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Imagens de brasilidade nas canções de Câmara de Lorenzo Fernandez: uma abordagem semiológica das articulações entre música e poesia

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Academic year: 2017

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Mônica Pedrosa de Pádua

IMAGENS DE BRASILIDADE NAS CANÇÕES DE

CÂMARA DE LORENZO FERNANDEZ:

uma abordagem semiológica das articulações entre

música e poesia

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Mônica Pedrosa de Pádua

IMAGENS DE BRASILIDADE NAS CANÇÕES DE

CÂMARA DE LORENZO FERNANDEZ:

uma abordagem semiológica das articulações entre

música e poesia

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Letras/Estudos Literários.

Área de concentração: Literatura Comparada Linha de Pesquisa: Literatura e outros sistemas semióticos

Orientadora: Profª. Drª. Leda Maria Martins

Belo Horizonte

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A Fernando Araújo, amado esposo, presença constante, cuidadosa e atenciosa em todos os momentos desta jornada. Seu incentivo e seu carinho foram fundamentais para os resultados alcançados neste trabalho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, de modo especial, à minha orientadora Profª. Drª. Leda Maria Martins. Sua competência, seu rigor acadêmico, sua generosidade e amizade permitiram-me desenvolver com segurança as ideias neste trabalho.

Aos professores Maria Antonieta Pereira, Wander Melo Miranda, Sérgio Peixoto, Lúcia Castelo Branco, Georg Otte e Márcia Arbex, pelos valiosos ensinamentos nas disciplinas ministradas durante o curso na Faculdade de Letras da UFMG.

À Prof ª. Dr ª. Vera Casa Nova e ao Prof. Dr. Oiliam Lanna, pelas generosas contribuições dadas durante meu processo de qualificação.

Aos professores que compõem esta banca e que honram este estudo com o seu exame e julgamento.

À Prof ª. Dr ª. Luciana Monteiro de Castro e à Prof ª. Dr ª. Margarida Borghoff, queridas amigas e companheiras nesse inesgotável e belo trabalho de pesquisa sobre a canção de câmara brasileira, pelas jornadas compartilhadas que frutificaram nesta tese.

Aos professores Teodomiro Amâncio Machado Goulart e Cecília Nazaré de Lima, e a Frederico Frigeri, pelas inestimáveis contribuições às análises harmônicas realizadas.

À D. Marina Fernandez, por seu acolhimento generoso e pelo suporte oferecido a este trabalho.

Ao Departamento de Instrumentos e Canto da Escola de Música da UFMG e aos professores, alunos e funcionários desta escola, pelo apoio indispensável.

À Lúcia Pedrosa de Pádua, querida irmã, Profª. Drª. do Programa de Pós-graduação do Departamento de Teologia da PUC do Rio de Janeiro, pelo apoio, pelas ricas discussões e preciosas contribuições dadas durante a redação deste trabalho.

À Angela Pedrosa de Pádua Monteiro, querida irmã, médica de homens e de almas, pela presença forte e incansável, pelo apoio e inspiração, e a Leonardo Pedrosa de Pádua, querido irmão, pelo apoio e pelas inúmeras imagens de brasilidade recolhidas com amor em seus projetos de estudo de impacto ambiental.

A todos os meus familiares e amigos, pelo afeto, estímulo e incentivo que me permitiram construir este trabalho.

À Neyde Vieira Duarte, que me fez vislumbrar a possibilidade da realização deste trabalho, ao mostrar-me, entre tantas outras coisas, como mente e sentimento são unidade.

Aos médicos Dr. Alexandre Hampel, Drª. Letícia Campolina, Dr. Márcio de Almeida Salles, Dr. Roberto Zimmer, Dr. Alexandre Chiari e Dr. Marco Antônio R. F. Matias, com os quais celebro a vida, minha profunda gratidão.

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Faz luar e faz frio. A noite espalma As longas asas plácidas, de calma... Neblina...fluido...luz... matéria e alma...

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RESUMO

Nesta tese, procuramos investigar as articulações entre poesia e música nas canções de câmara brasileiras, pensar sobre sua brasilidade e suas possibilidades interpretativas. O corpus escolhido consiste em sete canções representativas de Lorenzo Fernandez, considerado um compositor nacionalista. Neste trabalho, buscamos demonstrar que uma canção de câmara pode criar imagens, e que as canções de Lorenzo Fernandez constroem certas ideias de brasilidade por meio das imagens que criam. Para que isso fosse possível, constituímos, numa abordagem transdisciplinar, a imagem de características sensoriais diversas como conceito transversal capaz de aproximar as diferentes linguagens da canção. Os referenciais teóricos sobre tradução nos auxiliaram na adoção de atitudes interpretativas que privilegiaram a criatividade e o método. Para construirmos sentido nos textos poéticos e musicais, utilizamos as teorias tradutórias em contraponto com a semiologia da música e a teoria tripartite de Jean Molino e J. J. Nattiez. Para construirmos uma estratégia de percepção das imagens, partimos das ideias do mosaico e da rede. Valendo-nos dos diferentes níveis sígnicos distinguidos por Peirce, verificamos a partir de que elementos do texto poético e musical é possível perceber a visualidade, a plasticidade, o movimento, a espacialidade, a temporalidade, e, por fim, os diferentes sentimentos responsáveis pela criação de imagens ligadas aos nossos vários sentidos. Por fim, procuramos demonstrar, nas canções de Lorenzo Fernandez, em diálogo com os contextos do autor e do intérprete, as imagens de brasilidade que, nas canções e a partir delas, se constituem.

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ABSTRACT

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1 - SOBRE O AUTOR E SEU CONTEXTO 26

1. O modernismo nacionalista 27

1.1 Contexto histórico: tradição e ruptura 27 1.2 Nacionalismos, vanguardas, desdobramentos 29

1.3 Registro e expressão 32

2. O Modernismo no Brasil 39

2.1 Vanguarda e tradição 39

2.2 Em busca da cultura popular 42

2.3 Mário de Andrade: ideologia e processos composicionais 43

2.4 O nacional e o universal 46

2.5 Classes populares e classes cultas: síntese, segregação e conflito 51

3. Lorenzo Fernandez e o Modernismo 56

3.1 Um compositor multifacetado 56

3.2 O nacionalismo em Lorenzo Fernandez 58 3.3 Universalismo e brasileirismo: impressões e expressões 64

CAPÍTULO 2 - CANÇÃO DE CÂMARA: A IMAGEM MÓVEL 70

1. A canção e suas múltiplas traduções 74

1.1 A canção de câmara: breve introdução 74 1.2 Produção e recepção: a canção como texto multimídia 77 1.3 Traduzindo a canção: criatividade e método 82

2. Construindo sentido em música e em poesia 92

2.1 Teorias tradutórias e construção de sentido 92 2.2 O poema e seu “modo de formar” 96 2.3 Construindo sentido em música: a possibilidade da semântica musical 101 2.4 Conectando obra, autor e intérprete: o modelo tripartite da semiologia musical 107 2.5 Semiologia, tradução e interpretação musical 113

3. Múltiplas imagens 117

3.1 O mosaico e a rede 117

3.2 Percebendo a imagem 121

3.3 A percepção sígnica das estruturas musicais: a imagem como signo 124

4. Um exemplo: A saudade e as imagens da noite 130

4.1 A imagem frásica 131

4.2 Tempo/espaço: movimento, sentimento 133

4.3 Cores, luzes, timbres 138

4.4 A imagem final 142

CAPÍTULO 3 - IMAGENS DE BRASILIDADE 146

1. O mar: espaço cênico de permanência e mutação 148

1.1 Ternura e crueldade: A Berceuse da onda 149

1.1.1 O poema 150

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1.1.3 A tradução de Lorenzo 160 1.1.4 O espaço e seus personagens 162 1.2 A Canção do mar: drama e contradição 163

1.2.1 O poema 163

1.2.2 A Canção do mar 165

1.2.3 A tradução de Lorenzo 173

2. Paisagens e personagens: ambiguidade e heterogeneidade 175

2.1 A imagem como ambiguidade: Tapera 175

2.1.1 O poema 176

2.1.2 A canção Tapera 179

2.1.3 A tradução de Lorenzo 185

2.2 A imagem como tensão: Essa negra Fulô 186

2.2.1 O poema 186

2.2.2 A canção Essa negra Fulô 189

2.2.3 Traduzindo um estilo 195

2.2.4 A tradução de Lorenzo 196

2.3 A imagem como síntese: Toada p’ra você 198

2.3.1 O poema 199

2.3.2 A Toada p’ra você 200

2.3.3 A tradução de Lorenzo 204

2.3.4 Rosa 204

2.3.5 Impressões e expressões 205

3. Imagens da memória 206

3.1 Tempo, imagem e memória 207

3.2 Vesperal: a “desordem” e as imagens da memória 209

3.2.1 O poema 209

3.2.2 A canção 211

3.3 O instante eterno 216

3.4 Brasilidade e memória 217

4. Imagens de Lorenzo 218

4.1 As traduções de Lorenzo 218

4.2 Um estilo eclético 221

4.3 Imagens e estilo 223

4.4 Paisagens, personagens, sentimentos 225 4.5 Intertextualidade, universalismo e brasilidade 227

CONCLUSÃO 230

A canção distante 231

A canção como um saber: criando mecanismos de legitimação 236

Heterogeneidade conflituosa 239

O mosaico da nação 243

O encontro dos tempos 246

Dando vida aos personagens 247

Uma voz para Lorenzo 249

Considerações finais 254

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 260

ANEXOS 272

Poemas musicados por Lorenzo Fernandez Erro! Indicador não definido. Partituras Erro! Indicador não definido.

Fotos 273

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Uma das primeiras canções que tive oportunidade de cantar, antes mesmo de entrar para a graduação, foi o Noturno de Lorenzo Fernandez, com versos de Eduardo Tourinho. Seu mundo frio e enluarado, terrível e belo, imerso em solidão, me fascinou imediatamente. E a imagem daquela teia brilhante, tecida com fios de sons e de palavras, permaneceu em minha memória desde então. Eu imaginava e tentava reproduzir, com minha própria voz, aquela claridade fluida e gelada, imersa em dilacerada e pungente dor.

Posso dizer que sempre tive um especial apreço pela canção erudita, ou canção de câmara, forma breve nascida da união da música e da poesia, pequeno universo de uma ampla gama de significações. O que me move como intérprete? O fascínio das pequenas coisas. Os dramas em miniatura que carregam consigo enorme força dramática, a variedade de personagens que me vejo representando, as múltiplas possibilidades expressivas que a canção me oferece. Trata-se também de um gosto muito pessoal pelo detalhe. Amar a canção é amar a poesia, e a poesia é também isso tudo: é poder de concisão, é a arte de dizer não dizendo, é aquilo que revela e esconde. Tem seus mistérios.

A canção de câmara brasileira nos oferece a possibilidade de cantarmos em português, de nos expressarmos em nossa própria língua. A voz como abraço, como fio, como faca, enlaça, fere, acaricia. O cantor, mais que qualquer instrumentista, cria vínculos estreitos com seus ouvintes. Vivenciar a experiência da interação numa performance é algo que para mim não tem preço.

O repertório brasileiro de canções de câmara é expressivo. O Guia virtual da canção brasileira, mantido pelo atuante grupo de pesquisa da UFMG “Resgate da canção brasileira”, lista 180 compositores e mais de 3000 canções. Entretanto, atualmente, as canções de câmara brasileiras distanciaram-se enormemente do intérprete contemporâneo e mais ainda das plateias. Poucos são os estudos e a bibliografia, as obras encontram-se dispersas em edições esgotadas ou em manuscritos, políticas de valorização deste repertório são praticamente inexistentes. Afastadas dos meios acadêmicos e ainda mais dos diferentes segmentos da população, observa-se a necessidade, não apenas de seu estudo e divulgação, mas de sua legitimação, tanto nos meios acadêmicos como por parte da sociedade em geral.

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canções, de forma que com elas ele possa criar e manter vínculos? E, principalmente, como esse repertório pode ser percebido e interpretado em nossa atualidade?

O intérprete volta-se para a pesquisa, buscando encontrar meios para a maior compreensão do vasto repertório de canções de câmara. Durante o seu estudo, entretanto, depara-se com outro problema fundamental: a questão das escolhas interpretativas. Referências bibliográficas sobre a canção de câmara, seja no exterior, seja no Brasil, privilegiam aspectos históricos ou análises que focalizam as canções como objeto independente. Sem dúvida, essas análises oferecem ao músico informações sobre a obra das quais ele não pode prescindir. Essas abordagens, no entanto, tendem a ignorar os posicionamentos particulares do intérprete e o artista que analisa e interpreta a obra se pergunta como e até onde pode e deve realizar a sua interferência, a partir de sua própria vivência histórica, cultural e afetiva e de sua elaboração e experiências estéticas. Torna-se necessário, portanto, uma abordagem que considere não apenas a obra em si e seu contexto histórico, mas que inclua o artista/intérprete no campo da exploração da obra, assim como o compositor dentro de seu contexto histórico e social. Questões sobre como o intérprete estabelece interlocuções com o compositor, sendo mediado pela obra, são abordadas nesta tese, buscando-se apreender como a visão de mundo do compositor, sua vivência e sua expressão dialogam com a nossa própria, para que desta forma abram-se possibilidades para entendimento e posterior valorização desse repertório.

Nesta tese, nossa atenção se volta para as canções de Oscar Lorenzo Fernandez. O compositor escreveu cerca de 46 canções para canto e piano ou canto e orquestra (Corrêa, 1992), durante as décadas de 1920, 1930 e 1940. Sua escolha de textos recai sobre os mais variados nomes da poesia brasileira, como Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Adelmar Tavares, Cecília Meireles, Castro Alves, Olavo Bilac, Belmiro Braga, Gaspar Coelho e Ribeiro Couto. Lorenzo Fernandez escreveu uma canção em francês com texto de Leconte de Lisle e algumas com poemas de sua autoria. 1 Compositor da primeira geração nacionalista, contemporâneo de

1 A maioria das canções para canto e piano foi publicada por editoras atualmente extintas, sem reedição nos

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Villa-Lobos e Francisco Mignone, professor, fundador do Conservatório Nacional de Música, Lorenzo Fernandez (1897-1948) nasceu no Rio de Janeiro, filho de imigrantes espanhóis. Escreveu uma das peças brasileiras para orquestra mais executadas e gravadas em todo o mundo, o célebre Batuque. Além de obras para orquestra, compôs para várias formações de câmara, mas “sua obra vocal constitui, talvez, sua contribuição mais meritória para a música brasileira” (Mariz, 2002, p 85). Teve sua formação musical feita totalmente no Brasil, desenvolvendo com seus mestres técnicas musicais pós-românticas e impressionistas. Com o advento do movimento modernista nas artes, Lorenzo Fernandez voltou sua atenção para os elementos musicais do folclore e do cancioneiro popular, incorporando esses elementos à sua escrita musical, criando assim uma linguagem bastante particular. Num período de afirmação da identidade cultural brasileira, o compositor soube se apropriar dos dizeres de Mário de Andrade, que entendia o modernismo como um diálogo e não uma ruptura com o passado, quando afirmava em seu Prefácio interessantíssimo: “a nós compete esquematizar, metodizar as lições do passado” (Andrade, 1987, p. 26).

Ao estudarmos as canções de Lorenzo Fernandez, torna-se necessário enfocar a chamada “música nacionalista” brasileira. Caracteriza-se geralmente como música nacionalista, em oposição à chamada música de cunho “universalista” - termo amplamente utilizado por autores como Neves (1981), Mariz (2002), Gandelman (1983), entre outros - não apenas aquela composta durante os períodos marcadamente nacionalistas, como o romantismo ou o modernismo brasileiros, mas toda aquela em que se tornam evidentes elementos musicais caracteristicamente “nacionais”, ou seja, em que são reconhecidas

manuscritos autógrafos do compositor foram localizados em pesquisas por nós efetuadas na Biblioteca Nacional de Música, na Biblioteca do Conservatório Nacional de Música no Rio de Janeiro e junto aos familiares do compositor. Todas as canções publicadas foram localizadas, encontrando-se atualmente em edições esgotadas.

Poucas de suas canções foram gravadas. Citamos alguns Cds, os quais contêm parte do cancioneiro do compositor: Montiel (1999), Celine (2002), Felix (1999), Godoy (1993). Referências às suas canções são encontradas nas obras de Mariz (2002) ou Neves (1981). Publicações acadêmicas específicas sobre suas canções são inexistentes, embora estudos sobre sua obra pianística e instrumental de câmara podem ser encontrados em Gandelman (1997) ou Baumann (1996).

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células melódicas ou rítmicas oriundas de elementos folclóricos ou populares de autoria. Tanto que, no nosso entender, o nacionalismo não se caracteriza por ser um estilo musical, mas sim por ser um movimento estético-ideológico, que do ponto de vista estilístico compreende técnicas composicionais diversas. Essas técnicas na música pertencem a diferentes estilos, como o Romantismo, o Impressionismo ou o Expressionismo musical, compreendendo diferentes linguagens musicais como as linguagens tonais, politonais, atonais, seriais ou eletroacústicas.

A produção brasileira de canções de câmara teve, durante o movimento modernista nas artes, um dos seus momentos mais significativos. Durante esse movimento, buscou-se uma expressão musical tipicamente brasileira, segundo ideais nacionalistas do modernismo, defendidos principalmente por Mário de Andrade, que também era músico, pianista e musicólogo, e a quem se devem extensas pesquisas sobre a música brasileira. Dentre seus vários trabalhos sobre música (Andrade, 1984, 1962, 1980), encontra-se o Ensaio sobre a música brasileira, escrito em 1928, no qual expõe princípios orientadores de uma escrita musical brasileira, mediante a “observação inteligente do populário e aproveitamento dele” para o desenvolvimento da música artística (Andrade, 1962, p. 24). Nessa época, uma infinidade de cantos populares, rurais e urbanos foram recolhidos de várias partes do país e utilizados por compositores como Villa-Lobos, Ernani Braga, Francisco Mignone ou Lorenzo Fernandez, entre vários outros, especialmente na escrita de canções de câmara. Mas o que pode ser considerado “nacional” nas canções de câmara, particularmente nas canções de Lorenzo Fernandez?

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sonoridades, movimentos, climas, ambiências, sensações, cores, luzes, sentimentos e afetos que se manifestam nas diversas linguagens contidas na canção.

Um dos modos de se pensar a canção de câmara como uma forma que traduz aspectos de brasilidade seria por meio das imagens que a canção pode criar. As imagens se colocam como veio operador para se pensar a significação das canções. Podemos compreender a canção como um tecido significante. Nas canções, a música está ligada à palavra, o que de certa forma orienta o estabelecimento de cadeias de interpretantes e permite uma entrada mais objetiva em sua trama de signos-significantes, dirigindo o intérprete-ouvinte no seu ato de interpretação. Entretanto, a sonoridade da poesia aliada à sonoridade musical aponta para uma significação que se estabelece para além do aspecto discursivo da canção.

A questão da significação em música é polêmica. Segundo a historiadora e musicóloga Sandra Loureiro de Freitas Reis (2001, p.322), no período romântico achava-se que era possível transmitir emoções através da música. Reflexões acerca do sentido em música no séc. XIX giraram em torno do conceito de absolute Tonkunst defendido por Hanslick e das ideias de Gesamtkunstwerk de Wagner ou Programm-Musik de Liszt. Absolute Tonkunst corresponde ao ideal de “música absoluta”, sem referente externo, do qual se afastam todas as formas de composição ligadas à palavra e à representação de alguma ideia, em oposição à música de programa e à Gesamtkunstwerk, união das artes, especialmente da música, da poesia e do teatro, no drama musical (Cf. Gandelman, p.86). Sandra Reis (2005, p.241) enfatiza que, segundo os positivistas, a música pura não fala: “ela se remete a si mesma, não tem uma relação direta com a realidade do mundo das coisas. É simplesmente música, uma linguagem abstrata que não pode ter um outro sentido”.

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Como se dá, portanto, a construção de sentido nas canções? Neste estudo, minhas reflexões sugerem que a construção de sentido deve ser apreendida numa leitura que articule elementos literais da poesia e da música e aqueles que se encontram além desta literalidade. Poesia é também som, movimento, visualidade. A materialidade do som é significativa, não se prende às limitações do discurso. Também na música, nas formas sonoras discursivas, o som como materialidade, como matéria plástica, pode ser significativo. Minha hipótese é de que a música, ao ser compartilhada com o texto poético, amplia as possibilidades de significação em ambos os domínios e que, portanto, a canção pode criar imagens de diferentes modalidades, por meio de seus elementos musicais e literários. Por meio de uma análise que busque compreender a interlocução que se estabelece entre os textos literário e musical sob o ponto de vista das imagens criadas, e que leve em consideração os vários aspectos da produção e da recepção da obra, pretendemos chegar a algumas possibilidades de respostas para esta pergunta.

Para investigar as questões referentes à brasilidade e à construção de sentido nas canções através de imagens, as canções de Lorenzo Fernandez mostram-se como campo fértil. Essas canções pintam quadros sonoros de paisagens brasileiras dos sertões, das praias, das cidades, de antigas fazendas de escravos, sugerem dedilhados de viola, serestas, batuques. Sua música se apropria de muitas vozes brasileiras, pois são vários os personagens que povoam sua obra, como o tropeiro, o caboclo, o seresteiro da cidade, o violeiro do sertão, a mãe d’água, a senhora da casa grande e a escrava. Em sua elaboração musical, vários personagens entram em cena ao mesmo tempo, configurados simultaneamente pela linha do canto e pelo piano. Às imagens evocadas pelos poemas outras tantas imagens musicais se somam. Essas imagens são de modalidades sensoriais diversas: visuais, auditivas, cinéticas. Não se atêm a um momento específico. São espacializadas no tempo e convergem para um “instante ativo presentificado, prenhe de presente, passado e futuro” (Bachelard, 1988, p.39). As canções de Lorenzo Fernandez, pelo contexto histórico em que se inserem, pela sua riqueza musical e sua diversidade temática, apresentam-se como um corpus relevante para aprofundamento de estudos relativos à canção de câmara e à inter-relação entre os textos verbal e musical.

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que podemos apreender em Lorenzo Fernandez. Pretendo mostrar, sob essa ótica, que as canções de Lorenzo Fernandez criam, elaboram e traduzem imagens que em si constroem uma certa ideia de brasilidade.

Quais as faces de brasilidade essas canções revelam? Como a nação pode ser pensada por meio dessas canções? Como se inter-relacionam os diversos elementos constitutivos dos textos literário e musical dessas canções? Pretendo demonstrar que existem relações entre a maneira como diferentes poetas manifestaram suas impressões sobre o país e a época histórica, e que, por sua vez, existem relações entre a maneira como esses poetas se exprimiam e o modo de expressão de Lorenzo Fernandez.

Interessa-nos também averiguar a particularidade da leitura que esse compositor realizou de diversos poetas, leitura esta realizada quase sempre contemporaneamente à escrita dos poemas. Alfredo Bosi (2004, p.12), ao mencionar as relações do poema com os tempos da sociedade, nos diz que “importa trazer à luz da consciência as respostas muitas vezes tensas que a obra poética dá às ideologias dominantes, venham estas do mercado, do poder do Estado ou das várias instituições senhoras da palavra”. Uma das questões levantadas é até que ponto a elaboração artística do compositor esteve ligada às ideologias dominantes das correntes nacionalistas que imaginavam uma realidade brasileira integrada e homogênea.

Finalmente, procuro perceber como nossa leitura atual das canções pode se relacionar com a leitura que o compositor realizou dos diversos poemas, e como essas canções nos falam em nossa contemporaneidade. Pretendo averiguar as possibilidades que o intérprete encontra de acessar essas interlocuções. Acredito que, assumindo uma postura de tradutor2, buscando a compreensão da gênese e das estruturas internas da canção como fundamento interpretativo, e valendo-se do trabalho da memória, o intérprete de hoje pode ser capaz de se reaproximar e de se apropriar dessas canções.

Dentre o conjunto de canções compostas por Lorenzo Fernandez, foram escolhidas algumas representativas dos diversos períodos por que passou sua escrita musical, abrangendo as décadas de 1920, 1930 e 1940. A escolha leva em conta a diversidade de poetas, alguns de grande representatividade na poesia brasileira, as diferentes temáticas abordadas e, principalmente, os aspectos imagísticos pronunciados presentes nessas canções. Este corpus oferece a possibilidade de um estudo comparado de

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diversos autores, entre os quais acredita-se haver um elo comum que se manifesta através do olhar sensível do compositor.

As canções escolhidas são: A saudade (1921), com poema de Luís Carlos da Fonseca; Berceuse da onda que leva o pequeno náufrago (1928), com poema de Cecília Meireles; Toada p’ra você (1928), com poema de Mário de Andrade; Tapera (1929), com poema de Cassiano Ricardo; Canção do mar (1934), com poema de Manuel Bandeira; Essa negra Fulô (1934), com poema de Jorge de Lima; Vesperal (1946), com poema de Ronald de Carvalho.

Nesta tese, ao elaborarmos uma metodologia de análise e interpretação da canção, utilizando-nos da imagem como operador teórico, devemos levar em conta que a canção de câmara brasileira é um objeto de estudo complexo. De constituição heterogênea, contaminada pelo contexto social e político, abordando uma diversidade de sujeitos e temas, a canção de câmara brasileira apresenta-se como espaço de articulação entre várias áreas do conhecimento, além da literatura e da música. Sua complexidade aponta para abordagens transdisciplinares.

As abordagens transdisciplinares constituem uma alternativa de estudo e pesquisa, no contexto atual caracterizado pela acumulação e expansão de uma massa enorme de conhecimento, tornando impossível ao especialista conhecer todas as informações pertinentes à sua disciplina e especialidade.

O estudioso da canção de câmara se depara com uma vasta zona de indefinição de conhecimentos que seriam pertinentes para suas tomadas de decisões interpretativas. A própria disciplina música encontra-se segmentada em seus diversos campos teóricos e práticos. As áreas relativas a conhecimentos como harmonia e contraponto, composição e análise nem sempre desenvolvem seus estudos de forma comparativa ao campo primordialmente heurístico relativo à técnica e à performance musical, e vice-versa. A dificuldade em lidar com os vários aspectos referentes ao estudo da canção exige o compartilhamento do conhecimento e o chamado “olhar cruzado” (Domingues, 2005, p. 29), ou olhar transdisciplinar, que permite a interlocução de vários especialistas de disciplinas diversas.

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alargar os princípios das disciplinas, redefinir-lhes os parâmetros, objetivando gerar métodos de estudo e de conhecimento que podem ser tanto abrangentes como sintéticos.

As abordagens transdisciplinares exigem uma nova tópica do conhecimento, ou seja, um novo modo de organizar e dispor o conhecimento, de modo a reunir várias áreas do saber. A tópica transdisciplinar toma como modelo a rede. Esta rede não é como uma rede de pescador, trançada e organizada em malhas, mas como uma rede da informática, dos neurônios e das telecomunicações, organizada em pontos que se agrupam, podendo estar todos eles conectados ou não. Esta tópica permite o agrupamento de várias áreas do saber num sistema aberto e não hierarquizado, possibilitando a introdução de referências cruzadas em todos os campos de conhecimento (Cf. Domingues, 2005, p. 34).3

Apoiando-nos no modo de organizar o conhecimento baseado no modelo de rede, nesta tese pretendemos desenvolver uma metodologia transdisciplinar para o estudo da canção de câmara, que consiste no estudo integrado de música e literatura por meio de uma abordagem intersemiótica comum, tendo a imagem como conceito transversal que perpassa as duas disciplinas. Nossa procura por uma metodologia compartilhada entre as duas áreas não entraria em choque, necessariamente, com a existência de técnicas e instrumentos de pesquisa específicos de cada área.

A canção de câmara nacionalista é, acima de tudo, arte, e, como tal, mostra-se como campo indisciplinado. É trabalho de criação artística e, assim, ao procurar transpor aspectos de uma realidade brasileira em música, recria nosso ambiente sociocultural, reinventa ritos, danças, ritmos, palavras. Conjuga vários sujeitos, vários tempos, várias temporalidades. Interpreta esta realidade dela se apropriando. No estudo interpretativo da canção de câmara, rastrear todas essas manifestações culturais e as implicações sociais e políticas desse emaranhado tecido seria tarefa impraticável. Sem pretensões de esgotar o todo, a teoria transdisciplinar pode permitir uma abordagem ampla deste objeto de estudo, articulando ferramentas analíticas do pensamento e do discurso com a intuição criadora. O trabalho de interpretação na pós-modernidade, ao se voltar para as produções do passado, detecta áreas de indefinição, convive com incertezas, e “acolhe, por isso, o irracional e o

3 Conquanto o modelo de rede seja uma proposição bastante atual, algumas teorias ao longo do século XX já

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acaso”, conforme nos diz Wander Miranda (1992, p.45). Além disso, esse trabalho pode aliar-se à lógica e à pesquisa com o objetivo de atingir um grau mais aprofundado de compreensão dos objetos de estudo.

Nesta tese, para averiguarmos como uma canção pode traduzir uma certa ideia de brasilidade e como as canções de Lorenzo Fernandez constroem essas ideias por meio de imagens, trabalharemos seguindo dois eixos principais de pesquisa.

No primeiro eixo, de caráter histórico, social, político, cultural e estético, procuramos averiguar o sentido do nacional em música, a formação de brasilidade na música brasileira, as ideologias que dirigiram os processos composicionais, a vasta heterogeneidade interna. Averiguamos também os motivos pelos quais a canção veio progressivamente se distanciando dos intérpretes e do público e apresentamos estratégias para sua revalorização.

No segundo eixo de pesquisa, de caráter teórico, enfocamos estratégias específicas para abordagens interpretativas de um repertório tão amplo, diversificado e complexo, e desenvolvemos nossa hipótese de que a canção pode criar imagens. Nossa proposta é reunir elementos que nos permitam pensar como se constitui o objeto canção e como esse objeto pode ser percebido. O que pretendemos, em suma, é a construção de sentido na canção. Devido à sua heterogeneidade, à sua articulação em rede e à necessidade do aporte transdisciplinar exigido do pesquisador intérprete, optamos por enfocar a canção por meio de algumas abordagens teórico-metodológicas, entre as quais as teorias tradutórias, elaboradas inicialmente por artistas escritores para refletir sobre a tradução de textos poéticos, especialmente as teorias de Walter Benjamin, Paul Valéry, Haroldo de Campos, Octavio Paz e Humberto Eco; a semiologia musical, adotando para tanto o modelo tripartite de Jean Molino e Jean Jacques Nattiez4, e a distinção dos diferentes níveis signicos formulada por Charles Sanders Peirce.

Desta forma, para demonstrarmos que a canção de Lorenzo Fernandez pode traduzir certas ideias de brasilidade por meio de imagens, tornou-se necessário averiguar as especificidades de conformação do intertecido musical brasileiro para entendermos sua heterogeneidade e para verificarmos o que foi considerado o “nacional” em música durante

4 Nattiez utiliza o termo semiologia com o mesmo sentido do termo semiótica, sendo que a utilização de tal

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os períodos nacionalistas, compreendendo o contexto histórico também como uma construção sempre submetida a novas modelações. Assim, no Capítulo 1, apresentamos uma contextualização histórico-estilística do modernismo nacionalista e questionamos paradigmas duais como o nacional e o universal, e o erudito e o popular. Pesquisamos a formação de brasilidade na música brasileira nacionalista, abordando dois pontos fundamentais: a utilização de procedimentos próprios da escrita musical, abrangendo questões estilísticas, e o diálogo entre as classes cultas, detentoras do conhecimento da escrita musical dita erudita, e as classes populares com suas tradições orais. Apresentamos o compositor Lorenzo Fernandez inserido no contexto nacionalista e dispomos sobre as características estilísticas de sua escrita. O contexto artístico nacionalista, suas características estilísticas, sociais e políticas nos permitirão a construção de hipóteses poiéticas externas5 que nos auxiliem na interpretação das canções de Lorenzo Fernandez e na averiguação de suas imagens de brasilidade. Por uma questão metodológica, optamos por colocar nosso foco sobre Lorenzo Fernandez, para podermos abordar um maior número de poetas e composições.

Para desenvolvermos nossa tese de que a canção pode criar imagens, apresentamos, no Capítulo 2, um arcabouço teórico-instrumental para construir o objeto canção e pensar sobre sua interpretação. Propomos a canção como uma dupla tradução, levando em conta os processos para a sua produção e para a sua recepção, estabelecendo a canção como um texto multimídia. Discorremos a respeito da atitude criativa e de método para estabelecer prioridades em sua tradução. Abordamos as possibilidades de construção de sentido em poesia e em música, valendo-nos das teorias tradutórias, das ideias do linguista Louis Helmslev e da semiologia musical, e adotamos o modelo tripartite da semiologia musical de J.J. Nattiez para conectar obra, autor e intérprete. Por fim, estabelecemos paralelos entre as noções de tradução e a interpretação musical. Com isso, estabelecemos as bases teóricas para propor a imagem como operador conceitual, um conceito transversal para pensar a significação em poesia e em música, possibilitando a conexão dos elementos heterogêneos presentes na canção. Partimos das ideias do mosaico e da rede para pensar como se inter-relacionam as múltiplas imagens na canção e propomos uma definição de imagem - percebida ou evocada, e considerada por meio de um processo ativo de percepção - que se estende às diversas categorias sensoriais. A

5 Fazemos aqui referência aos três níveis do objeto simbólico: poiético, imanente e estésico, de acordo com o

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seguir, verificamos como pode se dar a percepção simbólica das estruturas musicais, utilizando-nos dos níveis signicos distinguidos por Peirce. Ainda neste capítulo, demonstramos, por meio do operador imagem, como se traduzem nas canções de Lorenzo Fernandez as ideias de tempo, espaço, movimento, cores, luzes, sentimentos e afetos, elementos comuns às linguagens verbal e musical da canção.

No Capítulo 3, continuando o trabalho de reflexão sobre as canções de Lorenzo Fernandez, as canções foram agrupadas de acordo com os tipos de imagens percebidas: imagens da noite, imagens do mar, imagens de paisagens e personagens e imagens da memória, a partir das quais pretendeu-se averiguar a ideia de brasilidade que nas canções e a partir delas se constitui.

Na Conclusão, focamos no trabalho do intérprete na atualidade. Refletimos sobre como a percepção simbólica das imagens molda a interpretação de um intérprete e como ele é capaz de acessar as interlocuções que se estabelecem na canção. Pensando o intérprete como um tradutor, verificamos quais elementos ele elegerá para manter o “efeito” da canção. Finalmente, procuramos avaliar a pertinência das canções de Lorenzo Fernandez no contexto atual e buscamos realizar o que Alfredo Bosi (2004, p. 19) denomina, de forma sensível e inspirada, como o “encontro dos tempos”.

Inserindo na perspectiva da análise a figura do compositor e do intérprete, busca-se reconstruir o conjunto das operações “pelas quais uma obra eleva-se do fundo opaco do viver, do agir e do sofrer, para ser dada, por um ator, a um leitor que a recebe e assim muda o seu agir” (Ricoeur, 1994, p.86).

Muito foi pensado quanto às maneiras de montar a estrutura desta tese e de como organizar seu conteúdo. Uma primeira ideia foi cogitada. Consistia em tomar o foco principal desta tese, ou seja, a formulação do conceito de imagem, e ir disseminando-a ao longo dos capítulos. Teríamos então, num paralelo com a música, uma forma resultante que se aproximaria de um Rondó. O Rondó é uma das formas mais antigas da história da música ocidental, tendo surgido na idade média. Posteriormente, tomou parte das suítes de danças barrocas e mais tarde foi utilizado em movimentos de sonatas e sinfonias. A forma resultante pode ser esquematizada da seguinte maneira:

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Em um Rondó, um tema musical principal se alterna com temas diferentes. Esta forma cria uma sensação de porto seguro quando da reapresentação da melodia conhecida. Confere um certo bem-estar por nos propiciar uma zona de conforto.

Poderíamos então pensar numa forma mais sofisticada, uma forma espiralar, ainda baseada no Rondó, mas com a diferença de que, toda vez que a seção A é retomada, ela já vem com uma nova elaboração num nível de complexidade mais elevado. A forma é mais espacial, como a espiral mesmo nos mostra, mas podemos tentar esquematizá-la da seguinte maneira:

A B A’ C A’’ D ...

Já tivemos a oportunidade de ler elaborações literárias escritas nesta forma, como os belos e profundos textos de Leda Maria Martins (2002). Essa forma requer a perspicácia e o afinco do leitor, que deverá ter a capacidade de reconstruir o todo da proposição principal, baseando-se em todas as suas partes.

A escolha de uma forma é uma questão de estilo, de possibilidade e também do tipo de material disponível que se pretende desenvolver. Alguns temas são mais propícios a Fugas, outros a Rondós, outros a Tema e Variações, outros a formas que denominamos “Totalmente Compostas”, na qual um mesmo material vai sendo desenvolvido progressivamente.

O foco de minha tese é realmente a imagem, mas posso dizer que tenho duas questões principais a abordar: uma de caráter histórico e contextual, na qual procuro elementos para pensar sobre brasilidade, outra em que desenvolvo proposições teóricas, na qual a imagem se inclui. Poderia chamar esta primeira questão de A, e a segunda questão de B. A questão A será desenvolvida no primeiro capítulo e a questão B no segundo capítulo. Posteriormente, num terceiro capítulo, dedicado às interpretações das canções, todos os elementos de A e de B serão retomados, mas de maneira contextualizada e reelaborada, sempre em conjunção com os textos poéticos e musicais das canções de Lorenzo Fernandez. Na conclusão, A e B serão retomados com variações, antes das considerações finais.

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1. Introdução

A Exposição do primeiro tema B Exposição do segundo tema

C Desenvolvimento: Retomada dos dois temas com variações diversas de tonalidade, de melodia e ritmo, gerando certa instabilidade.

D Reexposição do tema e contratema (A e B) com variações e preparação para o final

E Coda: Seção conclusiva com reafirmação dos temas

Grande parte da música erudita ocidental tem na Forma Sonata sua estrutura arquitetônica solidamente edificada. É uma forma que surgiu no classicismo e foi consolidada por autores como Haydn, Mozart e Beethoven.

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Capítulo 1

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1. O modernismo nacionalista

1.1 Contexto histórico: tradição e ruptura

O início do séc XX foi marcado por diversas e contraditórias faces que resultaram do estabelecimento do capitalismo e do modo de vida urbano e industrial. A Europa vivia um período de efervescência econômica e cultural, a Belle Époque, centralizada em Paris e em Viena. Ao lado das classes sociais beneficiadas pelos setores industriais em ascensão, a classe operária, no entanto, continuava à margem do progresso material, dando início aos movimentos de reivindicação trabalhista. A época presencia movimentações sociais crescentes e tensão internacional que culminarão na Primeira Guerra Mundial.

Nas artes ocorrem profundas transformações. O início daquele século presenciou o afloramento de diversos movimentos modernistas, na Europa e nas Américas, que buscavam novos tipos de relações e combinações artísticas. O que marcou o espírito da arte moderna foi o desejo de libertação dos padrões estéticos do passado e a busca de uma forma de expressão artística nova e sintonizada com a mentalidade do novo século. A procura por uma liberdade de expressão artística aconteceu concomitante à contestação dos modelos sociais dominantes. De uma forma geral, os movimentos de vanguarda que surgiram nos principais polos culturais europeus – Paris, Milão, Viena ou Berlim – “almejavam contestar as culturas oficiais preservadas pela burguesia e aristocracia, durante o séc. XIX até a eclosão da Primeira Guerra Mundial” (Contier, 1992, p.259). Após o Impressionismo, estabelecido como corrente artística nas últimas décadas do século XIX, desencadearam-se reações consequentes ou paralelas. O Cubismo afirma-se em 1909, em torno de Picasso. Nesse mesmo ano, foi publicado o primeiro Manifesto Futurista de Marinetti. Na Alemanha, delineia-se o Expressionismo e, em 1916, nasce o Dadaísmo em Zurich. Em 1918, Apollinaire publica Caligramas. Em 1923, Schoenberg finaliza sua teoria dodecafônica e, em 1924, com o Primeiro Manifesto Surrealista de André Breton, explode a derradeira vanguarda europeia.

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funcional”6 na qual cada evento musical exerce uma função que o relaciona com o anterior ou o subsequente, o que faz com que todas as notas de uma peça se encontrem firmemente ligadas a cada uma das outras numa relação de causa e efeito. Neste contexto em que a música se constrói com base numa expectativa de eventos, são pertinentes as ideias de dissonância e consonância, instabilidade e repouso, tensão e relaxamento, que irão conformar a sintaxe musical. Por volta da virada do século, a validade inquestionável dos conceitos que regiam o sistema tonal deixa de ser aceita. A música de Debussy (1862-1918), Schoenberg (1874-1951) e Stravinsky (1882-1971) não depende mais da expectativa de que um evento musical deveria implicar em outro e inicia novos tipos de relações. Novas formas de movimento e repouso são estabelecidas com novos meios. Satie (1866-1925) é o primeiro compositor a usar o som – desconectado, estático, som objetivo – de uma forma abstrata, essencialmente divorciada dos princípios estruturais e organizacionais da forma e desenvolvimento tonais.

As vanguardas se debatiam contra a ordem social e artística estabelecida e enfrentavam o gosto sacralizado do público e da crítica, chocando as elites culturais e provocando escândalos. Conforme Arno Mayer (1987, p.189) “o consumo da alta arte e cultura constituía o símbolo e a consagração de posições de classe adquiridas ou cobiçadas, prestígio e influência em sociedades que se mantinham nitidamente tradicionais”. Os artistas de vanguarda, ao se colocarem contra a arte cultivada pelas elites, traduzem seu posicionamento como ruptura ou revolução, opondo-se ao atraso estético mantido por uma burguesia considerada retrógrada. Há que se lembrar que, da segunda metade do século XIX até a primeira Guerra Mundia, a Europa experimentou um período de efervescência cultural, momento em que se acelera a fusão do gosto da aristocracia e das burguesias liberais. Intérpretes circulavam por toda a Europa, executando o repertório baseado na tradição clássico-romântica, sob o mecenato de famílias influentes. O passado clássico romântico consolidou-se na mentalidade de segmentos sociais consumidores da chamada

6 A palavra ‘tonalidade” pode ser definida de uma maneira geral como a representação de uma formação de

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arte culta. Portanto, se os movimentos de vanguarda, nos seus primórdios, eram apoiados por uma elite intelectual preocupada com a renovação das artes, não recebiam, como era de se esperar, recursos financeiros das classes dominantes nem do Estado. Na verdade, a curto prazo, “os modernistas foram refreados e isolados de forma efetiva, se necessário com medidas jurídicas e administrativas de controle” (Contier, 1992, p.261).

No fogo cruzado em que se encontravam, repudiados pelos partidários dos ideais clássico-românticos e entrando em choque e divergências com os próprios modernistas, alguns artistas se isolaram ou retomaram técnicas tradicionais neoclássicas ou neorromânticas, ajustando-se às mentalidades dominantes. Após a Primeira Guerra Mundial, como se verá a seguir, os regimes ditatoriais de governo que se instalaram, por exemplo, na Itália, Alemanha, Rússia e Brasil, foram responsáveis por apoiar ideias e segmentos artísticos ajustados a ideologias que correspondiam aos ideais de construção de nação hegemônica. Nesse contexto, torna-se necessário verificar como os ideais nacionalistas estiveram presentes direta ou indiretamente nos movimentos musicais de vanguarda e nos rumos da música durante a primeira metade do século XX.

1.2 Nacionalismos, vanguardas, desdobramentos

Em seu estudo sobre o crescimento e a gênese da música nacional na Europa, Paulo Renato Guerios conclui que a ideia de uma música nacional surge ao longo de um intrincado processo histórico. Para Guerios (2003, p.72), “a ideia da existência de nações constituídas por um povo com uma cultura que lhe é peculiar e com um espírito que lhe é próprio surgiu apenas no século XVIII, pela pena de pensadores que aos poucos se afirmariam, mais e mais, como alemães”.

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Herder em fins do século XVIII, era buscado nos costumes primitivos dos camponeses, afastados da influência de povos estrangeiros, principalmente dos franceses.

Em vista de sua posição hegemônica no cenário cultural europeu, padrões musicais tidos como “universais” eram ditados pela França, Itália ou Alemanha, e a ideia de música nacional firma-se como alternativa, não tanto artística, quanto social e política, para os compositores dos outros países, ou, na conclusão de Guerios:

Ao longo do tempo, uma determinada manifestação estética, chamada pelo nome englobante de música ocidental, impôs-se como padrão universal sobre o qual outras manifestações, as músicas dos “países periféricos”, deveriam se construir para ser uma expressão do espírito humano. Com características próprias, Itália, Alemanha e França, centros da música ocidental, tinham a primazia na definição das formas válidas da arte, ou, em seus próprios termos, na definição das formas universais de expressão do ser humano. Inúmeros caminhos alternativos teriam sido possíveis; mas foi a ideia de música nacional formada paulatinamente ao longo do século XIX na Europa que adquiriu importância fundamental e se espalhou pelo mundo a partir de então. (...) Ao se dirigirem para os grandes centros em busca de formação e ao entrarem em contato com tais ideias, os novos artistas aos poucos se constituíam não só enquanto artistas, mas enquanto artistas nacionais. Tomavam para si definições, demandas e expectativas geradas nos grandes centros e construíam sobre elas. A música nacional assumia então estatuto ontológico. Ela passou a ser uma representação com eficácia social, ou seja, uma ideia que possuía para seus nativos uma existência concreta jamais colocada em questão. Restava a eles apenas revelá-la (...) Em retorno, essas obras realizadas sob inspiração nacional podiam ser apropriadas como demonstração da existência da própria nação, que, assim, com o auxílio de seus artistas, se afirmava igual às outras. Os artistas e suas produções passavam a fazer parte de projetos de autoafirmação das nações, reafirmando sua existência e inspirando suas lutas por soberania (GUERIOS, 2003, p.82, itálicos do autor).

As correntes musicais que empregavam elementos folclóricos nacionais continuaram a crescer ao longo do período romântico, constituindo-se em uma das tendências verificadas nas primeiras décadas do século XX. Mas pode-se dizer que os movimentos de vanguarda na Itália, França ou Alemanha guardaram, por sua vez, características nacionalistas, regidos como foram pela forte afirmação das raízes identitárias, culturais ou políticas de seus países, ocasionando, muitas vezes, reflexos imediatos na estrutura musical resultante das obras do período.

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programa da fundação do Partido Político Futurista, que visava transformar-se num movimento em prol da organização das massas. Depois da fundação do Partido Fascista, em 1922, os ideais futuristas harmonizam-se gradativamente com as práticas fascistas. Defendia-se uma arte para as massas, grandiloquente, símbolo de um novo regime. Assim, as óperas românticas são resgatadas em grandes encenações: Lucia de Lammermoor, Aída, La Traviata. As práticas neoclássicas e neorromânticas são compatíveis com o Estado Novo de Mussolini.

Na França, em 1918, Jean Cocteau lança o manifesto Le Coq et L’Arlequin, em nome do “Grupo dos Seis”, pregando uma “arte realista, simples, nua”. O espírito nacionalista exacerbado, característico do pós-guerra , é perceptível nas reações contra elementos típicos da obra de Wagner, nas tentativas de fugir à influência russa e na oposição aos longos desenvolvimentos das sonatas e sinfonias de tradição alemã. O movimento se coloca contra as sutilezas harmônicas do impressionismo de Debussy e prioriza contrapontos simples de duas ou mais frases bem nítidas, em arquiteturas composicionais simples e claras, em cores fortes (Cf. Wisnik, 1977, p. 46). Além disso, cultivavam-se estilos populares urbanos ligeiros, música de salão, de cafés, assim como o jazz.

A questão nacionalista torna-se implícita nos ideais dos futuristas italianos e dos partidários do Grupo dos Seis. Na Alemanha, em relação à escola dodecafônica de Schoenberg, Alban Berg e Webern, embora a questão nacional não seja evidente em seus temas e estruturas musicais, sabe-se que Schoenberg pretendia, com o sistema por ele inventado, manter a hegemonia da tradição germânica na música por mais um século. Segundo Salzman (1988, p. 115), dos mestres do início do séc. XX, Schoenberg foi aquele mais envolvido em redescobrir o significado profundo e universal da grande tradição. Em 1933, depois do advento de Hitler, Schoenberg foi forçado a deixar a Alemanha, tendo emigrado para os Estados Unidos, onde permaneceu para o resto da vida. Muitos de seus trabalhos escritos neste país mostram um retorno pronunciado ou parcial ao idioma tonal, não em sentido de renúncia, mas de alargamento das possibilidades de sua técnica.

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“música nova” (Cf. Grout e Palisca, 1988, p. 807). “Nova”, refletindo uma quase total rejeição dos princípios aceitos regulando tonalidade, ritmo e forma.

Entre 1930 e 1950, a distância entre a música nova e a antiga diminuiu, com os compositores trabalhando por uma síntese das duas. A censura do governo na Rússia e na Alemanha, depois de 1930, serviu para isolar o público da “música nova”, condenada no primeiro país como “decadência burguesa” e no outro como “bolchevismo cultural”. Paralelamente, campanhas culturais como a “música de trabalho” na Alemanha, a “música proletária” nas Repúblicas Soviéticas, e o “canto orfeônico” no Brasil, assim como a utilização de músicas como “back ground” de filmes, escritas por compositores de primeira linha, em todos os países, levavam música para mais pessoas. Além disso, o advento do rádio e dos meios de reprodução, além de permitir o crescimento da música popular, propiciou uma disseminação sem precedentes do repertório clássico, de Vivaldi a Prokovief.

Entretanto, depois de 1950, a distância entre a música antiga e a nova se alargou, pois a música dos anos de 1950 e 1960 foi mais radicalmente nova do que a de 1920.

Quatro tendências principais, não excludentes, podem então ser traçadas na música da primeira metade do séc. XX: as tendências que empregaram significativamente elementos folclóricos nacionais; o surgimento de tendências neoclássicas ou neotonais que incorporaram descobertas do início do século a técnicas e formas do passado, seguidas, por exemplo, por Stravinsky, em sua segunda fase, e Ravel; as tendências que empregaram as técnicas dodecafônicas e, finalmente, parcialmente em reação às grandes mudanças do início do século, uma volta às linguagens simples, neorromânticas, agradáveis ao público. Essas quatro tendências se sobrepuseram no tempo e comportaram práticas diversas, sendo que mais de uma delas foram evidentes em um único compositor e até numa única obra.

1.3 Registro e expressão

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maioria caracterizados como nacionalistas, entre eles Lorenzo Fernandez e Villa-Lobos, Manuel de Falla, Vaughan Williams, Bartók e Kodály, Respighi e Puccini, todos de alguma forma interessados em estabelecer um tipo de estilo tonal/modal baseado numa tradição musical local particular ou de uma nova linguagem que quebrasse as fronteiras da tonalidade clássica. Para eles, o novo vocabulário oferecia uma série de recursos expressivos e formais com os quais uma grande variedade de ideias e materiais podiam ser expandidos, integrados e se tornarem expressivos. As novas técnicas harmônicas livres combinavam-se com a tradição melódica modal – fato que Debussy também explorou – sugerindo um tipo natural de utilizar material folclórico sem a necessidade de apertá-lo em padrões tonais pré-estabelecidos (Cf. Salzman, 1988, p. 25-26).

A linguagem musical impressionista coloca seu enfoque no som como matéria plástica, desligado das relações de causa e efeito típicas do sistema tonal. Segundo Salzman (op. cit. p. 21-23), a ambiguidade das relações tonais faz com que ritmo, frase, dinâmica, acento e timbre se libertem da dependência do movimento tonal e ganhem importância no processo musical semelhante à da melodia ou harmonia. Nas obras de Debussy, sons e padrões sonoros se relacionam uns com os outros com critérios arbitrários e sensuais, desvencilhados das necessidades de movimento e resolução governados pela lógica tonal, criando formas cuja lógica estrutural independe das antigas convenções aceitas. Seu vocabulário de sons é escolhido por suas qualidades empíricas e o movimento de um padrão sonoro ao outro é construído através de relações intervalares e paralelismo de estruturas.

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posicionar de forma revolucionária no que diz respeito aos aspectos formais de suas obras, que se tornaram imprecisos, diluídos, pulverizados.

Vários procedimentos musicais sugerem analogias com os procedimentos impressionistas na pintura: padrões estruturais desvencilhados das tradicionais formas clássicas da música tonal, diluição da linha melódica, tonalidade diluída pela ausência de terças, paralelismo de quartas e quintas, presença de acordes sem função tonal com ênfase dada ao colorido harmônico e uso de escalas de tons inteiros eliminando centros tonais. A analogia também é sugerida por composições cujos títulos sugerem associações pictóricas remanescentes dos trabalhos dos pintores impressionistas: Nuvens, A catedral submersa, Reflexos na água. Na música, os acordes podem ser percebidos como borrões sonoros. Diluem-se a melodia, a forma e o ritmo, assim como na pintura se dissolvem os contornos e as cores. Os compositores impressionistas praticam uma arte de nuances, evocando o mar, as ondas, as nuvens e o vento.

Também no Impressionismo literário7, o poeta pretende “registrar a impressão que a realidade provoca no espírito do artista, no momento mesmo em que se dá a impressão” (Coutinho, 1990, p. 223). A reprodução da realidade de maneira impessoal e objetiva, que constituía a norma realista, cede lugar ao registro de uma realidade em que não é o objeto, mas as sensações e emoções que ele desperta, num dado instante, em um observador, que são por ele reproduzidas. "Ao invés de retratar o objeto exterior, para o qual se volta sempre, o poeta identifica-o com o que lhe vai na sensibilidade e na consciência poética, isto é, com o seu mundo interior” (Moisés, 1972, p.218). O poeta impressionista representa de forma vaga e fragmentária um objeto como é visto e sentido num dado momento. A atitude impressionista pode ser sintetizada na ideia de Heráclito de que o homem não mergulha duas vezes da mesma maneira no rio da vida em eterno movimento. O Impressionismo representa o "domínio do momento sobre a continuidade e a permanência, pois a realidade não é um estado coerente e estável, mas um vir-a-ser, um processo em curso, em crescimento e decadência, uma metamorfose” (Coutinho, 1990, p. 224).

7Nos fins do século XIX e no início do século XX, há um momento na literatura ocidental em que se cruzam

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O estilo impressionista passou a se caracterizar pela diluição dos contornos métricos do texto, pelo abandono da estrutura regular da frase desprendida das relações lógico-gramaticais e utilização de frases curtas e acumulativas, pela liberdade expressiva, pelo jogo metafórico, pela qualidade plástica da forma. Escritores retomam dos pintores seus temas prediletos: a água, a luz, as vibrações, os reflexos, o vento, recriando, renomeando a realidade, privilegiando a musicalidade dos versos, valorizando a sugestão, o vago, a nuance. Impressões causadas pelo presente tornam-se ponte para as rememorações do passado ou para um mergulho num futuro incerto.

A atitude impressionista na pintura, música e literatura pode ser observada como a notação rápida da impressão fugitiva. Cores, palavras e sons servem ao artista para traduzir sensações experimentadas pelo homem. O músico e o poeta “pintam” aquilo que eles experimentam e o pintor sugere a “música das coisas”. Os artistas serão como “espectadores a contemplar a vida e a revelá-la, a seu modo, dissolvendo aspectos da realidade” (Reis, 2001, p.28).

Em vários aspectos, o Impressionismo na literatura aproxima-se do Simbolismo, levando-se em conta os limites das possibilidades de estabelecimento de categorias estilísticas distintas, sendo que elementos de um e de outro estilo podem estar presentes na obra de um mesmo escritor.8 O Simbolismo como escola poética pode ser considerado como uma espécie de correspondente literário tardio do movimento pictórico impressionista9, embora os dois movimentos tenham sido norteados por motivações distintas. O Simbolismo surge como oposição às correntes analíticas dos meados do século, ou seja, ao Positivismo, ao Realismo e ao Naturalismo, recusando-se a limitar a arte ao objeto, à técnica de produzi-lo, a seu aspecto palpável. De natureza idealista, o movimento simbolista almeja a apreensão direta de “valores transcendentais”, buscando reconquistar o “sentimento de totalidade” que parecia perdido desde a crise do romantismo. Os poetas simbolistas reagem à razão calculista com as armas da “paixão e do sonho” (Bosi, 1979, 293-294). Negando a representação direta das emoções pela palavra, buscam a sugestão de estados de alma e ideias cósmicas.

Conforme observa Sandra Reis (2001, p. 357-358), o Simbolismo nem sempre é impressionista. Por sua vez, o Impressionismo pode apresentar conotações simbólicas,

8Para uma leitura sobre as semelhanças e diferenças entre esses dois estilos literários remetemos o leitor a

COUTINHO. A literatura no Brasil. Volume IV.

9 O Simbolismo como movimento literário recebeu esta denominação de Jean Moréas, em artigo-manifesto

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extrapolando a intenção do registro momentâneo da impressão física que aponta para o real. O Impressionismo torna-se uma ponte para a representação simbólica quando se exprime por meio de formas ambíguas, cada vez mais abstratas, que se afastam do referente real. Já o símbolo, este não pode mais ser devassado em sua integridade, e engendra uma rede de interpretantes que serão percebidos de acordo com cada leitor, fruidor. Se a atitude impressionista oculta, deixando, porém, entrever os aspectos da realidade, o Simbolismo abstrato “gera-se no enigma e faz-se através dele” (Reis, 2001, p.361). O símbolo, na medida estabelecida pelo Simbolismo, é essencialmente indefinível e inesgotável. Assim, nos dizeres do poeta Mallarmé:

Referir-se a um objeto pelo seu nome é suprimir as três quartas partes da fruição do poema que consiste na felicidade de adivinhar pouco a pouco; sugeri-lo, eis o que sonhamos. É o uso perfeito desse mistério que constitui o símbolo; evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou, inversamente, escolher um objeto e desprender dele um estado de alma por uma série de decifrações (MALLARMÉ apud MURICY, 1952, p.31).

Na arte de Mallarmé, o poeta deixa-se conduzir pelo fluxo da linguagem, que apresenta sua razão. Verlaine apregoa a musicalidade do verso. Para Rimbaud, a palavra é realidade concreta, pintura de vogais movimentadas por consoantes. As relações entre as diferentes esferas dos sentidos invocadas por Baudelaire no soneto Correspondences corporificam-se na matéria poética. A disposição das palavras no papel, o uso de espaços brancos, a forma plástica do poema, pausas e rupturas sintáticas que se manifestam na poesia de Mallarmé frutificarão mais tarde nas poéticas de vanguarda do século XX. Poetas do chamado veio crepuscular do Simbolismo, exilados em atmosfera penumbrosa e realizando uma poesia intimista, serão responsáveis pela diluição da métrica acadêmica, levando à prática do verso livre. Segundo Bosi (1979, p. 298) seus ritmos rarefeitos e tons melancólicos podem ser percebidos nos poemas dos modernistas Mário de Andrade e Manuel Bandeira.

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Segundo Salzman (1988, p.25), não houve propriamente o que poderíamos chamar de uma “escola” impressionista na música. O próprio Debussy mal poderia ser chamado de “debussista” em suas últimas obras. Aliás, o termo impressionismo não foi bem-aceito pelo próprio Debussy e o fato de o compositor ter evitado formas tradicionais não implicará em ausência de claridade formal em suas obras (Cf. Randel, 1978, p. 235). Elementos do chamado estilo impressionista podem ser encontrados nos primeiros trabalhos de Ravel e em obras de poucos compositores fora da França.

No Brasil, Villa-Lobos, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone, compositores da chamada primeira geração nacionalista, empregaram recursos técnicos do impressionismo em suas obras como meio de expressão e como um caminho para se libertarem das tendências pós-românticas dominantes. Conforme José Maria Neves (1981, p. 60), a estruturação harmônica complexa e a sonoridade impressionista presente nas primeiras obras de Lorenzo Fernandez revelam o compositor que “tentava libertar-se da tendência pós-romântica, a que estava condicionado por sua formação, através de algo que beira a consciente e sistemática transgressão das normas composicionais, sobretudo harmônicas, aceitas”. Os elementos impressionistas, trabalhados com os recursos próprios de cada compositor, tornaram-se um meio expressivo para esses compositores, que os transformaram e lhes deram novas configurações.

Pode-se dizer que os estilos que se seguiram ao Impressionismo perderam o caráter da imprecisão e da ambiguidade. No Expressionismo, no Futurismo, no Cubismo e no Dadaísmo, a ruptura com as antigas práticas artísticas foi clara, evidente e radical, como as revoluções que se concretizaram no início do século XX. Se no Impressionismo a ideia de modernidade se concretizou como a captação fugaz e instantânea da substância do agora em mutação, e sua atitude revolucionária pode ser percebida mais em sua forma de manifestação do que propriamente na temática enfocada, os movimentos que se seguem, por sua vez, assumirão o caráter de denúncia expressa de um contexto, de uma situação ou de um sentimento que se perpetuam, e que, por sua vez, podem ser percebidos tanto nos temas como nas formas de expressão características dos estilos que sucederam o Impressionismo.

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exibem personagens deformados. Ao universo em transformação da arte impressionista contrapõem-se imagens paralisadas em cores uniformes e em formas pesadas e aplainadas que as tornam quase intemporais. O termo expressionismo surge nas artes visuais e foi aplicado particularmente (mas não exclusivamente) a um grupo de pintores - Nolde, Kirchner, Kokoschka, Kandinsky - que trabalhavam na Alemanha, no período de 1905 a 1912, de certa forma como reação à objetividade do estilo impressionista. Distorção, exagero, formas simbólicas e abstratas eram utilizados pelos pintores como meio de enfatizar seus próprios estados subjetivos e suas interpretações dos assuntos, e de transmitir esses estados e interpretações para o observador.

Na música, a partir de 1908, o termo é usado para caracterizar a criação dos compositores Arnold Schoenberg, Berg e Webern, contemporâneos do movimento na pintura alemã. Embora o termo tenha uso limitado no que diz respeito à descrição de técnicas musicais específicas (Cf. Randel, 1978, 162), algumas analogias com procedimentos pictóricos podem ser feitas, como a utilização da atonalidade ou da deformação de tonalidades definidas através de dissonâncias e notas estranhas à tonalidade; o uso de funções harmônicas definidas e presença de impulsos e pontos de fuga através do direcionamento tonal, tensão e resolução; modulações súbitas, contornos melódicos definidos, porém angulosos ou fragmentados.

Na América Latina, o expressionismo é principalmente uma via de protesto político. No Brasil, a arte mergulha fundo no tenso panorama ideológico da época, buscando analisar as contradições vividas pelo país e representá-las pela linguagem estética. Ao artista cabia a denúncia das desigualdades da sociedade brasileira e as consequências desse desequilíbrio. Desenhos angulosos e cores fortes foram utilizados por Lazar Segal, Portinari e Anita Malfatti.

Referências

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