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A Itinerância dos artistas: a construção do campo das artes visuais em Brasília (1958-1967).

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Academic year: 2017

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A Itinerância dos artistas

a construção do campo das artes visuais em

Brasília (1958-1967)

ANGÉLICA MADEIRA

PALAVRAS-CHAVE:

arte e política, modernização, concretismo.

RESUMO: Este artigo apresenta os primeiros resultados do projeto Itinerâncias Urbanas: os artistas e o campo das representações estéticas, que pretende mapear e analisar a produção e a consolidação do campo das artes visuais em Brasília, em três momentos significativos de sua história: os anos 50, quando se tornaram hegemônicos o paradigma racionalista em arquitetura e urbanis-mo, e o concretismo no Brasil; 1967, ano do quarto Salão Nacional de Artes Plásticas de Brasília, o último promovido pelo mecenato oficial, que tornou explícita a tendência conceitual na arte brasileira; e, finalmente o momento contemporâneo, ou seja, as duas últimas décadas, quando mudam os meca-nismos de patrocínio e se torna mais explícita a relação entre arte e mercado. O artigo pretende ainda pontuar algumas questões mais substantivas, de na-tureza teórica, assim como alguns impasses de método.

Professora do depar-tamento de Sociologia do ICS - UnB e do Ins-tituto Rio Branco “Brasília nasceu como obra de arte. Falar de arte

em Brasília é, portanto, falar de arte dentro da arte”

Frederico Morais

Arte e Cidade: A cidade como artefato e como construção coletiva.

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fun-dam e definem enquanto cidade, na expressão de seus artistas e de seus cidadãos. Artefato cultural inacabado, obra de sucessivas gerações que sobre ela inscrevem suas aspirações e seus interesses, cada cidade é por-tadora das marcas de sua história. Lugar de convergência e de embate de idéias, nela consolidam-se práticas culturais, trazidas muitas vezes de regiões distantes “pelos nômades, itinerantes que formam a diversidade étnica das paisagens e que estão na gênese das cidades.” (Madeira, 1998) Surgida no bojo de um surto de modernização que avassalou o país nos anos 1950, Brasília é especial por ser projetada para sediar o governo e por ser inscrita sobre um espaço vazio, onde não havia nenhu-ma referência cultural prévia. Tradições de todas as partes do Brasil fo-ram transplantadas para a cidade-capital. Juntamente com os “poderes migrantes”, chegaram artistas e intelectuais que imprimiram na paisa-gem os valores estéticos e utópicos do modernismo e da modernização.

Brasília compartilha hoje a complexidade crescente das ques-tões enfrentadas pelas cidades contemporâneas – violência, tendência à formação de ghettos, o uso de tecnologias de segurança e de controle,

crescimento desordenado. Brasília é também o espaço onde se dão trocas e se processam sínteses criativas entre as tradições regionais e as referên-cias mundializadas, onde circula uma informação cultural sintonizada com práticas e valores estéticos atuais.

Neste artigo, nos detemos sobre dados relativos à década de 50, anos de grande movimento nas Artes Plásticas brasileiras, década que assistiu à criação das Bienais e à consolidação de recentes museus, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Naquele momento, o concretismo1 e,

prin-cipalmente, seus desdobramentos e rupturas foram de enorme importân-cia e pode-se dizer sem hesitar que até hoje mantêm sua vigênimportân-cia e seu vigor na arte brasileira. Implantou-se como estilo hegemônico no Brasil a partir da exposição e premiação da obra de Max Bill – Objeto Tripartite

– na primeira Bienal de São Paulo, em 1951, e dois anos depois com a premiação de Mary Vieira, que havia se tornado discípula do arquiteto-escultor e já então vivia na Suíça. Críticos influentes da época exerceram papel fundamental para a consolidação do concretismo, fornecendo uma base teórica à nova estética, necessária para romper com a tradição figu-rativa e mesmo realista e documental, arraigada na arte brasileira e pouco questionada pela geração dos modernistas. O concretismo possui esse lugar ambivalente. Por um lado, conecta-se com os princípios estéticos do modernismo – como ao reivindicar o direito permanente à pesquisa estética, ou ao fazer-se ouvir através de manifestos que revelam a maior ou menor ortodoxia dos grupos que o defendem. Por outro lado, propõe uma ruptura com uma tradição figurativa, bem assentada nas obras de pintores influentes do modernismo, ainda vivos à época, como Segall, Di Cavalcanti e Portinari.

O certo é que todo esse debate teve enorme ressonância sobre a

1 O concretismo surgiu

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construção de Brasília e sobre a fisionomia estética da cidade. A arquite-tura ganhou proeminência – construir deixou de ser uma metáfora! – so-bre todas as linguagens da arte. A escultura, a pintura, a gravura busca-ram modos de tornar-se mais arquitetônicas, moduladas, seriadas, encai-xadas, em suma, mais construtivas. A cidade-capital poderia se conside-rar a síntese e o cume de um projeto e um processo de modernização e de urbanização bem afinados com os valores internacionais da arte e da po-lítica.

A sensibilidade moderna dos anos 50 estabeleceu Brasília como o parâmetro de sua utopia. Exata, racional, desenhada, a cidade destaca-se, antes de mais nada, por sua concepção ortogonal, delimitando com exatidão o que separa a natureza da civilização, o cerrado da urbs.

Seu caráter monumental e seu urbanismo modulado acabam por atenuar-se diante da enormidade da paisagem; as vias expressas de Brasília, como as de um autorama, desempenham a função de facilitar e controlar os deslocamentos dos automóveis no Plano Piloto. Assim tam-bém a arquitetura, mesmo sendo de choque e tensão, os blocos, as qua-dras e as superquaqua-dras acabam por atenuar-se, tornando-se cubos modu-lados de montar cidades, comportando escalas e setores. Pode-se distin-guir perfeitamente, pelos setores, entre uma arquitetura feita para sediar a burocracia estatal, como os edifícios da Esplanada dos Ministérios, no eixo Leste-Oeste, e outra feita para morar, que se espalha pelas duas Asas do eixo Norte-Sul. Ambas são neutras e sóbrias e ocupam um lugar preciso no tabuleiro, definido a partir de um aproveitamento racional dos espaços.

Há ainda a arquitetura destinada a suprir funções simbólicas religiosas como a Catedral Episcopal e as pequenas e numerosas capelas, ou políticas como a sede do governo e os palácios da Praça dos Três Poderes.

O sentido democrático da nova capital estaria garantido na car-ga simbólica contida em seu ícone principal, o Congresso Nacional: sua centralidade em relação aos outros Palácios que o ladeiam, sua verticalidade inesperada o destacam do entorno e dotam-no da capacida-de capacida-de sintetizar o Brasil.

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cum-prem papel de dotar a arquitetura de mais beleza e distinção.

É notória a concepção híbrida de Brasília, que adota o princípio das cidades-jardins de Howard Ebenezer, assim como as propostas pela Carta de Atenas, redigida por Le Corbusier. Apesar disso, a arquitetura de Oscar Niemeyer não é baseada na nostalgia ebenezeriana nem nas exigências radicais do funcionalismo. Ao contrário, ela valoriza as solu-ções belas, inesperadas e harmoniosas, até mesmo em detrimento da fun-cionalidade. O arquiteto de Brasília diz aceitar “todos os artifícios, todos os compromissos, convicto de que a arquitetura não constitui uma sim-ples questão de engenharia, mas uma manifestação do espírito, da imagi-nação e da poesia.” (Niemeyer, 2000, p. 25). Afirma sua afinidade com a arquitetura colonial brasileira, “exprimindo a mesma intenção plástica, o mesmo amor pela curva e pelas formas ricas e apuradas que tão bem a caracterizam.” (Niemeyer, 2000, p. 26)

O barroco é um forte filão interpretativo e sua vigência pode ser observada não só na estatuária oficial mas também na própria concepção da cidade. Citarei um trecho de Mário Pedrosa, por sintetizar com perfei-ção a percepperfei-ção do espaço de Brasília, mostrando a importância da revo-lução visual representada pelo desenho abstrato da cidade e por seu barroquismo intrínseco, pois “...se a idéia de Brasília é construtiva, muito do que existe nela é barroco” (Pedrosa, 1981, p. 28). Pedrosa aponta como características “sua monumentalidade, suas contradições e confli-tos, seu aspecto cenográfico, suas perspectivas erradias, fugas e contrafugas, um certo clima de fausto e exuberância.”(Pedrosa, 1981, p. 28)

Brasília seria assim a retomada – apesar do traçado racional de seu desenho urbano – de toda uma tradição retórica da arquitetura e da capacidade de persuasão dos monumentos, características das edificações e das cidades barrocas que, como Brasília, possuem um traçado impo-nente e monumental, amplas avenidas, jardins semeados de esculturas e chafarizes iluminados.

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Três Palácios mereceram obras de grande valor estético. O Pa-lácio dos Arcos (Itamaraty), o Alvorada e o PaPa-lácio do vice-presidente, Palácio do Jaburu. Seus jardins e varandas são ornados com belas escul-turas de Maria Martins, Weissmann, Giorgi, entre outros, e com painéis e divisórias de Athos Bulcão.

Já para suprir a função cívico-pedagógica, a arte deveria ser capaz de produzir mecanismos de identificação, marcos simbólicos que são atualizações de milenares construções do poder, mausoléus, hermas e memoriais, em geral vinculados ao culto dos pais fundadores.

Daí a necessidade de contratar artistas figurativos que pudes-sem apresentar símbolos oficiais, especialistas em fundição de efígies e esculturas naturalistas, para preencher a função pedagógica de ensinar o civismo e a religião. Assim é que Honório Peçanha, artífice de cabeças e estátuas de bronze, e José Pedrosa, especialista em trabalhar a pedra sa-bão, são chamados, para imortalizar os construtores da capital, Juscelino Kubitschek e Israel Pinheiro. Há também muitos outros bustos, como os de Villa Lobos, Rondon ou Santos Dumont, encomendados a outros artis-tas ou ofertados por representações estrangeiras. Homenagem, reconhe-cimento, gratidão, mas também reforço do personalismo como tática po-lítica, pela criação de uma versão oficial da história da nação.

Por isso, nas praças e espaços públicos de Brasília, coexistem obras, como as de Mary Vieira e Franz Weissman, não figurativas e não narrativas, esvaziadas de dimensão ideológica, e efígies e estátuas dos heróis do passado e líderes do presente, pondo em funcionamento um conhecido mecanismo de construção do discurso da história oficial, base-ado na narrativa, bastante coesa, da saga dos homens e de seus feitos.

Artista que marcou fortemente a paisagem visual de Brasília foi Alfredo Ceschiatti, tanto por sua estatuária cívica, suas esculturas diante dos palácios, quanto por sua escultura religiosa. Vinculado à equipe de Niemeyer, desde a década de 40, Ceschiatti parece adotar partidos muito diferentes de acordo com a destinação e a função da estátua. São dele as esculturas do adro e do interior da Catedral Episcopal, os evangelistas e os anjos barrocos pendendo do teto, ambos citações de Aleijadinho. Dele também é a estátua da Justiça em frente ao Palácio do mesmo nome, assim como inúmeras outras esculturas “pedagógicas” presentes nos es-paços públicos de Brasília, de gosto modernista: ora figuras alongadas, com desenho e panejamento bem definidos, como a Minerva, ora

volu-mes mais densos, blocos pouco definidos, como a estátua da Justiça, mas

sempre hieráticas, estilizadas, estáticas, privilegiando diferentes conven-ções de proporconven-ções. Alternam-se suas referências: barrocas, para lidar com a iconografia religiosa, e sintética, art-déco como na estátua da Jus-tiça. Frederico Morais faz uma pesada crítica ao seu barroquismo

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trabalharam sob encomenda produziram obras de qualidade discutível, como o Meteoro de Bruno Giorgi, no espelho d’água do Palácio dos

Ar-cos, ou a Via – Sacra da Catedral, em que os Passos do Calvário são

representados em pequenos quadros pintados a óleo por Di Cavalcanti.

A Itinerância dos artistas

Quando se começa a investigar os artistas a partir de seus itine-rários biográficos, fica-se surpreso ao constatar o quanto são nômades – quanto mais internacionais, mais nômades – viajam para se especializar, para expor, participar de salões, realizar ateliês e palestras, além de toda a performance mundana, tradicionalmente associada à profissão. Ao mes-mo tempo, constata-se que essa condição nômade pode corresponder a uma necessidade de manter-se em um estado de perpétua mobilidade. Mais do que à mudança de cidade, é à posição existencial que essa metá-fora se refere, posição sempre transversal aos consensos e às ideologias hegemônicas. A recente revalorização dos exilados e estrangeiros – como a de Samuel Rawet, por exemplo, nascido na Polônia e falecido em Brasília, nos anos 80 – permitiu conhecer um pouco mais sobre poéticas surgidas no limiar de culturas, línguas híbridas, experiências em conflito. O exílio é apenas mais uma das muitas metáforas para a condição existencial do artista, enquanto sujeito de uma prática sobre a linguagem que se estra-nha o tempo todo, falando sempre em língua estrangeira (Deleuze, Proust). Nomadismo, deriva, encontrar entre-lugares, entre-discursos, burlar, trans-gredir consensos e ideologias, critérios compartilhados pelas vanguardas históricas e que reaparecem transvalorizados pela estética contemporâ-nea.

Só aparentemente contraditório é o fato desse nomadismo con-viver com opções de enraizamento por parte de artistas que escolhem uma cidade para ali estabelecerem sua base. Brasília, nos anos 50 e início dos anos 60, era um projeto promissor. A composição ideológica feita de racionalismo, nacionalismo e humanismo de base místico-religiosa funci-onou como forte atrativo para a possibilidade de construir e realizar uma obra, identificada com a nação, sim, mas também com o futuro e a utopia da civilização. Essa ideologia agiu não só sobre os patrões e operários da construção civil (Luiz Sérgio, Nair Bicalho) como também sobre os artis-tas que viram em Brasília uma possibilidade de realizar obras, tanto no sentido pedagógico quanto artístico-arquitetônico.

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para o campo das artes, que se manteria limitado, sem instituições espe-cíficas e sem um mercado internamente estruturado, por várias décadas. Ainda hoje, passados mais de 40 anos de sua fundação, apesar da entrada em cena de novos atores no mecenato cultural e de novas mo-dalidades de patrocínio através dos grandes bancos e empresas multinacionais, grande parte da produção cultural de Brasília depende ainda de patrocínio oficial, até mesmo para viabilizar o regime de mecenato que passa a ser privilegiado pelo governo, a parceria.

A história do campo das artes e das instituições artísticas em Brasília pode ser focalizada desde antes mesmo da fundação da cidade. Inicia-se em 1958, ano emblemático, quando se tem em vista este tópico, pois, esse foi o ano em que se transferiu do Rio para Brasília a equipe de Oscar Niemeyer, arquitetos, calculistas, técnicos, dentre eles artistas como o já referido Samuel Rawet, engenheiro e escritor, e Athos Bulcão, artis-ta. Athos envolveu-se profundamente com a cidade, nela realizando-se como grande inventor, pela face “pública” que pôde imprimir à sua arte e consagrando-se também como pintor, artista intimista, identificado com a arte de vanguarda desde muito jovem.

Outro marco importante para a constituição do campo das artes em Brasília foi setembro de 1959, quando organizou-se o Congresso In-ternacional de Críticos de Arte, que reuniu artistas e críticos de renome mundial e formadores de opinião, trazidos pelo então influente crítico brasileiro Mário Pedrosa.2

O campo das artes visuais incrementou-se fortemente a partir de 1962, pois nesse ano recebeu uma importante leva de artistas, convi-dados a construir o ensino das artes na recém-inaugurada Universidade de Brasília, idealizada pelos educadores Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Dirigido pelo arquiteto Alcides da Rocha Miranda, responsável pela mai-oria dos convites para compor o corpo docente, o Instituto Central de Artes, que incluía o ensino de todas as linguagens plásticas, além de cine-ma, arquitetura e música, contou com artistas do porte de Amélia Toledo, Marília Rodrigues, Gastão Manuel Henrique, Glênio Bianchetti, Maciej Babinski e do cineasta Nelson Pereira dos Santos. Quase todos afasta-ram-se, forçados ou espontaneamente, em 1965, quando houve mais de 200 demissões na primeira intervenção militar no corpo docente da Uni-versidade de Brasília.

O empreendimento continuava a atrair um grande número de artistas do Rio de Janeiro, mas também de todas as partes do Brasil, como, em um segundo momento, Orlando Luiz, Douglas Marques de Sá, paulista que vivia no Rio; ou Avatar de Moraes, do Rio Grande do Sul, para citar apenas alguns nomes, vinculados ao nascente Instituto Central de Artes (ICA).

Foi na tentativa de recomposição do ensino das artes na Univer-sidade que chegaram a Brasília, na década de 70, artistas como Vicente

2 O Congresso

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do Rego Monteiro, que passou bastante despercebido, Catlen Sidki, gra-vadora norte-americana vinda de Chicago, atualmente em atividade, ou Rubem Valentim, cujo itinerário acompanharemos um pouco mais de perto. Todos vieram movidos pela expectativa de encontrar uma ci-dade estetizada, que exigiria arte pública em larga escala, onde seria pos-sível realizar projetos ousados de prática e difusão artísticas, no bojo das utopias que visavam redefinir uma nova identidade para o Brasil moder-no, industrializado, progressista.

1958 a 1967: Brasília sob o signo da arte oficial brasileira.

Construir Brasília pode ser tomado como medida de um ápice de otimismo e de auto-estima que tomou conta do Brasil e dos brasileiros, mobilizados pela perspectiva de modernização do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Quando aquele projeto tornou-se irreversível, iniciava-se uma importante renovação na arte brasileira, o concretismo, consolidando valores modernistas como o experimentalismo e o bom aca-bamento, rompendo com eles apenas no momento de afirmação da lin-guagem conceitual, com o neoconcretismo e seus desdobramentos (Simon, 1990).

Na época, a meta era construir e as metáforas e as linguagens construtivas lançavam o país no seu segundo modernismo, absolutamen-te afinado com o movimento inabsolutamen-ternacional da arabsolutamen-te.

Como ficou dito, o concretismo chegara ao Brasil no bojo da 1a

Bienal de Artes de São Paulo, em 1951, personificado pelo premiado arquiteto e escultor suíço Max Bill. Não que fosse a primeira vez que os brasileiros entrassem em contato com essa arte. Torres Garcia, artista uruguaio com vasta experiência européia fez escola em Montevidéu, e na Argentina; críticos e artistas, como o italiano Lucio Fontana que vivia em Buenos Aires, já estavam acordados para essa nova tendência. Mesmo no Brasil, entre 1940 e 1947, o casal de artistas Vieira da Silva e Arpad Szènes residiu no Rio de Janeiro e teve alunos freqüentando seu ateliê. Porém o prestígio da arte figurativa, de temas sociais ou que revelassem, de alguma forma, a “brasilidade” era tão forte que aqueles artistas, afina-dos com uma linguagem marcada por uma vanguarda mais radical, pas-saram relativamente sem grande reconhecimento no Brasil. Em 1948, a artista mineira Mary Vieira, ex-aluna de Guignard, criou seu objeto

Multivolume, volumetria complexa, interligada por um eixo, deslocando

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dessas duas primeiras bienais foi imensa, não só pela mudança de rumos da ideologia nacionalista na arte, mas por substituí-la por uma outra, internacionalista, racional e moderna. Elas trouxeram também um novo repertório de signos, outra linguagem, matemática e abstrata, tornada concreta “instaurando clareza e exatidão no plano e no espaço” (Freitas, 1989, p. 4), segundo lição do mestre Max Bill. Aquelas bienais que pre-miaram respectivamente Bill e Mary Vieira foram responsáveis pela afir-mação do concretismo no campo da arte brasileira. No Rio de Janeiro, dois críticos e intelectuais tiveram enorme importância, ambos profunda-mente politizados e alinhados com as tendências de seu tempo, Mário Pedrosa e Ferreira Gullar. O primeiro, defensor incondicional do internacionalismo em arte e em política, tentou encontrar uma síntese entre “a construção nacional e o passo universalizante dessa mesma cons-trução” (cf. Arantes, 1995). Para Mário Pedrosa, a arte teria o poder de educar a sensibilidade das massas e essa questão possuía uma relevância política em si mesma (cf. Costa, 2001). Manteve colunas diárias no Jor-nal do Brasil e até hoje suas crônicas e posições revelam a grande coerên-cia do político de esquerda e do ethos intelectual que o orientou. Ferreira

Gullar, tendo participado, como poeta, do primeiro grupo concretista paulista, rompe com essa tendência, por considerá-la despolitizada e formalista, criando, com Amílcar de Castro, Franz Weismann, Lygia Clark, dentre outros, o neo-concretismo, mais envolvido com a realidade sóciopolítica, mantendo a nova linguagem que se firmava no Brasil, cri-ando assim um novo espaço expressivo para a arte brasileira. Como críti-co, participou da batalha do concretismo, defendendo sempre os valores plásticos, a autoreferência das obras de arte. A relevância desse debate torna-se mais evidente, quando o confrontamos com a força do discurso dominante sobre a arte e suas funções sociais.

Di Cavalcanti e Portinari podem ser considerados os artistas modernistas canônicos, representantes da arte brasileira do período. Aque-les Estes artistas tornaram-se oficiais, tanto pelas encomendas dos gover-nos ou de particulares, quanto pelas declarações e entrevistas divulgadas; principalmente o primeiro que se envolvia em uma verdadeira cruzada a respeito da “arte nacional”, advogando a favor de uma estética figurativa e pedagógica.

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visuais, de uma arte clara e racional como a que veio a representar Brasília – com suas empenas brancas, suas numerosas empenas brancas! – coa-dunava-se plenamente com o otimismo construtivo do Brasil.

Segundo o próprio Presidente Kubitschek, Brasília não poderia ter surgido antes, pois as circunstâncias não teriam permitido, bem como não havia condições técnicas nem a genial equipe de Lúcio Costa e Niemeyer. A partir daquele momento, continuava o discurso presidenci-al, o Brasil não seria apenas exportador de café, açúcar e cacau, mas poderia também “exportar alimento à cultura universal. Brasília, civiliza-ção nova, é pois, assistida pela arte, desde o berço, em pleno surgimento. Que mais significativa participação poderia a arte almejar no mundo que desponta?” (Kubitschek, 1984, p. 26)

Entre os anos 1958 e 1960 foram realizadas quatro exposições internacionais, em Lisboa, Madri, Milão e Munique, com fotografias das obras de Brasília. Políticos e personalidades do mundo das artes compa-reciam às aberturas e Brasília, antes mesmo de ser inaugurada, já era tema dos meios de comunicação, revistas especializadas que enfatizavam a idéia da cidade nova como síntese das artes. Esse, aliás, foi o tema do Congresso internacional dos críticos de arte. A arquitetura funcionaria como aglutinador, lugar de integração das outras artes, que deveriam ser elaboradas por artistas escolhidos pelos arquitetos dentro do que há de mais alto nível na arte brasileira

A inauguração da cidade ganhou recepção em grande estilo e um belo poema sinfônico, composto pela dupla Vinicius de Moraes e Antonio Carlos Jobim. A sinfonia da Alvorada sintetiza o principal – na beleza de algumas imagens e no uso de recursos rítmicos, harmônicos e poéticos – da ideologia integradora: a tentativa de pensar o Brasil como totalidade condensada em Brasília.

A arte e os artistas seriam imprescindíveis para a cidade legiti-mar-se como capital. A arquitetura, a primeira das artes, arte pública por excelência, por estar permanentemente exposta e por estampar as marcas da história, era o grande modelo pelo qual deveriam pautar-se as outras artes, integradas aos prédios, localizadas em espaços internos ou exter-nos aos edifícios. A compreensão mais profunda dessa integração foi rea-lizada na obra de Athos Bulcão que inventou um novo tipo de muralismo. Como afirma Mário Pedrosa, a diferença do trabalho de Athos em relação ao muralismo de tradição latino-americana é que neste último “o muro foi conquistado pela pintura, não a pintura para o muro, isto é, para a arquitetura. Esta não conheceu, como no Brasil, uma renovação total, permaneceu o que era antes da revolução. Entre nós, ao contrário, é a arquitetura que precedeu o mural. (...) No Brasil, a primazia no plano artístico coube à arquitetura, o importante era criar algo novo, ali onde o solo era ainda virgem.” (Pedrosa, 1981, p. 258).

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mos-trando a importância dos espaços verdes, intrínsecos à concepção de Brasília. Burle Marx – que desenhou treze jardins em Brasília – é consi-derado por Pedrosa o pintor que foi fazer jardins, que foi pintar com flo-res, de tal forma encontrava questões pictóricas nos padrões e constru-ções de seu paisagismo. Essa busca de um sentido de integração das artes se traduziria, em primeiro plano, por essa identidade visual inconfundí-vel, a capacidade que teve Niemeyer de criar para Brasília logomarcas – estilemas que se difundiram por todo o Brasil

Niemeyer trouxe o sentido da arquitetura como escultura, es-culpindo o espaço, reintroduzindo a fantasia e o prazer que advêm da beleza estética. O prazer, segundo o mesmo Pedrosa, é um dos mais difí-ceis de mensurar e avaliar. Em arquitetura, trata-se de uma fruição em movimento, para além do funcional .

Assim é que Brasília já surge fortemente identificada com essa atmosfera estetizada, fruto de uma segunda modernidade, utopia urbana e racional sintetizada na metáfora construtiva e concreta.

Pesquisas e reflexões anteriores tornaram evidente a importân-cia dos primeiros Salões de Arte Moderna de Brasília para o fortaleci-mento do campo das artes não só do Centro Oeste mas de todo o Brasil. Em “Perspectiva de Brasília”, Mário Pedrosa comenta o marcante 4° Salão Nacional de 1967 e confirma a perspectiva introvertida, abrangedora de todo o vasto país continental, só possível de ser descortinada a partir de Brasília. Dizia isso impressionado com a vitalidade da arte brasileira traduzida nas 1028 obras inscritas, dos 363 artistas, de todas as partes do Brasil.

Com os Salões de Brasília, foi possível reconhecer um grande embate entre “a vanguarda de uma arte cada vez mais universal” (...) “e o pólo de uma arte deliberadamente regional, numa insopitável vontade de afirmação dialetal ou nacional.” (Pedrosa, 1981, p. 245)

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de grande força pictórica e crítica.

Estes Salões estão na origem da obra da primeira geração de jovens artistas aqui formados em Brasília, como Cildo Meireles, Luiz Aquila, Guilherme Vaz, Luis Alphonsus, que retornaram ao Rio de Janei-ro, de onde haviam saído ainda crianças com suas famílias, e lá tiveram grande importância na consolidação da Geração 80, que emergiu a partir da Escola de Artes Visuais do Parque Laje e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Isso para ficar no âmbito das artes plásticas, porque, ao se tomar o campo da música que emergiu em Brasília nos anos 70, pode-se ver sua força destrutiva e irreverência contra o projeto utópico da gera-ção de seus pais, os construtores de Brasília.

Brasília tornou-se pólo irradiador de tendências nas artes visu-ais, na música e na poesia, onde propostas radicais emergiam, burlando o severo controle estabelecido pelo regime militar, surpreendendo com suas poéticas contestatórias e marginais. As inesperadas “inserções em circuitos ideológicos” de Cildo Meireles ou a poesia de Chacal são exem-plos do que a imaginação daquela geração foi capaz de realizar.

Esse bloco poderia ser dado por concluído em 1967, quando, após três importantes salões oficiais, Nelson Leirner enviou ao 4° Salão de Artes de Brasília o seu Porco Empalhado. Premiada pelo júri, a obra

suscitou polêmica e marcou, juntamente com as obras de Hélio Oiticica e Cildo Meireles, a presença de Brasília na contramão da arte limpa brasi-leira. “A pureza é um mito” está escrito na instalação Tropicália de Oiticica,

do mesmo ano do Salão de 1967.

A arte brasileira dos anos 70 teve imenso vigor, apesar do forte controle e censura. Em Brasília, particularmente, parece ficar nítida a bifurcação da arte brasileira em duas forças antagônicas: a manutenção dos princípios da arte limpa, modernista e a nova vanguarda, com suas expressões desconcertantes e sujas. Surgem experiências pioneiras em poesia, teatro e música, da qual foi início e celeiro da importante experi-ência do rock brasileiro dos anos 80.

O Campo das artes nos anos 50-60, em Brasília, através dos itinerários de dois artistas: Athos Bulcão e Rubem Valentim.

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Muito cedo, Athos começou a trabalhar em projetos de arte pública, produzindo azulejos para painéis, pensando a adequação de suas propostas à arquitetura. O primeiro convite feito, em 1943, por Niemeyer, de quem tornou-se imediatamente amigo e colaborador, foi decisivo. Athos deveria criar azulejos para o Teatro Municipal de Belo Horizonte, projeto que não se realizou, mas que abriu-lhe o caminho para a colaboração com Portinari na realização do painel de São Francisco, na Pampulha, em 1947. A parceria com Niemeyer e Filgueiras, bem como com vários outros ar-quitetos continua até os dias de hoje. O artista revela uma coerência de linguagem surpreendente. É única sua capacidade de fundir seus painéis à arquitetura, criando imagens de alto teor poético. Ao lado desses traba-lhos que aderem à arquitetura, de nítido sentido pedagógico e social – introduzir beleza no espaço da rua, aproximar o homem comum de uma visualidade nova – Athos produziu figurinos, capas de livros, ilustra-ções, além de uma obra intimista – pinturas, serigrafias, desenhos, aqua-relas – em que predominam cores puras e jogos abstratos de signos. Com exceção de sua série Máscaras, iniciada em 1975, cujos motivos ainda

estão presentes nas pinturas mais recentes do artista, que traz um imagi-nário fortemente dramático, todo o resto de sua iconografia respira um clima leve, uma atmosfera alegre que se irradia e reverbera da intensida-de das cores, da intensida-despretensão do intensida-desenho.

Sua obra é impregnada de ritmo assim como de valores cenográficos que agem em sua linguagem plástica em geral, seja ela pú-blica ou intimista.

Ao engajar-se na equipe da Novacap, Athos Bulcão privilegiou a direção pública dada à sua arte, inovando esteticamente e fundindo sua criação à própria arquitetura, o que a torna quase anônima (cf. Farias, 1998).

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painéis internos e externos, como as fachadas laterais, brancas e modula-das do Teatro Nacional ou nos jogos coloridos da divisória do Palácio dos Arcos (Itamaraty), e em muitos outros espaços públicos como no Cine Brasília, em hospitais, escolas, igrejas e capelas, Athos criou planos visu-ais inconfundíveis, azulejarias de alto teor poético e que se tornaram ícones vinculados à cidade. A obra inovadora e especial de Athos Bulcão faz a síntese entre a tradição dos painéis de azulejos e uma absoluta afinidade com os valores construtivistas da arte mais radicalmente enraizada no seu tempo, produzida através de protótipos em escala industrial, modulada, permitindo o jogo serial e aleatório, que Athos Bulcão deixava muitas vezes ao acaso, ao gosto dos operários encarregados de azulejarem os painéis. Athos foi um reinventor dessa arte. Sua preocupação era com a educação estética: criar beleza a baixo custo, beleza à qual muitos tives-sem acesso. A arte deveria ser capaz de suscitar uma percepção especial e descontraída que havia de mais avant garde no seu tempo e que

acom-panhava a também ousada arquitetura.

Além de seu grande talento, o fato de ter chegado com a equipe do Rio, como artista convidado e o fato de possuir uma sólida rede de relações, permitiram-lhe realizar um dos conjuntos de arte pública mais significativos que nenhum artista jamais realizou em uma única cidade. É o artista mais canonizado, mais homenageado, mais consagrado de Brasília. Desde a década de 80, vem recebendo medalhas, festas, condecorações a até mesmo uma fundação para cuidar de seu acervo artístico.

Em outra posição no campo, encontra-se Rubem Valentim. Ar-tista autodidata, nascido no interior da Bahia, tendo vivido em Salvador, onde formou-se em Odontologia, viajou para o Rio de Janeiro e São Pau-lo (entre 1957 e 1962), ganhou prêmio de viagem do Salão de Arte Mo-derna do Rio de Janeiro em 1963 e estabeleceu-se em Roma por um período de três anos. Voltou ao Brasil e seguiu para Brasília, em 1966, para ajudar a recompor o desfalcado corpo docente da Universidade, de onde se afastou em 1968, no momento do endurecimento do regime mili-tar e da segunda leva de demissões e prisões na Universidade.

Atraído pelo aspecto construtivo da cidade, Rubem começa a desenvolver um vocabulário plástico sui generis, em diálogo ao mesmo

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Em um de seus textos mais transparentes sobre seu itinerário artístico, “Manifesto ainda que tardio”, de 1976, Valentim assim se ex-primiu: “Atualmente a minha arte busca o Espaço: a rua, a estrada, a Praça – os conjuntos arquitetônico-urbanísticos. Ainda sou pela síntese das artes: caminho para a humanização das comunidades. Integração arte-ecologia-urbano-arquitetural. Como poderei realizar isso? Deixo a per-gunta, cuja resposta poderá ficar sempre em protótipos.”

E três parágrafos abaixo:

“Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos.” (Valentim, 2001, p. 29-30)

Apesar de afirmar sua origem popular, sua formação autodida-ta, e seu pertencimento e familiaridade com a cultura do povo, principal-mente com sua cultura religiosa, Valentim não é um artista ingênuo ou folclórico. Pinta e constrói desde menino pipas e balões de papel colori-do; observa os artistas populares que pintam com água de cola e pó xa-drez cenas e paisagens nas paredes das casas da Bahia; sente-se profun-damente tocado tanto pela visualidade barroca das igrejas católicas, como pelos objetos litúrgicos do candomblé. São estas as forças da sensibilida-de estética sensibilida-de Rubem Valentim. O contato com o grupo sensibilida-de intelectuais e universitários em Salvador, nos anos 50, a chegada ao Rio, onde sua arte recebeu imediata aceitação por parte da crítica e do público, sua experi-ência européia que durou três anos de viagens, trabalho e visitas a expo-sições, tudo isso garantiu ao artista uma informação cultural atualizada. Não imitava, mas praticava uma arte afinada com os valores das vanguar-das com os quais se identificava, uma arte emblemática, não figurativa, geométrica, vinda dos símbolos de orixás e de instrumentos de culto.

Sua atenção ao que se faz na Europa só confirma sua vontade utópica de intercâmbio intensivo entre todos os povos e nações do mun-do, nunca o despistando de sua meta de encontrar uma linguagem, uma poética visual voltada para a realidade cultural profunda do Brasil, uma síntese na qual todos os brasileiros se reconhecessem, imagens que tives-sem o poder de descolonizar o imaginário através de uma “riscadura bra-sileira”.

Para completar o quadro sumário da situação das artes na pri-meira década de Brasília, faltaria citar o artista peruano Félix Barrenechea, que chegou por conta própria e viveu na cidade até a década de 803. Nos

primeiros anos, chegou também um pequeno contingente de artistas que para lá se deslocaram, como o gravador Milan Duzek ou Milton Ribeiro, que exerceram papel formador, ensinando a sério seu ofício e assim

con-3 Quando Barrenechea

veio para Brasília, já havia feito o circuito de Huanta, Peru, sua cidade natal, a Lima, Buenos Aires e São Paulo. Teve formação acadêmica, cursando a Escola Nacional de Belas Artes de Lima e de Buenos Aires e já trazia muitos prê-mios no curriculum.

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tribuindo para dinamizar o campo da arte na cidade.

O trabalho de cada um destes artistas comentados suscita refle-xões de natureza estética, que permitem distinguir as escolhas de materi-ais e estilos que se plasmam em uma linguagem própria e que têm maior ou menor aceitação do público. Já essa recepção assim como os itinerári-os pessoais exigem outras explicações sociologicamente mais convincen-tes, como a que atribui a posição de prestígio à relação que o campo da arte estabelece com o campo do poder e, sendo assim, as redes de rela-ções passam a ter uma importância decisiva no agenciamento das carrei-ras artísticas. Segundo Durand, baseado em Bourdieu, “...as relações de classe penetram constitutivamente o meio artístico, transfiguradas em privilégios sutis que ajudam de modo decisivo a desenhar trajetórias de carreira, expectativas e realizações, frustrações e esperanças.” (Durand, 1989, p. XIX)

Assim, menos com o objetivo de delimitar o que é arte da não arte, o certo do errado, os conceitos aqui trabalhados servem para distin-guir o relevante e o irrelevante, o que entra e o que é excluído desse mercado do sublime e dos bens de luxo chamado arte. Como as decisões sobre inclusão ou exclusão, em geral, mesmo que sejam tomadas a partir de critérios intrínsecos às linguagens artísticas, estão definidas fora delas, é preciso continuar a investigação desse intrincado complexo responsável pela produção de valores. Esse lugar é ocupado pelos artistas, mas tam-bém pelos mediadores – curadores, críticos, galeristas, jornalistas – rponsáveis pela elaboração de um discurso que sustente as qualidades es-téticas contidas nas obras e que permita pô-las à venda em um mercado altamente fasciculado, ainda que precariamente regulado.

Estética e Política: questões de método

Brasília propiciou uma convergência entre os projetos intelec-tual, estético e político. A busca de uma linguagem internacional, plas-mada nas novas conexões do campo das artes visuais e da poesia, a apro-priação das possibilidades estéticas dos novos meios de comunicação com as massas coadunavam-se perfeitamente com a idéia de uma moderniza-ção radical, industrializamoderniza-ção acelerada e urbanizamoderniza-ção irreversível, princi-pal índice de modernidade.

As palavras de Mário Pedrosa ilustram o tamanho dessa utopia. “(...) O Brasil, como toda nação viva, é uma anônima e coletiva aspiração às mais altas plataformas para seu destino. (...)

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(...) Por isso mesmo, ao tornar-se fato, Brasília criou para o país todo algo que não existia, uma perspectiva que física e espiritualmente pela primeira vez o abarca – perspectiva de Brasília.” (Pedrosa, 1975, p. 243-247)

A crença em um Brasil renovado, livre das estruturas arcaicas das senzalas, poderia ser vislumbrado a partir dessa perspectiva, dessa plataforma sólida para fundar uma verdadeira nacionalidade.

Se essa utopia construtiva foi capaz, em tempos de democracia, de reunir artistas, intelectuais, políticos e técnicos, com o advento do re-gime militar e próximo à promulgação do Ato Institucional nº 5, a cidade passou a ser caracterizada como cidade-quartel, o que traz conseqüênci-as diretconseqüênci-as sobre a organização do campo dconseqüênci-as artes. Os artistconseqüênci-as radicalizaram e politizaram fortemente suas propostas e tentaram manter-se “fora do sistema”, conforme jargão da época, propondo, em muitos sentidos, uma arte marginal, como foi denominada pela crítica, toda a arte considerada relevante dos anos 1970.

A periodização da pesquisa como um todo está vinculada a acon-tecimentos que podem ser tidos como emblemáticos, pois são marcos que põem em evidência rupturas importantes que ocorreram internamen-te ao campo das arinternamen-tes, e que permiinternamen-tem estabelecer relações com a políti-ca, já que há intenção de buscar vínculos entre regimes de representação e história, entre itinerários individuais, grupos sociais, instituições e as diversas configurações sócio-históricas nas quais emergem os discursos estéticos.

A noção de campo foi útil tanto para orientar os levantamentos

de dados empíricos para as décadas de 50-60, ou 70, assim como para mapear as redes de relações e a produção da arte nas décadas de 80 e 90. Entendo por campo o conjunto de posições que os diferentes atores ocupam no interior de um mesmo espaço, em sua dinâmica de luta por prestígio e poder (cf. Bourdieu, 1974). O campo inclui toda a com-plexa rede e delimita as formas como os artistas se organizam em grupos ou se vinculam a instituições; inclui ainda todos os mediadores da arte, galeristas, críticos, jornalistas. O campo também se define por sua auto-nomia relativa à maior proximidade ou distância em relação ao campo do poder stricto sensu, isto é, do poder econômico e do poder político.

Sen-do assim, as posições de poder no interior de qualquer campo tendem a coincidir com a relação que se estabelece entre esses campos. Mas por serem essas relações históricas e portanto mutáveis, decidimos construir uma periodização que ponha em evidência a cumplicidade entre estética e política, entre práticas discursivas e práticas sociais, emergindo simul-taneamente, movidas pela mesma rede de necessidades internas, históri-cas (cf. Foucault, 1972).

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volta-das para a formação de artistas e para a divulgação volta-das artes. É também necessário realizar análises pontuais de trabalhos de artistas que defini-ram e modeladefini-ram a vida cultural de cada período.

A ampliação sem precedentes do interesse pela arte e pela cul-tura, a densidade política que as artes adquiriram nas décadas recentes, a força econômica que representam no mundo globalizado, associada à in-dústria do turismo e do lazer, chamaram a atenção de acadêmicos de várias disciplinas que, cada vez mais, reforçam suas pesquisas e publica-ções. Assim o campo da cultura deixa de ser considerado como um apên-dice e passa a ocupar um lugar importante no conjunto das sociologias especiais. Surgem estudos que tratam as artes sob o ponto de vista da economia e do mercado, considerando o acelerado processo de transfor-mação que resultou da privatização da cultura e das novas formas de financiamento, principalmente através dos grandes bancos e agências in-ternacionais; outros que tratam das estratégias de formação do campo, sua institucionalização, da itinerância e fluidez dos grupos, das represen-tações que emergem das práticas estéticas; outros ainda sobre a impor-tância adquirida pelos mediadores entre os artistas e o público.

Esse estudo desenvolve-se simultaneamente em dois registros: o primeiro estuda a construção do campo das artes, sua institucionalização, consolidação e profissionalização em Brasília. São consideradas as ex-pectativas e a atuação das diferentes gerações de artistas que se estabele-ceram na cidade, as formas que encontraram para imprimir suas marcas na cidade capital, a partir da periodização já referida. Em outro registro, são discutidas as categorias relevantes para a leitura e análise da produ-ção estética contemporânea, tarefa que se faz cada vez mais necessária se se quiser empreender um trabalho mais sistemático no campo das artes visuais e da cultura contemporânea. Estas categorias variam de acordo com a década a ser estudada, pois buscamos categorias imanentes aos discursos, as que emergem das próprias linguagens artísticas. Se, para a arte dos anos 50-60, podemos constatar a relevância do debate em torno do concretismo ou figurativismo, nos anos 70, ápice da arte conceitual e da virada anti-utópica, o debate é outro, muito mais tenso e politizado. A partir dos anos 80, com o início da redemocratização política e da cultura de mercado globalizado, o campo da arte amplia-se e complexifica-se, de modo que, mais do que nunca, torna-se necessário o trabalho teórico para que seja possível proceder a recortes e organizar séries e eixos de leitura no conjunto da diversificada – tanto em termos de escolha de linguagem quanto em termos qualitativos – produção artística contemporânea.

Assim, se períodos que vão de 1958 a 1967, ou daí a 1979 podem ser pensados do ponto de vista de pesquisa e de uma abordagem estética e sócio-histórica, os anos 80 inauguram uma multiplicidade de propostas de linguagens complexas.

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tecnologias de comunicação; os valores encontram-se mais uma vez des-locados, tornando necessária a elaboração de conceitos e categorias para a abordagem das novas linguagens da arte.

Para o estudo das últimas décadas, serão levantadas algumas categorias e, em torno de cada uma delas, serão grupadas questões que apontam para traços presentes nas linguagens artísticas atuais, desenhan-do esferas de valores que, por sua vez, dão origem a materialidades que testemunham sobre as condições presentes de exercício da atividade ar-tística na cidade.

Nesse sentido, o trabalho teórico e o empírico são conduzidos paralelamente pois sem as categorias não poderíamos sequer iniciar nos-sa tarefa. Categorias serão sempre necessárias para pennos-sar sobre um cam-po, principalmente quando se trata de intervir em um dos setores de pro-dução de bens simbólicos dos mais complexos, a arte. Campo em que houve enorme acúmulo de capital cultural e rápidos deslocamentos do conhecimento que ampliaram as possibilidades teóricas e construções transdisciplinares que permeiam os estudos contemporâneos sobre arte e cultura.

Recebido para publicação em junho/2002

MADEIRA, Angélica. The itinerancy of artists: the construction of the visual arts field in Brasília (1958-1967). Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 14(2): 187-207, October 2002.

ABSTRACT: This article presents the first results of a research which aims at mapping and analyzing the construction and the consolidation of the field of the visual arts in Brasília. The whole project is divided into three significant moments of the city’s history: the fifties, when the rationalist model in architecture and urban design, and concretism in the field of the arts became hegemonic; the late sixties, when conceptualism was strongly affirmed on the Brazilian art scene; and finally, the two last decades, which brought big changes to patronage and to art market strategies. The article also punctuate some theoretical and methodological remarks.

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