−1] e f((c,pa(f)−1]) = (a,pa(f)]⊂J(f). Logo, a restrição de R(f) ao subconjunto J(f)∩J′′ é justamente a função
f. Além disso, veja que fa(f)+1([a,c)) = [p
a(f),pa(f)−1)⊂J(f) e que fi([a,c))∩J(f) =∅ parai<a(f) +1 . Logo, a restrição deR(f)ao subconjunto (c,pa(f)−1]é a função fa(f)+1.
Observe que a funçãoR(f):J(f)→J(f)possui as seguintes propriedades:
• R(f)(a) = fa(f)+1(a) = fa(f)(p0) =pa(f)= f(pa(f)−1) =R(f)(pa(f)−1);
• cé o único ponto de descontinuidade deR(f), ecpertence ao interior deJ(f);
• R(f)é monótona crescente em cada componente conexa deJ(f)\ {c};
• limx→c+R(f)(x) =ae limx→c−R(f)(x) =pa(f)−1.
Concluímos então queR(f)∈S(J(f)). Assim, podemos definir intervalos J(f)′ e J(f)′′ de
forma análoga a que fizemos comJ′eJ′′, e continuar esse processo indutivamente.
Lembre-se que supomos no início J′= (a,c)eJ′′ = (c,b). Se considerarmosJ′= (c,b)e
J′′= (a,c), fazendo as modificações devidas, obteríamos os mesmos resultados. Vamos
forma-lizar na proposição seguinte os resultados que obtivemos, pois os usaremos sistematicamente a seguir. Ressaltaremos as restrições das funções aJ′ ou a J′′, para facilitar adiante a obtenção
das propriedades dos das funçõesϕn.
Proposição 1.8. Sejam f ∈S(J) sem pontos fixos, c=c(f) e sejam J′ e J′′ as componentes
conexas de J\ {c}tais que f(J′)⊂J′′e f(J′′)⊃J′. Seja a(f)o menor inteiro positivo tal que
J′e fa(f)+1(J′)tem um ponto em comum. Seja J(f)o fecho de fa(f)+1(J′)∪J′. Então,
1. a(f)é o menor inteiro positivo tal que o fecho de J′∪f(J′)∪ ··· ∪fa(f)+1(J′)cobre J;
2. Se fa(f)(J′) contém c em seu fecho, então fa(f)+1(J′) =J′=J(f), e fa(f)+1(c) =c; a
aplicação de primeiro retornoR(f)de f a J(f)é igual a fa(f)+1, e possui pontos fixos
3. Caso contrário, J(f)contém estritamente J′,R(f)|J′=f|a(f)
J′′ ◦f|J′eR(f)|J(f)∩J′′=f|J′′.
Além disso, R(f) ∈S(J(f)), c(f) = c(R(f)), e R(f) leva o intervalo J′′∩J(f) em
J′=J′∩J(f).
Obtemos anteriormente o número a(f) como o menor número inteiro positivo tal que
fa(f)+1(J′)∩J′6=∅. Repetindo o raciocínio anterior, obteremos uma sequência de números (an)n∈Nde forma similar a feita paraa(f). Os númerosanserão os quocientes da fração contí-nua do número de rotação de f, que será definido na Seção 1.4.
Seja f ∈S(J). DefinaJ0=J,ϕ0:J0→J0,ϕ0= f ea1=∞, se f possui pontos fixos. Caso contrário, vamos considerar dois casos:
• SeJ′está à esquerda deJ′′: a1=1,J1=Jeϕ1= f;
• SeJ′está à direita deJ′′:a1=a(f) +1,J1=J(ϕ0) =J(f)eϕ1=R(ϕ0) =R(f).
Supondo queJ1,J2, . . . ,Jn−1eϕ1,ϕ2, . . . ,ϕn−1estão definidos e queϕn−1:Jn−1→Jn−1não tem pontos fixos, vamos definir indutivamente o intervaloJn, a aplicação de primeiro retorno
ϕnaJn, e o inteiroanda seguinte forma:
Jn=J(ϕn−1), ϕn=R(ϕn−1):Jn→Jn, an=a(ϕn−1).
Seϕn−1possui pontos fixos, definimosan=∞e interrompemos o processo. Veja que, seJ′está à direita deJ′′, e as funçõesϕi,i=1, . . . ,n, então
a1=a(f) +1, ϕ1=R(f),
a2=a(R(f)), ϕ2=R2(f),
a3=a(R2(f)), ϕ3=R3(f), ...
an=a(Rn−1(f)), ϕn=Rn(f),
e seJ′está à esquerda deJ′′,
a1=1, ϕ1= f,
a2=a(f), ϕ2=R(f),
a3=a(R(f)), ϕ3=R2(f), ...
Note que seJ⊃I1⊃I2er1:I1→I1é a aplicação de primeiro retorno de f aI1er2:I2→I2 é a aplicação de primeiro retorno der1aI2, entãor2também é a aplicação de primeiro retorno de f aI2. Assim, comoϕné a aplicação de primeiro retorno deϕn−1aJn, também é a aplicação de primeiro retorno deϕn−1a esse intervalo e, por indução, de f. Em particular, se f não possui pontos periódicos,ϕnnão possui pontos fixos, para todon, e o processo de obtenção deJn,ϕne
annunca termina.
Se J′ está à direita de J′′, ϕ1 =R(f),J1 =J(f) e, pela Proposição 1.8, ϕ1(J1∩J′′) = R(f)(J1∩J′′)⊂J′, ou seja, o interior da componente conexa esquerda deJ1\ {c}é levada na
componente direita. Agora, seJ′está à esquerda deJ′′,ϕ1= f,J1=J e, pela definição deJ′e
J′′,ϕ1(J′) = f(J′)⊂J′′. Assim, em qualquer caso o interior da componente conexa esquerda de
J1\ {c}é levada na componente direita porϕ1. Vamos denotar porJn′ o interior da componente esquerda deJn\ {c}, sen é ímpar, ou da componente direita, se n é par. O interior da outra componente será denotado porJ′′
n.
Observe que
J′
n=Jn′′−1∩Jn e Jn′′ =Jn′−1∩Jn=Jn′−1.
Aplicando repetidas vezes o terceiro item da Proposição 1.8, como a ordem deJ′
neJn′′é alterada a cada passo, concluímos que a funçãoϕn levaJn′ emJn′′, para todonem queϕn está definida, justificando nossa notação para o interior de cada componente conexa deJn\ {c}. Pela mesma Proposição,
ϕn|Jn′′ =R(ϕn−1)|J′ n−1=ϕ
a(ϕn−1)
n−1 |J′′
n−1◦ϕn−1|Jn′−1
e
ϕn|Jn′ =R(ϕn−1)|J′′
n−1∩Jn =ϕn−1|Jn′′−1.
Note que cada funçãoϕné um iterado da função f, mas definida de uma forma no intervalo
J′
n, e de outra no intervaloJn′′. A seguir daremos a forma explícita deϕncomo iterado de f.
Proposição 1.9. Sejam
q0=1, q1=a1 e qn+1=qn−1+an+1qn, para n≥1,
onde an=a(ϕn−1). Então,
ϕn|Jn′ = fqn−1 e ϕn|Jn′′ = fqn.
J′′
1 =J′. Assim,
ϕ1|J′
1 =R(f)|J′′∩J(f)= f|J′′= f = f
q0
e
ϕ1|J′′
1 =R(f)|J′= f|
a(f)
J′′ ◦ f|J′= fa(f)+1= fa1 = fq1.
SeJ′está à esquerda deJ′′, entãoa1=1,J1=Jeϕ1= f. Assim,
ϕ1|J′
1 = f = f
q0 e ϕ1|
J′′
1 = f = f
a1= fq1.
Logo, a fórmula é válida paran=1. Supondo que seja válida paran=k, vamos verificar que ela continua válida paran=k+1. Com efeito,
ϕk+1|J′′
k+1 = (ϕk|Jk′′)
a(ϕk)◦(ϕ
k|J′ k) = f
qka(ϕk)◦fqk−1 = fqkak+1+qk−1 = fqk+1,
e
ϕk+1|J′
k+1=ϕk|Jk′′= f
qk.
Mais tarde veremos que qn é o denominador da fração que é o n-ésimo convergente do número de rotação de f. Usando a Proposição 1.9, iremos dar a seguir a representação explícita deJn,Jn′ eJn′′, paran≥3.
Proposição 1.10. Para n≥3,
• Jn= [fqn(c),fqn−1(c)], Jn′ = (fqn(c),c), Jn′′= (c,fqn−1(c)), se n é ímpar;
• Jn= [fqn−1(c),fqn(c)], J′
n= (c,fqn(c)), Jn′′= (fqn−1(c),c), se n é par.
Demonstração. Provaremos apenas o casonímpar, já que o outro é similar. Comoϕn∈S(Jn), para determinarmos os extremos de Jn basta calcularmos os limites limites limx→c+ϕn(x) e
limx→c−ϕn(x), que coincidem com os extremos inferior e superior deJn, respectivamente, pela definição deS(Jn). Masϕn|Jn′ = fqn−1 eϕn|Jn′′= fqn e, comoJn′ está à esquerda deJn′′ (poisné
ímpar), então
lim
x→c+ϕn(x) =xlim→c+ f
qn(x) e lim
x→c−ϕn(x) =xlim→c− f
qn−1(x).
Agora, observe que fqn e fqn−1 são contínuas em c. De fato, se não fossem, como c é
o único ponto de descontinuidade de f, então fqn−1(c) = c e, consequentemente, o limite
extremos de Jn são distintos dos extremos de J. Logo, fqn é contínua em c. Pelo mesmo motivo, fqn−1 é contínua emc, de forma que podemos calcular os limites laterais
lim
x→c+ϕn(x) =xlim→c+ f
qn(x) = fqn(c) e lim
x→c−ϕn(x) =xlim→c− f
qn−1(x) = fqn−1(c).
Logo, Jn= [fqn(c),fqn−1(c)]. Concluímos a demonstração observando queJn′ está à esquerda deJ′′
n, já quené ímpar.
Com pequenas modificações as fórmulas da Proposição 1.10 também são válidas paran=1 en=2.
Proposição 1.11. A união dos conjuntos
qn−1[−1
i=0
fi(J′
n)e qn[−1
i=0
fi(J′′
n)é formadas por intervalos
dois a dois disjuntos e o fecho dessa união é igual ao intervalo J.
Demonstração. Inicialmente, note que, por construção, os intervalos J′
n+1, ϕn(Jn′),
ϕn2(J′
n), . . . ,ϕna(ϕn)(Jn′)são disjuntos, adjacentes, e seu fecho é justamenteJn′′, a menos dos pon-tos extremos.
Demonstraremos a Proposição por indução. Se J′está à esquerda deJ′′, então a1=q1=
1,J1=J,J1′ =J′ eJ1′′=J′′ e o resultado é imediato, já que a união do enunciado é justamente
J′∪J′′. Agora, se J′ está à direita de J′′, a1 =q1 =a(f) +1,J1 =J(f),J′
1= (fa(f)+1(c),c) e J′′
1 =J′. Assim, a união do enunciado é igual a J1′ ∪ a[(f)
i=0
fi(J′), e o resultado segue pela
observação anterior. Logo, a Proposição é válida paran=1. Suponha agora que o resultado seja válido para a união
qn−1[−1
i=0
fi(Jn′)∪ q[n−1
i=0
fi(Jn′′) (1.1)
Lembrando queJ′
n=Jn′′+1e
J′′
n ⊂Jn′+1∪ a([ϕn)
i=1
ϕni(J′
n) =Jn′+1∪ an+[1−1
i=0
fiqn+qn−1(J′
n)
eJ′′
n difere da união da direita apenas pelos pontos dos extremos dos intervalosϕni(Jn′), então o fecho de 1.1 coincide com o fecho de
qn−[1−1
i=0
fi(J′′
n+1)∪ q[n−1
i=0
fi J′
n+1∪ an+[1−1
j=0
fjqn+qn−1(J′
n)
!
Agora,
q[n−1
i=0
fi J′
n+1∪ an+[1−1
j=0
fjqn+qn−1(J′
n)
!
= q[n−1
i=0
fi(J′
n+1)∪ q[n−1
i=0
fi
an+[1−1
j=0
fjqn+qn−1(J′
n)
!
e
q[n−1
i=0
fi
an+[1−1
j=0
fjqn+qn−1(J′
n)
!
=
= q[n−1
i=0
fifqn−1(J′
n)∪fqn+qn−1(Jn′)∪f2qn+qn−1(Jn′)∪ ··· ∪f(an+1−1)qn+qn−1(Jn′)
= q[n−1
i=0
fi+qn−1(J′
n)∪ q[n−1
i=0
fi+qn+qn−1(J′
n)∪ ··· ∪ q[n−1
i=0
fi+(an+1−1)qn+qn−1(J′
n)
=
an+1qn[+qn−1−1
i=qn−1
fi(J′
n)
=
qn+[1−1
i=qn−1
fi(Jn′).
Logo, 1.2 pode ser reescrita como
qn−1[−1
i=0
fi(J′′
n+1)∪ q[n−1
i=0
fi(J′
n+1)∪ qn+[1−1
i=qn−1
fi(J′
n) = qn+[1−1
i=0
fi(J′′
n+1)∪ qn[−1
i=0
fi(J′
n+1),
o que conclui a demonstração.
1.2.2 Dinâmica Simbólica em
S
(
J
)
Nesta Seção associaremos a cada função f emS(J)uma sequência de símbolos que repre-sentará a posição de fn(c(f))em relação ac(f). Mostraremos que se f,g∈S(J)ea
i(f) =ai(g), para todo i, então as sequências desses símbolos associadas a f e ag são iguais (Proposição 1.14). Esse resultado será necessário para podemos exibir uma semiconjugação entre f e a rotaçãoRρ(f)na demonstração do Teorema de Poincaré (Teorema 1.25).
SejaΣ={E,c,D}N, ou seja, o conjunto das sequências de símbolos(x
é a sequência(if(x)) = (i0(x),i1(x), . . .), onde
ij(x) =
E, se fj(x)<c(f);
c, se fj(x) =c(f);
D, se fj(x)>c(f).
EmΣvamos considerar a seguinte ordem (lexicográfica): se (xn),(yn)∈Σ, então (xn)≺(yn) quando existe k ∈N tal que xj = yj, para j <k, e xk <yk, considerando que os símbolos
{E,c,D}estão ordenados da seguinte forma: E<c<D. Por exemplo,(E,E,D,c,D,E, . . .)≺ (E,E,D,D,E,D, . . .).
Lema 1.12. Sejam f ∈S(J)e x,y∈J. Então:
1. x<y =⇒ (if(x))4(if(y));
2. (if(x))≺(if(y)) =⇒ x<y;
3. (if(fj(x))) =σj((if(x))),∀j∈Z,j≥0, ondeσ((x0,x1,x2, . . .)) = (x1,x2, . . .).
Demonstração.
1. Suponha que (if(x)) 6= (if(y)). Então existe k ∈ N tal que ij(x) = ij(y), para j = 0,1, . . . ,k−1 eik(x)6=ik(y). Em particular, fj(x)e fj(y) estão na mesma componente conexa de J\ {c(f)}, para todo j=0,1, . . . ,k−1. Como f é monótona crescente nessa componente, fk também é monótona crescente. Logo, fk(x)< fk(y) =⇒ ik(x)<ik(y) e, portanto,(if(x))≺(if(y)).
2. Como(if(x))≺(if(y)), existek∈Ntal queij(x) =ij(y), para j=0,1, . . . ,k−1, eik(x)<
ik(y). Logo, fk(x)<fk(y)e fk−1(x)e fk−1(y)estão na mesma componente conexa deJ\
{c(f)}. Como f é monótona crescente nessa componente, segue que fk−1(x)< fk−1(y). Agora, como fk−1 também é monótona crescente nessa componente, concluímos que
x<y.
3. Inicialmente note queik(fj(x)) =ik+j(x). Assim,
(if(fj(x))) = (i0(fj(x)),i1(fj(x)),i2(fj(x)), . . .) = (ij(x),ij+1(x),ij+2(x), . . .)
SejamJ= [a,b], f ∈S(J)ec=c(f). Defina as sequênciasK+(f)eK−(f)∈Σpor
K+(f) = (D,E)
·(if(f2(c))) e
K−(f) = (E,D)·(if(f2(c))),
onde(y1,y2, . . . ,ym)·(xn)denota a sequência(y1,y2, . . . ,ym,x0,x1,x2, . . .).
Vamos denotar(x0,x1,x2, . . . ,xm−1)por(xn)m. Defina também(xn)1m= (xn)me, parak≥1, (xn)km = (xn)m·(xn)km−1. Por exemplo, se (xn) = (D,c,c,E,D, . . .), então (xn)3 = (D,c,c) e (xn)23= (D,c,c,D,c,c).
Lema 1.13. Seja f ∈S(J)sem pontos periódicos. Então, para n≥1,
K+(f)
q2n+2 =K+(f)q2n·(K+(f)q2n+1)a2n+2
e
K+(f)
q2n+1=K+(f)q2n−1·(K−(f)q2n)a2n+1.
Demonstração. Para a primeira igualdade, basta provar que
if(fq2n+iq2n+1(c))q2n+1=K+(f)q2n+1,
para todoi=0, . . . ,a2n+2−1. Pela Proposição 1.10,J2′n+1= (fq2n+1(c),c)eJ′′
2n+1= (c,fq2n(c)) e pela Proposição 1.11 a união
q2[n−1
i=0
fi((fq2n+1(c),c))
!
∪
q2n[+1−1
i=0
fi((c,fq2n(c)))
!
é densa em J e formada por intervalos disjuntos dois a dois. Em particular, fi((c,fq2n(c)])∩
(fq2n+1(c),fq2n(c)) =∅, para todo i ∈ {1,2, . . . ,q2n
+1−1}. Como fq2n(c)>c (Proposição 1.10), segue que (if(x))q2n+1 =K+(f)q2n+1,∀x ∈(c,fq2n(c)]. Agora, como ϕ2in+1(J2′n+1)⊂
J′′
2n+1,∀i ∈ {1, . . . ,a2n+2},ϕ2n+1|J′
2n+1 = f
q2n e ϕ2n
+1|J′′
2n+1 = f
q2n+1, então fq2n+iq2n+1(c) ∈
(c,fq2n(c)],∀i∈ {0, . . . ,a
2n+2−1}, de onde segue a primeira igualdade. A segunda igualdade é demonstrada de maneira análoga.
casos. Primeiro, seJ′está à esquerda deJ′′, entãoa1=1,a2=a(f)e, portanto,q0=1,q1=1
eq2=a(f) +1. Assim,K+(f)q0 =K+(f)q1 =De
K+(f)
q2 = (D,E)·Dq2−2=K+(f)q0·(K+(f)q1)a2,
a menos do segundo símbolo.
Agora suponha queJ′está à direita deJ′′. Nesse caso,a1=a(f) +1 ea2=a(R(f)). Logo,
K+
q1(f) = (D,E)·E
a1−2=D·Eq1−1.
Como K+
q0(f) = D,K
+
q1(f) =D·Eq1−
1 e K+
q2(f) = (D,E)·(if(f
2(c)))
q2−2, então as
expres-sões coincidem até o termoq1, a menos do segundo símbolo. Supondo que J = [a,b], então
J1= [fq1(c),b],J1′ = (fq1(c),c) e J1′′ = (c,b). Pela Proposição 1.9, ϕ1|J′
1 = f e ϕ1|J1′′ = f
q1.
Além disso, ϕi(J′
1) ⊂ J1′′,∀i ∈ {1, . . . ,a2}. Logo, fiq1+1(c) ∈ J1′′,∀i ∈ {0, . . . ,a2}. Como
if(f2(c))q1−1=if(f2(x))q1−1, para todox∈[c,b), segue queif(fq0+iq1(c))q1=K+(f)q1,para
todoi∈ {1, . . . ,a2−1}. Logo, também neste caso,
K+(f)
q2 =K+(f)q0·(K+(f)q1)a2,
a menos do segundo símbolo.
A próxima Proposição é o principal resultado desta Seção. A recíproca dela também é válida (veja (MELO; STRIEN, 1993), p. 21).
Proposição 1.14. Se f,g∈S(J) não possuem pontos periódicos e ai(f) =ai(g), para todo
i≥1, então K+(f) =K+(g).
Demonstração. Como ai(f) =ai(g), então qn(f) =qn(g), para todo n≥0. Como a1(f) =
a1(g), entãoJ′(f)eJ′(g)estão na mesma posição em relação aJ′′(f)eJ′′(g), respectivamente. Suponha queJ′está à esquerda deJ′′. Entãoa1=1,a2=a(f) =a(g)e, portanto,q0=1,q1=1
e q2=a(f) +1=a(g) +1. Assim, K+(f)q0 =K+(f)q1 =D=K+(g)q0 =K+(g)q1 e, pela
observação anterior, K+(f)
q2 = K+(g)q2. Consequentemente, K−(f)q2 = K−(g)q2 e, pelo
Lema 1.13, K+(f)
q3 = K+(g)q3. Continuando esse processo, concluímos que K+(f)qn =
K+(g)
qn,∀n≥0, logo K+(f) = K+(g). Se J′ está à direita de J′′, demonstramos de forma
1.3 Rotações
Sejaα ∈[0,1). Definimos a rotação pelo ânguloα emS1como
Rα :S1 → S1
x 7→ x+α mod 1.
Como fizemos antes, podemos identificar as rotações com funções emS(J), tomando comoJo intervalo[0,1].
Na Seção 1.2.1, associamos a cada função f ∈S(J)(e em particular, às rotações) as sequên-cias de números inteiros(an)e(qn). Nesta Seção fixaremosα ∈[0,1)e também associaremos à rotaçãoRα uma sequência(pn). Como dissemos antes,qn será denominador da fração irre-dutível que é on-ésimo convergente da fração contínua do número de rotação de f. O número
pnserá o numerador dessa fração. Sejam
θ0=α e θno comprimento do intervaloJn′.
Na próxima Proposição veremos que é possível cobrir[0,1]comqn−1intervalos de tamanhoθn eqnintervalos de tamanhoθn−1, todos adjacentes. Isso é consequência da Proposição 1.11.
Proposição 1.15. Para todo n≥1vale
θnqn−1+θn−1qn=1.
Demonstração. Seα ∈(0,1/2), entãoJ′= (c,1)eJ′′= (0,c), ondec=c(Rα) =1−α. Além disso, a1 =a(Rα) +1 e J1 =J(Rα). Assim, α(a(Rα) +1) +θ1= a1θ0+θ1 =1. Agora, se α ∈(1/2,1), J′ = (0,c) e J′′ = (c,1). Nesse caso, a1 =1,J1 =J e, consequentemente,
J′
1=J′=1−α. Portanto, também nesse caso,θ0+θ1=a1θ0+θ1=1. Paran≥1, como por construçãoJ′
n+1=Jn′′\(ϕn(Jn′)∪ ··· ∪ϕnan+1(Jn′)), eJn′−1=Jn′′, então
θn+1=θn−1−an+1θn. Pela Proposição 1.11, o fecho de
Sq
n−1−1
i=0 Ri(Jn′)
∪Sqn−1
i=0 Ri(Jn′′)
é igual a [0,1], e os intervalos são disjuntos dois a dois. Como os intervalos da primeira união têm comprimentoθn, e os da segundaθn−1, segue que para todon≥1 vale
Definição 1.16. Sejaα ∈[0,1). Definimos os números pn(associados aα) da seguinte forma:
p0=0, p1=1 e pn=⌊αqn⌋, paran>1,
onde⌊·⌋é afunção máximo inteiro, definida por
⌊x⌋=max{n∈Z;n≤x}.
Figura 1.6: Gráfico da função máximo inteiro.
A seguir vamos verificar algumas relações aritméticas que existem entre os números pn e
qn.
Proposição 1.17. Para todo n≥1vale
(−1)nθn=αqn−pn.
Demonstração. Observe que paranímpar, o intervaloJ′
né da forma(Rqαn(c),c). Logo,
θn=c−Rqαn(c) =c−(c+αqn) mod 1= (−αqn) mod 1. Assim,
−θn= (αqn) mod 1=αqn−pn. Paranpar, temosJ′
n= (c,Rqαn(c)e, portanto,
Proposição 1.18. Para n>1,
pn+1=an+1pn+pn−1.
Demonstração. Lembrando que para n >1, qn+1 =an+1qn+qn−1 (conforme definimos na Proposição 1.9) então, pela Proposição 1.17,
pn+1 = αqn+1−(−1)n+1θn+1
= α(qn−1+an+1qn)−(−1)n+1(θn−1−an+1θn) = an+1(αqn−(−1)nθn) + (αqn−1−(−1)n+1)θn−1 = an+1pn+pn−1.
Proposição 1.19. Para todo n≥0,
qn+1pn−qnpn+1= (−1)n+1.
Demonstração. Paran=0,
q1p0−q0p1=a1·0−1·1=−1.
Paran≥1, pela Proposição 1.15,θnqn−1+θn−1qn=1. Logo,
qn+1pn−qnpn+1 = qn+1(αqn−(−1)nθn)−qn(αqn+1−(−1)n+1θn+1) = (−1)n+1(qn+1θn+qnθn+1)
= (−1)n+1.
A Proposição 1.19 nos diz, em particular, que pn eqn são primos entre si para todon>1, pois qualquer fator comum entre pn e qn deveria dividir ±1. Diremos que pn
qn é o n-ésimo
convergentedeα. Essa denominação é justificada pela próxima Proposição: Proposição 1.20. Os convergentes deα estão ordenados da seguinte forma:
p2
q2 <
p4
q4 <···<α <···<
p3
q3 <
p1
q1.
Demonstração. Pela Proposição 1.17,
α− pn
qn = (−1) nθn
Assim, como θn
qn é positivo, então paranpar
pn
qn está à esquerda deα e paranímpar
pn
qn está à direita deα. Além disso, pela Proposição 1.19,
qpnn++11−qpnn =
qn+1pqnnq−n+q1npn+1 = (−1)
n+1
qnqn+1
= qnq1n+1. (1.3)
Como a sequência (qn)n∈N é estritamente crescente, segue que as distâncias entre os pontos
pn+1
qn+1 e
pn
qn diminuem a cada passo, o que conclui a demonstração.
A próxima Proposição nos mostrará que os convergentes pn
qn são asmelhores aproximações
racionaisparaα, isto é, para que a desigualdade
α−pq
<
α−qpnn
seja verdadeira, necessariamente o denominadorqdeve ser maior queqn.
Proposição 1.21. Seja q∈Ztal que0<q<qn. Então, para todo p∈Z
α−qp
>
α−pqnn .
Demonstração. SejaIo intervalo determinado pelos pontos pn
qn e
pn+1
qn+1. Como
pn
qn é irredutível eq<qn, então p
q 6= pn
qn. Assim,
pq−pqnn =
pqnq−nqpnq
≥ q1nq > qnq1n+1 =
qpnn++11−pqnn =|I|.
Da mesma forma,
p q−
pn+1
qn+1
>|I|. Logo, a distância de
p
q a qualquer ponto do intervaloI é
maior do que o comprimento desse intervalo. Comoα ∈I e
pqnn−α
<|I|, segue o resultado.
Devido a forma como construímos as aplicações de primeiro retorno dos homeomorfismos do círculo, parece natural que as aplicações de primeiro retornoRn(Rα)da rotaçãoRα aos
in-tervalosJntambém sejam rotações, já que em cada componente conexa deJn\ {c}a aplicação
Rn(Rα) é uma composição de rotações. Porém, o ângulo da rotação original não é
preser-vado, necessariamente, nas aplicações de primeiro retorno. A seguir vamos calcular qual é este ângulo.
e
J(Rα) = [Rαa(Rα)+1(c),1] = [(1−α+ (a(Rα) +1)α) mod 1,1] = [αa(Rα),1]. Além disso, como|J′|=α eRα é uma isometria, entãoa(Rα)é o maior inteiro tal que
(a(Rα) +1)α <1 =⇒ a(Rα) +1<1/α, ou seja,
a(Rα) +1=
1
α
.
Figura 1.7: Aplicação de primeiro retorno deRα emJ(Rα), paraα ∈(0,1/2].
Para obtermos o ânguloα′ basta mudarmos a escala do quadrado da figura anterior
cons-truído com base no intervaloJ(Rα)para que ele se transforme em um quadrado com lados de comprimento 1. Assim, não é difícil ver que o ânguloα′é dado por:
α′= 1−c 1−αa(Rα) =
α
1−α
1
α
−1
= 1
1
α −
1
α
−1
= 1
G(α) +1,
ondeG:[0,1)→[0,1)é aTransformação de Gaussdefinida por
G(x) =
1
x−
1
x
, sex6=0;
0, sex=0.
Analogamente, para o casoα ∈(1/2,0)temos
J(Rα) = [0,Rαa(Rα)+1(c)] = [0,1−(a(Rα) +1)(1−α)].
Figura 1.8: Gráfico da Transformação de Gauss.
a(Rα) =
1
c
−1. Assim, o ânguloα′da aplicaçãoR(Rα)é dado por
α′= 1−a(Rα)(1−α)−(1−α) 1−a(Rα)(1−α) =
1− 1 c −1
c−c
1− 1 c −1 c = 1 c− 1 c 1 c− 1 c +1
= G(1−α)
G(1−α) +1.
Procedendo dessa forma, podemos obter todos os ângulosα(n)relativos as aplicações de primeiro retornoϕn:Jn→Jn. Note que, seα ∈(0,1/2)entãoα′∈(1/2,1)e seα ∈(1/2,1) entãoα′∈(0,1/2). Paraα ∈(0,1/2],J′está à direita de J′′ e, conforme vimos,α(1) =α′=
1
G(α) +1 ea1=a(f) +1=
1
α
. Paraα ∈(1/2,1),J′está à esquerda deJ′′ e, por definição
a1= 1 e ϕ1 = f. Mas note que nesse caso
1
α
=1, de forma que a1=
1
α
e α(1) =
α = 1
G(α) +1 também para α ∈(1/2,1). Além disso, α(1)∈(1/2,1). Pelas observações anteriores,α(2)∈(0,1/2)e, por indução,α(n)∈(1/2,1)paranímpar eαn∈(0,1/2)paran par.
De uma forma geral, os ângulosα(n)são determinados pela seguinte fórmula:
α(n+1) =
G(1−α(n))
1+G(1−α(n)), sené ímpar; 1
1+G(α(n)), sené par.
A prova pode ser feita por indução. Já mostramos que essa fórmula é válida para n=0. Supondo que ela é válida paran=k, vamos mostrar que continua válida paran=k+1. Seké ímpar, entãoα(k)∈(1/2,1). Logo,α(k+1) =α(k)′= G(1−α(k))