R e v is t a d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d i c i n a T r o p ic a l 2 2 ( 2 ) : 9 7 -9 8 , A b r - J u n , 1 9 8 9 .
R E LA TO D E CA SO S
MECANISM OS POUCO COM UNS D E MORTE SÚBITA N O CHAGÁSICO
CRÔNICO - RELATO D E TRÊS CASOS
Sebastião Tostes Júnior, Antonio Carlos Oliveira Meneses,
Rosaly Corrêa-Araujo e Edison Reis Lopes
R e l a t a m - s e trê s c a s o s d e m o r te s ú b ita , d e c h a g á s ic o s c r ô n ic o s, p o r m e c a n is m o s d e ó b ito p o u c o fr e q ü e n te s . E m d o is c a so s, f o i in e sp e ra d a , s e n d o o p r im e ir o , p o r in fa r to e n c e fá lic o e o s e g u n d o , p o r b r o n c o p n e u m o n ia c o n s e c u tiv a a in fa r to i n t e s tin a l s e m o c lu s õ e s v a s c u la r e s ( e n fa r te n ã o o c l u s i v o ”). N o te rc e iro c a so , o p a c ie n te e ra c a r d io p a ta e te v e m o r te s ú b ita e s p e r a d a p o r ta m p o n a m e n to c a r d ía c o c o n s e c u tiv o à ru p tu ra e s p o n tâ n e a d o v e n tr íc u lo d ire ito .
Palavras-chaves: D oença de Chagas. M orte súbita. Tripanossomíase cruzi. Cardiopatia chagásica.
A morte súbita no chagásico crônico é bastante freqüente2 e, a exemplo do que sucede em outras cardiopatias, parece conveniente dividi-la em es perada e não esperada^. Em ambos os tipos, o óbito deve-se, em geral, à flbrilação ventricular2, cujo desencadeamento não está bem esclarecido^. M uito mais raramente outros mecanismos podem levar ao óbito súbito na tripanossomíase cruzi humana.
A finalidade do presente trabalho é relatar três casos de morte súbita, em chagásicos crônicos, cujos óbitos deveram-se a mecanismos pouco freqüentes.
Relato dos Casos
C a s o 1 - RA, 15 anos, masculino, pardo, lavrador, solteiro, natural e residente em Conceição de Alagoas (M G ). Paciente vítima de “ ictus cerebral” , internado comatoso. Segundo informes obtidos, até então era assintomático. Permaneceu no Hospital Escola durante 96 horas, tendo falecido após esse tempo. Sorologia reagente para doença de Chagas.
N e c r o p s ia : Infarto branco encefálico recente, acometendo grande parte do hemisfério cerebelar esquerdo, ponte e mesencéfalo, em órgãos com edema e congestão intensos. Tromboembolismo recente, não ocludente, da artéria basilar. Cardite chagásica crô nica (peso do coração 360g) com lesão vorticilar à
Trabalho do Departamento de Patologia, Medicina Legal e Deontologia Médica da Facuidade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais.
Endereço para correspondência: Edison Reis Lopes, D e partamento de Patologia, Medicina Legal e Deontologia Médica, Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Praça Manoel Terra, s/n, 38025 - Uberaba, Minas Gerais, Brasil.
Recebido para publicação em 21/12/88.
esquerda. Infartos renais antigos, em via de organi zação e recentes. Broncopneumonia bilateral.
E p ic r is e : Chagásico assintomático, portador de cardite crônica, que desenvolveu acidente vascular cerebral isquêmico, responsável pela morte súbita, complicado por broncopneumonia. N ão pudemos, entretanto, estabelecer, com certeza, a etiologia do fenômeno tromboembólico da artéria basilar. Poderia tratar-se de êmbolo resultante de trombo desprendido do coração, onde havia condições (lesão vorticilar, endocardite parietal crônica) para a solidificação in v iv o do sangue. Contra essa hipótese, fala o calibre do vaso, cujo diâmetro é menor que o da artéria vertebral, onde o êmbolo, originário do coração, deveria ficar retido. N a artéria basilar não havia lesões que pu dessem predispor à trombose.
C a so 2 - A R C , 49 anos, masculino, branco, motorista profissional, casado, natural de Sacramento (M G ). D eu entrada no Pronto Socorro em 6/1/87, em parada cardiorrespiratória, a qual foi revertida, com aparecimento de arritmia cardíaca. Permaneceu in consciente e desenvolveu insuficiência renal aguda, mantendo-se a pressão arterial com uso de medicação; a arritmia melhorou após uso de xilocalna. Sete horas após a parada cardíaca, apresentou quadro de abdome agudo, sendo submetido à laparotomia exploradora. Após a cirurgia, apresentou pneumonia de aspiração, vindo a falecer em 8/01/87. Sorologia reagente para doença de Chagas.
N e c r o p s ia : Cardite chagásica crônica (350g). Infarto renal, recente, sem oclusões vasculares. N e crose hepática zonal, centro e médio lobulares. Bron copneumonia.
E p ic r is e : Chagásico crônico, assintomático, que apresentou morte súbita inesperada. N o caso houve parada cardíaca, revertida. Provavelmente a queda do débito cardíaco, por tempo prolongado, levou à isquemia mesentérica e ao infarto intestinal,
R e la t o d e C a so . T o s te s J ú n i o r S , M e n e s e s A C O , C o r r ê a - A r a ú jo R , L o p e s E R . M e c a n i s m o s p o u c o c o m u n s d e m o r te s ú b i ta n o c h a g á s ic o c r ô n ic o - R e l a t o d e tr ê s c a so s. R e v is t a d a S o c ie d a d e B r a s ile ir a d e M e d i c in a T r o p ic a l 2 2 : 9 7 -9 8 , A b r - J u n , 1 9 8 9
responsável pelo abdome agudo, caracterizando a síndrome do “ enfarte não oclusivo”4. O quadro complicou-se com o aparecimento de processo bron- copneumônico.
C a s o 3 - A C M , 49 anos, feminino, preta, do lar, casada, natural e residente em U beraba (M G). Pa ciente com história pregressa de cardiopatia (arritmias e insuficiência cardíaca). Houve piora de seu quadro clínico, especialmente a dispnéia, falecendo no in terior de veículo quando era conduzida a um Hospital.
N e c r o p s ia : Foi parcial, tendo sido feita apenas ectoscopia e retirado o coração. Hemopericárdio gravíssimo consecutivo à ruptura espontânea do ven trículo direito. Cardite chagásica crônica (Figura 1) com formas amastigotas do T. c r u z i no miocárdio.
Figura 1 - Coração de paciente falecido de modo súbito inesperado por hemopericárdio consecutivo à ruptura espontânea do ventrículo direito (seta).
E p ic r is e : Em bora a necropsia tenha sido par cial, o óbito foi devido a tamponamento cardíaco por hemopericárdio consecutivo à ruptura espontânea do ventrículo direito. C aso similar a esse foi descrito por Chagas1.
D ISC U SSÃ O
Em duzentos e oitenta necrópsias de chagásicos crónicos realizadas por nós, no Triângulo Mineiro, somente nestes três casos o óbito súbito pode ser explicado por outras razões não diretamente pelo distúrbio do ritmo cardíaco.
Poder-se-ia argumentar que nos dois primeiros casos, o óbito não devesse ser considerado súbito, visto que o tempo decorrido entre o início dos sintomas e o desenlace fatal foi de poucos dias. Este aspecto, entretanto, nos parece irrelevante na presente dis cussão, pois, em ambos os casos, a morte poderia ter sido muito mais precoce se os pacientes não tivessem sido adequadamente atendidos e medicados.
Como os mecanismos de morte súbita, no chagásico crônico, apresentados nestes três casos, são
bastante raros, julgamos que a prevenção das arritmias seja a principal conduta para se tentar evitar o óbito súbito no chagásico crônico.
SUM M ARY
T h e c a s e re p o rts o f th r e e p a t i e n t s w ith c h r o n ic c h a g a s ic c a r d io m y o p a th y w ith u n u s u a l m e c h a n is m s o f s u d d e n d e a th a r e p r e s e n te d . I t w a s u n e x p e c te d in tw o o f th e m , o n e b y in fa r c tio n a n d th e o th e r b y b r o n c h o p n e u m o n ia a f t e r g u t in fa r c tio n w ith o u t m e s e n te r ic v e ss e l o b stru c tio n . T h e t h i r d h a d c a r d ia c f a i l u r e a n d h e r e x p e c te d s u d d e n d e a th w a s d u e to
c a r d ia c t a m p o n a d e a fte r s p o n ta n e o u s r ig h t v e n tr ic u la r ru p tu r e .
K e y - w o r d s : C h a g a s ’d ise a se . S u d d e n d e a th . T. cruzi in fe c tio n . C h a g a s ic c a r d io p a th y .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Chagas C. Processos patojenicos de tripanozomiase americana. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz 8:5-36, 1916.
2. Lopes ER. Morte súbita em área endêmica da doença de Chagas. Sua importância médico-legal. Tese de Pro fessor Titular, Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, 1981.
3. Prata A, Lopes ER, Chapadeiro E. Características da morte súbita tida como não esperada na doença de Chagas. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 19:9-12, 1986.
4. Raso P, Brasileiro Filho G. Esôfago. Estômago. In testino. Peritônio. Mesentério. Retroperitônio. In: Lopes ER, Chapadeiro E, Raso P, Tafuri WL (ed) Bogliolo, Patologia, 4.“ ed., Rio de Janeiro, Guanabara, p. 495-545, 1987.
5. Rocha A. Alterações morfológicas do sistema excito-condutor do coração em chagásicos crônicos falecidos subitamente. Tese de doutorado, Universidade Federa), de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1986.