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No rasto das comemorações da revolução francesa : subsídios para uma análise do discurso da efeméride na imprensa portuguesa

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ACTAS

ao

c o ~ ó ~ u ~ o

DA

REVOLUÇAO

FRANCESA

EM

PORTUGAL

E

NO BRASIE

(2)

ACTAS

DO

~ 0 ~ 6 ~ ~ 1 0

A

RECEPÇÁO

DA

REVOLUCÁO

FRANCESA

EM PORTUGAL

E

NO BRASIL

I

2 a 9 de Novembro de 1989 UNIVERSIDADE DO PORTO. 1992

(3)

NO RASTO DAS COMEMORAÇOES

DA REVOLUÇÃO FRANCESA

(Subsídios para uma análise do discurso da efeméride na imprensa portuguesa)

Em 2 de Setembro de 1791, a Asscmblcia Consliluinte francesa votava por unanimidade um artigo suplemcnlar à Acta Constitucional decretando a estipulação de festas que pcrpctuasscm a mcmória da Revolução Francesa, de modo a amanlcr a fratcrnidade enlre os cidadãos e a uni-los à pátria e às leis». Ora, apcsar do calendário rcvolucionário tcr tido uma aplicação mcteórica e ainda que as festas por ele consignadas cedo se tenham debatido com um abstencionismo crescente (I), em 1880, e dcpois de variadas polCmicas, a França

acabou por oíiciaiizur o 14 dc Jullro mino o dia da sua fcsta nacional

-

uma data que aprcscnta(va) a vantagem de congregar a evocação quer da Tomada da Basiiuia cm 1759, quer da primcira grande Festa revolucionária: a da Fedcração em 1790.

No entanto, por iner6ncia à sua vocação universal, atributo de que a Revolução Francesa se apoderou desde a primeira hora, as comemorações, enquanto marcos de mcmórias comuns, acabaram por ser alargadas para aiCm das fronteiras hexagonais. E, sc outras circunstâncias a Hislória não tivesse já registado, que fundamcntam as rclações esLrcitas entre Portugal e Franqa, bastar-nos-ia, cer- tamcnle, esse desígnio de celebração extravasando fronteiras para, por princípio, nos scntiimos implicados na grandc Festa da memória da Revolução Francesa.

Eis como se foi dclincando eslc nosso projccto de abordar a rccepçáo em Porlugal da dimensão comemorativa da Revolução,

dimcnszo essa que, insistimos, não é uma mcra decisão pósluma de rcspeilo evocalivo; dccorreu logo de uma reivindicação do próprio período revolucionáiio.

Se as comcmoraçõcs se dciincm pcla participação colectiva na festa memorial, pcnsárnos quc a imprensa scria o rcgisto mais indicado para recuperar os ecos dos cvcnlos, das adcsõcs elou das crílicas às Eestividadcs, isto é, para clicgar a uma imagcm da rccepção entre n6s da Revolução Franccsa, quc scja resultado das dinsmicas comemorativas.

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Não se tratará pois aqui dc rcccnsear sinais das repercussões

rcvolucionárias em ~rcceptorcs eleitos» - aquclcs quc, por difercntcs razões, desde a cncomiástica admiraçáo à mais vipciina rcpulsa, revestiram os seus discursos de uma trama significativa que rcmonta aos acontecimentos, idcáiios e personagens da França dos finais do séc. XVIII c inícios do séc. XIX. Ao orientamo-nos para o discurso da imprensa, pretendemos focalizar a rccepção a parlir da hctero- gcncidadc dc intcsvcnicntcs ncssc proccsso comunicativo em tomo das comcmoraçõcs.

Por razõcs práticas, não considerámos toda a imprensa actual c tam-pouco nos impusemos uma cscolha dirigida de títulos; tivcmos contudo a preocupação de englobar no nosso «corpus» de análise quer diáiios c semanários tanto dc ctpansáo nacional como regional, quer revistas de divulgaçáo generalizada e ainda algumas publicações periódicas ligadas à Igreja Catúlica.

Do mesmo modo, a consulta que fizemos aos periódicos

existentes aquando do ccnlciiário não se subosdii~ou a qualquer triagem prévia, scnão às limitações da Bibliotcca Municipal do Porto. Quisemos ter uma pcrccpção dos ciciíos do tcinpo sobrc as come- morações e sua abordagem a nívcl da imprcnsa, mas não visámos uma anilisc diacrónico - comparativista dclalhada e muito mcnos quisemos iazcr um cstudo sociológico clou Iiistórico da imprensa cm Porlugal.

No ânlbito do nosso projcclo, os jornais e revistas consultados funcionaram como um ponto dc partida para a atzálise do discurso da efeméride, ou seja dos dispositivos uiilizados para apresentar um referente durante um tempo excepcional

-

o tcmpo do ritual festivo implicado pela multiplicação das iilcdidas cronoló,' ' T I C ~ S .

Partimos, por conseguinlc, das scguintcs qucslões: passados os marcos enlblcmáticos de um século e dc dois sçculos ou, sob a forma

expressiva dc números rcdondos: passados 100 c 200 anos, que Revoluçáo se fcstejou ou se é conduzido a iestcjar?

Sob a Cgidc (ou sob a pressão?) das coincmoraçõcs a que Revolução se rciiictc? Com quc linguagcns ela C dita?

Acrcscentc-se dcsde já que pressupomos a impossibilidade de SCrmos rcmetidos para um grau zcro da Revolução, uma vez que a dimcnsão, mais do que apr~scntativa, rcprcsentativa do discurso da imprcnsa (como aliiís acoiitcccrá com qualquer outro discurso) n50 nos rcstilui scnxo um scícrcntc quc é o rcsultado dc um cieito

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de comunicação (').

As nossas queslões preliminares conduziram-nos de imediato

à leitura de dois tipos de notícias: por um lado aquelas que dcram conta das comcmorações em Portugal em tomo do 14 de Julho e, por outro, às que reinviaram às comemorações havidas em França na mesma data. Procurámos em seguida, inserir cstcs dois momentos numa anhlise mais vasta - a da forma como a imprensa constitui em si mesma o especthculo, isto C como ela roi, para alCm de um meio de difusão das comcmorações, o próprio signo comemorativo.

1. As comemorações da Revolução Francesa em Portugal Lembramos que foi dcliberadan~cntc que nos cingimos àquelas que se realizaram à volta do 14 de Julho e dc cunho demarcadamcnte festivo, pois só atravCs dessas manifestações teremos acesso a imagem espectacular implicada pela efemiride.

Remontar à Cpoca do ccntcnbno fez-nos cruzar com um trabalho já realizado sobre «As comcmoraçócs do Ccnlcnário da Revoluçáo Francesa na imprensa Diiria Portucnsc» (3). Nele se

cnconiram as rcfcrências às comcmoraçócs sobrctudo em trts pólos desia cidadc: colónia francesa, clubes rcpublicanos c associações opcránas da cidadc.

Embora tenliamos alargado a nossa consulta a jornais c revistas da época para alCm dos diários portuenses, náo encontrbmos scnáo as mesmas refcrtncias, e scmpre dc uma forma assaz discreta, em trts oulros jornais: O Correio da Europa, Jornal do Paiz e no

auto-designado sorgáo communista anarchista))

-

A Revolução Social.

Volvidos 100 anos sobrc este (quasc) silêricio rclativamci~te a comemoraçõcs que se circunscrcvcram a inicialivas de cariz ora nacionalista, ora polílico, aquilo que enconLrbmos anunciado nos jornais continuarain a ser «sinais pálidos e dispcrsos» quc cngloharam quatro centros de festejos (4), dcsta feita ~ r ~ i ~ i z a d o s scinpre por

instituições ligadas à França, ainda que, porvenlura, com apoios dc entidades locais. A única excepçáo ficou a dcver-se ao cspccticulo proposto pelo Teatro Nacional de S. Carlos para a iloile dc 14 de Julho, intitulado «Salul à la Francc». Note-sc, dc rcsto, que todos os cspcctáculos se rcalizarain sob uma dcsiçnação ou rcfcstncia francesas, desde o popular «baile», alC à fcsta da Fraternidade

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intitulada «Bastillc». Daqui se podcrá inletir que tais comemorações, a partir da própria forma como sáo dcsignadas, pernianecem cstrangei- ras, extetiores por isso ao espaço português. Por outras palavras: remetcr as comemorações para um código francês traduz uma homenagem à França, é cesto, mas podcrá tanibçm denotar o reconhecimento implícito de que a comemoração da efeméride, mais do que pertencer ao património universal (o que exigiria que as festas «falassem» a mcmória revolucionária na divcrsidade com que cada região ou naçáo a assimilou), limita-se a ser um hábito tradicional lrancês ou, ainda mais particulatmcntc, parisiense

...

Disto mesmo dá conta o título, tão preciso quanio ambíguo, com que um semanário encabeçou a sua cobertura do Bicentenário: «Uma festa para Paris»

(9.

Mas mais do que rccenscar as manifestações ocorridas entre nós (o facto exua-discurso). imporlurá rccupcrar o comcniário que os jornais deram dos acontccimcnios, pois é ele que nos permite reconstruir a imagem impressa (o iacio intra-discurso) da reccpção comemorativa da Rcvolução Francesa.

Assim, numa notícia consagrada ao baile popular, ou melhor

à Festa do Institut Fratzçais de Porto, realizada na Ribeira, o rcpóster depois de ignorar tcr havido Scstejos no Porto aquando do Centenário, termina com uma nota onde a ironia, ainda que suspensa nas reticências, recnvia ao título da notícia, escrito em lctras gasrafais: «Afinal o quc foi isso da tomada da Bastilha?». Esta pergunta, colocada em início de tcxto, anónima e insinuante, terá partido de alguns moradorcs da Ribcira quc, pcrlcitamcnte alheios ao contexto da fcsta, (se) interrogavam, entre o espanto e a indignaçáo, ao verem- -se invadidos pclos estranhos.

Alem disso, e como noLa o Priineiro de Janeiro (14/07),

a Praça da Ribcira «Soi no sCc. passudo, símbolo (por paradoxo de resistência à invasão dos exércilos napolcónicos c tcalro dos trágicos acontecimentos da Ponte das Barcas». Todavia, a uma tal clucidação histórica seguc-se a conclusão: «Hoje superados os contratempos e as amarguras do passado, a Praça da Ribcira vai scr francesa «Aux asmcs citoycns» vai scr com ccrtwa «a palavra dc ordcmn. Através dcsta anunciada (ou denunciada?) supcraçáo, rcpare-se como a cfcméride, enquanto ntualizaçáo da mcmória, podc c dcvc sacrificar- -se a si mesma ao contornar episódios da História, desde que estes pcrturbcm a lincaridade da rcíerência, ou scja o seu carictcr essencial

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e eterno, que as comemorações têm como objectivo confirmar. Passando aos diários lisboeias, aí se constata que a recepção as comemorações nacionais do Biccntcnário caracteriza-se por um maior espírito crílico:

-

«Le Bal du Bicentenaire foi em Lisboa Passcrelle» (Diário de Lisboa

-

15/07). - Neste destacado título, a utilização de termos franceses sem quaisquer aspas não esconde, mais uma vez, a ironia que será confirmada e acentuada atC ao sarcasmo no corpo do artigo: «festinha nacionalista francesa muito iolcl6rica tipo «corpo diplo- mático» e onde, segundo o que é noliciado teve lugar uma revolta (naturalmente não prevista pela organização) descncadeada pela gente que queria participar na festa sem ter que pagar o bilhele de ingresso. Um outro diário (Correio da Manhá

-

15/07) dá conta desse «extra-espectáculo» ocomdo na Praça do Município, utilizando para isso uma linguagem que represerzta (o termo inclui aqui toda a sua dimensão teatral) a actualização da Tomada da Baslilha ocorrida há 200 anos: «Populares tomaram de assalio iesla da qucda da Bastilha)). Quanto 2 comemoração proposta pclo Instituto Frarzco- -Português, pode ler-se no Diário de Lisboa: cFcsta da Fratemidade no Palácio da Ajuda foi um fiasco: Estupefacção e Contrariedade)). O rcpóilcr que não esconde o desagrado rclativamcnte à organização e aos deitos de todo o espectáculo, desabaia: «As únicas comemo- rações que por aí se fizeram da Revolução Francesa, nossa malriz política e cullural, estiveram a cargo de instituições irane6Ionas que falharam redondamente nas intenções. Uma pena. Uma vergonha.)).

Entretanto, alguns jornais prcfcriram desvucar aquclu que foi, ou pretendeu ser, a anti-comemoraçáo do Biccntcnirio: a vigíiia de 13 para 14 de Julho, promovida pela aulo-dcnominada «Campanha Firmamenlo». Essa inicialiva quc reuniu um pcqucno grupo de pcssoas heterogéneas, vagamente unidas por ideais n~onárquicos e cosmovisões esotCricas, foi alvo de uina reporiagcm em 3 grandes páginas, publicada mais tarde num semanário, com o título: «24 horas da vida de um republicano» (").

Primando pclo entrelaçamcnlo do humor, do espanto e de algum ccpticismo do jornalista, o arligo em causa tem a vantagem dc veicular, ainda quc num contcxlo nada iscnio, imagcns da Revolução Francesa que circularam ou estiveram subjacenlcs a essa vigilia, como por exemplo, a de quc os príncipios de 1789 já eram uma prática na vclha monarquia portuguesa, sendo alCm disso

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encarados por um dos parlicipantcs, coiiio uma «regra de 3 simples»

encerrando «um dos grandcs equívocos da dinâmica social conlcm- porânean.

Mas a nós interessa-nos aqui sobrcludo rclevar a duplicidade, diga-se mcsmo ambiyidadc, do dcstaque jornalíslico atribuído a esta anli-comemoração, a mais genuinanlcnte pormgucsa, com nostalgia, «Quinto Impcirio» e caldo vcrdc q. b., pois, se por um lado, o jornal parece querer aprcscntar o conlraponlo da cxalração afirmativa subjacente às comemorações do Biccntenário, o lorn da reportagem

representa, por oulro lado, a afirmação pclo humor daquilo que o faclo extra-discurso

-

a vigília - queiia conteslar. Com efeito, se esta prctcndia rctirar a legitimidade à Rcvoluçáo Francesa e por consequência às suas comemorações, a imagem que o jornalista difunde minar& por sua vez, a crcdibilidadc de tal iniciativa, assim como dos seus pressupostos. Ou scja, a Revolução acaba por ser exaltada por um processo indirecto dc encadeumcnto de imagens: a dos promotores iomenla a da vigilia que origina a do jornalista que constrói a do jornal que influencia a dos Icilorcs. Todas elas sobrevivem à custa de alleraçõcs sucessivas que, se não rcnlontam a uma fidelidade rclcrcncial, isto 6 ao que lcri sido cfeclivamcnte

a Rcvoluçáo de 1789, assegur'un a pcrpcluidadc dc uma memória em seu nome.

O poder imaçístico do discurso da imprcnsd iddica assim na

possibilidade de fillrar as imagcns dos agcntcs anleriorcs, scndo cle portanto aquclc que mais dircctanicnlc actuará sobre o leitor. É

jusiamcntc csic mccanismo, à partida láo cvidcnle quanto pacífico, que nos lu enlcndcr quc o discurso da imprensa, mais do que um cspaço de iniormaçáo, 6 uma proposta de representaçáo formadora.

11. As coineiiioraçóes em França, divulgadas pela imprensa portuguesa

«Todos os caminhos váo dar a Paris»

-

Eis um dos tílulos do dossicr dcdiçado pclo Jornal de Letras à eiciiléridc ('), c sob o qual se poderá Icr a mcnsagcm simbólica dc quc a chamada «Cidade das Luzes» Lomou o lugar dc Roma (ou de Meca), transrotmando- -se assim num Lcmplo Inico dc uma vcncraiida refcrencia colccliva. Daí que o jornal propusesse «um rotciro para a Festa» na capital

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francesa, aliás com rcfcrências ou sugeslõcs que acabaram por surgir um pouco em lodos os jornais e rcvistas.

Parece-nos, contudo, que toda a atenção atribuída às come- n1oraçócs do Bicentcnário em França sc iiiscrc numa perspccliva que ultrapassa o domínio noticioso para constituir um processo de constmção interna e de lcgitimaçáo da própria eiernçride. Não basta informar, é preciso hipcrbolizar-se como discurso para recriar e provocar o impacto da efcniéiidc, por isso optámos por incluir as comemorações francesas visias/ditas pcla imprcnsa portuguesa dentro do processo dc construção do cspectúculo intradiscursivo.

IIi. A Iiiiprensa como espectáculo dos espectáculos

No passado mês de Julho, uma lcirura, mcsmo supcriicial, dos periódicos portugueses, não podia evitar as rcicrências 3 Revolução Francesa e ao seu Bicentcnário, rcicrências cssas espalhadas aqui e ali, a propósito e a despropósilo. Rctcnha-se que nos jornais diúiios, atC o sector do dcsporto rcconia a alusócs «revolucionárias» (*).

Ao contrário do que aconieccra cm Julho de 1889, terá sido um caso raro a publicação periódica que nâo conlcmplou de alguma foima a grandc clcn~çridc do ano, mcsnio se cvcnlualincnle o fcz pcla via negativa, como o scmanArio O Indepentleiite (14/07) que então abordou «Os revezes da mcdaiiia» da RcvoluçXo e da França, o que, ali& náo deixa dc scr a cxprcssão mais significativa da influência centnpeta da eieméridc.

Encontrámos um só jornal

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no caso rcgional

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que, scm fazer qualquer rcfcrência à Rcvolução, dcstacou cm primeira página os 130 anos quc nos scparam das invasócs lranccsas, as quais, sublinha O Joáo Semana

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quinzcnário ovarcnsc

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dcixarain marcas trágicas cm toda a rcgião ('). Eslc pcriódico reprcscnta a excepção quc coniiima a rcgra: mencionar a Rcvolução Francesa e as suas conscquências foi um «capíliilo» que surgiu láo sis- tcmaticamcntc que, pclo menos, prcssupiinlia que se traiava de unla data ou de uma refcrência tão obrigaiórias quanio aqucllis datas do nosso calcnd6rio civil-religioso quc são já naiuralmcntc festivas.

Esta imcdiata abcrtura ao Biccntcnário por parie dii imprcnsa, associada à tendência, a quc jA aludimos, dc çonloinar a densidade hislórica dos cspaços e dos tcmpos s c y n d o ;is convcniCncias da cfcméride, faz-nos pensar no cardctcr dc naiuralidadc quc, em 1956,

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Roland Barthes encontrava no mito ('O).

Urge no entanto acrescentar que são tambCm correntes as denúncias, endémicas ao discurso da imprensa de 1989, da aparente naturalidade da Revolução, da sua memória e das suas comemo- rações. De facto, tanto se podem ler expressões que remetem para um saber e uma memória em princípio comuns: «como se sabc»; «todos sabem»; «até os cábulas sabem»; «quem náo se recorda*; tanto se podem ainda enconlrar aíiimações de uina amplitude táo geral quanto espectacular: «O mundo, tal coiiio o coilhecemos, nasceu

há 200 anos»; «A História divide-se em antes e depois*; «nós somos herdciros dcla», como, por outro lado, se admitc que a clcm6nde é um artiricio sobretudo dos orgáos de comunicação, islo porque as sondagcns, divulgadas pcla própria imprensa, revclam que quase mctade da população, a portuguesa (como de resto a francesa) vive na ignorância e/ou na indirerença face qucr aos acontecimentos de

há 200 anos, qucr à Festa do Biccntenário (I1).

Fcita esta ressalva para que, dcsde já, seja perceptível a dimcnsão ora mitiíicanie ora (auto) desmitiíicante do discurso da efcméiide, vcjainos enlão como se manifesta a alcnção da imprensa pela data que, no geral, parece ter ganho, para além de um fundamento hisiórico, o estatuto de milo:

Nas véspcras do dia 14. quase todos os orgáos dc comunicação eram, entre nós, veículo do clima que se vivia então cm Paris: o bulício, a conlusão, o entusiasmo, a indilcrença e até a revolta. São divulgados os úliimos preparativos, lembradas lodas as fases de impasse, de discórdias, de acidentes dc percurso, alguns mesmo fatais (por exemplo aquclcs que vitimaram sucessivos Membros da Comissão organizadora do Biccntenário). Empolgam-sc os montantes previstos das despesas, tal como os soíislicados ponnenorcs do grande desfile quc viria a scr o centro das atcnçõcs dos fesicjos na capital francesa.

As rcpelições constatadas dc jornal para joinal devem-se

-

explicar-se-á

-

às vicissitudes de uma iilSonnação internacional dcmasiado submclida ao poder difusor das agtncias noticiosas. Todavia, uma tal explicação passará ainda ao lado de, pclo mcnos, duas circunsi9ncias náo dcsprezívcis, a saber: os dados divulgados pclas agQcias são, em princípio, sclcccionados e trabalhados pelos dilcrcntes jornalistas e, alCm disso, nXo Coram poucos os jornais e rcvislas que enviaram rcpórlcrcs seus a Paris ou que aproveitaram os scus correspondcnlcs niiqucla cidade. Daí que a

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unanimidade do tom noticioso não possa ser unicamcnle redutível aos circunstancialismos do noticiirio intcmacional, mas traduza, também e sobretudo, as «caractedsticas-clichh com que se constrói o discurso da efeméride.

A l y n s diirios optaram mesmo por criar um espaço próprio que se manteve durante alguns dias, com um logotipo assinalando «Bicentenário». Esta designação perfcitamentc indetenninada é emblem5tica e corrcsponde a uma outra, também váiias vezes utilizada

-

«a Revolução». Aqui se condcnsa, pensamos nós, o sinal da depuração pela qual a essencialidade sc sobrepõe aos particularis- mos históricos, redimindo-os assim dc quaisquer vicissitudes que eles possam apresentar.

É certo que a hemorragia informativa em tomo do 14 de Julho (incluindo o antes e o depois) não é uma característica exclusiva da recepção do Bicentenirio. Recuando um s&culo, ve~ificimos que os pormenores associados h presença portuguesa naquela que foi a manifestação ccntral do Ccntenirio - A Exposição Universal de Paris

-

tiveram uma rcpcrcussão muito maior na imprcnsa do que propriamente as referências ao 14 de Julho ou h Revolução Francesa. H& 100 anos como agora, as visõcs sat6litcs da comemoração em si, ou seja os poimenorcs que vão dcsdc as descrições mais ou menos minuciosas dos pólos dos fcstcjos, a16 h rcvclaçiío de pcssoas nele implicados, passando pelos incvitávcis (?) números, quer dos custos, quer de pessoas e materiais envolvidos, valcm sobretudo pela sua capacidade de amplificar o tempo restrito da efcméride, al6m dc serem igualmente responsáveis por uma transierência de rcfc- rentes: o que passa a eslar em causa (em festejo ...) já não é, ou tanto, a Revolução dolno passado, quanto o actual lacto comcmorativo. O espectáculo torna-se assim referente de si mesmo. Noie-se, por exemplo, que virios joinais houve quc não se dclivcram em evocações infonnativas sobre pcrsonagcns históricas ligadas à Revolução; em contraparlida, divulgaram dados biográficos do principal rcsponsivel pelo grande especticulo comcmorativo: Jean- Paul Goudc. Esla referência tornou-se tanto mais comum quc, nalguns casos, se notabilizou em exprcssõcs coino: Bleu, Blanc Goude (O

Diário) ou Ça c'est Goude (Expresso). A conçentraçáo sobre esta componente cspectacular levou urn outro joinal a dcclarar, em guiza dc intróilo:

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a do nascimento de uma nova sonoridade - uma cspécie de world music anglo-saxónica

-

mcdiatizada nos scus aspectos Solcl6ricos e inefáveis da Revoluçáo Francesa

...

a dos nossos dias.» (Diário de Lisboa, 18/07).

Por outro lado ainda, o excesso de inlonnaçáo de que nos ocupamos, faz do cspaço jomalístico um cenário quc, visando em princípio reproduzir cenários cxlcriores, acaba por constituir pura- doxalmente uma sombra ou mído cm relação a esles Úitimos. Com efeito, a divulgação exaustiva dos bastidores do cspcctáculo come- morativo conduz a uma saturaçáo quc atinge os leitores e priva a própria efemCride da excepcionalidadc c do impacto que, por definiçáo, a deveiiam caracterizar.

A pariir daqui, eis-nos no caminho da bnnnlizaçáo que o discurso da imprensa pcrcorre, juslarncnrc quando era suposto que

percutisse a excepcionalidade. Scrb alih ncste âmbilo da banali- zação e, implicitamente, «da dessacralização da mitologia rcvolu- cionárian, que incluimos alguma da publicidade prcscnie nos pcriódi- cos analisados.

Enlcndemos que o aprovcilamenio da efemCride para fins

comerciais náo só rcvela o sentido oportuno c oporlunista das tCcnicas de markcting, como consliiui uma pcça lundamcntal no ccnbrio comemorativo dos jornais. Por cxcinplo, na rcvista da ediçáo de 15 de Julho do Expresso náo se cnconva qualqucr dcstaque, quer na capa, quer no intcrior, rclalivo à Rcvolução ou ao scu Biccntenário.

A única excepção 6 um anúncio publicilário ocupando toda uma página e onde se lê em grandcs caracleres impressos ao lado da Soiografia de uma garrala: «A Revolução Francesa chegou a Por- tugal». Trava-se dc uma publicidade 3s águas inincrais lrancesas

Pcrrier que tudo aquilo que parcccm lcr cm conium com o pciíodo

revolucionário C o Iaclo de tercm sido mandadas engarraiar por Napoleão ... De notar ainda dois significativos pressupostos do tcxto deste anúncio:

1% Revoluçáo Francesa que agora chcga a Portugal é a água Perricr;

2

" O Biccntenáiio náo é uma comemoração ein que Porlugal

parlicipc electivarncnle já que aí sc diz «Se Lambem aqui comc- morQsscinos o biccnicnbrio da Rcvolução Francesa ... »

Talvm ncnhuiiia construção discursiva quc a cdição de um jornal scmpre implica, lcnha alguma vcz assim conscguido comunicar

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a banalização dc um rcicrcnte com ião poucos meios e precisamente no tempo-auge das comcmorações..

.

Mas podeinos ainda Icmbrar a pequena reprodução dc urna publicidadc muito conhecida a urna marca dc carros, utilizando o lema «R6volutionnaire!» que serve de logotipo inuodutbrio a um artigo sobre o Bic'tcnálio ("), (de rcsto, por vezes, Bicentcnário aparece designado pela abreviatura Bic., o que traduz tanta fami- liaridade quanta vulganzação, justamente porque joga com a associação às populares esierográlicas).

Numa das revistas consultadas, a Rcvolução toma-se pretexto dc um «rol de bric-i-brac», isto 6, dc uma s6rie de objectos ligados às comemorações do Bicentenário e à disposição no mercado francês: é evidente que o intcrcsse inSormalivo (simultancamcnte publicitário) aqui subjacentes é diminuto, visto tratar-se de produtos a que os lcitorcs portugueses diíicilmcntc terão acesso. Por conseguinte, um tal bnc-à-brac scspondcrtí a intuilos csl6Licos pcla necessidade de ilustrar a revista, assim como scrá uma forma dc dar cobenura à efcm6ride, pelo lado ondc a trivialidade loca já o ancdótico, prcssupondo e provocando por isso uma visão humorístico-crítica das prbprias comemorações. ALcnte-sc neste cxuacto do Icxto quc acom- panha as Sotograíias dc alguns dos produtos ondc a cxccntricidade convive com o Kitch:

«AtC onde isZo as comemorações? At6 à aberração do pre- scsvativo da Rcvolução com uma guilhotina estampada, ou uma cCígie de Luís XVI, ou talvcz as colunas da Liberdade. Para tentar esquecer tudo isto e nos Icvantcir a moral podc scmprc fiiier-se s3ltas a rolha duma gasrapa de chanipanlie oficial, saboreando o «Saiiguc do Povo», um muito bom «ChâtcauneuS-du-papc», ou, inais modcstanente, abrindo uma Iaia dc cervcja omaincnlada com o «logo» (I3).

Paralelamente ao scclor da publicidadc, LambCm o da moda contiibui para o espectáculo da imprcilsa: pcla cristalização dos al~butos-clichC (as tricolorcs, os adcrcços, os modclos) tanto a Rcvolução co111o o seu bicentcniirio ficam irrcincdiavclmcntc sujcitos ao proccsso dc actualização cS6mcra c dc vulg~nzação de quc a moda

é a rcprcscntantc por exccl2.ncia.

Contudo, nunca scrã demais insistir quc a contaminação do Bicentenário por processos de banalização iiZo privou o discurso jomalíslico do cspínto crítico. Muilo pelo contrário, foi por vczcs cssa isolopia saturada da banalidade cluc sciviu dc maniicstaçáo

(14)

crítica, directa ou indirecta.

Mesmo se entre nós a imprensa não constitui proprianlente um espaço fértil de discussões de idcias ou teses revolucionárias (I4),

seria ingtnuo falarmos de uma desidcologizaçáo do seu discurso. O poder incisivo do ponto de vista de cada periódico manifesta-se sobretudo por uma postura humorística, pelas inversões irónicas, pelas interrogaçóes inquietas e insinuosas, pela paginação e mon- tagem geral de cada peça jomalística (I5).

Atendendo à importância catalizudora que possuem quer a nível da feihira, quer da leitura, impõe-se destacar aqui alguns dos títulos que são a mais significativa e sintttica demonstração dalguns desses processos. Assim, atente-se nestes exemplos:

«Um espectáculo revolucionário» (Comércio do Porto e Jornal de Notícias).

«O Bric-à-Brac revolucionirio» (Máxima).

«Presidente Miterrand venceu a "Batalha" do Bicentenário»

(Jorrzal de Notícias).

«Franceses revoltados com as comemorações» (Correio da Manhã).

O que se toma relevante em cada um destes casos é o atiibuto, explícito ou implícito, surgir seinpre por transfer3ncia e é devido a essa forma desestabilizadora de sentidos, previstos ou prováveis, que estes títulos mais do que anunciar, insinuam.

E porque de sentidos imprevisíveis se trata, acrescentaremos que é possível elaborar uma importante lista de epítetos que foram atribuídos ao Presidente frances, fazendo dcle ora ~François I, da dinastia Mitterrandn, ora Nsuccssor do Rci Sol», ora «monarca- mccenas»,ora responsável por «celebrações impeiiaisr>; em suma, centro de toda uma isotopia rtgio-iinpcrial que ressuscita o ambiente que precisamente a Revoluçáo Francesa aboliu até ao destronamento.

Voltando aos títulos, mas agora &AS notícias, destacam-se também aqueles que procedem a inversõcs irónicas:

«A Bastilha tomou o Povo» (Diário de Lisboa).

«Festa da Revolução "cerca" capital francesa» (Jornal d a Madeira).

«Pompa e circunstância esquccc hcróis da Revolução» (O

Diário).

«Festa da Revolução faz "cair" em Paris uma chuva de estrelas» (Comércio do Porto).

(15)

Não só os supostos «assaltantes» são os «assaltados», como os supostos lembrados são esquecidos, como a Festa da Revolução, em vez de ritualizar a memória da queda dos «Senhores da Terra» parccc cxaltar a sua asccns3o ao acolhê-los fauslosamente em território parisiense. São por isso títulos que acumulam em si uma quantidade de informação muito importante visto romperem com a prcvisibilidade. É claro que essa quantidade de informação vai depender de uma «competência de 2"raun por parte do receptor- -leitor

-

aquela que lhe permitirá desmontar os hipotextos elou hipertextos subjacentes e responsáveis pela diinenszo crítica neste processo de comunicação.

Nalguns destes casos porem, o comentário crítico surge de uma forma bem directa e perceptívcl:

«A confusão de 1989» (Expresso).

«O fiasco das Tulhcrias» (idem). «Bicentenário megalómeno (idem).

«Paranóia da segurança dominou Bicentcnário~ (idem). «I789 - not Goude» (Semanário)

Outras vezes, pela alteração calculada de u.m único clemenlo (um grafcma ou um lcxema), consegue-sc a dcsmontagcm paródica da mais consistente e central referência histórica ou de toda a

seriedade ideológica:

«A Toma da Montra* (Diário de Lisboa). «A Tomada da Pastilha» (O Independente).

«Liberdade, Igualdade, Publicidade» (Expresso).

Notar-se-á ainda a frequência da utilização das perguntas retóricas para títulos ou subtílulos. O desenvolvimento dos textos que eles cncabeçam comprova-nos que a intcrrogac;ão inicial não está lá tanto como ponto dc partida para respostas que o descnvolvimento noticioso adiantariam, mas sim como afirmação insinnosa ou ele- mento instaurador de dúvida e/ou poltmica:

«Então ondc pára a Revoluçáo?» (Semanário). «Como vendcr uma Revolução?» (O Jornal). «O que resta de 1789?» (Jornal de Letras). «Que revolução?» (idem).

«Que festejar?» (Expresso).

«Dircilos do Homem ou dircitos da burguesia?» (Diário de Lisboa).

(16)

«Tcrá acabado a Revoluçáo?» (Jornal de Notícias)

Todos csles títulos constilucm pois uma forma implícita de crílica na medida em que são segmcntos de cnsc ou divis50, dcslacados em discursos quc, à luz da eicméridc, dcveriam em piincípio scr ocasião para confirniar c exallar, n%o para problematizar ou dar azo a que dcduçõcs paradoxais se instalem (I6)).

Cumpre porém sublinhar que estc cspínlo crílico, que evcn- tualmcnte aparece subjacente ao discurso da imprensa, respeita de unia forma geral os limites inipostos ou pressupostos pclo clima entusiasmado e cntusiasmante. Por outras palavras: mcsmo se jornais e revistas há que rclativizam a imagcrn aurcolada da Revolução, contesiam a sua pcrspcctivação em bloco, banalizam as suas imagens até ao estcrcóiipo ou problcniatizaiii e criticam as manifcstações comemorativas, a verdade é que nunca chegam a d e t m i r a im- p o n h c i a dccisiva dos acontecimcnlos dc 1789, ncm são imunes às suas evocações espectaculaies.

Serd de resto inlercssante verificar coino, em vdnos artigos, o discurso se rectifica ao longo do tcxlo, isto porque o discurso da

cfcn~éride sobrcvive à custa do equilíbrio instávcl cntrc a comc- moração

e

a sua dcsniitificação.

Incapaz, já que os tempos são da crítica, dc se entregar a uma rctbrica encadcadamentc sublimaiiva, o discurso da crcinéride não pode todavia deixar de glosar alguns dos lugarcs comuns (ou que, como já assinalámos, se prcssupócm comuns), porquanto são cles que lhe conlimam a sua Icgitiiilidade

c

lhe asseguram o estatuto de espectáculo dos espectáculos.

Ao discurso da efcinéride coube (cabe) pailiculanncnte a missão dc persuadir de que «a hora da França é também uma hora grande dos cidadãos do mundo», de que a Fcsta é de todos, de que a mcmória tcm que ser conjugada tio prcsenle coleclivo. E uma das técnicas mais utilizadas para motivar uiil público-lcilor alheio à data simbólica foi a de presentijicar as rcCcrEncias dos aconlccimenios já bisscculares.

Rccorrcu-se, assim, à associação (lcgíiima ou ilcgílitna, náo nos cabc aqui j u l ~ a r ) com outras rcvoluçõcs mais próximas, cm parlicular com a Rcvolução Russa; Icmbraram-se os acontccimcnlos bem rcccntcs da Praça Ticnamcn (I7); aproxiinaram-sz os factos de

1iá dois sécs. aiiavés dc uina aniculação narcitiva cm prcscnic Iiistóiico, abordaram-se datas, lugarcs c pessoas dc uma fonna quase

(17)

tclegramática, digamos h medida da cultura contemporânea rcduzida ao essencial, fragmentada e pareialista. Até mesmo adaptada a uma pretensa e caricaiural «Prova Geral de Acesso».

. .

(I8)

Na globalidade dos periódicos analisados, é notório o propósito de evitar discursos maniqueístas, detractores ou exallantes até ao absoluto. Sobretudo neste aspecto, a imagem da Revolução que ressalta do Biccntenário distinguc-sc considcravelrncnte dos discursos apologéticos ou cáusticos que a imprcnsa diiundiu aquando do Centenário.

Mesmo no sector da Igrcja Católica onde, por razões so- bejamente conhecidas, a sequência de 1789 não suscita unia memória laudativa (os discursos indignados e ressentidos, aquando do Cen- tcnário, foram disso prova evidente), mesmo aí, dizíamos, houve desta vez a nítida preocupação de nzo destruir ou ignorar o legado rcvolucionário, mas antes dc rclativizar a áurca mítica que lhe foi (OU C) atribuída.

Se a Rcvoluçáo Francesa pode ser ainda vista como «respon- sável pcla dcscristianizaçáo da cultura ocidental» e por consequência

«modelo dc todos os gcnocídios contcn~por$ncos», num ariigo de opiniáo destacado no n V d ' O Ifidepe~zdeftte que sc dizia «anti- -rcvolucion6rio e anti-francês», não se toina menos eloquentc o destaquc atribuído h Rcvolução cm publicaçócs dircctanicnte ligadas h Igreja Católica.

Denuncia-sc, C certo, o caráctcr manobradamcnte iinagélico com que a Revolução é evocada, mas sáo caucionados de uma forma implícita os piincípios revolucionários ao iazt-10s dcrivar dc princípios evangélicos (I9), considera-se a Rcvolução o «Advento dc um Tempo outro», e a sua cclcbração um «iacio incontomávcl~; mostra-se que em vez dc anáiema «o tema intcrcssa LanibCm, e dircclamcntc, i

rcílcxáo ciistá e cclesial» (ZO), finalmente pcrgun~a-sc sc scrá de sustenlar unia atilude anacrónica de rcsscntiinento «como se aitida ontem nos livessem cortado a cabeça?» ('I). Eis aqui uma qucstáo insinuante quc seria impcnsávcl aquando do Ccntenlirio, onde se afirmava categoricamente: «O catliolico quc pactua com a Revoluçáol uma hydra do Infcinol, se não C desculpado pcla ignor$ncia, é um apóstata:» (22).

Uma incursão, ainda que sumdria, pcla imprensa rcligiosa ou por artigos dc alguma forma ligados à Igrcja, fcz-nos coníinnar que a rcccpção da Revoluçáo Francesa, em pleno iréniito de BicentcnSrio,

(18)

e mesmo naquele que seria o espaço menos provável, se pautou por uma visão mais ou menos actualizada da História, onde a distância em relação aos acontecimentos foi aproveilada para serenar ou relativizar imagens demasiado compromelidas do passado, assim como para dosear as reacções emolivas de que se nutre qualquer comemoração.

Ao verificarmos, no início, que as comemorações fcstivas do Bicentenário em Portugal foram limitadas a vários níveis, sentíramos

j'd O quanto a recepção entre nós da Revolução cstava, ou está, marcada pela distância.

Na verdade, o termo de que as comcmoraçõcs são expressão festiva inscreve-se nos 200 anos que nos separam de 1789; confiyra- -se quer na distância geográfica, quer na própria din9mica de que o espectáculo das comemorações é responsável (os espectadores estão separados dos inte~enienkes) e, por fim, condensa-se no processo mediatizado pelo qual a maioria das pessoas toma conhecimento dos eventos

-

daqucles que são í'esiejados e dos que festejam.

Na festa do BicentenArio, a quase totalidade dos portugueses

(poderíamos tambCin dizer dos franceses.. .) í'oi mera espectadora da cadeia de imagens do grande desí'ilc dc Goude, que chcgou até si por processos mediáticos. Se cstes procuravam uma aproximação entre todos (ou quase todos) os cidadãos do mundo, para celebrar a eCemCride que se pretende universal, nem por isso deixaram de scr a oportunidade c a expressão do distanciamcnto.

No caso da imprensa, esse disianciainento foi ainda duplamente agravado porque ai o discurso n2o s6 ampliou o espectáculo do Bicentenário, como por váiias vezes o fez com ironia

-

a visão distanciada por excelencia

-

acabando assim por sc automatizar em tomo das suas próprias imagens. Eslas, ao sercm reflexões-críticas do espectáculo exterior ao discurso. constilucm um meta-espec~áculo, aquele que, por sua vez, correspondc já nâo lanlo a uina Revolução historicamente particularizada, mas a uma «meta-revolução», como lhe chamou Eduardo Lourenço

(9.

Neste nosso séc. dito da ciíiica, nesta nossa sociedade chamada do espectáculo, n3o será de admirar se denotamos nesse meta- -espectáculo que C o discurso da cIcméride, as marcas do desgaste quc a palavrdidcia «revoluçáo» soí'rcu nos últimos 20 anos (e ainda mais rccentcmente entre nós), ou sc nele são disccrnivcis quer reílcxos de investigações escatológicas em torno da própria Revo-

(19)

luçáo Franccsa, quer sinais do humor caracLcríslico do individualismo contemporâneo

y),

quer mesmo vestígios de uma certa relaçáo de distante rcsscntimcnto e de esforçada emancipaç20 face à França, ultrapassado que está todo o enlevo em que vivemos durante o séc.

XIX.

Há 100 anos, Latino Coelho escrevia, num encomiástico artigo em honra do Centcn6rio:

«A tomada da Bastilha é o panno quc se levanla para a sccnica rcprcsentaçáo do heróico drama democrático. Está apenas concluido o primeiro acto.» (%) Estava também lançado o mote, acrcscenlamos nós, daquilo que curiosamcntc as festas revolucionirias tinliam querido rccusar: a teatralidade ou a sumptuosa hipocrisia.

Ora, sonios tcstcmunhas de que o Biccntenário deu uma acentuada sequência, se 11x0 h Cesta, porque csla implica uma efcctiva e generalizada paiticipaçáo, pelo menos h isotopia do espectAculo ou do teatro, avançando assim mais algumas ccnas no encadeamento das actos dramitico-seculares.

Dever-se-á lamcntar o Pacto de assistirmos a um espectáculo que já pouco ou nada tem a vcr com aqucla represcntaçáo primeira que foi a RcvoluçZo de 17S9?

Mas como concebcr uma outra i o m a de comemorar a Rcvoluçáo que, tcndo cxigido todo o trabalho dc dcssimbolizaçáo e de dcssacralizaçáo, Cundou aquilo que havcria de ncgá-la? ( 2 6 ) Daí

que o cspcctáculo h distâtlcia - sustido cntrc urn cncciiado cnlusiasmo e um alhe~imcnto dcscncanlado, scnáo ignorsncia

-

scja ainda, lilho da Revolução Franccsa e, por isso mesmo, talvez a mais conscguida c paradoxal exprcssáo da sua mcmóna.

Atza Paida Coilti~zho Mendes Universidade do Porto

(20)

NOTAS

(1) cf. Entrevista a Mona Omiif, «Lcs fttcs r6voluiionn.1ircsn in Art-press spdciul - «I787

-

R6volution Culturcllc Franyzisc~. Paris. 1988, pp. 8-14.

(2) Para esta pcrspcctiva da pragmática da comunicação. atcntc-sc em alguns dos cxs. aprcscntados por Paul Wutzlawicli in La réalili de Ia réalili - confusior~. désinformalion, communicalion, Paris, Scuil, coll. l'oints, 1778.

(3) cf. Costa, Isilda Braça et alii. «Separata d d Revisia de Hisiória das Ideias., vol. 10, Coimbra, Faciil<kide de Leuas, 1988.

(4) A saber: dois pólos de fcsicjos em Lisboa: Palácio da Ajuda c Praça do Município; um no Porio: Praça da Kibcira; e outro em Coimbra: Jardins dn Associaçáo Académica.

(5) cf. O Liberal, ediçáo dc 15 dc Julho dc 1989, p. 28.

(6) cf. Rcvista do Expresso, cdiçzo de 29 de Jullio de 1787, pp. 14-17.

(7) cf. Jornal de Leiras, ediçáo dc 11 a 17 dc Julho do 1787.

(8) Na l'pig. do Jornal ddc Notícias dc 15 dc Julho lia-sc: «Não h6 revolução quc chegue ao Tourn e. no dia seguinte, e no mesmo jornal, a pig. d e Desporto incluía o seguinte título: «A outra rc~~oluçáon (Vala-se dc um artigo 6 volta do rellye d e Vila Real). O recurso i palavra «rcvoluçãoio» ncstes dias não terá sido fortuito, assim como não o foi o iírulo qiic aparcccu no Correio da Manhã (15107, a propósito de uma das ctapas dc volta à França cm biciclcta: «Tomada da Bastillia» foi em... Marsclhas.

(7) cl. Joáo Semana, edição de 1 de Jollio.

(10) cl. BARTI-IES, Roland, «O Milo, Iiojc> in Miiologias, Lisboa, Ediçócs 70, pp. 1791223: «Pass;indo da Iiistbria i natureza, o mito lu uma economia: provoca a aboliçáo da complcxid:idc dos actos humanos. dá-llics a simplicidade das essCncias

(...) organiza um mundo scm contradiióes porqiic scm profundidade. um mundo na sua cvidtncia, lunda uma claridade lcliz: as coisas iCm a apar5ncia de significar por si sós.» (p. 210)

(12) cf. Sema~zário, edicáo de 15 d c Julho, pp. 4-5. (13) cf. Móxima, cdiçáo dc Jullio, pp. 82-85.

(14) Todavia, e scm mcnosprczo por outros artigos elou revistas vocacionadas para a rcflcxão e para a criiica, penniiimo-nos dcsincar o nn 3 de Finisterra (Outono d e 1987, subtitulado «A ideia dc Rei.oliiçiio» c portanto sob a manilcsia égidc da elcméridc do ano).

(15) A títiilo de excmplo, parccc-nos curioso dcstacar a abordagem da Revoiução Franccsa lcila no Diário do Minha (14107): Sob o título gcnérico «Segundo Ccnicnário d a Rcvoluçiio Franccsax, é abordada a mortc dc Luís XIV num tom quc chega a Icmbrnr passagens da litcretura puncgírica feita pclos contra- revolucionários do séc. XVIII-XIX. Entrctmto, ap;uccc na última pág. uma pequena rclcrtncia 5s comcmor;tçócs do Biccnicnário, afectada, porém, pcla notícia que Ihc é imediatmcntc anterior: «Hcrói da Revolução cubana foi ontcm cxccutado». Sustcniamos que a montagem dcsta página prctcndcu scr táo cclquucnte quanto o conteúdo dos rcspecuvas artigos.

(21)

nata de uma análise que justificaria por si só um trabalho dc pesquisa. uma ou duas particularidades respcitwies ao connibuio do disciirsn visiinl na consuuçio do discurso da cfcméridc. As fotogafiss que acompmham os tcxtos remetem nor- mnlmcnrc para três grandcs «tema»: ximagcns da $oca»; monumcntos que %si- nalam em Paris o Biccntcnjrio; acontecimenios aciuais

-

dcsde os da Praça Tienamen. à cimeira dos países mais ricos ou ao dcsiilc militar.

Parecc evidente que em cada um desses caros, a intenção irónica-crítica se sobrcpõc a ncccssidadc iluseativa, de tal modo que ora s c acentiia a distkcia que nos separa do tcmpo rcvolucionjrio (pelar imagens epocais), ora sc mosna como a revolução se fossilizou ou petrificou em monumcntos cmbora apareniemenie nansparentcs («Paris esti rcplcta dc teliiados dc vidro» - uma Icgcnda dc uma fotografia da «Pirâmide do Louvrc), ora ainda sc csiabclcce uma significativa relação paradoxal entre os valorcs dcrcndidos pcla Revolução c rcalidadcs contemporânca. 1171 Não resistimos a assinalar a coincidlncia enne o início deste Coneresso

. .

-

e a «Queda do Muro dc Bcrlimr - 9 de Novcmbio dc 1989 -. Scrú a Imprensa

a qualificar posteriormente a queda do Mura camo a mcliior comemoraçio da Revoluçio Francesa.

(18) cf. <rPuxc pcla cabeça!» e «O essencial sobre a Revoluçio Francesa» in Jornal de Letras, nn cii. c «Um guia para n Revolução Franccsaa in Expresso, edição dc 1 dc Jiilho.

(19) cf. Voz Porfi<calense, cdição dc 27 dc Jullio d c 1989.

(20) cf. Mcnsagciro dc StQ António (Jullio dc 1989); Cormnunio (nn 3 - MaioIJunho dc 1989).

(21) cE. Diúrio de Lisboa, ediçio de 15 dc Jullio.

(22. Novo ~Llensageiro do Coraçüo de Jesus, n V 0 0 , 4 V o aoino IX, JuUio de 1889. p. 230.

(23) c[. LOURENCO, Eduardo. s O icmpo da Rcvoluçáo~ in Expresso de 1 de Juliio dc 1989.

(24) A cstc propósito vcja-sc a milisc da socicdade humorísiica feita por Gilles Lipovctsky in L'ère drc vide

-

Essais sur i'i>idividuulisme co>ilernporain, Paris, Gallimrd, 1983. Sobretudo o cap. V. intitiilado prccisamcntc «La sociéié liiiinoris- liqucn

(25) cf. O Século, odiçio dc 14 de Julho dc 1889.

(26) Clitimamos a atcnçio para uma intcressantc anjlisc dc François Gaillard onde é demonsuddo quc a indigência, ou vazio. que caracteriza o im~ginjrio actual da Rcvoluçáo nio é ium mero sinal dos nossas tempos. Apoiando-sc numa leitura da alilude c da linguugen dos românticos camo síndronias da incapacidade quer em acrcdiiar, qucr cm realizar as promcssns rcvolucionirias, F. Gaillard sustcntn que estas aiitudcs r;i<licam na natlireza e cxigêncins dos grandcs princípios da Revolução que sc fcz ruptura, a panir do momcnio cm quc crradicou iodos os súnbolos políiicos c religiosos wcourmt Ic ristquc dc dcvenir cllc-inêiiii irrcpréscntable

-

cc qui appwait aujourd'hui h I'évidcncc». «Lc manque ù croirc dc Ia 1<6voluiion»

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