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Variação e deformabilidade linguísticas

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Academic year: 2021

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VARIAÇÃO E DEFORMABILIDADE LINGUÍSTICAS: OS EMPREGOS DISCURSIVO E NÃO DISCURSIVO

HELENA TOPA VALENTIM1

RESUMO: Uma qualquer abordagem do emprego de certas formas enquanto marcadores discursivos defronta necessariamente o problema da sua heterogeneidade como um facto incontestável. Na sua maioria, as formas que permitem atestar um funcionamento como marcadores discursivos têm uma outra pertença categorial. É o caso de justamente, uma forma que pode apresentar o estatuto de marcador discursivo, já a sua correlativa negativa não podendo, porém, comportar-se da mesma maneira: injustamente não passa de advérbio. A presente comunicação propõe dar conta deste facto, a partir do estudo de ocorrências atestadas de justamente e de injustamente em português europeu. Longe de abarcar a complexidade do fenómeno em causa, a reflexão proposta pretende ser um contributo para a definição de uma fronteira entre o emprego adverbial e o emprego como marcador discursivo. Com recurso ao modelo teórico-metodológico da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, observaremos o tipo de condicionamento semântico-pragmático em causa, colocando a hipótese de o emprego do marcador discursivo induzir uma orientação que se prende com a organização topológica do espaço de validação subjectiva (cf. Culioli 2001).

Palavras chave: marcador discursivo; advérbio; modalidade apreciativa; (inter)subjectividade; enunciação.

ABSTRACT: Any approach on certain linguistic forms functioning as discourse markers necessarily faces the problem of its heterogeneity. In fact most of the linguistic forms to which we can associate a discourse value present a variable categorical belonging. This is the case, for example, of justamente (meaning “precisely”). However, its negative correlative cannot behave in the same way: injustamente (meaning “in an unfair way”) is only an adverb, a modifier of a sentence. This paper aims to give a descriptive and explicative reflection of this variability of values, through the study of attested occurrences both of justamente e injustamente in European Portuguese. Far from account the complexity of the phenomenon, this proposal aims to be a contribution to the definition of a boundary between adverbial use and discursive marker use. Using the theoretical and methodological framework of Theory of Predicative and Enunciative Operations, we recognize the determinant presence of a semantic and pragmatic conditioning. Our hypothesis is that the discursive value induces an

1Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa. Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa. Email: htvalentim@gmail.com; htvalentim@fcsh.unl.pt.

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orientation that relates to the topological organization of subjective validation space (cf. Culioli 2001).

As formas linguísticas a que, de acordo com quadros teóricos diferenciados, se atribui um emprego discursivo apresentam uma grande heterogeneidade. Tal heterogeneidade vê-se refletida na proliferação de termos que, de acordo com as escolhas teóricas, designam esta realidade conferindo-lhe ora contornos mais pragmáticos, ora contornos mais funcionais (conector, partícula discursiva, marcador pragmático). Trata-se, porém, de uma heterogeneidade que não depende estritamente dos enquadramentos teóricos e metodológicos adotados pelos diferentes estudos. Tal heterogeneidade apresenta-se, pelo contrário, como uma decorrência da natureza das formas linguísticas em apreço. Dever-se-á, por conseguinte, a razões empíricas.

Este facto está patente, desde logo, quando se observa que, na sua maioria, as formas que podem assinalar um valor discursivo têm um estatuto ou pertença categorial variado. A título de exemplo, digamos, resumindo e olha são formas verbais; verdadeiramente, realmente, justamente e felizmente são formas adverbiais. Há também expressões que, podendo corresponder a construções predicativas, adquirem, na qualidade de locuções discursivas, um valor, por vezes, inusitado. São os casos de isto é e de quer dizer; de mesmo assim, de por assim dizer, de ainda bem, de pois claro.

Dada a variação categorial, não nos podemos, por conseguinte, valer seja de critérios morfológicos, seja de critérios sintáticos para caracterizar as formas que registam um emprego discursivo e confrontamo-nos, antes de mais, com a dificuldade de estabelecer uma eventual inventariação das mesmas. Confrontamo-nos, consequentemente, com a dificuldade de sistematizar a relação existente entre o que seja a variabilidade dos valores e funções destas formas e a sua identidade como unidades da língua (cf. Paillard, 1998, 2001). Impõem-se-nos, por isso, várias interrogações:

a) Como estabelecer a relação existente entre o emprego discursivo e o emprego não discursivo de uma forma linguística?

b) Que fatores apontam para alguma espécie de previsibilidade quanto às formas que podem registar um emprego discursivo?

De qualquer modo, é devido à sua versatilidade que os marcadores discursivos são um dos objetos linguísticos de análise que permitem testar e confirmar hipóteses de diferentes quadros teórico-metodológicos.

Muitos autores consideram que a descrição destas formas decorre, antes de mais, da pragmática, em função de um objetivo comunicativo que o locutor visa alcançar. Os marcadores discursivos são, por exemplo segundo Norrick (2007: 161), “dynamic elements that serve to mold the speaker-hearer relationship according to the pragmatic force of an

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utterance in a given context”. Neste caso, a conceção de marcadores discursivos mais apropriada será a instrumental: “[…] discourse markers are the elements that guarantee the ‘adaptive management’ of the message to a discourse situation” (ibidem: 162). Deste modo, por consistirem em unidades “sequentially-dependent units of discourse” (Schiffrin, 1987: 314), contribuem para a estrutura conversacional e são fatores de coerência ao marcarem o estabelecimento de “relations between adjacent units in discourse” (ibidem: 24): “Discourse markers are utterance-initial elements whose use is syntactically independent and sequentially dependent.” (ibidem: 326-327).

Ainda numa perspetiva pragmática, outros autores sugerem que, antes de mais, os marcadores discursivos partilham uma função comum, a de conectar elementos. Trata-se de uma perspetiva funcional que se propõe descrever a função conectiva dos marcadores discursivos, o seu comportamento funcional ou pragmático: “description of the connective function and of the particular instantiations which can create or display it” (Borderia, 2001: 228). Considera-se que as funções assinaladas pelos marcadores discursivos – por exemplo, funções de conectividade, de modalização e de interatividade - são de natureza pragmática. Na função geral de conectividade inscrevem-se duas funções: por um lado, uma sub-função argumentativa, resultado conjunto dos contributos da teoria da argumentação desenvolvida por Anscombre e Ducrot (1986) e da abordagem das propriedades inferenciais características dos conectores, presente em Grice (1975), Sperber & Wilson (1986) e Levinson (2000); por outro lado, uma sub-função metadiscursiva, que se prende com a construção do discurso, internamente à qual se situa a reformulação (Rossari, 1994) e a estruturação discursivas (Halliday & Hasan, 1976; Van Dijk, 1977).

Numa perspetiva enunciativa, recusa-se a atribuição exclusiva de uma definição funcional aos marcadores discursivos. As formas que registam um emprego discursivo não são apenas palavras que satisfazem uma função de coesão argumentativa num encadeamento discursivo: “il ne s’agit donc pas du tout […] d’une classe marginale ou périphérique qui viendrait ‘habiller’ le ‘noyau dur’ de la structuration discursive, ou qui échapperait au champ propre de la langue pour relever du domaine de la pragmatique”. (Franckel & Paillard, 2008: 257).

Do mesmo modo, se recusa a hipótese, defendida no âmbito da teoria da gramaticalização, de que a variabilidade semântica das formas linguísticas é assimilada a uma dessemantização das mesmas quando empregues com valor discursivo. Afirma-se, a este propósito, uma demarcação teórica em relação à ideia, associada ao que se diz ser uma “aparente” dessemantização, de que os marcadores discursivos não são formas linguísticas como as outras, uma vez que só poderão ser descritos do ponto de vista do seu funcionamento no texto, isto é, numa perspetiva pragmática, no quadro do encadeamento discursivo e com base em elementos contextuais (cf. Paillard, 1998). É desta forma que D. Paillard e J.-J. Franckel preconizam uma conceção sistemática da semântica dos marcadores discursivos. Para estes autores, os marcadores discursivos são “mots de la langue” (ibidem),

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unidades da língua, como as outras. Entendem, por conseguinte, que, se dada forma linguística apresenta um emprego discursivo e um emprego não discursivo, isso decorre da sua própria variabilidade, ou planos de variação: “la différence entre un mot dans ses emplois non discursifs et ce même mot dans ses emplois discursifs ne relève pas de la caractérisation sémantique du mot, mais de ce que nous appelons les plans de variation du mot” (Paillard, 1998: 15-16).

Assim, subjacente à descrição dos marcadores linguísticos como “mots de la langue”, está a aplicação de recursos teóricos e metodológicos idênticos àqueles que se aplicam na descrição de qualquer outra forma linguística. Deste procedimento se espera que resulte, em simultâneo, a identificação daquelas que sejam as propriedades específicas dos marcadores discursivos. Nomeadamente, se, como se afirma em Paillard (ibidem), “L’identité du mot est dans sa variation”, existe uma relação estreita entre o que seja a identidade da forma linguística e a sua variabilidade na interação com o contexto de ocorrência. Admitindo que o valor de uma forma linguística é indissociável do seu contexto de ocorrência (ou cotexto), interessa definir esses mesmos contextos de ocorrência. Parte-se, por conseguinte, de duas questões que orientam um programa de pesquisa neste domínio:

a) Que fatores de variação, que formas de interação entre forma linguística e cotexto, permitem explicar os diferentes empregos dessa mesma forma linguística?

b) No caso particular dos marcadores discursivos, que formas de interação entre forma linguística e cotexto permitem explicar os seus empregos, respetivamente discursivo e não discursivo?

Emprego discursivo e emprego não discursivo. Um estudo de caso do português europeu

Situamo-nos no quadro da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativa, tendo em vista uma proposta de descrição enunciativa do funcionamento de justamente e de da sua derivada prefixal injustamente na variedade do português europeu. A opção por estas duas formas linguísticas deve-se ao facto de, mesmo partilhando o mesmo radical, estas apresentarem funcionamentos distintos, nomeadamente, enquanto justamente pode registar um emprego discursivo, injustamente não pode senão apresentar um emprego não discursivo.

Deste modo, na base do objetivo que nos propomos, estão duas observações empíricas, aqui ilustradas por enunciados de corpora escritos e orais (Corpus do Português organizado e disponibilizado por Davies & Ferreira; CETEMPúblico - Corpus de Extractos de Textos Electrónicos MCT/Público):

A. As formas justamente e injustamente podem apresentar empregos não discursivos:

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(1) Num jogo muito fraco tecnicamente, Farense e Boavista dividiram justamente os pontos em disputa […].

(2) Rabin está claramente - e justamente - convencido de que, por mais que faça, não há nenhuma maneira realista de deixar de estar na mira da opinião pública […]. (3) Cinco jogadores portugueses foram admoestados com o cartão amarelo no jogo com a Dinamarca. Você foi um deles e, em nossa opinião, injustamente.

(4) Se há membros da Europa capazes de nos prejudicarem injustamente, defendamo-nos.

B. Só justamente pode apresentar um emprego como marcador discursivo:

(5) Para essa função poderá já contar com o seu novo Conselho Consultivo, cuja primeira missão é justamente formular um parecer em relação à proposta de Lei de Bases de Telecomunicações.

(6) Dir-se-á que são justamente estes os comportamentos que se exigem de um profissional de saúde.

(7) Pintar é justamente a minha profissão, deve ser uma coisa voltada para fora, para os outros.

(8) E será justamente esta ideia de prestar contas o acento tónico da intervenção do primeiro-ministro.

(9) Justamente nessa manhã, quando ele saía de casa, para se juntar a Macário, disse-lhe ela sentir já as primeiras dores.

(10) Ora justamente no momento era que eu repetia o meu " soberbo" […], o Doutor Honorio entrou, pequenino, franzino, débil.

As ocorrências de justamente e de injustamente com valor não discursivo (no conjunto A de enunciados) são intersubstituíveis, portanto, sem que se comprometa a gramaticalidade das sequências em causa. Veja-se, por exemplo, que sequências resultam da intersubstituição destas formas nos enunciados 1 e 3:

(1a) Num jogo muito fraco tecnicamente, Farense e Boavista dividiram injustamente os pontos em disputa […].

(3a) Cinco jogadores portugueses foram admoestados com o cartão amarelo no jogo com a Dinamarca. Você foi um deles e, em nossa opinião, justamente.

Já o emprego de justamente como marcador discursivo não é substituível por injustamente, sem que daí resulte má formação:

(7a) *Pintar é injustamente a minha profissão, deve ser uma coisa voltada para fora, para os outros.

(9a) *Injustamente nessa manhã, quando ele saía de casa, para se juntar a Macário, disse-lhe ela sentir já as primeiras dores.

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Assim, se justamente pode apresentar, ora um emprego não discursivo (ver enunciados 1 e 2), ora um emprego discursivo (ver enunciados 5 a 10), injustamente não apresenta senão empregos não discursivos (3 e 4)2.

Esta é a constatação que nos permite formular a questão da relação existente entre os dois empregos: discursivo e não discursivo. É o ponto de partida para uma reflexão mediante a qual nos propomos dar um contributo para uma definição da fronteira entre emprego não discursivo e emprego discursivo, reflexão esta que, idealmente, nos permita sugerir hipóteses de fatores que ditem alguma espécie de previsibilidade quanto às formas suscetíveis de apresentar um emprego discursivo.

À ocorrência de justamente e de injustamente nos enunciados 1 a 4 aplicar-se-á uma descrição geral do que seja o funcionamento intra-proposicional da classe dos advérbios3. Nestes casos, em virtude de a supressão de ambos os advérbios não acarretar agramaticalidade, estes têm uma natureza opcional, sendo, portanto, adjuntos ao grupo verbal (VP).

Sob o ponto de vista semântico, o advérbio justamente significa “de modo justo”, correspondendo a “justo” a paráfrase “conforme ao direito e à justiça”. O advérbio injustamente é o seu correlativo negativo, significando respetivamente “de modo injusto”, isto é, “de modo não conforme ao direito e à justiça”.

Estas glosas permitem identificar um valor enunciativo de determinação modal, mais precisamente um valor apreciativo4. Sendo o valor apreciativo um valor de conformidade, neste caso, o valor especificado é considerado pelo enunciador como conforme a um padrão de justiça, definido exteriormente (juridicamente, culturalmente) e que o enunciador adota como seu ao estabelecer-se como localizador absoluto do valor modal construído. Este estabelecimento do sujeito enunciador enquanto localizador absoluto do valor modal construído é especificado, no caso do enunciado 3, pela expressão em nossa opinião.

Assim, partindo do pressuposto teórico de que toda a relação é uma relação complexa, podemos localizar a ocorrência linguística construída em relação a um outro termo, pré-construído e de origem subjetiva. Há, por conseguinte, uma comparação de uma ocorrência (doravante pi) em relação a uma referência construída subjetivamente de forma prévia.

A ocorrência pi não é, à partida, distinguível das outras ocorrências que compõem o domínio de validação. Mas, uma vez que a construção de uma ocorrência se dá por referência a uma situação enunciativa, pi é localizado em relação à situação de enunciação, isto é, a uma “norma precedentemente fixada” pelo sujeito, um padrão de justiça. A natureza

2 O facto geral de uma forma poder apresentar um emprego discursivo e de, no que à sua correlativa negativa diz respeito, o mesmo não se aplicar é o caso também de verdadeiramente e de falsamente:

verdadeiramente é empregue com valor discursivo e falsamente não ocorre senão com valor não

discursivo.

3 Sobre o funcionamento do advérbio em Português Europeu, veja-se Costa (2008).

4 Deve-se a Antoine Culioli a classificação deste tipo de modalidade como apreciativa (“modalité appréciative” (1968: 112)). Este tipo de modalidade caracteriza-se pela construção de um juízo de valor que consiste numa apreciação sobre uma relação predicativa já constituída e validada (ou validável).

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de tal relação é de identificação nos enunciados 1 e 2 e de não identificação nos enunciados 3 e 4: em 1 e 2, a ocorrência do advérbio justamente marca a construção de uma identificação, ou seja, da existência de uma conformidade entre a ocorrência pi e a construção subjetiva previamente construída como ponto de referência; em 3 e 4, o valor da construção marcado pela ocorrência do advérbio injustamente é de não identificação, trata-se de uma não conformidade.

Deste modo, os valores associados ao emprego não discursivo de cada uma destas formas, justamente e injustamente, decorrem de duas operações metalinguísticas subjacentes à construção do valor modal apreciativo: no caso de justamente, temos (a) o percurso das diferentes ocorrências de p,p’ e (b) a identificação de pi em relação ao domínio de validação; no caso de injustamente, temos (a) o percurso das diferentes ocorrências de p,p’ e (b) a não identificação de pi em relação ao domínio de validação.

Por conseguinte, o valor apreciativo dos empregos não discursivos de justamente e de injustamente decorre da forma como se estrutura o domínio nocional a que o processo é associável: o domínio nocional organiza-se em torno da ocorrência tipo, com percurso duma classe de ocorrências discretas5.

Se, por um lado, os advérbios se caracterizam por se inscrever num funcionamento intra-proposicional, por outro, os marcadores discursivos inscrevem-se em relações inter-proposicionais (ver Franckel & Paillard, 2008: 257), estando em causa o encadeamento discursivo. Nos enunciados 1 a 4, (in)justamente (com emprego não discursivo) assinala, como víamos acima, um valor modal; por outras palavras, marca a atitude (neste caso judicativa, apreciativa) que o sujeito enunciador assume face ao conteúdo proposicional. Nos enunciados de 5 a 10, justamente (com emprego discursivo) assinala, genericamente, uma relação entre proposições, marcando a adequação daquilo “que se diz” em relação àquilo “que é o caso” e que “se quer dizer” 6. Deste modo, quando empregue como marcador discursivo, justamente assinala a forma como se constrói o “dizer”. Esta conceção é parcialmente traduzível pela formulação por que se opta, em Fraser (1999), quando se retoma o termo “processual”, antes aplicado por Blakemore (1987) para distinguir os marcadores discursivos de outras expressões lexicais: “Semantically, there are several aspects to the meaning of an expression when it functions as a DM [Discourse Marker]. First, when an expression functions as a DM it relates two discourse segments and does not

5 Sobre a forma como se estrutura o domínio nocional quando se constrói um valor modal apreciativo, ver Peroz, (1992: 71).

6 São J.-J. Franckel e D. Paillard quem, na sequência da conceção de enunciado refletida por A. Culioli, propõe que os marcadores discursivos podem dividir-se em dois subgrupos: marcadores discursivos ponto de vista, que decorrem de uma semântica da pertinência; e marcadores discursivos garante, que decorrem de uma semântica da adequação (ver Franckel & Paillard, 2008; Paillard, 2010). É na sequência desta proposta que nos parece pertinente adotar o conceito de “adequação” para caracterizar o marcador discursivo justamente.

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contribute to the propositional meaning of either segment […]. Second, the meaning of a DM is procedural not conceptual” (Fraser, 1999: 944)7.

Aquilo que aqui referimos enquanto “forma como se constrói o ‘dizer’” insere-se numa conceção de enunciado que compreende, na decorrência da reflexão culioliana e segundo formulação de Paillard (2010), três parâmetros: (a) as formas linguísticas como materialidade do enunciado; (b) a expressão de um estado de coisas (“o que se diz”); (c) a afirmação de um conteúdo, ou seja, “aquilo que o locutor quer dizer dizendo o que diz”8.

Há, por conseguinte, que não confundir “o que é dito” (b) e a afirmação ou garantia de que “o que é dito” corresponde ao que seja “o querer dizer” (c). Do mesmo modo, haverá sempre, portanto, que conceber um “querer dizer” subjacente a qualquer enunciado, sendo “o dizer”, por conseguinte, “um dizer entre outros”. O enunciado, é, assim e por definição, parcial: “ce dire n’est jamais qu’un dire parmi d’autres, renvoyant à la perception / représentation d’un état de choses (le ‘à dire’) qui, en tant que tel, n’est pas de l’ordre du formulable: l’exprimer par des mots revient à lui donner une forme: cette mise en mots du monde donne lieu à un énoncé qui, par définition ne peut être que partial (il repose sur la perception / raprésentation d’un sujet) et partiel, car rien ne permet de décider que l’énoncé arrive à dire le ‘à dire’ jusqu’au bout” (Paillard, 2010: 15).

É exatamente porque “o dizer” é sempre “um dizer entre outros”, isto é, porque “o dizer o que se queira dizer” assume sempre uma entre outras formas possíveis, que ao locutor cabe garantir que “o dizer” por que se opta é o adequado ou ajustado ao “querer dizer”.

O emprego discursivo de justamente afigura-se como forma linguística garante da adequação daquilo “que é dito” ao “querer dizer”; isto é, adequação do estado de coisas construído enunciativamente ao estado de coisas a que se refere. Dir-se-á que qualquer enunciado pode ser considerado como uma forma particular de exprimir um referente (cf. Franckel & Paillard, 2008: 258). O que o emprego discursivo de justamente marca, nos enunciados 5 a 10, é a especificação dessa forma particular de exprimir o referente, neste caso, de uma forma construída como adequada.

Justamente é um marcador discursivo garante pois assinala que o agenciamento de formas, o conteúdo proposicional construído, tem um caráter adequado a dizer um determinado estado de coisas referencialmente entendido. Instaura, portanto, uma relação de adequação entre o domínio dos valores referenciais construídos e o domínio referencial.

7 Na verdade, só parcialmente se poderá considerar haver confluência entre a conceção de marcador discursivo exposta em Fraser (1999) e aquela em que nos baseamos. Se, por um lado, para Fraser os marcadores discursivos têm uma natureza pragmática, por outro, no quadro da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, os marcadores discursivos são, como víamos atrás, formas que integram o sistema linguístico, com uma identidade semântica e que apresentam propriedades distribucionais particulares (ver Paillard, 1998, 2001 e Franckel & Paillard, 2008).

8 A esta configuração tripartida que subjaz a qualquer enunciado chama Paillard (2010) “scène énonciative”: “définie comme le produit des déterminations de différents ordres qui interviennent dans la construction d’un énoncé. […] La scène énonciative auquel donne accès l’agencement de formes convoque cês trois ‘vouloir dire’, celui du sujet, celui du monde et celui des mots, chacun ayant sa logique propre, avec des modes de présence variables” (ibidem: 14-15)

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A forma que tal adequação semântica assume decorre do semantismo próprio da unidade lexical que constitui a base do marcador discursivo em causa, neste caso, justo. Assim, justamente, morfologicamente um advérbio derivado do adjetivo justo, assinala que o conteúdo proposicional construído dá conta do estado de coisas referencialmente entendido em termos de “justeza” de “precisão”. Por outras palavras, “de modo justo” equivale a “com precisão /com exatidão”. Uma paráfrase possível para o enunciado 7, por exemplo, será “”Pintar é com precisão / com exatidão a minha profissão, deve ser uma coisa voltada para fora, para os outros”.

A paráfrase “com precisão” ou “com exatidão”, que dá conta do semantismo de justamente quando marcador discursivo, parece refletir uma conceção aristotélica daquilo que seja o epíteto “justa” na expressão “justa medida”. Assim, numa outra ordem de considerações, dir-se-á que o valor semântico assumido por este marcador discursivo é devedor da circunscrição do pensamento de Arístóteles sobre esta matéria ao domínio da lógica (cf. Bueno, 2005) 9.

Contrastando as paráfrases associáveis a justamente, empregue ora com valor não discursivo ora com valor discursivo, constata-se, pois, que semanticamente se opera uma mudança entre os dois empregos de justamente. Sendo justamente em ambos os casos parafraseável por “de modo justo”, no caso do emprego do adverbial, a “justo” corresponde, conforme víamos atrás, a paráfrase “conforme ao direito e à justiça”; no caso do emprego discursivo, “justo” equivale a “preciso, exato”.

Este facto permitirá sustentar que se está perante um caso de gramaticalização, processo de evolução semântica que prevê a aquisição de um novo valor, por parte de um item pré-existente. A pertinência desta observação (e que não pretende passar disso mesmo, de uma observação) parece-nos ganhar alguma sustentação quando observamos que, pelo menos em textos do português dos séculos XV e XVI (consultados no Corpus do Português organizado e disponibilizado por Davies & Ferreira), não foi possível registar qualquer ocorrência de justamente como marcador discursivo e que equivalesse semanticamente a “com precisão, com exatidão”. As aceções de todas as ocorrências encontradas remetem semanticamente para o domínio da justiça, correspondendo à paráfrase “conforme ao direito e à justiça”. Vejam-se os seguintes exemplos:

(15) E assy os mais, ainda que sse callem, nom teem por pecado aquello a que muyto som per afeiçom inclinados, o que he grande erro, por que, se alguem justamente deseja vyver, nunca deve sobre toda cousa que a ffe dos artigoos, dos sagramentos, das virtudes e pecados perteence, aver teençom nova nem reprovada, mes estar sempre bem firme naquella parte que a ssancta igreja seguramente mandar. (D. Duarte, O Leal Conselheiro, s. XV)

9 Conforme se expõe em Bueno (2005), poder-se-á considerar que existe “uma relação conceitual direta entre a conceção de “justa medida” proposta pelo pensador chinês Confúcio no texto intitulado Zhong Yong e o”justo meio” aristotélico presente no livro II da Ética a Nicômaco”. Se, por um lado “Confúcio não abriu mão da anuência da sabedoria, que para ele seria a salvaguarda transformadora da concepção de justa medida e a decisiva idealizadora do aspecto identitário dos seres”, por outro, para Aristóteles a justa medida inscreve-se “nocírculo preciso da lógica formal”. Aristóteles, continua Bueno, “tange a justa medida a uma fixação pontual que se aplica à conduta ética.”

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(16) Os quaees ho dicto conçelho Repartira antre sy segundo as terras & propriedades da terra que cada huûs trazë ou ao diãte trouxerë. E pera se fazer ho pagamento mais sem trabalho. Mandamos que se faça agora loguo noua Repartiçã Justamente sem se fazer emgano Aos proues nem A outros Na qual cousa mandamos aas Justiças que emtendam pera se fazer Justamëte como he rrezam (foral manuelino, princípio do s. XVI)

Tendo em vista a identificação dos critérios para o estabelecimento de uma fronteira entre emprego não discursivo e emprego discursivo, uma questão permanece: qual o tipo de condicionamento semântico-pragmático que invalida que injustamente registe um emprego discursivo?

Recorrendo ao modelo teórico-metodológico da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, poder-se-á colocar a hipótese de o emprego discursivo de justamente induzir uma orientação que se prende com a organização topológica do espaço de validação subjetiva.

O emprego de justamente como marcador discursivo actualiza uma operação subjetiva: é um marcador linguístico do empenhamento do enunciador em, como locutor, tornar acessível ao interlocutor que o agenciamento de formas do enunciado por si construído é adequado. Marca, por isso uma operação de validação subjetiva, mais propriamente, neste caso, a construção de um valor correspondente ao centro atrator do domínio de validação.

Por outras palavras, se validar é escolher um valor entre os outros possíveis (cf. Culioli, 2001: 280), estando em causa uma operação de validação, a ocorrência de justamente induz uma orientação, ao nível do domínio de validação, em direção ao Interior, isto é, “àquilo que é o caso”. É graças a este “empenhamento” por parte do sujeito em dar conta da adequação do “que é dito”, que a ocorrência do marcador discursivo justamente permite o ajustamento intersubjetivo.

Ora, ao nível do domínio de validação, a orientação em direção ao Interior induz a que o valor construído seja o valor positivo, o adequado, ou seja, o valor “justo”, no sentido de “exato”, “preciso”, motivado pelo semantismo próprio de justamente.

Estão, por conseguinte, em causa três operações:

(a) a construção enunciativa da existência de um estado de coisas;

(b) sinalização, marcada por justamente, de que esse estado de coisas (cuja existência préconstruída é, assim, retomada ou re-identificada) é adequado ao “querer dizer”;

(c) a eliminação de toda a alteridade (é justamente pi e não pj, pn…).

Assim, se subjacente a justamente estão duas operações co-orientadas para o Interior do domínio de validação – por um lado, a validação, ou construção de um estado de coisas no Interior do domínio de validação (“o que é dito” ou “o que é o caso”); por outro, a adequação (em relação ao “querer dizer”) –, com injustamente está-se perante uma dissociação em termos de orientação no espaço topológico – por um lado, a validação, ou construção de um estado de coisas no Interior do domínio de validação (“o que é dito” ou “o

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que é o caso”); por outro, a inexistência de adequação em relação ao “querer dizer”. Esta dissociação verificada com o emprego de injustamente impede que se opere a retoma ou reidentificação do estado de coisas construído.

Porque os marcadores discursivos que assinalam a adequação induzem sempre a que o valor construído seja o valor positivo (o adequado, o preciso, o exato) – por outras palavras, porque marcam sempre, ao nível do domínio de validação, a orientação em direção ao Interior – não é previsível que exista na língua o correlativo negativo destas formas linguísticas.

Em conformidade com a descrição do funcionamento do marcador discursivo justamente aqui proposta, não é concebível que injustamente apresente um emprego discursivo. Já quanto ao emprego não discursivo, coexistem, como correlativos diretos as formas positiva e negativa, justamente e injustamente.

Confirma-se, deste modo, a hipótese de o tipo de condicionamento semântico-pragmático em causa para definir a fronteira entre emprego não discursivo e emprego discursivo poder socorrer-se do critério que seja a orientação induzida pelas formas linguísticas no que diz respeito à organização topológica do espaço de validação subjetiva.

Esta hipótese, a confirmar-se, parece corroborar duas observações, uma de caráter metodológico e outra de caráter mais teórico:

a) de natureza metodológica é a observação segundo a qual a operacionalidade do modelo de organização topológica do espaço de validação definida no quadro da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas se vê confirmada por este estudo;

b) de natureza teórica é a observação relativa à possibilidade de se proceder à descrição dos marcadores discursivos como “unidades da língua”, não estritamente como unidades funcionais ou pragmaticamente consideradas.

REFERÊNCIAS

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Blakemore, D. (1987). Semantic Constraints on Relevance. London: Basil-Blackwell.

Borderia, S. P. (2001). Connectives/Discourse Markers. An Overview. Quadernos de Filologia. Vol. VI, pp. 219-243.

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