MOLESTIA DE CREUTZFELDT-JAKOB
ESTUDO CLINICO, HISTOPATOLOGICO Ε ELETROMICROSCOPICO DE UM CASO
JOÃO GUIDUOLI NETO*
NELSON ANTONIO DE BORTOLI ** ROBERTO MELARAGNO FILHO *** L. C. MATTOSINSO-FRANÇA ****
Em 1920 H. G. Creutzfeldt relatou o caso de uma paciente de 23 anos de idade com dist٥rbios do comportamento, crises convulsivas e quadro pirβmido extrapiramidal, caracterizado principalmente por espasticidade e mioclonias. O exame histolσgico do encιfalo revelou degeneraηγo difusa das cιlulas nervosas, neuroniofagia e proliferaηγo astrocitαria. Em 1921 Alfons Jakob descreveu os casos de 3 pacientes com disfunηγo cortical e sinais pirβmidoextrapiramidais, que evoluνram para o σbito depois de um curso clνnico de cerca de 9 meses. Em 1923 aditou dois casos mais. A histopatologia de todos eles era similar ΰ descrita no caso de Creutzfeldt. Jakob reconheceu que todos formavam uma entidade que, na base de achados clνnicos e anatτmicos, podiam ser separados das molιstias inflamatσrias, vasculares, senis ou outras degenerativas, dandolhe o nome de pseudoesclerose espαstica. Ulteriormente novos relatos de casos se sucederam na literatura, parecendo haver 150 casos publicados entre 1920
e 1965".
Embora muitos dos casos sejam similares, hα variaηγo da sintomatologia clνnica. Este polimorfismo e a descriηγo do estado espongioso vieram trazer controvιrsia quanto ΰ caracterizaηγo da molιstia como entidade nosolσgica, estan do atualmente sua conceituaηγo em evoluηγo l s
. Isto deu origem a uma grande variedade de denominaηυes 1 4
.
Alguns relatos do desenvolvimento de lesυes semelhantes histopatologica mente em chipanzιs inoculados com material de biσpsia cerebral 6
bem como a similaridade existente entre esta doenηa e o Kuru, em humanos, e o "scrapie" em ovinos, tem sugerido ultimamente a possibilidade de uma etiologia viral 9
·Ί 1 .
Como em alguns casos relatados os sintomas piramidais nγo existem ou sγo transitσrios, e as amiotrofias infrequentes, o termo empregado por Jakob ι sele tivo apenas para alguns casos. No presente trabalho o epτnimo "molιstia de CreutzfeldtJakob" (CJ) ι usado para englobar todos os tipos e suas variantes clνnicas, com suas diversas localizaηυes *.
Trabalho dos Serviηos de Anatomia Patolσgica e de Neurologia do Hospital do Ser vidor P٥blico Estadual de Sγo Paulo (HSPEPMO): * Mιdico assistente de Anatomia
OBSERVAΗΓO E.G.P.R., 53 anos, sexo masculino, branco (RG263.386) comeηou a apresentar, em outubro de 1974, alteraηγo da memσria para fatos recentes e embaηamento da visγo. Exame neurológico — Intoxicaηγo pelas ordens sendo a perceptividade de difνcil avalia ηγo objetiva devido aos dist٥rbios de linguagem. A reatividade motora era completa. Afasia global; as demais funηυes prαxicaa e gnσsticas nγo eram passνveis de avaliaηγo. Observavase hemiparesia direita desproporcionada, com predomνnio braquial. Os re flexos profundos estavam exaltados no membro superior direito. Reflexos cutβneos abdominais e cremasterianos abolidos ΰ direita. Apresentava ainda cegueira do olho direito e hemianopsia nasal do olho esquerdo, e discreta paresia do m٥sculo reto mediai do olho esquerdo. O exame de fundo do olho revelava discreto engurgitamento venoso. A carotidoan^iografia esquerda e o exame de lνquido cefalorraqueano nada de anormal revelaram. Um mapeamento cerebral mostrou αrea de hipercaptaηγo parietooccipital esquerda. Com hipσtese de processo expansivo intracraniano foi o paciente submetido a craniotomia parietooccipital esquerda, nada sendo encontrado. O caso evoluiu com progressiva piora do quadro neurolσgico, com perνodos alternados de sonolκncia e agitaηγo, atι 21 de fevereiro de 1975 quando o paciente foi transferido para o HSPEFMO. Apresentavase, nesta ocasiγo, em coma profundo, mutismo acinι tico, hipotonia global. Os reflexos patelares, aquileus e cutβneoplantares estavam abo lidos. Movimentos mioclτnicos no membro superior esquerdo e na hemiface esquerda. O exame do lνquido cefalorraqueano resultou normal. Um mapeamento cerebral com Tc99 mostrou aumento da concentraηγo de radiosσtopos ao longo da regiγo parietal e occipital esquerdas, junto ao contorno; αrea de discreto aumento da concentraηγo de radiosσtopos, disseminada na regiγo parietotemporooccipital esquerda; αrea de maior concentraηγo de radiosσtopos ao nνvel da regiγo tκmporooccipital direita. Um pneu mencefalgrama revelou aumento simιtrico do sistema ventricular, com atrofia cortical predominante em αreas frontais. Os exames eletrencefalogrαficos revelaram presenηa de complexos paroxνsticos periσdicos de curta duraηγo, caracterνsticos da doenηa de CreutzfeldtJakob. O quadro clνnico geral mantevese inalterado desde entγo, havendo na evoluηγo quadros intercorrentes de endocardite bacteriana e de infecηγo urinaria.
COMENTΑRIOS
clνnico. A maior parte dos pacientes tem envolvimento difuso da cortex cerebral
e dos gβnglios basais, bem como alteraηυes do tαlamo, cerebelo, tronco cerebral
e medula espinal.
Kirschbaum
snuma tentativa de ordenar a matιria, distingue trκs formas
clνnicas: frontopiramidal, tipo pseudoesclerose espαstica (Jakob); occipito
parietal, com agnosia visual e sνndrome discinιtica (tipo Heidenhain); forma
difusa, com comprometimento da cortex cerebral, dos gβnglios da base, do tαla
mo, do tronco cerebral e com participaηγo espinal.
O presente caso teve aproximadamente um ano de evoluηγo atι a fase do
mutismo acinιtico, havendo contudo relato de casos de evoluηγo mais r α p i d a
1 4.
Macroscopicamente as alteraηυes do encιfalo e da medula espinal sγo na
maioria dos casos insignificantes, em comparaηγo com os achados histopatolσ
gicos. No caso de Sanvito e c o l .
1 4o encιfalo pesou 1200 g e, no de Bignami
& Forno 2, 1410 g.
Histopatologicamente a doenηa de CJ caracterizase pela presenηa de uma
trνade de alteraηυes: degeneraηγo neuronal, hipertrofia da astroglia e estado es
pongioso. Os fenτmenos de degeneraηγo neuronal, que se caracterizam pela
presenηa de contraηγo neuronal atι o desaparecimento das cιlulas, ocorrem desde
a cortex cerebral atι a medula e s p i n a l
1 4; predominam em geral nas lβminas
111 a V I
8; no caso de Sanvito et a l
1 4, predominava nas camadas IV e V, en
quanto no presente caso ι difuso. A proliferaηγo astrocitαria pode ser tγo intensa
a ponto de promover alteraηγo da arquitetura
8fato observado em algumas αreas
no nosso caso.
O estado espongioso caracterizase pela presenηa de numerosas pequenas
lacunas microscσpicas na substβncia cinzenta, especialmente na cortex cerebral.
Na eletromicroscopia estes espaηos parecem corresponder a processos celulares
distendidos, sejam astrocitαrios, ou mais raramente, segundo Bignami <& Forno
2,
a dendritos. Em nosso caso estruturas vesiculares em algumas cavidades suge
rem poder tratarse deste fato. Apresentase predileηγo pelas camadas II e IV
embora possa ser difusa
1 4. Esta alteraηγo nγo ι caracterνsticas de doenηa
alguma, parecendo traduzir um modo de reaηγo a dist٥rbios circulatσrios, a
alguns processos inflamatσrios ou degenerativos e a determinadas intoxicaηυes
8.
Foi lhe dado especial realce por Nevin et a l *
1 2ao descreverem a "encefalopatia
espongiforme subaguda", entidade semelhante ΰ molιstia de CJ, e cuja etiologia
atribuνram a dist٥rbios vasculares. Estas alteraηυes podem ser reproduzidas
experimentalmente em animais com injeηυes intracerebrais de ouabaina M .
Quanto ΰ etiologia, a ausκncia de alteraηυes vasculares diretas do tipo
hipertensivo ou aterosclerσtico, leva a discutirse a doenηa dentro de compo
nentes senis ou degenerativos. Histopatologicamente as molιstias de Alzheimer
e de Pick sγo facilmente afastadas. Sabese hoje que diversas causas (pelagra,
intoxicaηγo por monσxido de carbono, condiηυes pσsencefalνticas) podem pro
vocar manifestaηυes clνnicas e alteraηυes neuropatolσgicas semelhantes ΰ doenηa
de CJ, este fato levando ΰ d٥vida de tratarse de uma doenηa ou de uma
sνndrome.
A transmissγo da doenηa a chipanzιs por Gibbs e col.
6em 1968 veio trazer
a hipσtese de sua produηγo por um virus de aηγo lenta. Roos e c o l .
1 3julgam que há a possibilidade de que outras doenças demenciais, que clinicamente ae assemelham à de C-J, como a moléstia de Alzneimer, possa também ser
transmitida a animais. Doenças como a kuru dos nativos da Nova Guiné, e o
"scrapie" dos ovinos, caracterizam-se pela transmissibilidade por meio de injeções
de órgãos do caso afetado6
»1
" e anatomicamnte exibem degeneração vacuolar
neuronal e gliose1
^; Roos e c o l .l a
, a este propósito, descrevem a transmissão experimental a primatas em 12 casos.
RESUMO
É apresentado o caso de paciente de 53 anos de idade com quadro de re-baixamento mental e comprometimento piramidal, com evolução progressiva até
mutismo acinético em 6 meses de evolução. Um pneumencefalograma mostrou aumento simétrico do sistema ventricular. Uma biópsia cerebral permitiu
en-contrar alterações neuronais, gliose e estado espongioso que permitiram classi-ficar o caso como de moléstia de Creutzfeldt-Jakob. São discutidos os achados
eletromicroscópicos.
SUMMARY
Creutzfeldt-Jakob disease: a case report.
The case of a patient 53 years old that had a picture of cortical impairment and pyramidal disfunction, leading in 6 months to acinetic mutism is reported. The
histopathology lead to the diagnostic of Creutzeldt-Jakob disease, with neuronal loss, gliosis and status spongiosus. The electron-microscopic examination showed
that the status spongiosus was due to cellular processes, some having vesicular bodies sugestive of pre-synaptic vesicles.
REFERENCIAS
1. ADAMS, H . ; BECK, E. & SHENKIN, A. M. — CreutzfeldtJakob disease: further similarities with kuru. J. Neurol. Neurosurg. Psychiat. 17:195, 1974.
2. BIGNAMI, A. & FORNO, L. — Status spongiosus in CreutzfeldtJakob disease. Electron microscopic study of a cortical biopsy. Brain 93:89, 1970.
3. BIGNAMI, A. & PALLADINI. G. — Subacute spongiform encephalopathy: an experimental study. In Excerpta Medica Int. Congr. Serv. Nº 100. p. 572-575. 1966.
4. CORNOG, J. L. JR.; GONATAS, Ν . K. & FEIERMAN, J. R. — Effects of intra-cerebral injection of ouabain on the fine structure of the rat intra-cerebral cortex. Am.
J. Path 51:573, 1967.
5. GADJUSEK, D. C ; SORENSON, E. R. & MEYER, J. — A comprehensive cinema record of disappearing kuru. Brain 93:65, 1970,
6. GIBBS, C J.; GAJDUSEK, D. C.; ASHER, D. M.; ALPERS, M. P.; BECK, E.; DANIEL, P. M. & MATTEROS, W . B. — Creutzfeldt-Jakob disease (spongiform encephalopathy): transmission to the chipanzee. Science 161:388, 1968.
8. KIRSCHBAUM, W. R. — Jakob-Creutzfeldt Disease. In Pathology of the Nervous System — Jeff Minckler (ed.). McGraw-Hill Book Co., New York, 1974, págs.
1410-1419.
9. LAMPERT, P. W . ; EARLE, Κ . M.; GIBBS, C. J., JR. & GAJDUSEK, D. C. — Experimental kuru encephalopathy in chipanzees and spiders monkeys. J. Neuropath,
exp. Neurol. 28:353, 1969.
10. LAMPERT, P. W.; GAJDUSEK, D. C. & GIBBS, C. J. — Subacute spongiform virus encephalopathies. Am. J. Path. 68:626, 1972.
11. MARESH, R. F. — Kuru and Creutzfeldt-Jakob disease (slow virus infections). Amer. J. Path. 69:209, 1972.
12. NEVIN, S.; McMENEMEY, W. Κ ; BEHRMAN, S. & JONES, D. T. — Subacute spongiform encephalopathy, Brain 83:519, 1960.
13. ROOS, R.; GAJDUSEK, D. C. & GIBBS, C. J. — The clinical characteristics of transmissible Creutzfeldt-Jakob disease. Brain 96:1-20, 1973.
14. SANVITO, W. L.; GUIDUGLI NETO, J.; NEGRISOLI, M. C. B.; DUARTE, Μ . I. S. & MELLO, A. C. P. — Doença de Creutzfeldt-Jacob. Arq. Neuro-Psiquiat. (São Paulo) 29:103, 1971.