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Sujeição e singularidade nos processos de subjetivação.

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Academic year: 2017

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RES UMO:Objetiva-se pensar os efeitos do poder sobre os processos

de subjetivação, tom ando com o referência central o paradoxo da sujeição na constituição das subjetividades, tal com o ele se apresenta nas obras de Judith Butler, Freud e Nietzsche. A partir destas conside-rações, recorrendo a alguns trabalhos de Gilles Deleuze e Giorgio Agam ben, pretende-se tam bém considerar determ inados processos de singularização que, enquanto práticas de liberdade, se oferecem co m o alter n ativas d e co m b ate ao s m o d elo s d e su b o r d in ação identitária.

Palavras - c h ave : Subjetivação, sujeição, singularidade.

ABSTRACT: Subjection and singularity in the processes of the

for-m ation of subjectivity. The article at hand aifor-m s to reflect on the ef-fects of power over the processes of the form ation of subjectivity, taking as a central reference the paradox of subjection as it is pre-sented in the works of Judith Butler, Freud and Nietzsche. From these considerations on, turning to som e works of Gilles Deleuze and Giorgio Agam ben, it also intends to consider certain processes of singularization, w hich, as practices of liberty, offer them selves as alternatives of com bat to the m odels of subordination based on the processes of identity.

Ke y w o rds : Subjectivity, subjection, singularity.

D

iscutir a sujeição com o form a paradoxal de exercício do poder e com o violência subjetiva im plica delim itá-la a partir das regulações que ela exerce sobre o psiquism o e a singularidade. Apoiando-nos num a visão próxim a daquela for-m ulada por Michel Foucault ( 1979 e 1982/ 1994) , podefor-m os considerar que o poder não atua sim plesm ente oprim indo ou dom inando as subjetividades, m as operando na sua própria construção, o que nos perm ite investigar de form a detalhada aquilo que se encontra na base de sua form ação.

Psicanalista, doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Uerj, professor do Program a de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio.

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Assim , devem os vincular o caráter form ativo ou produtivo do poder aos m ecanism os de regulação e disciplina que ele instaura e procura conservar. Re-cusando visões m ecanicistas m ais sim ples, acreditam os que os destinos da vida psíquica possam ser traçados a partir de um a figura peculiar, a da subjetividade voltada sobre si, presente nas auto-reprovações que participam da form ação da consciência e que operam em conjunto com os procedim entos de regulação social. Evitando qualquer dualism o ontológico que suponha um a separação en-tre o político e o psíquico, consideram os crucial um relato crítico da sujeição psíquica em term os dos efeitos produtivos e regulatórios do poder.

A partir destas considerações, tom ando com o referência os trabalhos de Judith Butler, Nietzsche e Freud, discutirem os com o a sujeição do desejo requer e ins-titui um desejo de sujeição. Em seguida, recorrendo aos pensam entos de Gilles Deleuze e Giorgio Agam ben, nos propom os tam bém a considerar brevem ente certas m odalidades singulares de subjetivação que, enquanto práticas de liberda-de, se apresentam com o alternativas possíveis a esta subjetividade subordinada a um m odelo identitário.

A CONS TRUÇÃO DO PS IQUIS MO S UJEITADO

Antes de tudo, a operação de sujeição coloca problem as que dizem respeito à própria gênese do aparato psíquico, o que im plica inevitavelm ente na delim itação dos espaços psíquicos que constituem o dentro e o fora. Procurando com -preender com exatidão o que ocorre quando um a norm a se torna internalizada ou com o se dá este processo de interiorização, Judith Butler deparou-se não apenas com a questão das definições de interno e externo, m as tam bém com o problem a da própria constituição da psique.

“Será que a norm a está prim eiram ente ‘fora’ e depois entra num espaço psíquico prévio, entendido com o um a espécie de teatro interior? Será que a norm a,

tornando-se psíquica, envolve não apenas a sua interiorização, m as a interiorização da psique?” ( BUTLER, 1997, p.19)

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base num a expectativa de existência social, que retom a e explora dependências prim árias, em erge com o instrum ento e efeito do poder de sujeição.

Para além de um a com preensão reducionista dos abusos do poder com o m eram ente im postos à vontade, Butler propõe que nossa oposição a tais abu-sos leve em consideração que eles tam bém são fruto de um a subjetivação pri-m ária inevitavelpri-m ente subordinada, o que nos leva a considerar de forpri-m a pri-m ais precisa em que consistiria nossa vulnerabilidade a eles. Com pelida a buscar reconhecim ento em categorias, term os e nom es que não foram criados por ela, a subjetividade procura o signo de sua existência fora de si m esm a, num discurso ao m esm o tem po dom inante e indiferente. Com o estas categorias so-ciais são as que supostam ente garantem a existência subjetiva, a subm issão parece ser o preço a pagar por elas. À m edida que um a verdadeira escolha é aparentem ente im possível, tendem os a perseguir a subordinação com o pro-m essa de existência a ser conferida por upro-m outro diante do qual já nos senti-m os pr isenti-m ariasenti-m ente vulneráveis.

Segundo Butler, Nietzsche teria sido o prim eiro a nos oferecer um a visão da consciência enquanto atividade m ental que não apenas constitui vários fenôm e-nos psíquicos, m as que é ela própria form ada em conseqüência de um tipo específico de internalização. No pensam ento nietzschiano, a distinção entre cons-ciência e m á conscons-ciência consiste no fato de que, no últim o caso, a vontade voltada sobre si m esm a faz da reflexividade a operação central de sua constitui-ção. Pouco m ais tarde, Freud tam bém recorreria a um a linguagem m uito sem e-lhante ao abordar a form ação da consciência, em especial no que diz respeito à paranóia e ao narcisism o. Ele descreve a consciência com o a força de um a pulsão que se volta sobre si, e com preende as proibições não com o leis externas ao desejo, m as já com o a própria operação desejante no que esta se volta contra suas próprias possibilidades. Daí, portanto, a im portância de pensarm os não apenas com o estas figuras do retraim ento e do redobram ento tornam -se centrais para o entendim ento da m á consciência, m as tam bém o que elas sugerem quanto à disposição corporal codificada nesta estrutura de reflexividade. “Por que um corpo dobrado sobre si figura o que se pretende que seja um a espécie de ser autoconsciente?” ( BUTLER, 1997, p.64) .

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Butler sugere que qualquer subjetividade que se oponha à violência, inclusive à violência contra si, é sem pre efeito de um a violência prévia sem a qual ela não poderia ter surgido. Em conseqüência disso, a autora chega a afirm ar que um a vontade pura, ontologicam ente intacta e anterior a qualquer articulação, não em ergiria de repente, com o um princípio de auto-acréscim o e auto-afirm ação excedendo os lim ites de todo e qualquer esquem a de regulação. Isto porque a dim ensão form ativa e fabricada da vida psíquica, que funciona sob o nom e de “ vontade”, m ostra-se central para rem odelar as correntes norm ativas das quais nenhum a subjetividade pode prescindir, ainda que não esteja condenada a repe-ti-la exatam ente da m esm a m aneira. Aqui, com o verem os m ais adiante, é que se inserem as práticas subjetivas de singularidade, com o m odalidades de resistência aos m odelos identitários que procuram se im por no cam po de forças constitutivo das relações de poder.

Antes disso, no entanto, seria im portante considerar com m ais atenção o caso de um a vontade que, tom ando a si própria com o objeto, adquire sua identidade através deste processo reflexivo. Até que ponto essa aparente auto-servidão é total ou exclusivam ente auto-im posta? Seria essa estranha postura da vontade, a servi-ço da regulação social que requer a produção da subjetividade, um a conseqüên-cia da m á consciênconseqüên-cia? Butler sugere que Nietzsche nos oferece um a visão polí-tica paradoxal sobre as relações entre sujeição e form ação da psique, a qual deve ser com preendida com o constituição de um a subjetividade precisam ente através da sujeição, e não com o m era subordinação à norm a. Do seu ponto de vista, em bora não haja elim inação final do laço reflexivo que curva o eu sobre si m es-m o, ues-m desregraes-m ento passional da subjetividade talvez possa precipitar ues-m tênue desenlace deste nó constitutivo.

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No entanto, restaria saber se esta paixão ou vontade prim ária precede os vínculos pelos quais ela se faz conhecer ou se, ao contrário, estes vínculos precedem as próprias paixões, adquirindo seu caráter passional apenas após a assunção dos m esm os.

A S UJEIÇÃO DA VONTADE EM NIETZS CHE

Para Nietzsche, invariavelm ente, am bas as situações descritas antes são pertinen-tes e participam de um conjunto incom ensurável de trajetórias tem porais. No segundo tratado da Genealogia da moral, a consciência é introduzida, a princípio, através de reflexões sobre o anim al criado para m anter prom essas e de um a dis-cussão sobre o hom em soberano. O hom em que m antém sua prom essa é aquele que construiu para si um a faculdade oposta ao esquecim ento e que se torna “m em ória da vontade” ( NIETZSCHE, 1887/ 2000, p.121) . Este hom em de pro-m essa não perpro-m ite que nada interropro-m pa o processo pelo qual upro-m a afirpro-m ação prim eira, do tipo “devo fazer“, culm ine na descarga do ato designado. É assim que o ser de prom essa estabelece um a continuidade entre a afirm ação e o ato, ainda que a disjunção tem poral entre os dois seja reconhecida com o um a opor-tunidade para a intervenção de várias circunstâncias e acidentes. Em face destes acontecim entos, a vontade continua a se produzir e a trabalhar sobre si, em be-nefício de um prolongam ento contínuo que estabelece sua própria tem poralidade contra qualquer obstáculo que se oponha à sua execução. Esta “ vontade prolon-gada”, idêntica a si através do tem po, constitui o hom em de consciência: aquele que dá sua palavra com o algo com que se pode contar porque se sente forte o bastante para m antê-la m esm o diante dos acidentes ou do destino ( NIETZSCHE, 1887/ 2000, p.124) .

Na seqüência da discussão, Nietzsche reconsidera esta idealização do anim al que prom ete, e se pergunta com o é possível criar um a m em ória da vontade, questionando-se sobre o estatuto da im pressão que é ativam ente reanim ada e revivida, a qual estabelece a continuidade prolongada da vontade. Sua resposta é a seguinte:

“talvez não haja m esm o, em toda a pré-história do hom em , nada de m ais terrível

nem m ais inquietante que a sua mnemotécnica. ‘Marcam os algo a ferro e fogo para que perm aneça na m em ória: só o que não pára de fazer mal perm anece na m em ória’ — eis um princípio fundam ental da m ais antiga ( e infelizm ente tam bém a m ais duradou-ra) psicologia sobre a terra.” ( NIETZSCHE, 1887/ 2000, p.125, grifado no original)

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Na seção quatro do segundo tratado da Genealogia, explicita-se o problem a da m á consciência, em bora tratado separadam ente da consciência. Aqui, ainda per-m anece aberta a possibilidade de que uper-m a vontade que se tornou regular e pro-longou-se continuam ente subscrevendo a prom essa possa subsistir sem estar su-jeita à lógica da m á consciência. Seguem -se discussões sobre as relações entre dívida e culpa, nas quais o fracasso em pagar a dívida desperta no credor o desejo de com pensação, o que o leva a infligir um a injúria ao devedor. A atribuição de um a responsabilidade m oral m aior a quem deve, racionaliza o desejo de punição do credor através da ação m oral pela qual ele im puta ao devedor a responsabili-dade que o torna culpado.

Mas de que ordem seria esta estranha consum ação de prazer presente na atribuição da culpa? Este relato a respeito da origem da atribuição do sentim ento de culpa ainda não caracteriza de m odo apropriado a form ação da m á consciên-cia, à m edida qu e esta só se con stitu i por m eio de u m processo de au to-culpabilização. Na verdade, aquele que deve é alguém que fracassa em m anter sua prom essa, prolonga sua vontade e em penha sua palavra na execução de um ato. Sua punição parece surgir com o resposta a um a injúria ( a dívida) , m as esta assum e um a significação que excede o propósito explícito de com pensação, con-siderando-se o grau de prazer que ela proporciona.

Para abordar a form ação da m á consciência no devedor, Nietzsche não adota a tese sim plista de que a culpa seja m ero efeito direto da punição. Para ele, o seu instrum ento central não é apenas o conjunto das reações psíquicas nela envolvi-d as, m as a p siq u e co m o u m to envolvi-d o ( NIETZSCHE, 1 8 8 7 / 2 0 0 0 , p.1 5 9 ) . É a internalização do instinto, a qual ocorre quando ele não é im ediatam ente descar-regado com o ação, que produz a interioridade da alm a. A pressão social força um a interiorização que culm ina na fabricação de um Ideal — a palavra atualiza-da com o ação — que parece tom ar o lugar atualiza-da prom essa quebraatualiza-da. Segundo Butler, um dos resultados m ais paradoxais da prom essa é a produção de um “eu” que deve se sustentar por si próprio ao longo do tem po: o eu torna-se contínuo com sua ação, m as esta é, ao m esm o tem po, criação da continuidade de si. Nestas condições, “a m á consciência é a fabricação da interioridade que atende à quebra de um a prom essa, a descontinuidade da vontade, m as o ‘eu’ que m antém a pro-m essa é precisapro-m ente o efeito cultivado desta contínua fabricação de interioridade” ( BUTLER, 1997, p.75) .

Haveria então algum ser de prom essa que pudesse escapar da m á consciên-cia? Vejam os com o Nietzsche descreve sua gênese:

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so b re si m esm o : é isto, n ad a além d isto, n o s seu s co m eço s, a m á consciência.” ( NIETZSCHE, 1887/ 2000, p.167, grifado no original)

O traço m ais m arcante desta liberdade auto-acorrentada encontra-se no pra-zer de infligir dor a si próprio em nom e da m oralidade. Este prapra-zer, a princípio atr ibu íd o ao cred o r, to r n a-se, so b p ressão d o co n trato so cial, u m p razer interiorizado. A origem da m á consciência estaria, portanto, na alegria em perse-guir a si m esm o, na qual o eu perseguido parece não existir senão na órbita da própria perseguição. Mas com o a interiorização da punição é a própria produção do eu, é nela que o prazer e a liberdade parecem curiosam ente se localizar.

Nestes term os, a punição não apenas produz o eu, m as é tam bém o lugar do prazer e da liberdade da vontade, sua atividade de fabricação. A autoconsciência é, assim , a form a assum ida pela vontade quando im pedida de se expressar num a ação. Na m edida em que a alm a é o que a vontade produz quando tom a a si m esm a com o objeto, a psique não é anterior a este m ovim ento reflexivo, m as produto desta vontade voltada contra si que constitui no seu despertar as figuras da vida psíquica. Se a alm a é efeito da im posição de um a form a sobre si m esm a, não há nenhum a vontade prolongada, nenhum eu que perm aneça através do tem po sem esta auto-im posição ou este árduo trabalho m oral sobre si. Neste sentido, Nietzsche procura descrever de m aneira plural a produção da m á consciência ou do que ele entende com o im posição de um a form a a partir da vontade:

“todos os instintos que não são descarregados no exterior voltam -se para o interior... Hostilidade, crueldade, prazer em perseguir, atacar, m udar e destruir — tudo isto

voltado contra o proprietário destes instintos: esta é a origem da m á consciência”. ( NIETZSCHE 1887/ 2000, p.164)

FREUD E A S UJEIÇÃO PS ÍQUICA

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possibilita um a reconsideração das relações entre punição, form ação da cons-ciência e sujeição social. Se a sujeição não é apenas m ecânica nem sim ples efeito de interiorização, trata-se de saber com o ela se torna possível sem desarticular o discurso da auto-subm issão do problem a da regulação social. Além disso, seria im portante determ inar com o o cultivo de um vínculo narcísico com a punição pode se constituir no m eio pelo qual o poder de regulação social explora a de-m anda narcisista por auto-reflexão.

Pode-se supor que esta sugestão a respeito do narcisism o já estivesse presente no trabalho de Nietzsche, na m edida em que o ideal ascético ou vontade de nada seria um a m aneira de interpretar qualquer sofrim ento em term os de culpabili-dade: ainda que o objetivo m aior da culpa seja a denegação de um tipo de espe-cífico de objeto para a vontade hum ana, ela não chega a obliterar o seu caráter voluntarioso. No entanto, em sua análise das neuroses, Freud parece ter com pre-endido esta questão de form a um pouco diferente. Para ele trata-se de um tipo de vínculo libidinal com a proibição cujo propósito é frustrar a gratificação. Onde quer que a frustração constitua um a repressão, esta se sustenta pela libido que procura frustrar. Na neurose, a regulação ética do im pulso corporal torna-se o foco e o alvo do próprio im pulso. Aqui, m ais um a vez, percebem os um vínculo form ador da estrutura reflexiva da sujeição: o im pulso negado é inadvertida-m ente preservado pela própria atividade de negação. Nota-se uinadvertida-m a ressonância com Nietzsche, quando Freud descreve o processo pelo qual a libido se subm ete à censura da lei apenas para ressurgir com o aquele afeto que a sustenta.

A repressão da libido é sem pre com preendida com o um a repressão libi-dinalm ente investida. Nestes term os, a libido não é negada através da repressão, m as transform ada no instrum ento de sua própria sujeição. A lei repressiva não é externa à libido que ela reprim e, m as é um a lei que reprim e até o ponto em que a repressão se torna um a atividade libidinal. Além disto, as interdições m orais, em especial aquelas voltadas para o corpo, são elas m esm as sustentadas pela atividade corporal que procuram controlar.

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“após alcançar a escolha de objeto heterossexual, as aspirações hom ossexuais não são — com o se poderia pensar — canceladas nem suspensas, m as apenas forçadas a afastar-se da m eta sexual e conduzidas a novas aplicações. Conjugam -se então com setores das pulsões egóicas para constituir com elas, com o com ponentes apoiados, as

pulsões sociais, e assim elaboram a contribuição do erotism o para a am izade, a cam a-radagem , o sentido com unitário e o am or universal pela hum anidade.” ( FREUD, 1911/ 1995, p.57)

Dando continuidade a esta linha de raciocínio no final do ensaio “Sobre o narcisism o”, pode-se observar com o Freud especifica a lógica pela qual esta pro-dução do sentim ento social tem lugar, afirm ando que o ideal do eu tem um lado social:

“além de seu com ponente individual este ideal tem um com ponente social; é tam -bém o ideal com um de um a fam ília, de um a classe, de um a nação. Ele vincula, além da libido narcisista, um a quantidade grande da libido hom ossexual de um a pessoa,

quantidade que, por esse cam inho, é devolvida ao ego. A insatisfação pela não realiza-ção deste ideal libera a libido hom ossexual que se transform a em consciência de culpa ( angústia social) .” ( FREUD, 1914/ 1995, p.98)

Esta transform ação da hom ossexualidade em culpa e, por conseguinte, num dos pilares de sustentação do sentim ento social, tem lugar quando o m edo da punição parental se generaliza com o tem or de perda do am or dos com panheiros. A paranóia consiste, paradoxalm ente, no tem or pela perda de um am or que ao m esm o tem po já se im agina estar irrem ediavelm ente perdido, o que m otiva a sublim ação ou a introversão da hom ossexualidade. Na verdade, esta sublim ação não é de fato tão instrum ental quanto parece, pois não se trata de renegar a hom ossexualidade a fim de conquistar o am or dos com panheiros, m as de que um a certa hom ossexualidade só pode ser alcançada e contida através desta renegação.

Estas questões tam bém reaparecem na discussão sobre a form ação da cons-ciência no O mal- estar na cultura, quando se confirm a que a proibição contra a hom ossexualidade que a consciência supostam ente decreta ou articula, funda e constitui a própria consciência enquanto fenôm eno psíquico. A proibição contra o desejo resulta num a volta deste desejo contra si m esm o, e este retorno sobre si torna-se o próprio princípio, a própria ação da entidade nom eada pelo term o ‘consciência’.

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se inverte depois. Cada renúncia pulsional torna-se agora um a fonte dinâm ica da consciência m oral; cada nova renúncia aum enta sua severidade e intolerância, e nos sentiríam os tentados a professar um a tese paradoxal, a qual só poderíam os harm oni-zar m elhor com a história genética da consciência m oral tal com o nos chegou a ser

notória: a consciência m oral é a conseqüência da renúncia do pulsional; de outro m odo: a renúncia do pulsional ( im posta a nós de fora) cria a consciência m oral, que depois exige m ais e m ais renúncias.” ( FREUD, 1930/ 1995, p.124)

De acordo com Freud, portanto, os im perativos auto-im postos que caracteri-zam o curso circular da consciência, são adotados e aplicados precisam ente por-que agora constituem o terreno da própria satisfação por-que buscavam proibir. Em outras palavras, a proibição torna-se a ocasião para reviver a pulsão sob a rubrica da lei condenatória. A proibição reproduz o desejo proibido e se intensifica atra-vés das renúncias efetuadas. Assim , ela não apenas sustenta, m as é sustentada pelo desejo que ela força à renúncia. Neste sentido, a renúncia ganha terreno através do próprio desejo ao qual se renuncia, e que acaba por ser preservado ou se reafirm ado na estrutura m esm a da renúncia.

OS PROCES S OS DE S INGULARIZAÇÃO COMO ALTERNATIVA

Esta redescrição do dom ínio da sujeição psíquica perm ite clarificar com o o po-der social produz m odos de reflexividade, ao m esm o tem po que lim ita determ i-nadas form as de sociabilidade. Restringindo e produzindo o desejo, as norm as sociais operam com o fenôm enos psíquicos e governam a subjetivação ao cir-cunscrever o dom ínio de sociabilidade digno de ser vivido. Neste sentido, o trabalho psíquico operado pelas norm as a serviço do poder oferece um a possibi-lidade de dom ínio instrum ental m ais insidioso para a regulação da subjetividade do que a coerção explícita. Mas esta faceta psíquica das norm as, ainda que possi-bilite o restabelecim ento do poder social dado o seu caráter form ativo, o qual estabelece a vulnerabilidade subjetiva à linguagem , tam bém se m ostra altam ente vulnerável a m udanças psíquicas e históricas. Um a perspectiva com o essa, afirm a Butler,

“contraria o entendim ento de um a norm atividade psíquica ou lingüística ( com o a de certas versões do sim bólico) , que seria prévia ao social ou im põe restrições a ele. Assim com o o sujeito é derivado das condições de poder que o precedem , a operação psíquica da norm a tam bém é derivada, ainda que não de form a m ecânica ou

previsí-vel, de operações sociais prévias.” ( BUTLER, 1997, p.21)

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perm aneça ligada a elas de m aneira relevante. Com o tivem os a oportunidade de m ostrar, Freud e Nietzsche sabiam disso e nos ofereceram visões até certo ponto diferentes, m as m uito aguçadas quanto à im portância da produtividade das nor-m as nos processos de subjetivação. Anor-m bos viranor-m na fabricação da consciência um efeito para além de um a sim ples proibição internalizada, o que faria dela um a produção e não apenas um a privação. Em seus relatos, a ação ou expressão desta proibição é entendida a partir de um a volta do instinto ou da pulsão sobre si m esm a, fabricando um a esfera interna que se torna condição de auto-avaliação e reflexividade. Esta pulsão que se volta sobre si torna-se, portanto, a condição que precipita a form ação da subjetividade. Na m edida em que este voltar-se sobre si é realizado a partir de anseios ou desejos prim ários, ele produz um hábito psíquico de auto-repreensão que se consolida através do tem po com o consciência.

Em tais condições, a consciência é o m eio pelo qual a subjetividade se trans-form a num objeto para si m esm a, agindo sobre si através de seus próprios pro-cessos reflexivos. Assim , o ego não seria apenas aquilo que pensa sobre si, m as se definiria tam bém por essa capacidade de auto-relação refletida. À m edida que a subjetividade faz de si própria um objeto de reflexão, a reflexividade torna-se o m eio através do qual o desejo é regularm ente transm utado em circuito de auto-reflexão. A volta do desejo sobre si, culm inando na reflexividade, produz, no entanto, um a outra ordem de desejo: o desejo pela repetição do próprio circuito que, em últim a instância, caracteriza de form a m ais rigorosa o m ecanism o de sujeição. De acordo com Butler, a reflexão sobre o desejo acaba por absorvê-lo na própria reflexão, fazendo de um desejo que um dia viveu livre de proibições, um desejo recalcado. Considerada no contexto da interpretação nietzschiana, a sub-jetividade se engajaria num a espécie de autocontrariedade que contribui para a sua própria sujeição, parecendo desejar e construir seus próprios grilhões, vol-tando-se contra um desejo que ela sabe, ou soube um dia, ser o seu.

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pli-ca num a subm issão precoce a um m undo de outros que não é fundam entalm en-te o m undo próprio a cada um , o qual m odula e possibilita o desejo.

“Apenas persistindo na alteridade persistim os no nosso ‘próprio’ ser. Vulneráveis a

term os que nunca construím os, persistim os sem pre, em um certo grau, em catego-rias, nom es, term os e classificações que m arcam um a alienação prim ária e inaugural na sociabilidade. Se estes term os instituem um a subordinação prim ária ou, certa-m ente, ucerta-m a violência pricerta-m ária, então o sujeito ecerta-m erge contra si certa-m escerta-m o para,

para-doxalm ente, ser para si próprio.” ( BUTLER, 1997, p.28)

Na verdade, a subjetividade se vê com pelida a repetir as norm as pelas quais foi produzida ainda que esta repetição estabeleça um dom ínio de risco. Se al-guém falha em reinstalar a norm a “de m aneira correta”, torna-se sujeito a san-ções ulteriores, o que faz com que se sinta am eaçado em suas condisan-ções predo-m inantes de existência. Sepredo-m upredo-m a repetição que ponha epredo-m risco a própria vida em sua form a de organização atual, seria im possível com eçar a im aginar a con-tingência desta organização e, de m odo perform ativo, reconfigurar os contornos das condições de vida de cada um .

Assim , o estabelecim ento de um a nova perspectiva sobre a subjetividade pa-rece requerer um esvaziam ento da prim eira pessoa, um a suspensão do “Eu” e um a revisão da categoria de sujeito. Esta perspectiva diferenciada exigiria um a análise do processo de subjetivação em term os de individuações im pessoais, pré-individuais ou singularidades quaisquer, tem as que foram trabalhados de form a bastante rigorosa por Gilles Deleuze e Giorgio Agam ben. Tal perspectiva, além de recusar a form a da pessoa e o ponto de vista da individuação, tam bém procura dispensar qualquer referência à consciência em term os fenom enológicos, já que esta não poderia prescindir de um a síntese de unificação, representada pelas figuras do Eu ou do Ego.

“O que não é nem individual nem pessoal, ao contrário, são as em issões de singula-ridades enquanto se fazem sobre um a superfície inconsciente e gozam de um princí-pio m óvel im anente de auto-unificação por distribuição nôm ade, que se distingue

radicalm ente das distribuições fixas e sedentárias com o condições das sínteses de consciência.” ( DELEUZE, 1969/ 1982, p.105)

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Segundo Deleuze, só um a teoria dos pontos singulares estaria apta a ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do indivíduo, tais com o elas se fazem na consciência. É tam bém em Nietzsche que Deleuze vai buscar o mundo das singularidades im pessoais e pré-individuais. Singularidades nôm ades, livres da individualidade fixa do Ser infinito e dos lim ites sedentários do sujeito finito. Neste m undo dionisíaco da vontade de potência e da energia livre, deparam o-nos com algo que m esm o não sendo individual nem pessoal é capaz de ser singular e ao m es-m o tees-m po plural; es-m undo no qual é possível saltar de ues-m a singularidade para outra. Este é tam bém o m undo do “se” e do “eles”, irredutível à banalidade cotidiana, onde se elaboram os encontros e as ressonâncias que transbordam o universo representacional.

“Máquina dionisíaca de produzir o sentido e em que o não-senso e o sentido não estão m ais num a oposição sim ples, m as co-presentes um ao outro em um novo dis-curso. Este novo discurso não é m ais o da form a, m as nem m uito m enos o do infor-m e: ele é antes o inforinfor-m al puro.” ( DELEUZE, 1969/ 1982, p.110)

Nele não há m ais sujeito, hom em ou Deus, e m uito m enos hom em no lugar de Deus. Trata-se apenas daquela singularidade livre, anônim a e nôm ade, que percorre o m undo independentem ente das m atérias de sua individuação e das form as de sua personalidade. Eis aí o significado do além do hom em nietzschiano, o tipo que se encontra para além de tudo aquilo que é.

Nestas condições, observa Deleuze:

“a vida do indivíduo é substituída por um a vida im pessoal, em bora singular, que pro-duz um puro acontecim ento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. ‘Homo tantum’ por quem todo m undo se com padece e que atinge um a certa beatitude. É um a hecceidade, que não é m ais de

individuação, m as sim de singularização: um a vida de pura im anência, neutra, além do bem e do m al, já que só o sujeito que a encarnava no m eio das coisas a tornava boa ou m á. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular im anente a um hom em que não tem m ais nom e, em bora não se confunda com nenhum outro.

Essên-cia singular, um a vida...” ( DELEUZE, 1995/ 2001, p.28-29)

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De acordo com Giorgio Agam ben, esta im anência absoluta que se apresenta com o vida não poderia m esm o ser atribuída a um sujeito. O lugar desta vida separável não está nem neste m undo nem em outro, m as entre os dois, num a espécie de interm undo feliz que ela parece só abandonar a contragosto, perm a-necendo em estado de suspensão no que diz respeito às norm as e direitos. “Por isso Deleuze pode falar em um a vida im pessoal, situada num lim iar para além do bem e do m al” ( AGAMBEN, 2000, p.180) . Ainda segundo Agam ben, deslocando a im anência para a esfera da vida, Deleuze estava ciente de que penetrava num cam po perigoso. Ele teria se apercebido perfeitam ente “de que o pensam ento que tom a com o objeto a vida com partilha deste objeto com o poder e deve confrontar-se com suas estratégias” ( AGAMBEN, 2000, p.183) .

É a partir daí que o autor pretende retom ar nos dias atuais a conotação polí-tica das singularidades pré-individuais às quais Deleuze fazia m enção. A polípolí-tica da singularidade qualquer, de um ser cuja com unidade não é m ediada nem por u m a con dição de perten cim en to, n em pela au sên cia da m esm a, m as pelo per ten cim en to en qu an to tal, im plicaria n a relativa au sên cia de con teú dos reivindicativos precisos. Segundo ele, “a novidade da política que vem, é que ela não será mais uma luta pela conquista ou controle do Estado, mas uma luta entre o Estado e o não- Estado ( a

hum anidade) , disjunção irrem ediável das singularidades quaisquer e da organização estatal” ( AGAMBEN, 1990, p.88, grifado no original) . Este tipo de política nada tem a ver com a sim ples reivindicação do social contra o Estado que se expressa atual-m ente eatual-m certos atual-m oviatual-m entos de contestação. As singularidades quaisquer não poderiam com por um a sociedade na m edida em que não dispõem de nenhum a identidade que possam fazer valer, nem de nenhum laço de pertencim ento que poderiam fazer reconhecer. Em últim a instância, com o m ostrava Deleuze, todo Estado pode reconhecer diversos tipos de reivindicação de identidade, e até m es-m o a de ues-m a identidade estatal no interior dele próprio ( o que é confires-m ado pelas relações entre terrorism o e Estado nos dias atuais) . “Mas que singularida-des constituam um a com unidade sem reivindicar um a identidade, que os ho-m ens co-pertençaho-m seho-m uho-m a condição de pertenciho-m ento representável ( ho-m esho-m o sob a form a de um sim ples pressuposto) constitui o que o Estado não pode tolerar em nenhum caso” ( AGAMBEN, 1990, p.89) . E isto porque o Estado não está verdadeiram ente fundado num laço social, do qual ele seria apenas a expres-são, m as sobre a ausência dos laços que ele interdita.

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deste trabalho, “tornar-se o que se é”, com o queria Nietzsche, não é um proces-so sim ples ou contínuo. Trata-se de um a árdua prática de liberdade ( FOUCAULT, 1984/ 1994) que im plica em repetições, riscos, coerções e vacilações, no hori-zonte da constituição de um ser que, enquanto efeito inexorável da alteridade, traz com o sua m arca fundam ental um a singularidade pré-individual. Singulari-dade esta que é, antes de qualquer coisa, fruto de um a luta constante contra as práticas coercitivas de assujeitam ento às m ais diversas dim ensões de identidade.

Recebido em 17/ 9/ 2003. Aprovado em 9/ 1/ 2004.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. ( 1990) La com m unauté qui vient: théorie de la singularité quelconque. Paris, Seuil.

. ( 2000) “ A im anência absoluta” , in ALLIEZ, E. Gilles Deleuze: um a vida filosófica. Rio de Janeiro: Editora 34.

BUTLER, J. ( 1997) The psychic life of power. California: Stanford University Press.

. ( 2003) Problem as de gênero: fem inism o e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

DELEUZE, G. ( 1968/ 2002) “ Sur Nietzsche et l’im age de la penseé” , in

L’île desèrte et autres textes. Paris: Éditions de Minuit.

. ( 1969/ 1982) A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva. . ( 1995/ 2001) “ Im anence a life… ” , in Pure im m anence. New York: Zone Books.

FOUCAULT, M. ( 1979) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

. ( 1982/ 1994) “ Le sujet et le pouvoir” , in Dits et écrits. Paris: Gallim ard.

. ( 1984/ 1994) “L’éthique du souci de soi com m e pratique de la liberté” , in Dits et écrits. Paris: Gallim ard.

FREUD, S. ( 1992) Obras com pletas. Buenos Aires: Am orrortu.

( 1911) “ Puntualizaciones psicoanalíticas sobre un caso de paranoia descrito autobiográficam ente” , v. XII, p.1-76.

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LEHRER, R. ( 1995) N ietzsche’s presence in Freud’s life and thought: on the origins of a Psychology of dynam ic unconscious m ental functioning. Albany: State University of New York Press.

NIETZSCHE, F. ( 1885/ 1971) Par- delà bien et m al. Paris: Gallim ard. . ( 1887/ 2000) La génealogie de la m orale. Paris: Librairie Genérale Française.

Carlos Augusto Peixoto Junior

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