• Nenhum resultado encontrado

A Teologia e o Estudo da Religião. A Hermenêutica Teológica como reinterpretação da Linguagem da Fé e da Existência Cristã

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "A Teologia e o Estudo da Religião. A Hermenêutica Teológica como reinterpretação da Linguagem da Fé e da Existência Cristã"

Copied!
303
0
0

Texto

(1)

U

NIVERSIDADE

M

ETODISTA DE

S

ÃO

P

AULO

F

ACULDADE DE

F

ILOSOFIA E

C

IÊNCIAS DA

R

ELIGIÃO

P

ROGRAMA DE

P

ÓS

–G

RADUAÇÃO EM

C

IÊNCIAS DA

R

ELIGIÃO

A

TEOLOGIA E O ESTUDO DA RELIGIÃO

.

A hermenêutica teológica como reinterpretação da

linguagem da fé e da existência cristã.

Por

Walter Ferreira Salles

Orientador:

Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães

Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós– graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de doutor.

(2)

A

GRADECIMENTOS

É um ato de justiça e gratidão, que muito me alegra, reconhecer que este trabalho não é fruto de um esforço solitário. Apesar do receio de cometer a indelicadeza de não mencionar o nome de todos aqueles que colaboraram para o êxito deste trabalho, gostaria de agradecer formalmente a algumas destas pessoas que, de perto ou à distância, acompanharam-me ao longo do doutorado.

Inicialmente, quero agradecer a inestimável paciência, o incentivo e o carinho da minha família, que soube com tanta presteza me acompanhar de perto, sobretudo nos momentos áridos de dúvidas, incertezas e dificuldades.

Agradeço igualmente o incentivo dos amigos da Companhia de Jesus (jesuítas), amigos com os quais partilhei muitos anos de minha vida, assim como boa parte da minha formação humana e intelectual.

A meu orientador Antonio Carlos de Melo Magalhães, a minha gratidão pelo apoio, pela orientação na pesquisa e pelas valiosas indicações de leitura, sem as quais o trabalho de pesquisa não teria sido possível. Estendo esta gratidão a todo o corpo docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, de modo particular aos professores Etienne Higuet, Jaci Maraschin e Lauri Wirth com os quais tive a oportunidade de manter ricos debates teológicos.

Não poderia deixar de mencionar o apoio financeiro recebido do IEPG (Instituto Ecumênico de Pós-Graduação) por meio da bolsa de estudo a mim concedida por ocasião do meu ingresso no Programa de Pós-graduação, o que me possibilitou dedicar mais tempo à pesquisa.

(3)

Sinopse:

O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o papel da teologia no estudo da religião, no atual contexto universitário brasileiro. A tese principal deste trabalho está fundamentada na idéia de que a teologia, no estudo da religião, deve ser compreendida como hermenêutica teológica de orientação antropológica, e ver o seu exercício como interpretação da linguagem da fé e da existência cristã.

Abstract:

(4)

Í

NDICE

INTRODUÇÃO ... 6

I. PRIMEIRA PARTE ... 14

A.ASPECTOS HISTÓRICOS. ... 14

1. Um breve olhar sobre a história. ... 14

2. As Ciências da Religião. ... 20

B.TEOLOGIA E CIÊNCIAS RELIGIÃO: ALIANÇAS E CONFLITOS. ... 25

1. Delimitando o problema... 25

a. Ciência e Ciências da Religião. ... 26

b. Teologia e Teologia Cristã. ... 36

c. Religião e religiões. ... 50

2. novas perspectivas na discussão do problema... 55

a. Qual perspectiva teológica?... 55

b. Que religião? ... 63

c. Teologia, ciência e hermenêutica. ... 66

C.DOIS PROJETOS DE TEOLOGIA:FRIEDRICH SCHLEIERMACHER E JUAN LUIS SEGUNDO. ... 70

1. Friedrich Schleiermacher: a teologia como filha da religião. ... 70

a. Os fundamentos de um projeto... 70

b. O que é religião? ... 76

c. O método teológico. ... 90

2. Juan Luis Segundo: a teologia para o leigo adulto. ... 105

a. Fé, Ideologia e Religião... 105

b. O círculo hermenêutico. ... 114

c. Revelação, Escritura e hermenêutica... 118

II. SEGUNDA PARTE... 136

A.A DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA DA FÉ E DA RELIGIÃO. ... 136

1. crer é humano... 136

a. Da fé antropológica à fé religiosa... 136

b. A nomeação de Deus. ... 144

(5)

2. A religião como expressão do humano. ... 156

a. A morte de Deus e a afirmação do humano. ... 156

b. A morte de Deus e o “fim” da teologia. ... 165

c. Religião, autonomia e liberdade. ... 173

3. O antropocentrismo teológico... 181

a. A criação e a afirmação do ser humano... 181

b. Teologia e Antropologia: dois termos, dois mundos... 190

c. A orientação antropológica na teologia. ... 195

B.O EMPREENDIMENTO HERMENÊUTICO DA TEOLOGIA NO ESTUDO DA RELIGIÃO. 212 1. Contribuições de uma hermenêutica filosófica. ... 212

a. Rumo a uma nova hermenêutica. ... 212

b. O paradigma do texto. ... 218

c. Decifrar a vida no espelho do texto. ... 222

2. A hermenêutica da linguagem religiosa... 226

a. O paradigma do texto e a linguagem religiosa. ... 226

b. Hermenêutica e revelação. ... 232

c. O discurso teológico como hermenêutica do texto... 237

C.CONCLUSÃO...O ESTUDO DA RELIGIÃO: UMA NOVA MANEIRA DE FAZER TEOLOGIA... 247

1. Preâmbulo. ... 247

a. A reavaliação epistemológica. ... 248

b. O empreendimento hermenêutico. ... 250

c. O referenc ial teórico. ... 251

2. a experiência cristã de Deus. ... 260

a. Mistagogia e teografia. ... 260

b. O horizonte epigenético. ... 263

c. A alteridade do outro humano. ... 265

3. Teologia: um saber racional e teológico. ... 268

a. A especificidade do discurso teológico. ... 268

b. A hermenêutica da tradição religiosa. ... 282

c. O discurso teológico e o estudo da religião... 290

(6)

I

NTRODUÇÃO

Introduzir o assunto tal como aparece formulado no título deste nosso trabalho, não obstante nosso interesse pessoal de melhor situar a pesquisa teológica sobre a religião no contexto acadêmico brasileiro, significa inicialmente justificar a sua atualidade. Nesta justificativa, uma primeira atitude que nos é exigida diz respeito à delimitação do tema em seu devido lugar. E o lugar devido deste assunto é a pergunta pela perspectiva teológica que se deve adotar no estudo da religião, a fim de que o discurso teológico tenha pertinência acadêmica e validade pública.

A resposta a tal indagação não é tão evidente quanto possa parecer, uma vez que alguns pesquisadores, no afã de melhor definir o estatuto epistemológico das ciências humanas que se dedicam ao estudo da religião, vêem a influência da teologia como uma sombra ameaçadora a pairar sobre a reestruturação dos programas de tais ciências.

Talvez não seja nenhum exagero de nossa parte afirmar que esta reflexão deve considerar a reflexão sobre o papel da teologia na universidade do século XXI, notadamente no diálogo com as Ciências da Religião. A pergunta pelo lugar da teologia na universidade não é um mero artifício retórico, uma vez que ela acaba configurando a maneira de conceber o exercício da teologia, e igualmente porque o problema da alocação da teologia na universidade não é físico, mas epistemológico.

(7)

Em termos históricos, a rigor, não se pode falar em “entrar” na universidade, uma vez que a teologia foi parte integrante da construção deste marco da Cultura ocidental, tornado possível graças à visão cristã e teocêntrica própria do mundo medieval, ou seja, uma visão unificada de toda a realidade em torno do nome Deus e que buscou a universalidade do saber. Esta postura da razão teológica se esqueceu, contudo, da relatividade de suas afirmações e da historicidade da verdade, o que a conduziu à postura intransigente de sua convicção de possuir definitivamente a verdade.

Este esquecimento histórico levou a teologia a adotar uma forma hierárquica, ao distinguir a vivência eclesial do Cristianismo de outras práticas religiosas, a religião cristã das outras formas de religiosidade, acabando por fazê-la confundir tal tarefa com a distinção entre a verdadeira e a falsa religião. Em suma, a verdadeira religião aos olhos da teologia é o Cristianismo e, consequentemente, a teologia como ciência da fé é, em última análise, a teologia cristã.

O processo que teve início com aventura ocidental da universidade assiste hoje ao esgotamento da moderna razão técnico–científica e à busca por uma nova maneira de fazer teologia, que se distancie de um modelo teológico que recebeu o nome de dogmática. A crise deste modelo de razão significou também a crise da própria teologia ou ao menos de um modelo teológico; da solidez de um sistema tomista, que via a realidade de forma unitária e totalizante desde o ponto de vista da fé cristã, a teologia passou ao desconfortante lugar no meio de uma cultura fragmentada.

(8)

A pergunta pela contribuição da teologia no estudo da religião passa, pois, pela redefinição despretensiosa de sua postura no diálogo com outras formas de saber, sem contudo negar o valor do saber teológico. A busca por um espaço para a reflexão teológica na universidade supõe uma outra concepção de ciência, diferente daquela preconizada pela razão empírico-formal. E colocar-se para além das fronteiras da moderna razão ocidental significa, para a razão teológica, evitar dois extremos: tanto o complexo de inferioridade, que faz do discurso teológico um discurso de segunda categoria, como o complexo de superioridade, que não permite à teologia dialogar com outras formas de saber e tampouco perceber que ela não tem a última palavra sobre Deus, o ser humano e o mundo.

A mudança de lugar da teologia hoje não comporta necessariamente o deslocamento físico que deu origem à universidade no período medieval, quando a teologia deixou as escolas de grandes mestres para “entrar” neste novo universo do saber. É a partir da própria universidade que se busca uma nova perspectiva teológica, novidade que na nossa opinião pode encontrar no estudo da religião um paradigma emblemático. Todavia, este novo da teologia há de considerar a superação de um modelo teológico acentuadamente eclesiástico e clerical. Eclesiástico porque sua função principal consiste em encontrar na Escritura e na Tradição fundamentos para o ensinamento do magistério. Clerical porque é exercida quase que exclusivamente por padres e pastores, e para a formação destes.

Esta superação significa a passagem para uma teologia que busca sobretudo ser intérprete da linguagem religiosa, na medida em que esta linguagem é doadora de sentido de vida. Entretanto, esta prática teológica não encontra unanimidade entre os pesquisadores que vêem na presença da teologia entre as ciências que se dedicam ao estudo da religião um incômodo, uma ameaça, e até mesmo uma presença indesejada. Em parte, este mal-estar repousa em dificuldades no tocante ao conceito de ciência, teologia e religião.

(9)

acadêmica, de um jogo de interesses institucionais e do reconhecimento da relevância científica da teologia junto aos outros saberes, mesmo que tal reconhecimento aconteça somente por uma pequena parcela do mundo acadêmico. Isto porque várias universidades brasileiras são notadamente marcadas por uma mentalidade positivista, que ainda rejeita o estudo científico da religião realizado desde a perspectiva teológica.

Este novo horizonte que se abre ao trabalho teológico não pode, contudo, nos fazer esquecer que hoje estamos distantes, e uma distância secular, daquele mundo no qual a teologia era a ciência por excelência que fornecia a gramática da linguagem usada para compreender o mundo e o ser humano, a partir da divindade. Este mundo ruiu, seu fundamento foi abalado pela mutação cultural provocada pelo chamado antropocentrismo moderno, que trouxe como consequência uma crise de identidade para a própria teologia.

No caso específico da Teologia cristã, a diversidade da prática religiosa que encontramos hoje no Brasil coloca em questão alguns dos fundamentos do Cristianismo e, portanto, a maneira mesma de fazer teologia desde a perspectiva cristã. Isto porque não nos parece viável o trabalho teológico sem o respeito pela dignidade das outras religiões, sobretudo das que não possuem a tradição judaico– cristã como matriz fundadora.

(10)

A discussão em torno do papel da teologia no estudo da religião nos coloca diante de um problema metodológico crucial: o discurso teológico possui em si mesmo uma estrutura epistemológica própria ou necessariamente se vê obrigado a utilizar o instrumental linguístico que lhe é emprestado por outras formas de saber? A teologia possui uma racionalidade própria ou deve se submeter a uma racionalidade imposta pelas chamadas ciências modernas? No caso da não aceitação de tal imposição, qual seria a racionalidade própria da teologia?

A hipótese deste nosso trabalho é que a contribuição da teologia no estudo da religião está na sua dimensão hermenêutica, e para tanto a teologia há de se compreender como hermenêutica teológica de orientação antropológica, e ver o seu exercício como interpretação da linguagem fé e da existência cristã. Trata-se de um empreendimento hermenêutico que pode colaborar na intelecção da religião não só como um traço fundamental da cultura, mas, sobretudo, como uma dimensão constitutiva do ser humano.

Neste trabalho, a hermenêutica é entendida não tanto como técnica de interpretação de textos, mas sobretudo como “decifração da vida no espelho do texto”, como possibilidade de compreender o sentido da vida no sentido segundo que é velado no sentido primeiro da linguagem religiosa. E a antropologia que caracteriza a teologia neste empreendimento hermenêutico é aquela que tem o ser humano como essencialmente religioso, ou seja, a dimensão religiosa faz parte do conceito mesmo de humanidade.

(11)

Esta articulação entre o empreendimento hermenêutico e a dimensão antropológica terá inicialmente como referencial teórico o pensamento de Friedrich Schleiermacher e Juan Luis Segundo.

Em seu diálogo com pensadores que, imbuídos do espírito iluminista, rejeitavam a religião, Schleiermacher apresenta uma definição de religião que está arraigada na natureza humana e encontra-se profundamente ligada à idéia de autonomia humana proposta pelo Iluminismo. Além disso, a experiência religiosa é a experiência fontal da qual a teologia emana e a qual sempre deve se referir.

Em nossa pesquisa, conforme o pensamento de Juan Luis Segundo, a perspectiva hermenêutica aponta para a recusa em fazer do empreendimento científico uma mera reconstrução do estado bruto de coisas. A ciência constitui-se, pois, num ato de interpretação da realidade ao qual está associado um sistema referencial elaborado a partir de jogos ideológicos, conflitos de interesses, crenças e convicções pessoais, objetivos formais e existenciais, bem como desde condicionamentos históricos do método empregado no processo de produção científica.

No caso específico do estudo da religião, há de se considerar as pessoas e as comunidades que fazem uso da linguagem religiosa na complexa construção de visão de mundo e de sentido da vida, pessoas concretas, com sua fé, sua humanidade e sua história. E a fé religiosa há de ser vista como um desdobramento daquilo que Juan Luis Segundo chama de fé antropológica, uma dimensão universal presente em todo ato humano, inclusive no religioso.

(12)

que a proclamação da morte de Deus tem para o discurso teológico. Com Ricœur, lançaremos as bases filosóficas que nos permitirão delinear o caráter hermenêutico da teologia no estudo da religião. A reflexão teológica de Rahner nos colocará no contexto de uma orientação na teologia, que se convencionou chamar de giro antropológico, e que passou a fundamentar boa parte da produção teológica no Ocidente.

O percurso a ser desenvolvido neste trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, procuramos situar o leitor na problemática em questão desde o ponto de vista histórico, mostrando-lhe brevemente o caminho trilhado pelo pensamento teológico até chegar aos atuais embates no cenário do estudo acadêmico da religião. Este cenário será delineado a partir da contribuição de alguns autores, que de diversas maneiras abordam o tema de nossa pesquisa.

A partir destas reflexões e da abertura de novas perspectivas que elas possibilitam, apresentamos dois projetos teológicos que lançam as bases do que é desenvolvido na segunda parte do nosso trabalho. Esta parte segunda é dedicada a estruturação do nosso discurso teológico, que será tecido a partir do entrelaçamento da dimensão antropológica e do empreendimento hermenêutico que orientam e caracterizam o exercício da teologia no estudo da religião. O último ponto do nosso percurso será um exercício de apropriação das reflexões apresentadas anteriormente e que paradoxalmente servirá de ponto final ou de conclusão da nossa trajetória. Paradoxo que esperamos não se constituir numa contradição aos olhos daqueles que nos lêem e nos interpretam.

(13)

entendida também como experiência espiritual. Esta distinção se faz importante porque lidamos com conceitos marcados por uma série de “pré–conceitos” que por vezes dificultam a intelecção do nosso discurso.

No tocante ao nosso interesse pessoal pelo tema proposto, podemos dizer que ele começou a ganhar contornos mais definidos a partir do impacto causado pelos estudos realizados no programa de pós–graduação de Ciências da Religião da UMESP, notadamente no curso de introdução às Ciências da Religião. Aos poucos, a evidência da ligação congênita entre a teologia e a religião foi se desfazendo e com ela uma maneira de ver o exercício da teologia dentro do contexto universitário.

(14)

I.

PRIMEIRA PARTE

A.

A

SPECTOS HISTÓRICOS

.

1.

U

M BREVE OLHAR SOBRE A HISTÓRIA

.

Não se faz Teologia cristã sem se percorrer os caminhos da memória. A resposta à pergunta pela maneira como se deve fazer teologia hoje supõe uma questão anterior: como o discurso teológico dialogou com as indagações oriundas do drama da história e da existência humana ao longo dos séculos. Entretanto, fazer memória não é mera nostalgia ou retorno estéril para repetir o que já fora dito por aqueles que nos precederam na história da fé. Hoje, somos habitados por questões que são certamente distintas daquelas que estão na origem da Tradição cristã. Por isso, fazer memória é também uma questão de hermenêutica.

Além disso, o olhar que agora lançamos sobre o percurso do pensamento teológico é sucinto, é breve. Queremos somente situar o leitor na discussão que apresentaremos na delimitação do problema que nos toca refletir neste trabalho.

Uma dificuldade que se apresenta à teologia no estudo da religião diz respeito ao seu lugar de origem: a experiência eclesial da fé. A teologia cristã encontra na Escritura1 a linguagem materna do ethos cristão. Nesta textualização da relação entre Deus e o ser humano, Deus habita as palavras da Escritura por meio das palavras humanas. A Palavra de Deus necessita de uma história que a acolha e de palavras nas quais possa habitar. Se assim não fosse, a Palavra divina ecoaria no vazio, impossibilitada de comunicar-se ao ser humano e de gerar sentido para a vida.2

1 Ao longo deste trabalho, por Escritura (com “E” maiúsculo) entendemos o que se costuma chamar

de Bíblia ou Sagrada Escritura.

(15)

Todavia, é importante lembrar que, para a Tradição cristã, esta textualização não é o Evangelho propriamente dito, mas uma interpretação e um testemunho da boa nova que é o próprio Jesus Cristo.

Os primeiros testemunhos da fé interpretam a Palavra de Deus a partir de sua história e da comunidade à qual se dirige, ou seja, das inquietações existenciais das pessoas que formam esta comunidade. A hermenêutica da Palavra de Deus tem por fundamento a ressurreição de Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo: “...se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia, e vazia também é a nossa fé”

(1Cor 15,4).3

Esta experiência é caracterizada pela iniciativa do Ressuscitado, o que tende a sublinhar o caráter objetivo da experiência da ressurreição. O verbo grego ôphté – apareceu – é usado para expressar esta objetividade que está a nos dizer que a experiência da ressurreição, narrada pelos textos do Novo Testamento, é sempre uma iniciativa daquele que ressuscitou e não fruto de uma emoção diante de certos acontecimentos, como relata Paulo em sua carta à comunidade de Corintos: “Eu vos transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebera: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, depois aos doze” (1Cor 15,3-5). Ou ainda, no relato conhecido como a experiência dos discípulos de Emaús, narrada por Lucas: “No mesmo instante, eles partiram e voltaram para Jerusalém; encontraram os Onze e os seus companheiros, que lhes disseram: É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão” (Lc 24,33-34).

Estamos, pois, diante de algo que a eles veio de fora e não uma experiência provocada pelo calor da emoção ou pela nostalgia do passado. Entretanto, esta ação divina por meio do Ressuscitado não destrói a liberdade humana que acolhe a manifestação divina, como nos narra o mesmo episódio dos discípulos de Emaús:

“Então, os seus olhos se abriram e eles o reconheceram, depois ele se lhes tornou invisível” (Lc 24,31). Neste reconhecimento da manifestação do Cristo ressuscitado,

3 Neste nosso trabalho, todas as citações bíblicas serão retiradas da TEB – Bíblia.Tradução

(16)

temos a experiência subjetiva desta manifestação. A ressurreição torna-se desta maneira o conteúdo do anúncio das primeiras gerações cristãs, proclamação esta que é indissociável da experiência que lhe dá origem, bem como da maneira como ela foi narrada e posteriormente redigida.

Assim, a Teologia cristã encontra na teologia do Novo Testamento, na linguagem neotestamentária, a sua própria identidade. Uma teologia realizada na força do Espírito Santo e portanto num clima de epiclese4: “...quando vier o Espírito da verdade, ele vos conduzirá à verdade plena...” (Jo 16,13). Uma teologia situada na história e que está relacionada com as experiências e as expectativas de uma determinada comunidade de fé que está a caminho, sendo portanto uma teologia eclesial. Trata-se também de uma teologia que é memorial, memória atualizada da experiência fontal pela ação perene do Espírito Santo. A teologia do Novo Testamento é anamnese de uma experiência cristã de Deus fundada na experiência da ressurreição. Enfim, uma teologia que é profecia que a partir da anamnese propõe novos caminhos, atualizando a palavra de Deus.5

No seu início, pois, a Teologia cristã era plural nas suas expressões, como testemunham os escritos do Novo Testamento. Isto porque o mundo ao qual o Cristianismo primitivo estava chamado a testemunhar a sua fé não era um mundo homogêneo. Neste sentido, a pluralidade que caracteriza o nosso mundo não é de todo estranho à Tradição cristã.

Com o fim da era apostólica, a Teologia cristã ingressou numa época conhecida genericamente por Patrística. Nesta época, encontramos a chamada teologia simbólica que desenvolveu-se num horizonte unitário e totalizante, sustentado por dois pólos: a Escritura e a Igreja. Para esta visão teológica, a Palavra de Deus vem ao encontro de toda a história da humanidade. É uma teologia que se desenvolve num ambiente geograficamente limitado, marcado pela herança da civilização helenístico–romana.

4 Epiclese, do grego epiklesis, significa a invocação ao Espírito Santo que acontece em algumas

cerimônias cristãs, como, por exemplo, a missa na Igreja católica.

(17)

Os teólogos desta época eram pastores em contínuo contato com as experiências espirituais e litúrgicas da comunidade dos fiéis. A teologia era fundamentalmente escuta e meditação da Palavra de Deus na Igreja e para a Igreja. A teologia dos “Padres da Igreja” estava intimamente ligada à vida e às necessidades pastorais da vida eclesial. O nome “Pai” foi dado inicialmente pelos cristãos aos seus bispos. Por volta do século IV, este nome passou a designar também homens que não eram bispos, mas que gozavam de uma grande autoridade doutrinal. Pouco a pouco, no ensinamento da doutrina cristã, passou-se a recorrer a autoridade de certos autores designados como “Pais da Igreja”. Quatro critérios eram fundamentais para uma pessoa receber tal título: pureza da doutrina, santidade de vida, aprovação da Igreja e pertença aos primeiros séculos do Cristianismo.

Se o início do período patrístico começa logo após o fim da época dos apóstolos, o seu término não possui uma data precisa. Em todo caso, no Ocidente, normalmente ele finda com Santo Isidoro de Sevilha (século VII) e no Oriente finaliza com São João Damasceno (século VIII). Entretanto, há aqueles que estendem a época patrística até São Bernardo de Claraval (século XII) entre os autores latinos e mesmo, a autores mais tardios, entre os gregos.6

Como características fundamentais da teologia patrística, podemos dizer que

“trata-se de uma teologia espiritual e ascendente, alimentada pela experiência intensa do Mistério proclamado, celebrado e vivido, exercida na leitura do texto sagrado e das realidades mundanas em perspectivas unitárias e totalizantes.”7 Esta ascendência diz respeito à elevação do coração e da mente a Deus, por meio de Jesus Cristo e na força do Espírito Santo.

A história da evolução do pensamento teológico no Ocidente nos mostra, portanto, que o chão natural da teologia patrística era a comunidade eclesial com suas necessidades e urgências, ou seja, a experiência religiosa vivida no seio de uma tradição eclesial. Esta teologia convivia naturalmente com as experiências plurais, uma vez que a unidade da fé não significava uniformidade de suas expressões.

6 Claude M

ONDÉSERT. Pour lire les Pères de l’Eglise, p.11-12.

(18)

O novo cenário histórico, caracterizado pela Idade Média, foi palco do surgimento de uma maneira de fazer teologia que convencionou-se chamar de teologia dialética ou teologia escolástica. Neste período medieval, a prática teológica possuía um componente inovador: o conhecimento e posterior uso cada vez mais freqüente dos instrumentos da lógica aristotélica, que tem em Tomás de Aquino um de seus grandes expoentes. No universo da teologia cristã, Aristóteles é assimilado inicialmente como mestre da gramática (séculos V-VI), posteriormente de raciocínio (recepção da dialética no século XII) e enfim de conhecimento do ser humano e do mundo (inícios do século XIII).8

No século XIII, o ambiente no qual se exercia a teologia era constituído pelas “escolas” vinculadas à vida urbana e de estilo universitário, onde a Sagrada doutrina era ensinada ao lado de outras ciências que a induziam a utilizar o método analítico e racional. Assim, com o passar do tempo, os teólogos utilizavam cada vez mais o instrumental filosófico de conhecimento racional da natureza das coisas e das estruturas do ser humano. Uma mudança significativa neste período diz respeito à própria identidade dos teólogos: se os teólogos patrísticos eram monges ou pastores, os teólogos escolásticos eram na sua grande maioria professores e mestres.

Ao se transportar para a universidade, a reflexão teológica se fundamentava cada vez mais na racionalidade, com as suas exigências. A universidade passou a ser símbolo das grandes transformações pelas quais passaria a teologia: as Ciências da Natureza (método empírico–formal) se impõem sobre as Ciências Humanas, que com o passar do tempo desqualificam a teologia na sua pretensão científica.

A chamada Teologia dos tempos modernos procura justificar a unidade da fé a partir de um modelo único de teologia, quase sempre porta voz do magistério da Igreja. Neste caso, a unidade da fé é confundida com a uniformidade de suas expressões. Este tipo de discurso teológico, durante um longo tempo, não se deu conta de que uma teologia uniforme e universal provocava inevitavelmente o sacrifício do concreto e do particular (abstração de tempos e lugares), o que

(19)

significava o empobrecimento da teologia e da vivência cristã. Isto porque as experiências religiosas na sua pluralidade são um convite a retomarmos a riqueza de um discurso teológico plural fundamentado na unidade da fé e na pluralidade de suas expressões. O que implica no abandono da tentativa de tornar absoluto um discurso teológico particular, bem como a experiência religiosa a qual este discurso se refere. A história da Cultura ocidental nos ensina, ou ao menos deveria nos ensinar, que a teologia, no seu esforço para pensar e dar inteligibilidade à fé, deve ter em conta a pluralidade das expressões religiosas.

Nesta história ocidental, pouco a pouco a razão moderna apoderou-se das questões teológicas transformando os conteúdos da fé religiosa em objeto de uma reflexão que cada vez mais tomou distância da teologia, distanciamento que no seu extremo se configurou em uma oposição ao trabalho teológico. Dentre estes objetos da reflexão da razão moderna feitos à revelia da teologia está sem dúvida a religião, o que acabou por provocar uma ruptura na congenialidade entre a teologia e a religião.

A teologia não só é obrigada a aceitar esta cisão, como alguns modelos teológicos se distanciam da experiência religiosa, tida como a sua experiência fontal. Esta atitude é compreensível a partir do esforço que certa prática teológica fez durante um longo período para ser reconhecida como “ciência”, a fim de ocupar um lugar no novo cenário universitário. E, nesta busca, inclinou-se a renunciar à sua própria identidade e aportou na universidade conduzida pelo método das Ciências Humanas, ou seja, o método histórico–crítico.

(20)

Entretanto, a aproximação entre a razão teológica e a razão moderna ocidental trouxe graves consequências para uma perspectiva teológica que se tornou fragmentada, unilateral e sem raízes na experiência. Unilateral porque procedeu a valorização de um modelo de razão no qual temos a primazia do conhecimento sobre a vida, do abstrato sobre o concreto, do sujeito sobre o mistério de Deus. Fragmentada, na medida em que o ser humano não é visto mais como uma unidade, mas sim como um conglomerado de experiências que quase sempre não têm relação umas com as outras. Consequentemente, temos a absolutização daquilo que não passa de um ponto de vista: econômico, social, político. Uma teologia desenraizada porque o discurso teológico, que se fundamenta nos métodos científicos (empírico– formais), muitas vezes se coloca distante da experiência concreta, dos problemas reais do cotidiano da vida humana, perdendo-se em abstrações intelectuais que pouco ou quase nenhum sentido de vida podem gerar.

No atual cenário acadêmico, a teologia é cada vez mais levada a renunciar a busca pela identidade teológica como universalidade do saber, ou seja, como uma visão teocêntrica e unificada da realidade. Abandonar esta postura trouxe sérias implicações para a tarefa teológica, como, por exemplo, o abandono da idéia do Cristianismo como a única religião verdadeira ou a religião absoluta. Hoje, é possível sentir as consequências que este abandono trouxe ao estudo teológico da religião.

2.

A

S

C

IÊNCIAS DA

R

ELIGIÃO

.

A sobre as Ciências Religião foi estabelecida, na Europa, desde a constituição de uma Ciência ou História da Religião, no final do século XIX. Embora, hoje, estejamos longe de uma denominação comum, muitos estudiosos afirmam ter sido Max Muller o primeiro a utilizar a expressão “Ciência da Religião”, em 1867.9

(21)

A autonomia da Ciência ou História da Religião se dá à revelia da teologia e até mesmo contra ela. E isto muitas vezes é fruto de uma mentalidade oriunda da ilustração européia, para qual a possibilidade de espaço para a fé e a religião está na conformidade com a razão, mais amiúde está na subordinação à lógica das chamadas ciências da natureza. Neste sentido, “o termo Ciência da Religião (Religionwissenschaft) foi utilizado para sublinhar a emancipação da nova disciplina com relação à filosofia da religião e especialmente da teologia.”10

O surgimento de uma disciplina intitulada “História das religiões” está em parte associada ao surgimento de novos parâmetros no mundo ocidental. Tais parâmetros por sua vez estão relacionados ao declínio da hegemonia cristã no Ocidente, e ao confronto entre a tradição cristã e outras tradições religiosas que se tornavam cada vez mais conhecidas do mundo ocidental, graças à ação de missionários que entravam em contato com culturas religiosas não cristãs.

Na segunda metade do séc. XIX surge a Ciência da Religião, na tentativa de reunificar as contribuições que as mais variadas disciplinas vinham oferecendo ao estudo da religião. A primeira cátedra de Ciência da Religião surgiu em 1873 em Genebra, na faculdade de teologia. Quatro anos mais tarde, Amsterdã e Leiden, na Holanda, criaram cátedras que foram ocupadas por teólogos. No contexto europeu, as cátedras de Ciências da religião ficaram ligadas às faculdades de teologia. Dois outros aspectos merecem destaque: o termo religião está intimamente ligado aos processos culturais, conflitos ideológicos e sistematizações que compõem a história do Ocidente, e neste desenvolvimento histórico a teologia desempenhou um papel significativo. Isto porque muitas das teorias teológicas, desde a perspectiva cristã, passaram a estruturar o pensamento ocidental no que diz respeito à visão de Deus, do mundo e do ser humano.11

A instalação e o desenvolvimento da chamada Ciência da Religião estão vinculados diretamente ao saber teológico. Num mundo marcado pelo pluralismo religioso, as primeiras cátedras de Ciência da Religião surgem como saberes

10 Idem, ibidem, p.42. Citando a J. Wach. El estúdio comparado de las religiones, Buenos Aires, 1967,

p.63-64.

(22)

auxiliares na compreensão dos mitos, ritos e doutrinas dos diversos sistemas religiosos, a fim de fazer com que o discurso teológico fosse plausível e pertinente neste mundo plural. Em suma, a Ciência da Religião deveria auxiliar a teologia na compreensão das alteridades religiosas, elas eram as novas servas da teologia.12

Inicialmente, esta Ciência da Religião se vê tributária da apologética teológica, desde uma postura básica: a tentativa de demonstrar a superioridade do Cristianismo sobre as demais religiões, a partir de dados oferecidos por outras disciplinas. Além disso, o debate em torno do termo religião, que começara no âmbito da filologia, deslocou-se para o da filosofia e das ciências humanas. Surgiram, então, dois pontos de vista: uma visão essencialista (o que é a religião?) e outra funcionalista (qual o papel da religião na sociedade?). Hoje, uma definição substantiva ou funcional da religião mostra-se insuficiente para captar a complexidade do fenômeno religioso. Ela não se define somente pela sua funcionalidade e nem por uma realidade numinosa. A Religião permanece na frágil textualidade das representações religiosas e se situa entre aquilo que pode ser definido e o Infinito.

Apesar da variação do vocabulário – Ciência(s) da(s) Religião(ões), História das Religiões, História comparada das religiões, Ciências Religiosas, Estudos da Religião – o relevante é o fato que uma disciplina pouco a pouco foi se afirmando no meio acadêmico, procurando afastar-se de qualquer tradição religiosa, colocando-se como ciência objetiva ou empírica e reivindicando sua autonomia face à teologia e à filosofia da religião. Esta disciplina reivindica igualmente seu status epistemológico próprio, ou seja, a sua não dissolução nas ciências empíricas (antropologia, sociologia, psicologia, história,...) e tampouco a dissolução de seu objeto de estudo, a religião.

Assim, a mediação empírica passou a ser o diferenciador maior no estudo da religião, ao que podemos associar a neutralidade e a objetividade do pesquisador. Neste sentido, a teologia e filosofia ficam desautorizadas devido ao método que utilizam, uma vez que o método teológico se fundamenta num conceito não empírico

(23)

de religião, associado à noção de revelação, ao passo que o método filosófico emprega o termo religião de modo axiológico.13

Além disso, origem do termo religião não encontra unanimidade entre os estudiosos. Os “Pais da Igreja” usavam este termo primeiramente para designar a vida religiosa institucionalizada em forma de Igreja. No latim medieval, “religio” foi usado para se referir à relação pessoal com o Deus dos cristãos, bem como significava a comunidade dos adeptos de uma determinada espiritualidade. No século IV, este termo já era usado para se referir a grupos definidos e normalmente sob o juízo da religião verdadeira: o Cristianismo, a religião de um grupo de pessoas claramente distinto da religião dos outros.

Esta forma de hierarquia feita a partir do termo religião deixou uma herança significativa para o pensamento teológico: “é no desenvolvimento da teologia cristã que cada vez mais religião se torna um termo tão especial na compreensão ou incompreensão das alteridades, e isto com profundos embates e conflitos.”14 E não raramente o outro religioso era assimilado, roubando-lhe a sua diferença, ou era simplesmente negado como absurdo, como não religioso. 15

Neste desenvolvimento histórico, a religião foi vítima de diversos tipos de reducionismos. Na redução evolucionista, ligada à evolução biológica e notadamente sob a influência de Charles Darwin (1809-1882), desenvolveu-se a idéia de que a religião seria uma etapa da humanidade, preâmbulo da idéia de que a religião é uma etapa ultrapassada. Situada no nível do comportamento instintivo como, por exemplo, o medo diante dos fenômenos da natureza, a religião foi considerada pelo evolucionismo biológico como um instinto supérfluo, superado mediante a evolução do homo sapiens. Em suma, a religião é um instinto presente em seres inferiores.

A redução positivista fez da religião uma expressão do humanismo sociológico que teve em Augusto Comte (1798-1857) um de seus maiores representantes. No campo da psicologia, Sigmund Freud (1856-1939) fez da religião

13 Giovanni F

ILORAMO & Carlo PRANDI. As ciências das religiões, p.22.

14 Antonio Carlos de Melo M

AGALHÃES. Teologia e estudo da religião, p.152.

(24)

um problema ligado à psique humana, a religião era considerada como uma etapa infantil da humanidade a ser superada. Do ponto de vista sócio–econômico, Karl Marx (1818-1883) reduziu a religião a uma fuga do controle social, ela é apenas uma válvula de escape de uma situação injusta e opressora. Para Marx, a religião é o ópio do povo, o véu místico sobre os olhos que impede o ser humano de ver a realidade injusta que o aprisiona e o aliena. Desde a perspectiva da moral, com Imanuel Kant (1724-1804), a religião foi reduzida ao fundamento do bom comportamento. A idéia de Deus tornou-se necessária para justificar o comportamento ético do ser humano.16

É, pois, no contexto desta história que se insere o diálogo atual entre a teologia e as Ciências da Religião o qual é marcado por uma alternância de alianças e conflitos. Todavia, apesar de alguns cientistas da religião desejarem exercer seu trabalho longe da teologia e até mesmo contra ela, não podemos negar que a história das Ciências da Religião está intimamente ligada à trajetória da teologia na Cultura ocidental.

Todavia, hoje, a reflexão teológica se vê obrigada a abandonar a sua forma de “sistema teológico”, que conseguira transformar o sistema referencial cristão num conjunto de verdades perfeitamente articulado, desde uma visão unitária e teocêntrica de toda realidade. A concepção de uma teologia única e universal na verdade camufla uma teologia particular indevidamente universalizada. A não percepção desta camuflagem conduz ao esquecimento a pluralidade de manifestações religiosas que traz inevitavelmente uma diversidade de teologias, se considerarmos que a teologia está sempre relacionada a uma experiência particular do religioso.

(25)

B.

T

EOLOGIA E

C

IÊNCIAS

R

ELIGIÃO

:

ALIANÇAS E CONFLITOS

.

1.

D

ELIMITANDO O PROBLEM A

.

Para muitos pesquisadores, a discussão em torno do exercício da teologia entre as ciências que têm a religião como objeto de estudo no contexto acadêmico brasileiro faz parte da discussão mais ampla sobre o estatuto epistemológico das Ciências da Religião.17 A fecundidade deste diálogo poderá contribuir com a melhor compreensão da reflexão teológica sobre a experiência humana do Sagrado, que por enquanto chamamos genericamente de religião. Todavia, o alcance desta compreensão exige uma melhor articulação entre conceitos como ciência, teologia e religião: em que sentido tais termos serão empregados ao longo deste trabalho? Em parte, porque em nossa realidade acadêmica temos um conjunto de ciências que estudam a religião sem se dar conta das exigências epistemológicas de tal empreendimento, talvez por terem a religião não como objeto de estudo, mas sim como um apêndice que cruza o seu campo de ação, ou seja, estudam as religiões de forma genérica, no conjunto de seus objetos particulares.18

Neste sentido, podemos nos perguntar: que consequências o surgimento de uma Ciência da Religião não-teológica traz para o religioso e para a própria teologia? Como o cristão se comporta diante de uma ciência – não-teológica – que olha a sua religião não mais como “a” religião, a verdadeira e, porque não, única religião?19

17 Neste trabalho, adotamos a expressão “Ciências da Religião” tal qual é usada no departamento de

pós–graduação da UMESP. Todavia, sabemos que esta expressão não encontra unanimidade entre os pesquisadores por nós citados, haja vista as diversas formas que são propostas : Ciência(s) da(s) Religião(ões).

18 Afrânio A

NDRADE. Ciência da Religião, p.10.

(26)

Estas questões servirão de fio condutor para esta parte da nossa pesquisa, que consiste num diálogo com a postura de alguns pesquisadores no que diz respeito ao estudo acadêmico da religião.

a. Ciência e Ciências da Religião.

Ainda que o nosso estudo esteja delimitado pelas fronteiras do lugar20 da

teologia no estudo acadêmico da religião no contexto brasileiro, vale a pena lembrar que para além desta fronteira existe uma discussão mais abrangente: o que vem a ser a ciência com a qual a teologia entra em diálogo? Esta questão servirá como preâmbulo para nossa reflexão em busca de uma melhor compreensão no que diz respeito à perspectiva teológica a ser adotada no diálogo com as Ciências da Religião. É preciso igualmente ressaltar que o lugar da teologia não é somente uma questão física, espacial, mas sobretudo epistemológica.

A reflexão sobre o estatuto epistemológico das Ciências da Religião exige um passo anterior: a reflexão em torno da noção do conceito mesmo de ciência. Para o objetivo de nossa pesquisa, a anterioridade desta reflexão é de grande importância, pois a pertinência do discurso teológico no estudo da religião depende em parte da noção de ciência que venha a ser usada como parâmetro para definir quem merece ou não o status científico no estudo da religião. Diversos autores argumentam, em suas reflexões, que a noção apresentada pela visão iluminista positivista, na qual se privilegia a dimensão empírica na definição de ciência, é uma postura que hoje não encontra mais plena aceitação no ambiente acadêmico.

Para esta perspectiva, a crise da modernidade européia é também a crise do paradigma que coloca como o único fundamento do saber científico a capacidade de medir, observar e quantificar o objeto de estudo. Neste sentido, temos a delimitação do que é científico ao campo visual (esquema, lista, diagrama): “Eis porque a distinção básica que separa a ciência do que não é ciência não é a distinção entre

(27)

ficção e não–ficção, mas entre permitir ou não a abertura de significado a outros sentidos que a visão”.21 Hoje, esta circunscrição do saber científico a basicamente um sentido, a visão, é profundamente questionada. Contesta-se também o poder científico fundamentado sobretudo numa determinada visão empírica de saber científico (empírico–formal), na sua pretensão de determinar o que vem a ser ciência, ou seja, aquilo que deve ser eliminado do campo visual. Dito de outra maneira, questiona-se, hoje, a idéia de que qualquer forma de saber que não seja capaz de observar, medir e quantificar o seu objeto de estudo não possa ser qualificada como ciência.

Nesta linha de raciocínio, é possível afirmar que na pesquisa científica cada vez mais ganha espaço o postulado hermenêutico, ou seja, a ciência passa a ser vista também como um ato construtivo de interpretação da realidade. Esta forma de conceber a ciência encontra-se em íntima relação com a suspeita que se abate sobre a centralidade outrora concedida à mediação empírica, ao dogma da objetividade e à pressuposição da neutralidade do pesquisador na análise de seu objeto de estudo. O ato de pesquisar é um ato interpretativo situado num contexto histórico e que atende a interesses determinados.

Em outras palavras, a pesquisa científica não se restringe aos aspectos formais, supondo igualmente aspectos existenciais. “Isto porque a investigação está dentro de um quadro referencial com seus processos culturais complexos, jogos ideológicos, interesses individuais e sociais”, 22 quadro referencial que requer um processo hermenêutico que não se esgota na mediação empírica, na objetividade da pesquisa ou tampouco na neutralidade do pesquisador, tomados por referenciais absolutos.

Tomando por base a reflexão do teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, a fim de apresentar a crítica ao modelo de ciência fundamentado na mediação empírica, na

21 Vitor WESTHELLE. Outros saberes, p.264. A razão deste artigo está na estreita ligação que para o

autor existe entre o fenômeno de uma global fragmentação do saber, na qual discursos particulares e localizados colocam-se para além das fronteiras das epistemologias que dominaram o pensamento ocidental, e aquilo que se costumou denominar de a crise da modernidade, a qual é esboçada em ensaios ditos pós–modernos.

(28)

objetividade e na neutralidade, nos é permitido dizer ainda que todos precisamos de um sistema de referencialidade para organizar nosso conjunto de valores, referencialidade esta que exige um ato de fé. Entretanto, é preciso observar inicialmente que a fé é uma dimensão antropológica, quer se tenha uma religião ou não, pois todos nós precisamos de um ponto de referência a partir do qual organizamos nossa escala de valores que orienta a nossa existência. 23 A este ponto

de referência podemos chamar de fé, sendo que a fé religiosa vem a ser um caso particular de uma dimensão antropológica universal.

Neste sentido, a distinção entre crentes e não–crentes (científicos e racionais) não tem lugar na reflexão de Juan Luis Segundo, já que ele considera que todos fundamentam suas estruturas de valores num tipo de conhecimento que merece o nome de fé. Nesta estruturação, o conjunto de informações que aceitamos como válidos sem uma verificação empírica é o que podemos denominar de dados transcendentes. Trata-se de informações não demonstradas empiricamente que nos chegam por via testemunhal e que aceitamos como verdadeiras por atenderem às nossas expectativas e também por serem transmitidas por alguém em quem confiamos. E isto vale para todo cientista, quer ele tenha uma fé religiosa ou não.24

Assim, a fé antropológica permite classificar (muitas vezes de modo inconsciente) os acontecimentos e as possibilidades no ato de pesquisar, colocando ordem no complexo mundo de valores, daí podermos falar de escala de valores. Além disso, a ideologia complementa a fé na medida em que a consideramos como sendo a condição necessária para obtermos determinados resultados.25 Por isso, toda

forma de saber nasce subordinada a valores, ou seja, a satisfações pessoais.26

Todavia, esta crítica feita à pretensão da ciência moderna não ameniza a advertência feita à teologia por esta ter se valido de seu sistema de referencialidade para construir uma visão autoritária de revelação normativa, que pouco ou nada

23 Juan Luis S

EGUNDO. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.31.

24 Idem, ibidem, p.92.

25 O uso do termo ideologia em Juan Luis Segundo será aprofundado na apresentação do seu projeto

teológico.

(29)

contribuiu para o estudo da religião, servindo muito mais para transformar o sistema de valores numa moral que tem como consequência atitudes que beiram a desumanidade.27 Por isso,

...quem entra pelo mundo da teologia tem, muitas vezes, a impressão de estar ouvindo falar uma linguagem não apenas do passado, mas também incompreensível e inaceitável diante das inegáveis conquistas das ciências e do pensamento moderno.28

A articulação em torno de terminologias como sistema de referencialidade, dados transcendentes, fé e ideologia lança luzes sobre o possível diálogo entre a teologia e as Ciências da Religião, na medida em que questiona a pretensão do saber científico moderno, fundamentado na mediação empírica, na objetividade e na neutralidade, de ser o único método capaz de se aproximar da realidade em detrimento de outros discursos (poesia, mito, crenças,...), que são frequentemente reduzidos à insensatez, à falta de sentido.

A reflexão em torno da noção de ciência e do seu objeto de estudo é igualmente observada na discussão em torno do uso dos termos ciência/ciências e religião/religiões, o que mostra a não-unanimidade no que toca ao papel da(s) Ciência(s) da(s) da Religião(ões) no nosso contexto acadêmico. Segundo vários pesquisadores, a discussão em torno do estatuto epistemológico das Ciências da Religião é um longo caminho a ser percorrido. E ignorar este debate é não se dar conta das exigências epistemológicas do estudo da religião no contexto acadêmico brasileiro. A hipótese de trabalho que se nos apresenta é aquela da possibilidade da existência de uma ciência que se dedica ao estudo da religião com estatuto epistemológico próprio, capaz de estudar a religião com o auxílio das demais ciências humanas.

Apesar de toda uma indefinição terminológica que marca a busca da afirmação do estatuto epistemológico das Ciências da Religião, há uma certa unanimidade entre os pesquisadores ao se admitir a possibilidade de a religião ser estudada cientificamente. Em parte, devido a uma concepção de ciência que toma

27 Antonio Carlos de Melo M

AGALHÃES. Teologia e o estudo da religião, p.158.

(30)

distância do modelo científico moderno, o que já abre espaço para a subjetividade e a intuição do pesquisador.

A este primeiro distanciamento podemos acrescentar um segundo, igualmente de grande importância para a nossa pesquisa, qual seja, o fato de que a discussão em torno do estatuto epistemológico das Ciências da Religião aponta para a constituição de uma ciência que pouco a pouco se afasta da exclusividade da filosofia e da teologia na análise da religião. E mais, adentrar-se no estudo da religião ou das religiões significa caminhar num terreno movediço e impreciso no que diz respeito ao objeto de estudo e ao tratamento científico que a ele deve ser aplicado.29

A discussão de tal estatuto epistemológico caracteriza-se por um conflito de interpretações, na medida em que a religião, considerada como objeto de estudo acadêmico, é um campo tão vasto e complexo que escapa ao olhar de um só investigador. Esta complexidade e vastidão exigem diversos olhares interpretativos, que na sua riqueza possibilitam ver a religião desde o lado de dentro da fé, bem como desde o lado de fora da mesma. 30

Se tomarmos como hipótese de trabalho o fato de o conteúdo das Ciências da Religião ser comum a outras ciências, teremos como consequência desta postura a necessidade de se considerar diversos olhares interpretativos a fim de apreendermos com maior clareza a religião, necessidade esta que faz da interdisciplinariedade um dos pilares do método das Ciências da Religião. Contudo, uma tendência a ser evitada é aquela de querer fazer das Ciências da Religião um apêndice de outras ciências epistemologicamente já constituídas. Isto porque, para muitos, elas têm a possibilidade de se constituírem numa ciência com estatuto próprio e que seja capaz de dialogar com as demais ciências.

29 Márcio L

ARA. A(s) Ciência(s) da(s) religião(ões) no alvorecer de um novo paradigma, p. 171; 179. O autor fundamenta a sua reflexão no pensamento do físico norte–americano Fritjof Capra, mais propriamente no paradigma sistêmico tal qual o concebe este pesquisador norte–americano. O objetivo de Márcio Lara é mostrar as contribuições que o paradigma sistêmico pode oferecer ao estudo do fenômeno religioso, a partir da querela suscitada em torno da alternativa que ocupou por longo período o estudo da religião: explicá-la ou compreendê-la.

30 Eulálio F

(31)

Daí a importância concedida aos diversos olhares interpretativos sobre a religião, a fim de vê-la desde o ponto de vista daqueles que têm fé (religiosa) como daqueles que não a possuem, ou seja, a partir da própria fé e desde fora da mesma, apesar dos limites de ambas as posturas: para uma pode faltar a compreensão mesma da linguagem religiosa, e na outra pode estar ausente a perspectiva mais ampla que extrapola os horizontes da fé religiosa.31

Olhar, pois, a religião desde o lado de dentro é vê-la para além de fenomenologias sócio–econômicas e percebê-la também na sua incidência e no seu significado para a vida dos indivíduos e dos grupos humanos que se articulam em torno dos símbolos religiosos. Tudo indica ser esta a contribuição específica da teologia: compreender o significado existencial da religião, o sentido de vida que ela proporciona e as decisões éticas que ela fundamenta. E olhar a religião desde o lado de fora é possibilitar também que a teologia e a própria fé religiosa possam se ver com outros olhares que não aqueles da cosmovisão da fé, com os olhares daqueles que não se encontram necessariamente comprometidos com a religião que estudam.

Nesta linha de raciocínio, é possível afirmar que fazer Ciências da Religião significa permitir que diversos olhares contribuam com o conhecimento mais aprofundado sobre o ser humano e suas manifestações culturais, desde a perspectiva da relação com o Sagrado. Por isso, a interdisciplinariedade deveria ser uma marca registrada nas Ciências da Religião, na medida em que ela nos ajuda a tomar consciência de que nenhuma forma de saber possui a chave de leitura universal capaz de considerar a própria abordagem como a única capaz de esgotar a compreensão daquilo que vem a ser a religião.

Fazer Ciências da Religião é, pois, ir além da investigação isolada de fatos históricos, sociais, psicológicos, antropológicos, filosóficos,...É na confluência das múltiplas análises que pode acontecer o estudo acadêmico propriamente dito. O desafio está em demonstrar que as Ciências da Religião possuem um estatuto epistemológico próprio cuja pertinência pode ser atestada face às demais ciências,

(32)

sem, contudo, fazer delas uma macro–ciência que esteja acima das outras ciências e tampouco considerá-la como um apêndice de qualquer outra ciência. 32

Por isso, digamos mais uma vez, o estudo acadêmico da religião exige a participação de diversos olhares interpretativos e aí pode haver lugar para o olhar teológico, desde que este busque a idoneidade metodológica, o rigor científico e a plausibilidade de comunicação das investigações científicas.33 Respeitadas tais condições, não haveria porque a pertença de um teólogo a alguma forma de confissão religiosa se constituir, em si mesma, num obstáculo à reivindicação de cidadania acadêmica por parte da teologia.

Isto porque “o locus hermenêutico do intérprete não indica rigor ou falta de rigor, mas apenas esclarece de onde ele olha.”34 Na prática hermenêutica em torno da religião, pertença e distância são dois pólos em constante tensão, sendo que na pesquisa científica a tendência em direção a um dos pólos não deveria significar a destruição do outro. Pertença e distância não são necessariamente posturas auto-excludentes, mas apenas maneiras distintas de olhar a realidade. É nesta linha de raciocínio que podemos afirmar que o estudioso da religião está diante de um objeto de estudo profundamente complexo, que escapa a abordagem de uma única ciência.35

Entretanto, alguns pesquisadores consideram que as Ciências da Religião não só devem contribuir com a compreensão das manifestações culturais do ser humano, como devem limitar-se a elas. Idéias metaculturais como revelação, redenção, iluminação, não seriam propriamente objetos de estudo das Ciências da Religião, a não ser quando estas desencadeiam ações religiosas que se expressam em produções culturais.36 Neste sentido, podemos dizer, por exemplo, que a crença em Jesus como o Filho de Deus e único salvador, em Buda como o iluminado e em Maomé como o

32 Idem, ibidem, p.63; 72 33 Rui J

OSGRILBERG. Ciências da Religião e/ou Teologia: uma questão epistemológica, p.13.

34 Idem, ibidem, p.23.

35 Luís Henrique DREHER. Ciências da Religião: teoria e pós–graduação no Brasil, p.155; 159. 36 Afrânio de A

(33)

profeta de Alá, em si mesma, não seria objeto de estudo das Ciências da Religião. O que interessaria ao cientista da religião é a maneira como determinada crença produz cultura e sentido de vida. E aqui, de certa forma, já se delineia para alguns o que se afirmará mais tarde como diferença entre uma teologia dogmática e uma teologia voltada para o estudo acadêmico da religião.

Todavia, afirmar que idéias metaculturais não são objetos propriamente ditos das Ciências da Religião não deve significar a desvalorização de dimensões como revelação, redenção iluminação etc., visto que tais dimensões são maneiras próprias de a religião apresentar sua constituição e de seus adeptos estabelecerem seu discurso religioso. Talvez, ao se dar ênfase à necessidade que estudo da religião tem em contribuir com a compreensão das manifestações culturais do ser humano e ao mesmo tempo limitar-se a elas, deseje-se, na verdade, ressaltar o fato de que as Ciências da Religião não devem se obrigar ao objetivo de defender a ortodoxia da fé ou uma determinada estrutura eclesial, seja ela qual for.

A busca por um novo paradigma para as Ciências da Religião também se encontra presente quando se retoma a discussão sobre o uso dos termos ciência/ciências e religião/religiões. Se, para o modelo explicativo, o cientista deve garantir a imparcialidade, a neutralidade e a objetividade, na medida em que convicções pessoais, valores, preconceitos, afetos não interfiram no processo de conhecimento, para o modelo compreensivo o cientista deve apreender a experiência no íntimo das manifestações sócio–históricas e culturais. O paradigma que emerge da reflexão de Márcio Lara, por exemplo, o permite apresentar um modelo epistemológico que é apontado como legitimador das condutas fenomenológicas concebidas por G. Van der Leeuw e F. Heiler, bem como possibilita a integração de pontos divergentes na discussão em torno dos modelos de explicação e compreensão do fenômeno religioso. Nesta sua tentativa de integrar pontos de vistas divergentes, Márcio Lara afirma que

(34)

acerca desses fenômenos possam passar pelo crivo da demonstração experimental.37

Esta definição o leva a considerar a filosofia e a teologia como outras formas de saber que não se enquadram nesta definição de ciência, uma vez que seus objetos de estudos pertencem à natureza não visível, como, por exemplo, o Ser, a experiência religiosa e a revelação divina. Algo discutível, em no ssa opinião. Mas, seja como for, não são poucos aqueles que consideram que tanto as Ciências da Religião como a teologia deveriam renunciar a qualquer pretensão de validade acadêmica. E são justamente estes interlocutores que abrem espaço para questões como: “em que medida a teologia tem o direito a reclamar um lugar no mundo acadêmico? E existem ciências da religião?”38 A grande maioria dos pesquisadores se dedicam mais à segunda questão e este caráter secundário concedido à pergunta pelo exercício da teologia no estudo da religião constitui-se numa limitação para o objetivo de nossa pesquisa.

Apesar disto, é importante ressaltar que, mesmo assim, há aqueles que destacam o fato de que, no início dos anos 80, sentiu-se a necessidade de reforçar a face acadêmica tanto da teologia como das Ciências da Religião, a fim de se distanciar dos condicionamentos impostos pelas instituições eclesiais. É nesta perspectiva que se considera de grande valor o surgimento de espaços autônomos de validação acadêmica como a SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) e a ANPTER (Associação Nacional de Programas de Pós–Graduação de Teologia e Ciências da Religião), sobretudo no contexto católico, onde a hierarquia da Igreja controla a validação da produção teológica através das faculdades de teologia.

Há de se destacar também as conquistas realizadas pelas Ciências da Religião, a saber: a superação da pesada herança positivista no âmbito acadêmico; a subtração da interferência clerical no estudo da religião, clericalismo cuja maior preocupação era com critérios da ortodoxia da fé; uma maior visibilidade da comunidade científica das Ciências da Religião, graças aos esforços da SOTER e da ANPTER, embora para alguns ainda haja um longo caminho a ser percorrido no que

37 Márcio L

ARA. A(s) ciência(s) da(s) religião(ões) no alvorecer de um novo paradigma, p.184.

(35)

diz respeito ao estabelecimento de bases sólidas do estatuto epistemológico das Ciências da Religião.

É nesta linha de raciocínio, ou melhor, no trilhar parte deste longo caminho, que surge a contribuição daqueles que refletem sobre a auto–reflexão teórica das Ciências da Religião e a organização de seu sistema de pós–graduação.39 Nesta

discussão, que tem ocupado boa parte da agenda da ANPTER, um dos temas de destaque tem sido as diferenças entre teologia e Ciência(s) da Religião, diferenças que, de certa maneira, deveriam se estender a outras disciplinas como filosofia e sociologia da religião.

Uma reflexão como esta parte do princípio de que as Ciências da Religião no Brasil configuram-se como uma nova área acadêmica, sobretudo a partir da percepção de que o estudo do objeto religião(ões) pode ganhar muito em compreensão se estudado de forma autônoma e interdisciplinar, ou seja, a partir de diversos métodos que primem pelo mútuo conhecimento. É a partir desta relação entre Ciências da Religião e outras ciências que se vê a necessidade da discussão em torno do termo ciência: qual a concepção de ciência que deve ser usada para qualificar ou desqualificar determinado estudo como científico? Concomitantemente a esta discussão, temos um velho dilema cujos desenlaces nos atingem hoje: a segurança do método e o problema do objeto de estudo.

Embora a resposta em torno do método a ser aplicado em Ciências da Religião não encontre unanimidade entre os pesquisadores, alguns falam do desejo de praticar uma disciplina (Ciência da Religião) que busque enfocar a especificidade da religião e dos fenômenos religiosos sem cair em redutivismos, dogmatismos e descritivismos (fenomenologia). Nesta linha de raciocínio, defende-se a idéia de que uma profunda compreensão da religião exige uma reflexão para além dos limites de sua funcionalidade e de seu caráter naturalista, de tal modo que no estudo da religião possam estar contempladas tanto a discussão fenomenológica como teológica e/ou filosófica de sua validade e/ou verdade.40

39 Luís Henrique D

REHER. Ciência(s) da religião: teoria e pós-graduação no Brasil, p.151.

(36)

Um último aspecto a ser destacado, neste passo inicial da nossa reflexão, diz respeito à criação e à revitalização da graduação e da pós–graduação no Brasil, que provavelmente ganhará novos contornos devido à necessidade da formação de um corpo docente qualificado para o ensino religioso nas escolas públicas e particulares, diante das transformações culturais ocorridas nos últimos anos, como, por exemplo, o avivamento ou notoriedade de práticas religiosas de matriz não–cristã. E isto parece ser uma realidade se considerarmos o programa de licenciatura e bacharelado de algumas instituições no Brasil.41 Todavia, há de se verificar de forma mais aprofundada a estrutura curricular destes novos programas de Ciências da Religião, pois tudo nos leva a crer que a teolo gia, e mais amiúde a teologia cristã, seja o principal fundamento de tais programas.

b. Teologia e Teologia Cristã.

Uma das críticas mais severas sobre o exercício da teologia no estudo acadêmico da religião pode ser percebida quando se fala da “influência/interferência da Teologia como uma sombra a pairar na estruturação dos Programas de Ciência(s) da Religião, pois foi a partir dela que se originaram – de forma direta ou indireta – as Ciências da Religião no mundo e no Brasil.”42 Como desdobramento desta crítica, se diz ainda da existência de programas de Ciência(s) da Religião, que são na verdade cursos de teologia que carecem de honestidade intelectual para se assumirem como tal, uma vez que tais programas estão situados em instituições confessionais, e também porque o seu corpo docente é formado na maior parte por teólogos.

Entretanto, apesar de alguns autores lamentarem a aproximação entre teologia e Ciências da Religião, não podemos negar que esta proximidade por si só já coloca a

41 Este é o caso, por exemplo, da licenciatura na Universidade Regional de Blumenau (FURB) e na

Universidade do Estado do Pará (UEPA).

(37)

pergunta pelo lugar da teologia no estudo da religião.43 A esta motivação podemos acrescentar ainda o momento de grande projeção pública e acadêmica pela qual passa a teologia, após o reconhecimento formal por parte do Ministério da Educação. Fato este que exige um diálogo mais aprofundado entre a teologia e outras formas de saber que se dedicam ao estudo da religião no contexto acadêmico brasileiro.

Ainda que não seja uma voz unânime, é importante lembrar também que entre muitos estudiosos da religião afirma-se, de modo geral, a possibilidade de a teologia colaborar na compreensão desta área do saber. Entretanto, sendo uma ciência específica, a teologia faria parte de uma ciência maior que se ocupa do estudo da religião. Por isso, alguns pesquisadores insistem na distinção entre teologia e Ciências da Religião, afirmando que a teologia não é a ciência da religião por excelência e tampouco as Ciências da Religião são servas da teologia. Em outras palavras, a teologia é parte de um todo no qual se deve estudar a religião desde dentro como de fora dela.44

Além disso, temos que enfatizar também que em nosso contexto acadêmico, quase sempre, quando se fala de teologia no estudo da religião, normalmente se pensa na Teologia cristã, a qual abrange somente uma parte do objeto de estudo das Ciências da Religião: o Cristianismo. Como consequência, no contexto brasileiro, quando se critica a teologia, sobretudo a sua falta de cientificidade, aponta-se para posturas eclesiais cristãs, para moral cristã, etc. A teologia que conhecemos no contexto acadêmico brasileiro restringe-se às fronteiras do Cristianismo e para alguns ela não pode ir além das fronteiras eclesiais. Em síntese, a Teologia como ciência da religião está voltada para o estudo de assuntos ligados às Igrejas cristãs, o que se constitui num empecilho para a sua aceitação no meio acadêmico. Por isso, levanta-se a questão sobre a possibilidade de a teologia vir a levanta-ser ciência da religião, levanta-sem abandonar seu sistema de referencialidade e a confessionalidade que a caracteriza.

Por enquanto, sem pretender responder de forma exaustiva a esta questão, gostaríamos, contudo, de enfatizar a necessidade de se distinguir entre uma teologia

43 Antonio Carlos de Melo M

AGALHÃES. Teologia e o estudo da religião, p.149-150.

Referências

Documentos relacionados

Lista de preços Novembro 2015 Fitness-Outdoor (IVA 23%).. FITNESS

os atores darão início à missão do projeto: escrever um espetáculo para levar até as aldeias moçambicanas para que a população local possa aprender a usufruir e confiar

O rei exigiu que os próprios bispos pronunciassem a sentença de Tomás, uma vez que os barões, como laicos, se haviam declarado incompetentes para faz ê -lo, No dia seguinte,

José Arno Appolo do Amaral, Prefeito Municipal, no uso de suas atribuições legais e de acordo com o Processo nº 2808/2020 da Secretaria Municipal de

 A combinação desta referência com a referência do mandato, permitirá ao Banco do devedor fazer uma análise à instrução de cobrança antes de proceder ao

Obedecendo ao cronograma de aulas semanais do calendário letivo escolar da instituição de ensino, para ambas as turmas selecionadas, houve igualmente quatro horas/aula

A disponibilização de recursos digitais em acesso aberto e a forma como os mesmos são acessados devem constituir motivo de reflexão no âmbito da pertinência e do valor

Sobretudo recentemente, nessas publicações, as sugestões de ativi- dade e a indicação de meios para a condução da aprendizagem dão ênfase às práticas de sala de aula. Os