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Descartes : uma ética racionalista?

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Academic year: 2021

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Descartes

reflexão sobre a modernidade

ACTAS DO COLOQUIO INTERNACIONAL (Porto, 111.20 de Norembm de 1996)

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Luis

DE

ARAÚJO

Universidade do Porra

Uma leitura atenta dos trechos de René Descartes sobre a problemática da moralidade revela-nos uma trajectória em que, embora partindo da subor- dinação ontológica dos seres humanos relativamente a Deus, tende a afirmar o progressivo domínio da autonomia racional humana orientada para um ideal de perfeição assente fundamentalmente na pmdência, na sabedoria e na gene- rosidade.

Como é sabido, Descartes nunca escreveu o tratado de Ética que havia prometido, todavia nas cartas a Isabel da Boémia, ao embaixador Chanut, a Cristina da Suécia, bem como na dedicatória aos Principias de Filosofia, na terceira parte do Discirrso do Método e em algumas passagens do Tratado das Paixões da Alma, é possivel entrever os prolegómenos a uma ética em certa medida precursora da nossa modeinidade.

O ponto de partida da sua reflexão situa-se na essencial preocupação vital de encontrar a verdade para agir em consequência, isto é, um afã de segu- rança face a urgência das opções que inexoravelmente marca o sentido da exis- tência. E é justamente para vencer as eventuais hesitações face a necessidade de agir que irá assumir uma tarefa eivada de complexidades, cujas linhas mais salientes se explicitam num pensar ético de carácter acentuadamente pragmá- tico e conformista que designou por «moral provisória», aliás, jamais rene- gada, sem que tal signifique que Descartes nos advogue, em última análise, uma moral da resignação ou de indiferença.

Apesar de ter dito, em certa ocasião, a Burman que era contra o seu gosto que escrevera sobre a moral, não deixou de sublinhar noutro momento que ela constituirá o «último grau da Sabedoria))

'

pressupondo um conheci- mento total das outras ciências. Porém, enquanto este conhecimento não for

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DESCARTES, Les Principes de /a Philosophie (Préface), in Oeuvres Philosopliiqries,

Tomo 111, Garnier Frères, Paris, 1973, p. 90.

i*. Dcrcnr~rx r@& sohrr n oinlnlnlnliidddc. Acro.' do Ci111i111iii Iiii~rt?ocoirol (PFFIO, 1620 de Nnivmhro. 1996). Mnnn loiC

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conseguido, a vida não se compadece e exige escolhas, decisões, ultrapassa- gem de conflitos, aparecendo-nos na sua concreta realidade, apesar de modi- ficável ao longo do tempo. Dai que, face às perplexidades da existência, Descartes nos convide a um pessoal esforço com vista a construção de uma sabedoria em busca da verdade, uma obstinada preocupação em fundamentar solidamente o saber, entendido como diria Ortega y Gasset, como 'saber a que se ater', afinal, o sentido originário e radical do saber, que assim possibilitará «ver claro nas minhas acções e caminhar com segurança nesta vida», como escreveu no Disczrrso 2.

Ora esse saber, claramente um saber querer, não aparece como algo que a natureza oferece ao ser humano, mas sim como uma possibilidade construida por si mesmo, ao decidir o que fazer mediante a sua inteligência, cujo bom uso dele depende inteiramente. Por este motivo, o filósofo nos fala de método, porque só com o método se revelará a verdadeira função da razão, pois só o método toma o ser humano efectivamente racional visto que através dele aprende a distinguir o verdadeiro do falso, triunfando sobre a incerteza e per- mitindo intuir o bom uso da liberdade. E é justamente nesta preocupação que se alicerça a trajectória da moral cartesiana.

Ao longo do seu itinerário reflexivo, a consciência da própria imperfei- ção pessoal constitui, a um tempo, o primeiro passo da sua preocupação em atingir a verdade e o sentido que alimenta o exercício da razão metódica, mediante a qual cada ser humano poderá disciplinar a sua vontade, evitando os excessos, moderando desejos e paixões em ordem a uma experiência de felicidade que, embora sem assentar na posse total da vertade, se traduz numa arte de viver orientada para uma segurança pragmática sem qualquer máxima exaltante e evidenciando recusa de compromissos, de facto tão pmdente e tão conformista que se aproxima daquilo que habitualmente s e designa por «moral popular».

Não se ignora, porém, que o designio de Descartes é o pleno conheci- mento da verdade, sem o qual não se alcançará a suprema sabedoria, donde brotará uma moral já detinitiva e assim se há-de generosamente compreender a proposta de umas regras provisórias, intelectualmente pouco exigentes e manifestamente reveladora de uma certa submissão ao estabelecido, remetendo para o respeito pela tradição religiosa e politica, a obediência as necessidades da vida e, por fim, uma aceitação bem estóica de viver em conformidade com o mundo entendido como a ordem necessária das coisas. Tais preceitos talvez se compreendam num homem que quiz ser mais espectador do que actor e

"ESCARTES, Disco~~rs de Ia Mélhode, in Oeuvres Philosophiqites, Gamier Frères, Paris, 1963, Tomo I, p. 577.

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DESCARTES - UMA ETICA RACIONALISTA? 71

que, quiçá por medo das consequências, não hesitou em 'mascarar-se' (larva- tus prodeo) perante a sua época em que a Contra-Reforma e o absolutismo monárquico inauguram um longo periodo de noite e nevoeiro na civilisação europeia. «Viveu bem quem se escondeu bem» escreve Descartes a Mersenne, três anos antes (1634) da publicação do Disczrrso d o Método onde nos fala da sua retirada do mundo, no qual se teria sentido desnorteado e desamparado.

Na realidade, a quem decide isolar-se da sociedade ocorre, não raro, con- tentar-se com a primazia da consciência sobre a realidade, arredando-se de se arriscar e de se comprometer e assim ater-se ao já estabelecido, ao já provado. Dai que Descartes não nos apareça como um reformador moral, assumindo responsavelmente uma pedagogia ética e socio-politica. Não houve, de facto, uma 'revolução' cartesiana em matéria de moral, não obstante o seu biógrafo Baillet (1691) nos acentuar que a moral era o tema das suas meditações habi- tuais e que ao longo de toda a sua existência fez dela um assunto perma- nente'.

Todavia, seria injustiça não assinalar também em Descartes um passo adiante relativamente a reflexão moral anterior. Se, por um lado, será exces- sivo considerá-lo como o representante da primeira ética moderna, até porque Descartes jamais escreveu um pensamento moral definitivamente elaborado -

é sabido que nas cartas a princesa Isabel onde ele expõe apenas os funda- mentos daquilo que seria a sua moral definitiva, acabou por repetir as normas anteriores da moral provisória - deve sublinhar-se que se, em Descartes, nem como hipótese, cabe abstrair da crença na realidade de Deus, está também pre- sente uma inequívoca afirmação do principio da autonomia racional mediante o qual se toma possivel dominar o nosso livre arbítrio e controlar os desejos que nos atestam, como escreveu, «[

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de estar firmemente decidido a fazer sempre aquilo que se julga ser o melhor e de utilizar sempre toda a força do espírito para bem ajuisarn4. Só assim será possivel atingir o 'supremo con- tentamento' que todos os seres humanos buscam nas suas vidas. É todo um convite a perfeição que decorre destas palavras que, aliás, volta a aparecer quando o filósofo nos incita a agir sempre em função do que designa por «bem geral de todos os homens»5, tanto quanto nos for possível. Tal proposta de inspiração claramente cristã configura um traço relevante da moral cartesiana e, sem margem para dúvida, assume a dimensão de um imperativo de alhu-

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Cf. BAILLET, A., Vie de inonsieur Descaries. La Table Ronde, Paris, 1992. Cf. .'Lettre à Elisabeth' (18/8/1645), 'Lettre à Ia reine Christine' (2011 111647) e Les Passions de 12nle in Oeirvres Pl~ilosopliiques, Garnier Frères, Paris, 1973, Tomo 111, res- pectivemente, pp. 598, 746, 1064 (aIt.148) e 1067 (aIt.153).

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ismo, de «generosidade» como escreveu Descartes, que deve considerar-se o núcleo essencial do seu humanismo alicerçado sob o signo da tolerância e da solidariedade, tantas vezes em destaque na correspondência com Isabel, onde

é igualmente de realçar a pertinente critica as teses de Maquiavel tão apre- ciadas em tantos escritos politicos do séc. XVII.

No projecto ético de Descartes prevalece a constante preocupação em que as acções humanas devem ser orientadas pela razão, todavia esta racio- nalização tem os seus limites que resultam do reconhecimento da imperfeição humana, limitação muitas vezes afirmada na sua obra, servindo, aliás, para as suas demonstrações d a existência de Deus e da sua absoluta perfeição. Consciente desses limites e, por consequência, na impossibilidade de sempre bem julgar, o filósofo convoca-nos a ajuizar o «melhor possivel» e aqui reside a sabedoria humana, com a qual se irá superando a ignorância que caracteriza a nossa condição. Encontramo-nos, deste modo, com uma moral de intençâo, já que o conhecimento objectivo dos fins é inacessivel, resta aos seres huma- nos o uso da sua vontade que, disciplinada pelo pensamento, ocasionará a rec- tidão de intenção em ordem ao aperfeiçoamento do agir individual que, assim, reforçará a harmonia social, bem necessária numa época em que a paz civil e religiosa, mutilada pelo desvario das paixões, deveria ser restaurada e surgir como o traço comum a todos os homens de boa vontade que combatem pela causa da livre realização da condição humana.

Nesta ordem de ideias se há-de entender a insistência de Descartes em promover o ideal, individual e social, do amor e da generosidade para a cons- trução de uma humanidade melhor e, por consequência, uma clara afirmação do primado da moral na politica, núcleo da proposta cartesiana, bem assina- lado nas suas reflexóes, designadamente a respeito da utilidade da Filosofia, que lhe mereceu palavras incontomáveis e actuais, tais como, «[

...I

deve acre- ditar-se que somente a Filosofia nos distingue dos mais selvagens e bárbaros e que cada nação será tanto mais civilizada e polida quanto os seus homens filosofarem melhor; e assim, o melhor bem que pode existir num estado, con- siste em possuir verdadeiros

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ora, civilizar os seres humanos como a mais nobre finalidade da Filosofia configura-se-nos como a sua voca- ção ética por excelência, preocupação que, entre outras, permite pensar Descartes como nosso contemporâneo, já que tal apelo se nos afigura a alter- nativa à indiferença atroz do silêncio divino face à dimensão das injustiças ao longo dos tempos.

DESCARTES, alettre de I'Aucteur au Traducteur qui peut servir de préfaceu, in Oeuvres Philosophiques, Gamier Frères, Paris, 1973, Tomo 111, pp. 770-771.

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Salientados os pontos de referência mais significativos do pensar ético em Descartes, importa concluir esta breve análise, porém, não sem justificar a interrogação manifestada no titulo desta reflexão - estaremos perante uma ética plenamente racionalista? Para além da valorização positiva que nos mere- cem as perspectivas éticas do filosofar cartesiano, afigura-se-nos plausivel assumir o risco da dúvida. E porquê?

Porque penso que o racionalismo ético, para o ser em plenitude, pres- cinde de qualquer suporte metafisico, frequentemente gerador de um horizonte de índole religiosa. Uma ética racionalista não recorre a uma fundamentação de sinal teológico, apesar da eventual segurança, confiança e satisfação que tal apoio promete aos seres humanos; busca um fundamento mais firme do que um mero refúgio sobrenatural, ao mesmo tempo que tem consciência dos inconvenientes de uma fundamentação meramente empirica ou sociológica, esforça-se, em suma, em procurar um fundamento a priori estrictamente racional, por consequência,

a

salvo dos obstáculos da experiência e sem cair nos pressupostos metaflsicos de uma fundamentação teológica. Todos sabemos que o paradigma deste esforço em constmir uma ética baseada exclusivamente na razão foi ICant, esse genial pensador da Modemidade. Ora na perspectiva de Descartes é a metafísica que assegura a solidez dos fundamentos, estabe- lecendo-se uma intima articulação entre moral e metafisica, a tal ponto que ao afirmar que «[

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a principal perfeição do homem consiste em possuir livre- arbitriox ', Descartes considera-o conduzido pela Providência e que «[

...]

vindo de um Deus bom, tende naturalmente para o bem» (vd. carta a Isabel, maio de 1646). Com efeito, a razão cartesiana está embebida de amor a Deus, em sintonia com

a

tradição escolástica e também augustiniana, para as quais o caminho da Sabedoria se inicia pela crença em Deus.

Não obstante estas aporias, no convite de Descartes para ajuizar recta- mente a fim de agir bem evidencia-se um certo racionalismo moral que pos- sibilitará «o bom uso do livre arbítrio)), do qual há-de resultar, como escre- veu o filósofo, «o remédio contra todos os desvarios das paixões)) em ordem ao aperfeiçoamento do agir humano. Sem dúvida, é todo um ideal de perfei- ção que ressalta da proposta cartesiana, um ideal talvez sempre frágil face a imprevisiveis riscos e conflitos, mas seguramente um ideal que manifesta uma das mais nobres tarefas que cabem a Ética, sob pena de n8o servir para nada. Tratar-se-a, assim, de um imperativo a ser fiel a uma racionalidade vigilante, esforçadamente atenta à s consequências das suas próprias convicções, logo

DESCARTES, Les Principes de la Philosophie, op. cci, p. 112. DESCARTES, Les Passions de I ' h e , op. cil., p. 1074 (a. 161).

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empenhada num permanente sentido de responsabilidade que o pensamento moral cartesiano visa promover.

A questão de saber s e há um lugar para Descartes na reflexão ética actual, responderemos afirmativamente. Porquê? Porque num tempo 'light' como é o nosso, 'era do vazio' ou 'crepúsculo do dever' como Gilles Lipovetsky pertinentemente o designou, se é verdade que serão poucos, aque- les seres humanos que desejam descobrir a verdade, atingir o bem, promover a justiça, dado que os outros se contentam com insuficientes verdades, insig- nificantes bens e migalhas de justiça, não obstante continua a existir a preo- cupação em viver eticamente o melhor possivel e, neste sentido, penso que as interrogações acerca da rectidão e da justiça e, também, sobre a fundamentação do poder continuam ai a interpelarem-nos. Talvez o incitamento a sabedoria pessoal, a autonomia humana que Descartes transmitiu, nos permita encontrar uma fruição pessoal que nos possa servir de orientação para uma concórdia a escala universal, isto e, a irrenunciável via para a urgente solução dos confli- tos. Afinal, que há de mais actual do que o problema da acção?

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