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A paisagem sonora de Vila Rica e a música barroca das Minas Gerais (1711-1822)

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Fábio Henrique Viana

A paisagem sonora de Vila Rica e a música

barroca das Minas Gerais (1711-1822)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em História

Linha de Pesquisa: História Social da Cultura Orientadora: Adalgisa Arantes Campos

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Universidade Federal de Minas Gerais

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FICHA CATALOGRÁFICA 981.51 Viana, Fábio Henrique

V614p A paisagem sonora de Vila Rica e a música barroca das Minas Gerais (1711- 2011 1822) [manuscrito] / Fábio Henrique Viana. –2011.

203 f.

Orientadora: Adalgisa Arantes Campos

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradecimentos

Entendi porque se usa o plural majestático em textos acadêmicos: é inconcebível realizar um trabalho tão extenso, como uma tese de doutorado, sozinho. Quando digo eu, mesmo em minhas conclusões mais pessoais, carrego comigo um mar de leituras, de comentários, de conversas (muitas vezes informais), de olhares, enfim, de pessoas. É sempre assim na vida. Mas vi isso de forma mais contundente nesses últimos anos de trabalho. Então, não por modéstia ou timidez, mas por gratidão, decidi usar no texto o pronome mais apropriado: nós.

É quase impossível nomear todo mundo que carrego nesse “nós”, mas ao menos algumas pessoas minha memória me permitiu explicitar.

A Adalgisa, pela paciência em orientar um músico a fazer o trabalho de um historiador e, principalmente, pela generosidade em indicar os caminhos, ensinar a pesquisar em arquivos históricos e oferecer, sem reservas, o fruto do próprio trabalho – livros acumulados ao longo de uma vida e muitas transcrições de documentos antigos, que aprendi muito bem o quanto custam a serem feitas.

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A Carlos Oliveira (Caju), Ana Torres, Mons. Flávio, David Cranmer, Sidione Viana, pela gratuidade, muito além da simples disponibilização das fontes documentais.

A Leandro Rezende e Denise Duarte, pelas leituras paleográficas do APM.

A Miguel Mahfoud, Pierre Sanchis, José Newton, André Cavazotti, Letícia Bertelli, Andrea Adour, pelas conversas que ajudaram a definir os caminhos teóricos, a encontrar paralelos no pensamento acadêmico para as minhas intuições.

A Pe. Taborda, José Newton, Fábio Montanheiro e André Cavazotti, pela leitura atenciosa do texto e pelas valiosas contribuições na defesa.

A Amanda e Marcelo, Beto e Sandra, Rafa e Carol, Marina, Quentin, Mariana, Miguel, André e Marquinho, pela amizade que aponta para o Infinito.

A Manuela, por ampliar sobremaneira minha bibliografia e pelas revisões do texto; Evandro, Virgínia, Manuela, Cecília e João, pelo apoio (literalmente), principalmente nos finais de semana, com os meninos...

A meus pais, Neguinho e Magê, e minha irmã, Lílian, por jamais se economizarem, sempre disponíveis para ajudar em tudo, pela presença discreta, mas constante.

A Pedro, Maria e André, que mesmo tão pequenininhos, do jeito deles, acompanharam tudo e encheram de vida e alegria todo esse período.

A minha esposa amada, Clarice, por me despertar o interesse pela paisagem sonora, por me ouvir, pelas constantes leituras e discussões de cada página nova do texto, pelos mapas, pelas ilustrações, pela formatação... por aguentar as pontas com os meninos e nas tarefas de casa... enfim, pelo amor, amizade e companhia.

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Sumário

Resumo ... 8

Abstract ... 9

Lista de figuras ... 10

Lista de abreviaturas ... 12

Introdução ... 13

Capítulo 1 – Os sons da Vila ... 29

Entremez ... 59

Capítulo 2 – Os sons do ciclo religioso ... 81

Capítulo 3 – A paisagem sonora de Vila Rica ... 110

Capítulo 4 – A “paisagem sonora ideal” de Vila Rica ... 135

Considerações finais: cadência à Dominante ... 162

Referências ... 169

ANEXO A – Funções religiosas semanais ... 182

ANEXO B – Funções religiosas promovidas por Irmandades do Pilar e Senado ... 184

ANEXO C – Invitatorio da Novena de Nossa Senhora do Pilar ... 190

ANEXO D – Coro inicial da Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal ... 196

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Resumo

O objetivo deste trabalho é tentar conhecer a paisagem sonora de Vila Rica, no século XVIII, e a comparar com a música ali escrita. Partindo da ideia do compositor canadense R. Murray Schafer (2001), que considera a música como “o melhor registro permanente de sons do passado”, constituindo-se como uma espécie de “paisagem sonora ideal” que recria na imaginação algo semelhante ao que se verifica na paisagem sonora da época em que foi escrita, pretende-se ver em que medida a música composta em Vila Rica, no século XVIII, idealiza a paisagem sonora da qual faz parte. Nos dois primeiros capítulos são descritos os sons ouvidos nos espaços públicos de Vila Rica e o calendário cultual da freguesia do Pilar, o qual é tomado como parâmetro de marcação do tempo na Vila. Nos dois últimos capítulos, a paisagem sonora de Vila Rica é analisada e comparada com duas peças musicais contemporâneas. O método e as fontes usadas nos permitiram estudar apenas a estrutura da paisagem sonora da Vila e ver um reflexo dessa estrutura na música da época, a qual, apesar de todo o aparato clássico e pré-clássico que utiliza, pode ser considerada barroca.

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Abstract

The objective of this work is to approach the soundscape of the 18th century Vila Rica and compare it with the music written there at the time. Starting from the Canadian composer R. Murray Schafer’s idea (2001) of music as the best permanent register of sounds from the past, constituting itself a kind of ideal soundscape that recreates in imagination something similar to the soundscape that we find in the period in which that music was written, we intend to evaluate in which way the music composed in Vila Rica, in the 18th century, idealizes the soundscape of which such music is constituent. In the first two chapters we describe the sounds heard in public spaces of Vila Rica and the worship calendar of the parish of Pilar, which is taken as a parameter of time measurement at the Vila. In the two last chapters, the soundscape of Vila Rica is analyzed and compared with two contemporary musical pieces. The method and sources utilized permitted us to study only the structure of the Vila’s soundscape and to recognize a reflection of this structure in the music of this period, which, despite the classical and pre-classical display that it utilizes, may be considered baroque.

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Lista de figuras

Fig.1 – RUGENDAS, Johann Moritz. Lavagem de ouro perto de Itacolomi. ... 32

Fig.2 – RUGENDAS, J. M. Vila Rica. ... 33

Fig.3 – RUGENDAS, J. M. Carregadores de água. ... 35

Fig.4 – RUGENDAS, J. M.Venda em Recife. ... 43

Fig.5 – RUGENDAS, J. M.Lundu. ... 47

Fig.6 – RUGENDAS, J. M.Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros. ... 48

Fig.7 – RUGENDAS, J. M.Batuque. ... 49

Fig.8 – ATAÍDE, Manuel da Costa. Assunção da Virgem Maria.. ... 75

Fig.9 – ATAÍDE, M. C. Anjos cantores, detalhe ... 76

Fig.10 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando violino, detalhe. ... 76

Fig.11 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando violoncelo, detalhe. ... 76

Fig.12 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando alaúde, detalhe. ... 77

Fig.13 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando trompa, detalhe. ... 77

Fig.14 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando clarim, detalhe. ... 78

Fig.15 – ATAÍDE, M. C. Anjo tocando flauta, detalhe. ... 78

Fig.16 – ATAÍDE, M. C. Anjos tocando oboé, detalhe. ... 78

Fig.17 – Parte de 1º violino do coro inicial da Oratória ao Menino Deus. ... 79

Fig.18 – Espaço acústico aberto e espaço acústico fechado. ... 111

Fig.19 – Propagação do som nos espaços abertos e nos espaços fechados de Vila Rica. ... 119

Fig.20 e Fig.21– Antiga Rua Direita vista de baixo e a partir da praça, respectivamente. .... 120

Fig.22– Vista aérea da atual Praça Tiradentes, com o direcionamento das vias ... 121

Fig.23 – Exemplo de regiões sonoras de Vila Rica ... 123

Fig.24 – Marcação de regiões sonoras e alguns ambientes sonoros de Vila Rica ... 127

Fig.25 – Distribuição dos sons numa sexta-feira. ... 129

Fig.26 – Distribuição dos sons numa semana comum. ... 132

Fig.27 – ROCHA, F. G. Invitatorio, c.9-12, início da exp. do soprano e acomp. 1º violino. 142 Fig.28 – ROCHA, F. G. Invitatorio, c.13-18, “inclinar-se” melódico do soprano... 142

Fig.29 – ROCHA, F. G. Invitatorio, c.19-23, ritmo pontuado (c.20) e acomp. dos violinos. 143 Fig.30 – ROCHA, F. G. Invitatorio, c.36-42, solo do contralto e entrada do coro. ... 143

Fig.31 – ROCHA, F. G. Invitatorio, c.48-53, solo do contralto e acomp. do 1º violino. ... 145

Fig.32 – NEVES, I. P. Oratória, c.1 e 2, primeira semifrase da introdução. ... 146

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Fig.34 – NEVES, I. P. Oratória, c.3 e 4, segunda semifrase da introdução. ... 148

Fig.35 – NEVES, I. P. Oratória, c.5 e 6, terceira semifrase da introdução. ... 148

Fig.36 – NEVES, I. P. Oratória, c.7-9, quarta semifrase da introdução. ... 149

Fig.37 – NEVES, I. P. Oratória, c.25-29, primeiro ritornelo... 150

Fig.38 – NEVES, I. P. Oratória, c.30-32, escrita em blocos. ... 150

Fig.39 – NEVES, I. P. Oratória, c.40-46, trecho imitativo e cadência interrompida. ... 151

Fig.40 – NEVES, I. P. Oratória, c.72-79, frag. melódicos descendentes no solo do baixo... 152

Fig.41 – NEVES, I. P. Oratória, c.81-85, fragmentos melódicos separados por pausas. ... 153

Fig.42 – NEVES, I. P. Oratória, c.19-21, desenhos melódicos em arco. ... 154

Fig.43 – NEVES, I. P. Oratória, c.75-79, desenhos melódicos descendentes. ... 154

Fig.44 – NEVES, I. P. Oratória, c.81-85, desenho melódico ascendente. ... 154

Fig.45 – ROCHA, F. G. Invitatorio, esquema formal. ... 155

Fig.46 – NEVES, I. P. Oratória, esquema formal. ... 156

Fig.47 – NEVES, I. P. Oratória, c.9-11, início da primeira seção. ... 159

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Lista de abreviaturas

AEAM – Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana AHMI – Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência APM – Arquivo Público Mineiro

APNSP – Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar

CHAEAM – Cadernos Históricos do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana CPAB – Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

HMCMG, v2 – História da Música na Capitania das Minas Gerais, volume 2

HMIVR, v1 e v5 – História da Música nas Irmandades de Vila Rica, volume 1 e volume 5 OLRP – Código Philipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal.

OTC – Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo Passos – Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos

Pilar – Irmandade de Nossa Senhora do Pilar RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro

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Introdução

Sabemos que o som é onda, que os corpos vibram, que essa vibração se transmite para a atmosfera sob a forma de uma propagação ondulatória, que nosso ouvido é capaz de captá-la e que o cérebro a interpreta, dando-lhe configurações e sentidos.1

Para conhecer algo da realidade, devemos partir de um aspecto dela. Esse ângulo, que cada um escolhe em meio a infinitas possibilidades, torna-se o ponto de vista a partir do qual podemos observar os demais aspectos da mesma realidade. Assim, todos os elementos, vistos naquela perspectiva, organizam-se em função dela e podemos estabelecer diversas relações entre os vários aspectos vislumbrados. Diz Leeuw:

Todo historiador sabe que pode começar de alguma parte, mas que, em todo caso, termina consigo mesmo, ou seja, reconstrói. Mas o que significa essa reconstrução? Pode ser descrita como o traço de um desenho na caótica confusão de linhas da chamada realidade. Esse desenho se chama estrutura. (...) É um todo orgânico que não pode ser dividido em partes, mas que se compreende a partir delas, um tecido de detalhes que não se combinam adicionando-os, com a dedução de um ou de outro, mas só pode ser compreendido como uma totalidade. (...) A estrutura é a realidade significativamente composta. Porém, o sentido é em parte pertencente à própria realidade, e em parte a "alguém" que trata de compreendê-la. (...) [A] compreensão de um composto, de uma pessoa, de um evento, abre-se a nós.2

De acordo com a lente escolhida, faces diferentes da realidade são focalizadas e aproximadas, e podem ser conhecidas. O som pode ser uma dessas lentes e o que se pretende neste estudo é conhecer a Vila Rica do século XVIII através de seus sons. Ao conjunto de sons de um determinado lugar – sons da natureza, sons humanos, sons do trabalho, música etc. – podemos chamar, como o compositor R. Murray Schafer propõe, de paisagem sonora3.

Mas o som só existe enquanto soa e tem um alcance limitado. Os sons do século XVIII não existem mais; restam-nos apenas sinais esparsos de sua presença na linguagem escrita, nos papéis de música e na iconografia da época. Nosso objeto de pesquisa, então, não será

1 WISNIK. José Miguel. O som e o sentido. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.17.

2 LEEUW, G. Fenómeno e Fenomenología. In: ________. Fenomenología de la religión. Trad. espanhola de

Ernesto de La Pena. Mexico: FCE, 1964, p.643. Tradução nossa.

3 “Paisagem sonora” (soundscape, no original em inglês, em analogia a landscape) é um termo criado e

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propriamente o som do século XVIII em Vila Rica, mas uma parte daquela realidade sonora que foi indiretamente fixada nos vestígios que nos chegaram. Dentre os sons que formam a paisagem sonora, “[a] música forma o melhor registro permanente de sons do passado”4, constituindo-se como uma espécie de “paisagem sonora ideal”5, que recria na imaginação algo semelhante ao que se verifica na paisagem sonora da época em que foi escrita. Sendo assim, após apreender, à medida do possível, a paisagem sonora de Vila Rica setecentista, vamos procurar ver a relação entre os sons que constituíam essa paisagem e a música composta e executada naquele período: em que medida e em que sentido aquela música idealiza a paisagem sonora da qual faz parte?

Voltando ao problema da escolha do objeto de pesquisa, o simples fato de tematizar um determinado aspecto da realidade não faz com que ele seja o ponto de vista escolhido para uma investigação. É o que se verifica repassando a literatura específica que faz referência a sons no século XVIII mineiro. Em linhas gerais, podemos identificar três maneiras de se aproximar do fenômeno sonoro: estudos musicológicos; estudos socioculturais; e estudos da “paisagem sonora”.

Entendemos como musicológicos aqueles estudos que tratam de assuntos que giram em torno da música, sem, contudo, participarem de alguma das esferas do fazer musical (composição, apreciação ou performance6). Neles, o elemento propulsor da pesquisa, a música, jamais é, de fato, alcançado, mas somente tangenciado pela linguagem verbal. Com efeito, conforme Nattiez, “[o] musicólogo é, por natureza, vítima de um defeito indelével: sua função principal é a de escrever ou falar sobre a música, mas, por vezes, ele sente que sua consciência lhe pesa”7, por acabar deixando a música em si de fora. “A musicologia se insere, portanto, nesse desvão entre linguagem e música”.8 Do ponto de vista do som, são visados os sons musicais, abordados através das relações envolvidas na sua produção, difusão e uso.9

4 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo, p.151. 5 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo, p.70.

6 SWANWICK, Keith. A basis for music education. London: Routledge, 1979, p.43.

7 NATTIEZ, Jean-Jacques. O desconforto da musicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.11, p.5-18, 2005, p.6. 8 NATTIEZ, Jean-Jacques. O desconforto da musicologia, p.7.

9 Dentre as pesquisas musicológicas referentes a Minas colonial, destacam-se: os vários trabalhos de Francisco

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Os estudos socioculturais não abordam diretamente o som, mas estão prenhes de sons. Seu ponto de partida são as relações socioculturais. Os sons do cotidiano, das festas, das revoltas, entre outros, aparecem como parte dessa realidade, sem, porém, serem enfocados. Encontram-se, assim, nesses trabalhos, muitas referências indiretas a sons10 .

Ouro Preto. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1979; ______. A música na Irmandade de São José dos Homens Pardos ou Bem Casados – Volume II da História da Música na Capitania das Minas Gerais. In: Anuário do Museu da Inconfidência , Ouro Preto. VI. 1979; ______. História da Música nas Irmandades de Vila Rica. v.5. Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1981; ______. História da Música na Capitania Geral das Minas Gerais: Vila do Príncipe do Serro do Frio e Arraial do Tejuco. Belo Horizonte: CEC, 1982; ______. A música em Minas Gerais: um informe preliminar. In: MOURÃO, Rui. O alemão que descobriu a América. Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia/Inst. Nac. Livro, 1990, p. 99-179.); a dissertação de Domingos Brandão, que procura mostrar as relações entre a sociedade da época e as estruturas musicais (BRANDÃO, Domingos Sávio Lins. O sentido social da música em Minas colonial. 1993. 280f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1993); o catálogo Música sacra mineira, apresentado por José Maria Neves, em cuja introdução o autor trata do contexto histórico e social da música produzida em Minas, nos séculos XVIII e XIX – uma observação recorrente e perspicaz desse texto é sobre a preservação das tradições musicais que, segundo Neves, “(...) ancorava-se na função da música e das corporações musicais, e não na qualidade técnica ou estética do que produziram os músicos do passado e produziam os do presente” (p.10), razão pela qual muitos manuscritos se perderam com as mudanças ocorridas na liturgia no século XX e consequente desvalorização dos grupos musicais tradicionais e seus repertórios – (NEVES, José Maria. Música sacra mineira. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.). Mais recentemente, podemos citar os trabalhos de Paulo Castagna, que procura sempre cotejar grande quantidade de documentação musical indireta (informações cartoriais, documentos eclesiásticos...) com manuscritos musicais e tratados de época (CASTAGNA, Paulo. Sagrado e profano na música mineira e paulista da primeira metade do século XVIII. In: SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO DE MUSICOLOGIA, 2, 1998, Curitiba. Anais...

Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1999, p.97-125; ______. O ‘estilo antigo’ no Brasil, nos séculos XVIII e XIX. COLÓQUIO INTERNACIONAL A MÚSICA NO BRASIL COLONIAL, 1, 2000. Anais… Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.171-215; ______. O som na Catedral de Mariana nos séculos XVIII e XIX. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.) Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig; PPGH-UFMG, 2008, p. 91-117; entre vários outros trabalhos).

10 São exemplos dessa categoria: os textos sobre a pompa nos ritos religiosos e a cultura artística em Minas

colonial de Adalgisa Arantes Campos (CAMPOS, Adalgisa Arantes. O Triunfo Eucarístico: hierarquia e universalidade. Barroco, Belo Horizonte, v.15, p.461-467, 1992; ______. Semana Santa na América Portuguesa: pompa, ritos e iconografia. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DEL BARROCO IBEROAMERICANO, 3, 2001, Sevilla. Actas del... Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, 2001, p.1197-1212. CD-rom; ______. As Ordens Terceiras de São Francisco da Penitência nas Minas Coloniais: cultura artística e Procissão de Cinzas.

Imagem Brasileira, Belo Horizonte, v.1, p.193-199, 2001; ______. Cultura artística e calendário festivo no barroco luso-brasileiro: as Ordens Terceiras do Carmo. Imagem Brasileira, Belo Horizonte, n.3, p.99-109, 2003; ______. Piedade barroca, obras artísticas e armações efêmeras: as irmandades do Senhor dos Passos em Minas Gerais. In: COLÓQUIO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 6, 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio, 2004, p.17-31; ______. Aspectos da Semana Santa através do estudo das Irmandades do Santíssimo Sacramento: cultura artística e solenidades (Minas Gerais séculos XVII ao XX).

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Já os estudos sobre a “paisagem sonora”, mais raros, procuram considerar todos os sons, sem distinção, de um determinado lugar e período, na tentativa de recompor o seu ambiente sonoro; estes buscam partir do próprio som para então estabelecer relações e significados entre os demais elementos da realidade.11 Ao considerar o som, essas pesquisas são também muito atentas ao seu contraponto, o silêncio: “a grande e magnífica tela de fundo sobre a qual se esboçam as nossas ações, sem o que permaneceriam incompreensíveis ou não poderiam sequer existir”12.

Em se tratando de som, os estudos musicológicos são os mais abundantes, embora representem apenas uma pequena parcela dentro do universo de trabalhos sobre Minas Gerais setecentista. Como explicita Miranda, “[a] prática musical (...) foi tema sinteticamente apontado pela historiografia. E mesmo entre os estudos dedicados às artes e ofícios do século XVIII e XIX, as referências aos músicos mostraram-se extremamente sucintas”13. A maioria das investigações dessa natureza faz incursões sobre vários aspectos da realidade colonial, quase sempre tendo como pretexto um determinado compositor ou obra musical.

A expressão musicologia (Musikwissenschaft – ciência da música) surgiu em 1827, no título de um livro14 do musicista e pedagogo alemão Johann Bernhard Logier (1777-1846), mas a primeira obra de referência da musicologia moderna foi o artigo do austríaco Guido Adler (1855-1941), Abrangência, métodos e objetivos da musicologia15, publicado em 1885, na Vierteljahrsschrift für Musikwissenschaft (Revista Trimestral de Musicologia), fundada por ele mesmo. A concepção de Adler é bastante ampla. Fazendo uma distinção entre Musicologia Histórica e Musicologia Sistemática, ele elenca uma série de disciplinas (LEONI, Aldo Luiz. Os que vivem da Arte da Música: Vila Rica, século XVIII. 2007. 192f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007.).

11 Esta é a perspectiva do artigo de Júnia Furtado, Os sons e os silêncios nas minas do ouro. Partindo do silêncio

dos sinos de Mariana, quando da despedida do bispo visitador do Rio de Janeiro, D. João da Cruz, em 1743, a autora percorre o ambiente sonoro das Minas setecentistas. Sem se preocupar com a delimitação de um espaço preciso (considera o território das Minas como um todo), ela traça uma paisagem sonora um tanto genérica, embora bastante rica e abrangente: apresenta desde os sons das chuvas, dos animais, até os cochichos nos confessionários, passando pelos sons da mineração, das festas, entre outros. A maior contribuição desse estudo é o olhar pouco usual da autora na utilização das fontes (FURTADO, Júnia Ferreira. Os sons e os silêncios nas minas do ouro. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo: Annablume: Belo Horizonte: Fapemig; PPGH-UFMG, 2008, p. 19-56.).

12 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo, p.357. 13 MIRANDA, Daniela. Músicos de Sabará, p.15.

14 LOGIER, Johann Bernhard. System der Musikwissenschaft und der praktischen Composition mit Inbegriff

dessen was gewöhnlich under dem Ausdrucke General-Bass verstanden wird. Berlin: H.A.W. Logier, 1827.

15 ADLER, Guido. Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft. Vierteljahrschrift für Musikwissenschaft,

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auxiliares necessárias para a atuação do musicólogo, tais como história geral, paleografia, arquivologia, história da liturgia, história das artes cênicas, história da dança, entre outras, para a Musicologia Histórica; e acústica, matemática, fisiologia, psicologia, lógica, gramática etc., para a Musicologia Sistemática. No século XX, a musicologia torna-se ainda mais abrangente, como as demais ciências humanas, acolhendo as contribuições da linguística, da antropologia, da informática e das ciências cognitivas, entre outras.16

No Brasil, apesar de existirem escritos sobre música desde a primeira metade do século XIX, a música colonial só foi estudada, e mesmo considerada relevante, a partir da década de 194017. Até então, a principal preocupação dos escritos sobre música era a construção de uma identidade nacional e os conceitos de “música nacional” utilizados não comportavam a música do século XVIII. No início do século XIX, música nacional era a música do Brasil livre, em pé de igualdade com as nações europeias. A passagem da escravidão à liberdade, da colônia ao império, era o principal valor que essa música deveria ostentar. Ela precisava fundar suas raízes no passado colonial e ao mesmo tempo se mostrar liberta de qualquer amarra servil, constituindo-se como ponto de chegada de um longo processo de evolução que teve sua origem com os nativos. Estes, com sua aptidão inata para a música, tornaram-se receptores da cultura trazida pelos jesuítas, assim como mais tarde se tornariam os africanos e seus descendentes. A contribuição desses dois grupos, principalmente dos africanos, na formação da música nacional se daria exclusivamente na esfera popular, tida como separada da música culta e, consequentemente, irrelevante. Importava, assim, menos a música propriamente dita e mais o momento histórico contemporâneo, aquele do Brasil Império, que deveria ser exaltado18.

Da mesma forma, os músicos importavam na medida em que pudessem resumir em sua vida o percurso evolutivo da música nacional. Assim, desde seu primeiro artigo sobre o assunto na revista Niterói19, Manuel Araújo Porto Alegre (1806-1879), o precursor dos escritos sobre música no Brasil no século XIX, apresenta José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), “a

16 NATTIEZ, Jean-Jacques. O desconforto da musicologia, p.9. 17 LEONI, Aldo Luiz. Os que vivem da Arte da Música, p.33. 18 LEONI, Aldo Luiz. Os que vivem da Arte da Música, p.24.

19 PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. Ideias: sobre a música; sobre a música no Brasil. Niterói, Revista

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despeito da sua cor mestiça”20, como o primeiro dos músicos nacionais, uma vez que o padre carioca viveu toda a transição da Colônia ao Império, trabalhando e sendo reconhecido na Sé colonial do Rio de Janeiro, na Capela Real de D. João VI e na Capela Imperial de D. Pedro I. Tanto o “reinado” do padre músico de D. João VI como as noções defendidas por Porto Alegre perduraram até a primeira metade do século XX. Todas as “histórias da música brasileira” escritas nesse período são herdeiras, em alguma medida, da concepção de Porto Alegre.21

A ideia de música nacional muda com Mário de Andrade (1893-1945)22, mas continua não sendo possível encontrá-la na Colônia. Para o escritor modernista, a música nacional, assim como a identidade nacional, era algo ainda a ser construído pelos artistas, e a base desse edifício deveria ser o estudo paciente e sistemático do folclore.23 A atenção volta-se para a música, mas apenas para aquela de tradição oral, única que poderia fornecer elementos válidos para a construção do nacional. A música setecentista que ficou registrada em manuscritos e recibos, contratada pela elite, seguia padrões cultos europeus, não podia ser expressão do povo nascido no Brasil e, logo, o seu estudo não interessava. Foi necessário o olhar de um estrangeiro, o musicólogo teuto-uruguaio Francisco Curt Lange (1903-1997), para que a relevância da música do século XVIII fosse considerada. Escreve o pesquisador:

O nosso raciocínio era muito simples e estranhamos até hoje que nenhum dos dedicados à história da música no Brasil chegasse a uma reflexão idêntica. Se na Bahia, no Recife e no Rio de Janeiro, mormente em Minas Gerais, houve um profuso desenvolvimento de templos de elevada categoria externamente e belíssimos interiores de esmerada elaboração pictórica e escultural, de nenhuma forma poderia ter faltado música religiosa de similar qualidade. O alto nível das artes arquitetônicas e plásticas levava a tais conclusões. Quando, e em que parte do mundo cristão, faltou música para associar-se às práticas e às festividades maiores da religião católica, única e onipotente em toda a América luso-espanhola?24

Como se vê, a principal preocupação de Curt Lange era encontrar provas da existência de música erudita de qualidade no Brasil colonial. Para tanto, dedicou-se à pesquisa em arquivos, concentrando-se na documentação referente às irmandades leigas e ao Senado da Câmara de

20 PORTO ALEGRE, Manuel de Araújo. Iconografia Brasileira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, v.XIX, n.23, p.349-378, 1856, p.360.

21 Podemos citar: CERNICHIARO, Vincenzo. Storia della musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri

giorni (1549-1925). Milano: Fratelli Riccioni, 1926; ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp., 1926; __________. História da música brasileira. 2.ed. correta e aumentada; com textos musicais. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp., 1942.

22 ANDRADE, Mário de. A música do Brasil. Curitiba: Editora Guaíra, 1941.

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Vila Rica. Suas publicações, iniciadas em 194625, estenderam-se até a década de 1980 e trouxeram à luz um mundo até então desconhecido. Muitos manuscritos musicais também foram encontrados, principalmente com as bandas de música e outros conjuntos tradicionais, e alguns deles foram restaurados, mas sempre com o objetivo de comprovar o alto nível da produção musical setecentista mineira. Todavia, essa atuação não escapou de críticas, das quais Castagna faz uma síntese a seguir:

O maior interesse pelas informações históricas do que propriamente pela música fez com que Curt Lange recolhesse uma grande quantidade de manuscritos musicais, mas produzisse muito pouco sobre os mesmos. Além disso, as relações que Curt Lange estabeleceu entre as informações históricas e os manuscritos musicais também não gerou (sic) uma integração sobre os mesmos, fazendo com que o conhecimento sobre a música antiga brasileira circulasse muito em torno de obras e autores, com predileção pela abordagem biográfica.26

A música nacional assumia agora nova feição, embora considerando ainda parâmetros extramusicais: desde que compatível com o padrão culto europeu, continuava não importando a música em si, mas quem a compunha e a executava. Nesse sentido, os mulatos mineiros tornavam-se os portadores da música nacional. De qualquer forma, o método utilizado por Curt Lange, de “publicar a documentação apanhada na sua integridade, até nos mais mínimos detalhes”27, abriu, e continua abrindo, infinitas possibilidades de pesquisa e reflexão sobre a prática musical no século XVIII mineiro. Mais do que isso, com todas as limitações metodológicas típicas de sua época, ao se basear em fontes históricas, Curt Lange inaugurou uma nova postura na musicologia brasileira. De fato, os trabalhos sobre música do século XIX eram fundamentalmente literários, enquanto aqueles das primeiras décadas do século XX apenas começaram a se aproximar das fontes históricas, ficando, porém, a meio caminho entre literatura e ciência.28

A partir da década de 1960, superada a fase literária e tendo sido desbravada a terra ignota da música setecentista, os estudos musicológicos tenderam a se concentrar nas obras musicais e não somente nos compositores e na história política e social.29 Novas “histórias da música brasileira” aparecem nesse período se beneficiando de um maior contato com a música

25 LANGE, Francisco Curt. "La Música en Minas Gerais: un informe preliminar". Boletín Latino-Americano de

Música. Tomo nº VI - 1ª. parte. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. p.409-494; traduzido em: MOURÃO, Rui. O alemão que descobriu a América. Belo Horizonte/Brasília: Itatiaia/Inst. Nac. Livro, 1990, p.99-179.

26 CASTAGNA, Paulo. O som na Catedral de Mariana nos séculos XVIII e XIX, p. 91. 27 LANGE, Francisco Curt. História da Música nas Irmandades de Vila Rica. v.5, p.13.

28 CASTAGNA, Paulo. Avanços e perspectivas na Musicologia Histórica Brasileira. Revista do Conservatório

de Música da UFPel, Pelotas, n.1, 2008, p.34.

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colonial.30 De qualquer maneira, a influência do pensamento nacionalista ainda se faz sentir na preferência por grandes obras e compositores possíveis de serem associados a contemporâneos europeus.31 A musicologia brasileira só vai abandonar as pretensões nacionalistas, assumindo uma postura mais crítica e reflexiva, a partir da década de 1990, com o desenvolvimento dos programas de pós-graduação em música e o trabalho de catalogação e disponibilização de importantes acervos de partituras.32

Em quase dois séculos de escritos sobre a música no Brasil, é patente a ausência de estudos mais aprofundados sobre a contribuição nativa, africana e afrodescendente na música do século XVIII, seja do ponto de vista técnico-musical, seja do ponto de vista do gosto e das escolhas estéticas e estilísticas. Quanto à música dos nativos, torna-se difícil determinar sua influência a partir daquilo que nos chegou através dos papéis de música e da documentação oficial ou confrarial. O processo intensivo de apagamento de uma memória histórica – que pode ter seu marco inicial colocado na política do Marquês de Pombal ainda no século XVIII33, passando por José Bonifácio, no Império34 – fez com que nos deparemos hoje com uma suposta ausência do elemento índio na música, assim como na nossa cultura como um todo. Seria necessária uma atitude praticamente arqueológica na procura de algum traço de sua presença.

30 Podemos citar: NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira; MARIZ, Vasco. História da música

no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1981; KIEFER, Bruno.

História da música brasileira; dos primórdios ao início do século XX. 4.ed. Porto Alegre: Ed. Movimento, 1997.

31 CASTAGNA, Paulo. Avanços e perspectivas na Musicologia Histórica Brasileira, p.40.

32 Em Minas Gerais, tornou-se referência o trabalho desenvolvido no Museu da Música de Mariana,

<http://www.mmmariana.com.br>.

33 Veja-se o caso do Estado do Grão-Pará e Maranhão: “Indígena era o grosso da população; a língua mais falada

era o tupi, como em São Paulo, até o século XVII. (...) De 1755 (...) são as leis que Mendonça Furtado [irmão de Pombal e governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 59] irá publicar em 1757 (...); uma proclama a liberdade definitiva dos índios, a outra acaba com a administração temporal dos missionários nas aldeias. As maiores destas seriam elevadas a vilas, as menores a lugares; até que os indígenas se mostrassem capazes deviam ter um diretor em cada aldeia (...). Devia-se introduzir a língua portuguesa, fazer pagar os dízimos, combater a discriminação...” HOLANDA, Sérgio Buarque (org.). História Geral da Civilização Brasileira. 9.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. Tomo 1. v.2, livro 1, cap.1, p.42.

34 “Se quisermos pois vencer estas dificuldades devemos mudar absolutamente de maneiras, e comportamento,

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A contribuição negra é admitida exclusivamente na música popular, vejam-se os lundus e modinhas. O mulato, por sua vez, é considerado como agente musical imprescindível, sendo a sua atuação largamente documentada na segunda metade do século XVIII e presumida, com muitos indícios seguros, também na primeira metade do século. No entanto, esse extrato é tido apenas como receptor da cultura dominante: nas palavras de Brandão, um “ornamento” social, “coloratura”, no sentido do barroco, “não apenas como acréscimos, e sim como parte integrante da obra”35. O envolvimento do mulato com a música é frequentemente visto como uma possibilidade de ascensão social: “Fazer música foi, primeiramente, uma das poucas oportunidades de trabalho, como qualquer outra atividade manual; depois, meio de promoção social.”36 Porém, a contribuição desse grupo do ponto de vista musical não é considerada. Exceção feita, como se disse, à música popular, entendida como pertencente a uma outra esfera (claramente inferior) da cultura.

Dessa forma, como frutos de uma postura ideológica, da qual ainda somos herdeiros, e de uma objetiva falta de fontes para a pesquisa histórica, os trabalhos que se voltam para a música colonial mineira quase sempre consideram apenas a tradição portuguesa. Filhos do nosso tempo, também nós pagaremos esse tributo à história. Cientes da evidente redução realizada nas nossas pesquisas e análises, vamos considerar apenas a tradição que nos chegou. Nem por isso consideramos inútil o esforço de conhecer essa parcela da realidade: como propusemos anteriormente, para conhecermos algo, temos que partir de algum lugar. Partiremos, então, do universo sonoro do século XVIII mineiro que nos chegou através das fontes escritas e iconográficas, na tentativa de compreender como esse universo se relaciona com a música composta naquela época.

Para apreender a paisagem sonora de Vila Rica, lançamos mão de cinco tipos de fontes: (1) relatos diretos de sons; (2) relatos indiretos de sons; (3) imagens – iconografia, cartografia e fotografia; (4) a tradição dos toques de sinos conservados ainda em Ouro Preto; e (5) a música do século XVIII mineiro. Se, por um lado, elas se prestam muito bem para um estudo histórico da sociedade e da cultura de Minas colonial, por outro lado, deixam a desejar em termos de registro da paisagem sonora, pelas próprias limitações do nosso objeto de estudo:

35 BRANDÃO, Domingos Sávio Lins. O sentido social da música em Minas colonial, p.78.

36 MONTEIRO, Maurício. Música e mestiçagem no Brasil. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006,

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não temos, como já afirmamos, condições de estudar diretamente os sons do século XVIII. Mesmo quando as fontes descrevem algum som ouvido em Vila Rica, tudo o que temos é uma tentativa de transmissão, feita com palavras, de um som que não pode mais ser ouvido, procedimento no qual temos que apelar continuamente para a imaginação do escritor e do leitor (no fundo é o mesmo problema de todo o objeto tomado pela História: faz parte do passado). Nisso, temos mais uma dificuldade: encontrar uma testemunha fidedigna. Para Schafer, “um escritor só é considerado fidedigno quando escreve a respeito de sons diretamente vivenciados e intimamente conhecidos”37. Procuramos seguir essa orientação, ampliando-a e incluindo nessa categoria também os relatos ficcionais, uma vez que o autor, independentemente da sua intenção, vai escrever sempre dentro da visão de mundo da época, não tendo como imaginar uma coisa totalmente fora do seu universo.

Entretanto, como não lidamos diretamente com o nosso objeto de estudo, o problema mais difícil de cercar é como lidar com a subjetividade da testemunha. Fica claro o preconceito de Gonzaga com relação aos nativos de Minas, quando comenta, por exemplo, sobre os dramas “estropiados por bocas de mulatos”38; ou, ainda, a visão racionalista de Saint-Hilaire, ao descrever os quintais “sem ordem” das povoações mineiras39. Assim, sempre que possível, é necessária a comparação com outras fontes que tratam do mesmo assunto, sendo o problema, deste modo, minimizado; quando isso não é factível, temos que nos contentar com o ponto de vista parcial da testemunha, o qual será sempre determinado, em alguma medida, pelos seus conhecimentos anteriores, sua cultura, sua origem etc. Não há o que fazer: é uma limitação imposta pelo objeto. De qualquer maneira, acreditamos que, num nível mais geral, existe uma certa uniformidade de pontos de vista entre os autores de uma mesma época, por compartilharem a mesma visão de mundo: ninguém do século XVIII seria capaz de imaginar o som de um avião a jato, por exemplo.

Dentre os relatos diretos utilizados, talvez os mais ricos sejam as Cartas Chilenas40, de Gonzaga, e as descrições da Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais41, de

37 SCHAFER, R. M. A afinação do mundo, p.24.

38 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. São Paulo: Martin Claret, 2007. Carta 5ª, versos 41-43. 39 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi

Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p.145 e 146. Ver também: MENESES, José Newton Coelho. Pátio cercado com árvores de espinho e outras frutas, sem ordem e sem simetria: o quintal em Minas Gerais (séculos XVIII e XIX). (mimeo)

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Saint-Hilaire. Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) era natural da cidade do Porto. Depois de estudar no Colégio dos Jesuítas de Salvador e na Universidade de Coimbra, veio para Vila Rica, nomeado Ouvidor da comarca, em 1782. Lá ficou até 1789, quando, envolvido com a Inconfidência Mineira, foi levado preso para o Rio de Janeiro e, depois, exilado para Moçambique, onde morreu. Em suas Cartas Chilenas, supostamente ambientadas em Santiago, governada pelo autoritário “Fanfarrão Minésio, general de Chile”, conforme se lê no Prólogo, as descrições da geografia, do clima, das construções etc., se comparadas com outros relatos da época, são facilmente identificáveis com a Vila Rica do tempo de Cunha Menezes, o que devia dar razões de sobra para o governador “escabujar de raiva”42. Portanto, constituem para nós uma importante fonte, apesar de sua visão um tanto elitista.

O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) realizou cinco viagens pelas atuais regiões sudeste e sul do Brasil, entre 1816 e 1822, cujos relatos foram publicados na França entre 1830 e 1887. Além das ricas descrições, sua obra é importante por nos trazer a percepção de um estrangeiro que, se por um lado pode ter um olhar preconceituoso, não compreendendo o significado de alguns sons, por outro lado está muito mais predisposto a notar sons que seriam dados por óbvios por um morador do local.

Os relatos indiretos se referem a uma fonte sonora específica ou a situações e locais onde se encontram fontes sonoras diversas, mas, em todo caso, não fazem referência aos sons propriamente ditos. Eles constituem uma documentação muito variada que engloba a legislação civil (Posturas e atas da Câmara e Ordenações Filipinas) e a legislação religiosa (Constituições primeiras, provisões e pastorais dos bispos); os Compromissos de irmandades, assim como seus livros de registro de receita, despesa e termos; livros litúrgicos, cerimoniais, manuais e tratados de liturgia.

A iconografia tem o mesmo valor de um relato indireto, com a vantagem de nos fornecer, quase sempre, um contexto mais detalhado da fonte sonora apresentada. Utilizamos gravuras de Rugendas e pinturas de Ataíde. O alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) veio para o Brasil, em 1822, como desenhista da expedição do Barão de Langsdorff. Em 1825,

41 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi

Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

42 GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Biografia e introdução de M. Cavalcanti Proença. Rio de

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abandonou a expedição e voltou para a Europa, publicando entre 1827 e 1835, em Paris e em Mulhouse, o resultado de sua Viagem pitoresca através do Brasil, em 20 fascículos, com um total de 100 litografias em preto e branco. Destas, escolhemos algumas que preencheram lacunas importantes deixadas pela documentação escrita consultada. De Manoel da Costa Ataíde (1762-1830), utilizaremos algumas imagens apenas como ilustração de instrumentos da época. De acordo com Brandão, o pintor marianense “tinha grande afinidade com a música, conforme comprovam os anjos músicos de suas pinturas e o seu inventário, que atesta a presença de um pianoforte, um fagote, uma violeta, uma rabeca e uma folha (palheta?) de fagote!”43 O autor reporta uma interessante carta de Aleijadinho a Manuel Dias de Oliveira, na qual o primeiro se refere ao seu amigo Ataíde:

Não sei se lhe disse, mas sou analfabeto em música, sendo incapaz de distinguir uma nota escrita de outra, embora seja sensível à música ouvida. Para avaliar o alcance criativo de sua composição, eu tive de recorrer ao Ataíde. Ele ficou entusiasmado com a riqueza de seu trabalho, da organização, o que aumentou a minha ansiedade de apreendê-la ao vivo.44

Quanto aos mapas e às fotografias, estes foram utilizados para a compreensão do espaço físico de Vila Rica e como suporte para a representação da paisagem sonora.

A mais fidedigna das fontes utilizadas é aquela que trata dos toques dos sinos, porque uma considerável parte dessa prática permaneceu na tradição até os nossos dias. Mesmo que mudanças tenham ocorrido, o que temos hoje é o resultado de um processo iniciado no século XVIII, e é a visão de mundo daquela época que continua dando sentido ao que ainda resta. Temos uma excelente amostra dos toques de sinos ainda vigentes na atual cidade de Ouro Preto no trabalho de Montanheiro45. É a fonte mais próxima possível de um elemento importante da paisagem sonora do século XVIII.

Sobre a música utilizada, pretende-se que esta seja mais que uma simples fonte documental, mas uma recriação artística da própria paisagem sonora aqui estudada. Para verificarmos essa hipótese, escolhemos trechos de duas obras importantes, do final do século XVIII, escritas em Vila Rica: o coro inicial da Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal, de Inácio Parreiras Neves (c.1730-c.1794), e o Invitatorio da Novena de Nossa Senhora do Pilar, de Francisco Gomes da Rocha (c.1754-1808).

43 BRANDÃO, Domingos Sávio Lins. O sentido social da música em Minas colonial, p.240. 44 BRANDÃO, Domingos Sávio Lins. O sentido social da música em Minas colonial, p.240.

45 MONTANHEIRO, Fábio César. Signum, sinos e toques: da magia do som metálico aos campanários

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Outros esclarecimentos sobre o uso das fontes ainda se fazem necessários. Na tentativa de apreender a paisagem sonora o mais fielmente possível, procuramos evitar as generalizações, atendo-nos, quase sempre, apenas à documentação referente a Vila Rica. Outras fontes, como as Posturas da Vila do Carmo, foram utilizadas apenas quando diziam respeito a sons presentes em qualquer localidade da época, enriquecendo, assim, o quadro sonoro da região estudada. Entretanto, a ausência de registros sonoros mais detalhados nas fontes documentais como um todo fez com que nos decidíssemos a ampliar bastante o recorte temporal na tentativa de conseguir o máximo de referências a fontes e eventos sonoros. Este, então, vai da fundação da Vila, em 1711, até a proclamação da Independência do Brasil, em 1822. Além disso, algumas fontes utilizadas extrapolam o nosso recorte temporal; no caso das gravuras de Rugendas, por exemplo, apenas alguns anos, mas no caso das fotografias e mapas, várias décadas.

De qualquer maneira, apesar do longo arco temporal, ainda estendido por algumas fontes, acreditamos poder chegar a uma ideia bastante verossímil da paisagem sonora de Vila Rica. Em primeiro lugar, porque os costumes e práticas de uma sociedade tendem a ter uma “longa duração”, como afirma Braudel:

Por certo, as civilizações são mortais nas suas florações mais preciosas; por certo, elas brilham, depois se extinguem, para reflorir sob outras formas. Mas essas rupturas são mais raras, mais espaçadas do que se pensa. E sobretudo, elas não destroem tudo igualmente. Quero dizer que, em tal ou tal área de civilização, o conteúdo social pode renovar-se duas ou três vezes quase inteiramente sem atingir certos traços profundos de estrutura que continuarão a distingui-la fortemente das civilizações vizinhas.46

A propósito, Le Goff chega a sustentar que “a mentalidade é aquilo que muda mais lentamente”, sendo a história das mentalidades a “história da lentidão na história”47. Em segundo lugar, porque o espaço físico urbano de Vila Rica permaneceu relativamente inalterado, ao menos em linhas gerais (topografia, traçado urbano, prédios religiosos e públicos), durante todo o século XIX até princípios do XX. Ou seja: o ambiente físico e a percepção dos ouvintes, que é moldada pela visão de mundo, dois elementos que, como veremos, são fundamentais para a constituição de uma paisagem sonora, permaneceram

46 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, p.25.

47 LE GOFF, Jacques. As mentalidades. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (org). História: novos objetos.

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relativamente inalterados em Vila Rica durante o período colonial, estendendo-se por grande parte do século XIX48.

Como a maioria das fontes documentais não oferece descrições dos sons em si, mas sim de situações ou fontes sonoras, muitas vezes potenciais, fomos obrigados a explicitar os sons próprios ou inerentes a um grande número dessas situações ou fontes sonoras. Foi assim que, aos sons dos gritos e assobio dos tropeiros referidos por Saint-Hilaire, acrescentamos os zurros dos animais, seus trotes e os sons da recepção da comitiva pelos moradores (cumprimentos, comentários, latidos de cães), sons que se encontravam, de algum modo, implícitos nas fontes.

No mais, todas as citações de fontes impressas ou manuscritas dos séculos XVIII e XIX tiveram suas abreviaturas desdobradas e sua ortografia atualizada. A pontuação foi mantida.

As análises dos dados levantados nas pesquisas se basearam, fundamentalmente, nas ideias de Schafer, expostas nos livros A afinação do mundo49 e O ouvido pensante50. Alguns termos, porém, utilizados pelo autor praticamente como sinônimos, adquiriram aqui contornos diferenciados, como campo sonoro e ambiente sonoro, enquanto outros, como o próprio conceito de paisagem sonora, foram ampliados.

48 No caso específico do século XIX mineiro, parece haver certo consenso em considerá-lo, sob vários aspectos,

como uma continuação do século XVIII. Sylvio de Vasconcellos (VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura no Brasil. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura, 1962), por exemplo, afirma que, para a arquitetura, praticamente não houve o século XIX em Minas Gerais: passou-se do XVIII para o XX. Ocorreram apenas ligeiras adaptações nas construções e na forma de construir, muitas vezes modernizando-se somente as fachadas de antigos casarões. Algo semelhante aponta Myriam de Oliveira (OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Situação das artes plásticas em Minas no século XIX: escultura e pintura. In: SEMINÁRIO SOBRE A CULTURA MINEIRA, 3, 1982, Belo Horizonte. III Seminário... Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura, 1982, p.147-160) para as artes plásticas. De fato, enquanto a Família Real Portuguesa desembarcava no Rio de Janeiro, em 1808, pouco antes da chegada da Missão Francesa de 1816, com seu estilo Neoclássico, prevalecia em outras partes da Colônia, principalmente nas Minas, uma visão de mundo barroca (MENEZES, Ivo Porto de. Arquitetura no século XIX. In: SEMINÁRIO SOBRE A CULTURA MINEIRA, 3, 1982, Belo Horizonte. III Seminário... Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura, 1982. p. 131-145). No início do XIX, muitos artistas considerados barrocos estavam em plena atividade, não apenas em Minas: José Joaquim da Rocha (BA, 1737-1807), José Teófilo de Jesus (BA, cerca de 1757-1847), José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (MG, cerca de 1746-1805), Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (MG, 1738-1814), Manuel da Costa Ataíde (MG, 1762-1830), Manuel da Cunha (RJ, 1737-1809), José Leandro de Carvalho (RJ, cerca de 1750-1834), entre outros. E muitas obras-primas, como o conjunto escultório do Santuário do Senhor Bom Jesus, de Congonhas, MG, de Aleijadinho, estavam sendo concluídas (CAMPOS, Adalgisa Arantes. Artes plásticas no Oitocentos brasileiro. Belo Horizonte: Departamento de História – Fafich da UFMG, 2005. Notas de aula).

49 SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo, 2001.

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O presente texto é composto de uma introdução e quatro capítulos, com um “entremez” após o primeiro capítulo, seguidos pelas considerações finais e anexos. O trabalho divide-se em duas partes: a primeira apresenta os dados sonoros colhidos na documentação consultada, enquanto a segunda analisa esses dados. No primeiro capítulo, são apresentados Os sons da Vila, começando pela mineração, que deu origem ao povoado, passando pelas pontes, chafarizes, vendas, praças, festas, até chegar aos toques dos sinos, os quais ordenam os demais sons urbanos. Segue-se um pequeno Entremez51, com a função de esclarecer sobre o entorno da prática musical mineira nos Setecentos, já preparando também para o segundo capítulo, Os sons do ciclo religioso, que encerra a primeira parte do texto. Os sons ligados ao culto, embora não estivessem isolados dos demais sons da Vila, foram separados aqui para que pudéssemos ter uma base de onde observar as variações da paisagem sonora ao longo do ano. São elencados os vários festejos anuais e os principais momentos onde a música se fazia presente nos ritos. O terceiro capítulo procura compreender a estrutura d’A paisagem sonora de Vila Rica, que emerge dos sons levantados nos capítulos anteriores, procurando representar seus vários componentes em gráficos, tabelas e mapas. No quarto capítulo, A “paisagem sonora ideal” de Vila Rica, a estrutura identificada no capítulo anterior é comparada com duas peças musicais de compositores vilarriquenhos do final do século XVIII. Nas Considerações finais – cadência à Dominante, são apontadas algumas possibilidades de resposta para questões que permaneceram abertas.

Finalmente, é importante dizer que privilegiamos nesta pesquisa os sons públicos, ligados a lugares abertos. O imenso universo dos sons privados do interior das casas, dos quintais, os sons específicos das atividades de trabalho, como os ofícios mecânicos, não foi considerado porque aumentaria significativamente o volume de informação a ser tratado. Além do mais, essa escolha se justifica porque os sons públicos, ouvidos por todos ou por um grupo considerável de pessoas, tendem a assumir significados muito semelhantes para todo aquele grupo que os ouve, sendo, na medida do possível, mais objetivo o estudo da relação entre os sons que compõem a paisagem sonora do lugar e a música feita naquele lugar, uma vez que ambos carregam significados que deverão ser interpretados pelo coletivo. Também devido ao

51 Na definição de Bluteau, entremez é “o que entre os atos de uma comédia, ou tragédia se representa no teatro

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Capítulo 1 – Os sons da Vila

Meu sonoro passarinho (...) Ergue o corpo, os ares rompe, Procura o Porto da Estrela, Sobe à serra, e se cansares, Descansa num tronco dela.

Toma de Minas a estrada, Na Igreja nova, que fica Ao direito lado, e segue Sempre firme a Vila Rica.

Entra nesta grande terra, Passa uma formosa ponte, Passa a segunda, a terceira Tem um palácio defronte.

Ele tem ao pé da porta Uma rasgada janela, É da sala, aonde assiste A minha Marília bela.

Para bem a conheceres, Eu te dou os sinais todos Do seu gesto, do seu talhe, Das suas feições, e modos. (...)52

Quem chegasse a Vila Rica, na segunda metade do século XVIII, encontraria, apesar da crescente queda da produção de ouro, um ambiente urbano no auge de seu desenvolvimento, prenhe de sons.

Da natureza, chamaria a atenção o som das águas, sempre presente na Vila, desde a sua origem. Próximo aos vários cursos d’água que se espremem entre a Serra de Ouro Preto e a Serra do Itacolomi53, surgiram os primeiros arraiais que, mais tarde, constituiriam a Vila Rica de Albuquerque. Ao som da correnteza desses ribeiros, cedo se juntou o som vindo da

52 GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Parte II, Lira XXXVII, p.154.

53 VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica: formação e desenvolvimento – residências. São Paulo: Perspectiva,

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lavagem do cascalho, apanhado dos veios d’água e colocado em pratos de estanho ou em bateias de madeira, a fim de se extrair o ouro de aluvião. A descrição de Flávia Reis, a seguir, pode nos ajudar a ouvir o som do atrito, quando o aventureiro se punha a faiscar, do estanho ou da madeira – som metálico no primeiro e surdo na segunda – com os pequenos seixos misturados à areia molhada:

Por meio de movimentos circulares, pouco a pouco a areia e os seixos eram despejados, ficando o ouro concentrado no fundo do recipiente. Em seguida, era recolhido em sacos de couro ou canudos de taquara presos à cintura do faiscador. Para facilitar o trabalho, muitas vezes faziam pequenas barragens com estacas, pedras empilhadas e ramagens de modo a romper o curso da água e obrigar as matérias arrastadas a se depositarem, sobretudo depois das chuvas. Em seguida, com a água até os joelhos, enterravam a bateia no sedimento acumulado e, mantendo-a sob a superfície da água, agitavam os seixos soltos de modo que, juntamente com outros materiais estéreis, fossem carregados pela água, ficando o ouro concentrado na bateia.54

O cascalho, rico em ouro, também era buscado nas margens dos cursos d’água, chamadas de tabuleiros, e nas encostas próximas, as grupiaras. Esse tipo de mineração era denominado catas. Para se chegar ao cascalho aurífero, camadas de sedimentos precisavam ser removidas para, em seguida, se proceder a sua lavagem55. Antecedia, assim, ao som das bateias, o som das alavancas, cavadeiras e almocafres56, que auxiliavam os mineradores na retirada do material a ser desprezado, enquanto o cascalho era transportado até o local da lavagem nos carumbés57. Frequentemente, a água também era utilizada na remoção dos sedimentos. Cavavam-se canais nos tabuleiros e grupiaras por onde a água, conduzida de outros pontos, escoava, arrastando as camadas estéreis e fazendo o metal precioso ser acumulado em valas situadas abaixo dos canais. Quando se conseguia uma quantidade suficiente de cascalho, este era transportado, sempre nos carumbés, para a lavagem. O som já presente da água corrente era, então, multiplicado em várias cascatas artificiais.

54 REIS, Flávia Maria da Mata. Entre faisqueiras, catas e galerias: explorações do ouro, leis e cotidiano nas

Minas do Século XVIII (1702-1762). 2007. 298f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2007, p.99.

55 “(...) os mineradores identificavam uma estratigrafia bem definida, sendo a camada superficial composta por

terra, de ordinário vermelha; a seguinte, formada por pedregulhos misturados com areia (...); a terceira era formada pelo cascalho, ‘e vem a ser uns seixos maiores e alguns de bom tamanho, que mal se podem virar, e tão queimados que parecem de chaminé’; finalmente, aprofundando a escavação, alcançava-se a piçarra ou a rocha compacta onde se assentava o aluvião.” REIS, Flávia Maria da Mata. Entre faisqueiras, catas e galerias, p.107.

56“A alavanca é uma barra de ferro de cerca de três a quatro pés de comprimento, terminada de um lado por uma

cunha, e na outra extremidade por uma ponta de pirâmide quadrangular: a extremidade em bisel serve para desagregar o minério quando é mole, e a outra quando duro. A cavadeira é uma chapa de ferro, cortante na extremidade, e da largura de três ou quatro polegadas: utiliza-se para cavar a terra na parte superior das galerias e prepará-la para receber os revestimentos à medida que se avança pela mina. Designa-se, enfim, pelo nome de almocafre uma enxada achatada e curva, cuja largura diminui da base à extremidade, que é arredondada: os trabalhadores empregam-na para juntar o minério e depositá-lo nas gamelas (carumbé) destinadas a transportá-lo.” SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p.111.

57 “O carumbé é uma cuba de cerca de dois pés de diâmetro que tem a forma de um cone truncado e invertido.”

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Quando o ouro de aluvião começou a dar sinais de esgotamento, buscaram-se as jazidas primárias, onde o metal precioso era encontrado incrustado na rocha, a qual precisava ser desmontada e depois triturada, para finalmente ser lavada. Por ser muito mais difícil e dispendiosa, exigindo grande mão de obra e muitas ferramentas, a mineração de morro, como era conhecida, era praticada apenas pelos mineiros mais abastados. Aos brancos pobres e negros forros, restava faiscar os resíduos dos desmontes e lavagens dos morros que se depositavam no leito dos rios e córregos58.

Os principais métodos de exploração da rocha matriz eram a mineração de talho aberto, onde se faziam cortes perpendiculares na rocha, começando do alto do morro até se chegar aos depósitos auríferos, e a mineração de mina, que escavava galerias subterrâneas para seguir os veios de ouro no interior das montanhas. Sempre que possível, utilizava-se água, como na mineração das grupiaras e tabuleiros. A estrutura era, porém, muito mais trabalhosa, uma vez que a água deveria ser conduzida até o alto dos morros. Quando as rochas eram muito duras, provocava-se um choque térmico, deixando correr água fria sobre as pedras aquecidas com fogo, ou recorria-se a explosivos: estalos das rochas se quebrando ou mesmo explosões eram comumente ouvidos, juntamente com o ruído das ferramentas utilizadas para desagregar as rochas. Depois de extraído do morro, antes de ser lavado, o material aurífero era triturado, segundo Saint-Hilaire, por dois processos diferentes, igualmente sonoros: “um dos quais consiste em esmagar o minério por escravos armados de malhas de ferro, e outro, em submetê-lo a trituradoras análogas às usadas pelos europeus”59. A Fig.1, abaixo, ilustra vários momentos da mineração de mina. Primeiramente, o material é retirado da galeria aberta na rocha (em terceiro plano, ao centro, um pouco à direita) para ser amontoado e quebrado pelos escravos sentados no chão (abaixo, em segundo plano, ao centro e à esquerda). No primeiro plano, vemos a lavagem do ouro em bateias, enquanto os couros de boi, usados para reter o ouro fino carregado pela água, são retirados do canal, postos para secar e depois batidos. Ao fundo, no canto esquerdo, dentro do rio, vemos os faiscadores.

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32 Fig.1 – RUGENDAS, Johann Moritz. Lavagem de ouro perto de Itacolomi. In: ______. Viagem pitoresca

através do Brasil. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Livraria Martins, 1941.

Quanto mais complexo o método de extração do ouro, maior a mão de obra, a variedade de ferramentas e os investimentos necessários, exigindo-se, assim, a montagem de uma estrutura de apoio também maior60. Com isso, os pequenos acampamentos de mineradores à beira dos riachos rapidamente foram se consolidando nos arraiais que deram origem à Vila Rica. Ao mesmo tempo em que os núcleos populacionais foram se desenvolvendo, a exploração do ouro foi se distanciando do curso d’água que primeiro a abrigou, indo se instalar nos morros circunstantes, como podemos ver na Fig.2. E, assim, os sons da mineração foram ficando cada vez menos urbanos, restando apenas o som das bateias dos faiscadores, que durante todo o

60 Para uma descrição detalhada das várias técnicas empregadas na mineração, ver: REIS, Flávia Maria da Mata.

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século XVIII continuou sendo familiar aos vilarriquenhos, como nos induz a pensar Saint-Hilaire, ao narrar sua chegada à Vila, em 181661:

Descendo sempre acabamos por chegar à parte baixa da cidade, e nos vimos em um vale bastante apertado rodeado por morros elevados. (...) Pelo vale a que descêramos corre o Rio de Ouro Preto, pequeno curso, cujas águas, pouco abundantes, são sem cessar divididas e subdivididas pelos faiscadores, e cujo leito, de um vermelho escuro, não apresenta mais que filetes de água que correm entre montes de seixos enegrecidos, resíduo das lavagens.62

Fig.2 – RUGENDAS, J. M. Vila Rica. In: ______. Viagem pitoresca através do Brasil.

Dessa maneira, o som das águas, que ocupava um lugar de destaque no início do povoamento do vale do Ouro Preto, confundindo-se com a razão de ser dos primeiros ajuntamentos de pessoas, passa a ocupar um lugar secundário com o desenvolvimento da Vila, embora sempre presente. Os ribeiros passam a ser atravessados por pontes, primeiramente de “madeira tosca”, mais tarde refeitas em pedra63, facilitando a circulação entre os primitivos arraiais, e tornam-se, através delas, lugares de passagem dos moradores, dos vendedores, dos carros e carretões... Ao invés dos cursos d’água, são as pontes que assumem o papel de ponto de referência urbana64 e de lugar de encontro da gente que vai de um local a outro, assim como da gente que fica ali parada, a falar da vida alheia:

61 Também Flávia Reis afirma que “durante todo o período da mineração colonial, e mesmo depois, esse modo

de lavar os cascalhos dos rios e córregos foi constantemente praticado por faiscadores.” REIS, Flávia Maria da Mata. Entre faisqueiras, catas e galerias, p.100.

62 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p.69.

63 Principais pontes e datas de sua construção em pedra: Ponte de São José ou dos Contos (1744), Ponte do Padre

Faria junto à capela do Rosário (1750), Ponte do Caquende ou Rosário (1753), Ponte de Antônio Dias (1755), Ponte de Ouro Preto (1756), Ponte da Barra (1806). CARVALHO, Feu de. Pontes e Chafarizes de Vila Rica de Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições Históricas, 1935.

64 “As ruas (...) tomam, com o correr do tempo, designações várias, a princípio apenas explicativas, como a ‘rua

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