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16 apos um seculo de orwell

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Anna Vaninskaya

King’s College, Universidade de Cambridge

APÓS UM SÉCULO DE ORWELL:

POLÍTICA, PÓS-MODERNISMO

E REPUTAÇÃO

O centenário de Orwell passou e o ritmo das publicações académicas que, em regra, acom-panham semelhantes marcos bibliográficos não abrandou. O Cambridge Companion to George Orwell tem edição prevista para 2007, Every Intellectual’s Big Brother: George Orwell’s Literary Siblings, de John Rodden, acaba de ser publicado, On Nineteen Eighty-Four: Orwell and Our Future, as actas de uma conferência de 1999, saíram em 2005.1 Muitas destas

publicações, para não falar das que derivaram das actividades comemorativas do próprio ano de 2003, tratam fundamentalmente da questão da revelância de Orwell hoje. A reputação e a recepção de Orwell, os vários usos que dele têm sido e continuam a ser feitos, a teorização dos processos de condenação e admiração, e os casos espectaculares de profanação literária são mais um foco de atenção académica do que a obra do autor enquanto tal. As actas da maior conferência comemorativa, George Orwell: Into the Twenty-First Century, levantam a questão de Orwell e da guerra no Iraque com mais frequência do que a de Orwell e a 2ª Guerra Mundial. Talvez isto não seja surpreendente para uma conferência que apresentou Christopher Hitchens como principal orador, e cujas actas foram editadas de acordo com uma agenda política correspondente, mas é igual-mente indicativo de um fenómeno mais

abran-ARTIGOS

CALEIDOSCÓPIO

1 Outras publicações ao longo dos últimos três anos incluem The Social and Political Thought of George Orwell: A Reassessment, de Stephen Ingle; uma compilação italiana de ensaios comemorativos, organizada por Ugo Ronfani, Orwell: i Maiali e la Libertà; e George Orwell, Doubleness, and the Value of Decency, de Anthony Stewart, bem como fontes primárias tais como Orwell: The Observer Years, e Orwell in Tribune.

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gente, um fenómeno muito detalhamente examinado por John Rodden em obras como George Orwell: The Politics of Literary Reputation e Scenes from an Afterlife: The Legacy of George Orwell. Seria interessante aplicar a estrutura teórica desenvolvida por Rodden a exemplos de recepção como o da própria Conferência Comemorativa do Centenário. O leitor das actas depara-se com um claro caso de apropriação, desta feita em consonância com uma ideologia liberal americana pós-11 de Setembro especifica, que pretende diferenciar-se tanto dos neo-conservadores como da Esquerda “anti-Americana” envolvida em “apologética e apaziguamento do islamo-fascismo” (Cushman e Rodden 19). Na sequência da indicação de Hitchens, esta tornou-se a mais recente “face” (ou “desfiguramento”) Orwelliana de eleição.2

Na Introdução à edição de 2002 de George Orwell: The Politics of Literary Reputation, John Rodden reafirma a afirmação da sua Conclusão de 1989 de que o centenário de Orwell não seria mais do que “um acontecimento académico”. O quinquagésimo aniversário da morte de Orwell não dera quaisquer indicações em contrário: o mundo académico celebrara a ocasião com a Conferência de Madrid sobre Literatura Inglesa (resultando nas habituais actas publicadas (Lazaro)), mas o leitor comum teria procurado em vão no domínio público quaisquer lembranças deste tipo. Os acontecimentos de 2003, contudo, não só provaram que o juízo de Rodden estava errado, como ao mesmo tempo demonstraram a persistente utilidade deste tipo de abordagem a Orwell: uma abordagem que considera o legado de Orwell não tanto como uma força modeladora de paradigmas críticos, mas antes como um objecto fustigado aqui e ali pelos ventos críticos e intelectuais, constantemente reformado e reconstruído segundos as linhas que os paradigmas existentes exigem. Ao contrário, por exemplo, da obra de Foucault, a de Orwell não serviu de alicerce de um discurso académico influente: uma perspectiva que seguramente vai contra a precipitada moda de proclamar Orwell como o pai de uma variedade desconcertante de modernos campos de investigação. Afinal, Peter Stansky e Bernard Crick consideram Orwell um pioneiro da história social do tipo praticado por E.P.Thompson; a opinião de que Orwell foi o fundador de estudos culturais nos seus famosos ensaios e artigos sobre a cultura popular inglesa é ainda mais difundida; alguns reclamam pós-colonialismo, baseando-o de forma algo dúbia num dos seus primeiros romances Burmese Days, outros apontam a utilização dos documentários participante-observador de Orwell nos manuais de sociologia, e referem-se a ele como o percussor do Novo Jornalismo de Tom Wolfe. Lynette Hunter vai ao ponto de afirmar que Orwell se antecipa a Lacan, Althusser, Foucault, e Marshall McLuhan, e reagiu contra o pós-modernismo antes mesmo de o conceito ter feito a sua aparição (Cushman & Rodden 229, 235). Mas apenas podemos falar da paternidade de Orwell com respeito a estudos culturais e outros, como falamos da de J. S. Mill relativamente ao feminismo: embora possa haver passos nos escritos de Orwell que antecipam as preocupações das escolas críticas de hoje, não podemos de forma alguma dizer que as criaram. Este é um sentido muito diferente daquele que se emprega quando se fala de Derrida enquanto pai da Desconstrução, ou de Marx relativamente ao Marxismo. O destino de Orwell foi o de ser, não o progenitor, mas sim o tema de uma nova

2 De particular interesse no que se refere a esta apropriação, temos a Introdução de Thomas Cushman, “In Defense of Comrade Psmith: the Orwellian Treatment of Orwell” de Ian Williams; “George Orwell and the Liberal Experience of Totalitarism” do próprio Hitchen; e “Varieties of Patriotic Experience” de Todd Gitlin. Por outro lado, contributos como “On the Ethics of Admiration – and Detraction” de John Rodden, “Orwell’s “Smelly Little Orthodoxies” – and Ours” de Jim Sleeper; “Orwell’s Satirical Version on the Screen” de Erika Gottlieb; e os capítulos na secção de “Orwell Abroad”, proporcionam visões históricas, testemunhos pessoais, ou afirmações teóricas que fogem a esta tendência específica.

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disciplina: o estudo de reputação. Embora tenha surgido na década de 1990 – existindo agora uma pequena indústria na escrita de vidas além-túmulo – este nexo de história cultural, biografia literária e sociologia era virtualmente inexistente quando Rodden escreveu o seu livro. No entanto, apenas podemos fazer sentido do momento actual na história da recepção de Orwell usando o vocabulário de Rodden de reputação-formação. Chamando a atenção para os graus de “desfiguramento” perpetrados pelos diferentes grupos de recepção populares e académicos, o modelo conceputal de Rodden confirma o meu argumento sobre o papel passivo, não-originário dos escritos de Orwell. Por conseguinte, vamos então olhar primeiro a resposta não-académica mundial ao centenário de Orwell.

A Royal Society of Chemistry leva a palma pelo tributo mais estranho, com a sua encomenda de um estudo sobre a realização da chávena de chá perfeita. Descobriu, para sua mágoa, que a receita de Orwell de 1946 estava errada. Continuando no tema das bebidas, Kyndal Spirits, a destilaria perto da residência que Orwell a determinada altura teve nas Hébridas, produziu uma edição limitada de malte chamada “Isle of Jura 1984”. Proliferaram mais manifestações de actividade comemorativa: o Festival Internacional de Livros de Edinburgo apresentou simpósios sobre Orwell, houve adaptações ao palco australianas de Animal Farm e de Nineteen Eighty-Four, anúncios de televisão como “George Orwell – A Life in Pictures” na BBC, e “The Real George Orwell” na ITV; a Radio Four in Britain até divulgou os ensaios e jornalismo de Orwell na sua rúbrica “Livro da Semana”. Outra marca, esta mais surpreendente, da persistência da presença de Orwell na mente do público foi esse sinal infalível de celebridade – escândalo na imprensa – embora, neste caso, se tratasse de uma respeitável publicação do tipo de The Guardian, que se fez tablóide, com manchetes de primeira página a gritar: “A Miúda de Blair: Terá o Amor por esta Mulher Transformado Orwell num Lacaio do Governo?” (21 de Junho de 2003). Na verdade, um estudo dos periódicos revela literalmente centenas de referências a Orwell nos meses que rodearam a data do centenário, constituindo o que um correspondente designou de “Blair-mania” e outro intitulou de “uma orgia de Orwell” (Sullivan). Para além da tradicional utilização de Nineteen Eighty-Four para lamentar as tendências totalitaristas da sociedade moderna, tecnologia de vigilância, e políticas governamentais como sejam o Patriot Act, dos EUA, bem como as invocações de Orwell em discussões de tudo, desde notícias New Labour até à nova política de Christopher Hitchens,3houve, claro, a questão da

infame lista de cripto-comunistas. Uma vaga de cartas acaloradas seguiu de imediato a sua publicação, defendendo “Orwell o santo secular” e condenando “Orwell o delator da polícia” em tons ainda mais acesos; mesmo Bernard Crick contribuiu, repreendendo o The Guardian pela sua lúbrica cobertura. Sobreviventes e descendentes das pessoas envolvidas escreveram para os jornais, manifestando as suas opiniões; seguiram-se trocas cáusticas entre os mais recentes biógrafos de Orwell, Scott Lucas e D. J. Taylor.

O surgimento de pelo menos três novas biografias (para não falar numa de Sonia Orwell, e da variedade de edições comemorativas) num único ano seria suficiente testemunho da difusão do fenómeno orwelliano, mesmo sem a controvérsia que o rodeou.4 Analisando as biografias em

publicações respeitáveis, académicos da estatura de Terry Eagleton, Stefan Collini, e John Carey

3 Carta ao The Ottawa Citizen de 22 de Julho de 2003.

4 As edições comemorativas do centenário são demasiado numerosas para listar aqui. As biografias incluem: The Girl from the Fiction Department: A Portrait of Sonia Orwell, de Hilary Spurling; George Orwell, de Gordon Bowker; Orwell, de D.J.Taylor; e Orwell, de Scott Lucas. Lucas também produziu uma diatribe anti-Orwell intitulada The Betrayal of Dissent: Beyond Orwell, Hitchens and the New American Century, que fez dele persona non grata junto de muitos estudiosos de Orwell.

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conseguiram na maior parte erguer-se acima da refrega, mas a própria existência de um colaborador do The Times Literary Supplement intitulado “the Orwell-bashing bandwagon” (Schweizer) foi suficiente para dissipar o equívoco de um qualquer “acontecimento académico” poeirento. Os autores que dependem dos programas escolares para a sua subsistência não provocam cartas ao editor indignadas na imprensa diária, nem fomentam debates acalorados entre intelectuais públicos nas páginas do The New Yorker (Louis Menaud) ou do The New Republic (Leon Wieseltier).

Juntamente com as acusações cáusticas e ad hominem, o fluxo de testemunhos hagiográficos não revelavam sinais de acalmar, com escritores como Margaret Atwood e Thomas Pynchon a continuarem a exprimir a sua adulação. A prática não se limitava de todo à cena anglofona. A escritora Isabelle Jarry publicou a homenagem, George Orwell: Cent Ans d’Anticipation, meio-ficção, meio-biografia, uma idealização xaroposamente exagerada do seu tema, que não faz a ligação original – no contexto da cansada discussão anglo-americana – entre as posições de Orwell sobre a linguagem e a batalha francesa contra anglicismes (55-6). Outro contributo comemorativo cheio de platitudes sobre o carácter honesto e íntegro de Orwell foi o ensaio de Arlen Bloom “Angliyskiy Pisatel” v Strane Bol’shevikov” [“Um Escritor Inglês no País dos Bolcheviques”] publicado na Zvezda – uma revista literária de São Petersburgo dirigida a um público educado mas não especialista. O autor foi pura e simplesmente incapaz de resistir a introduzir clichés gastos naquilo que era no mais uma análise inovadora de fontes de arquivo anteriormente desconhecidas relativas à recepção soviética de e interacção com Orwell a partir da década de 1930.

Deixar para trás periódicos de massas e outras produções mediáticas dirigidas a um público geral para nos concentrarmos em publicações mais profissionais apenas altera o campo das batalhas que foram travadas, muda o enfoque da difamação ou reabilitação do carácter de Orwell para o uso e abuso dos seus escritos e conceitos como instrumentos em debates académicos. Orwell é o padrão, abaixo do qual ou contra o qual os críticos se lançam na guerra. Quando Raymond Williams observou que “Na Grã-Bretanha dos anos 50, ao longo de qualquer estrada que percorramos, a figura de Orwell parece estar à espera”, estava a exprimir não apenas a sua frustração profissional ao descobrir que Orwell antecipara o seu “novo tipo de análise cultural”, mas também a sua rejeição do que percebia ser o estatuto institucional de Orwell bem como a sua personificação da opinião ortodoxa (citado em Marks 88). Muitos desde então, e Scott Lucas mais recentemente, têm ecoado a condenação de Williams. São os iconoclastas – quebrando a imagem de veneração de cada vez que alguém como Christopher Hitchens ou Simon Schama em A History of Britain reverencia Orwell. No entanto, os contributos do volume de Cushman & Rodden mostram que pelo menos alguns críticos são suficientemente conscientes de si mesmos para atacarem a questão “hagiografia vs iconoclasma” de frente.

É um lugar-comum que Orwell tem sido reclamado (e negado) como a luz orientadora de quase todas as doutrinas políticas existentes, desde o velho Labour até ao neo-liberalismo, mas em lado nenhum é o seu lado icónico mais evidente do que na utilização que dele é feita como figura de proa na batalha contra o pós-modernismo académico. O paradoxo esta apropriação específica é que confunde mau estilo com má filosofia precisamente da mesma forma que a famosa “fusão da sua aversão por prosa rançida, floreada com a sua aversão por” evasão e insinceridade política (Menand). Orwell o inimigo de linguagem ofuscante é uma visão familiar: o manual de estilo do The Economist exorta os seus escritores a seguir as regras estabelecidas em “Politics and the English Language” (“Blair-mania”); proliferam avisos sobre o jargão “Orwelliano” de departamentos

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governamentais ou o corrupto “business-speak” de anúncios a universidades. Mais tarde ou mais cedo, era inevitável que Orwell fosse associado à causa do jargão anti-académico. Mas está mais em jogo aqui do que meras práticas de escrita. Orwell representa um lado das barricadas num verdadeiro choque de cosmovisões, ou, pelo menos, é assim que os seus participantes gostam de pintar a situação.

O advento do pós-modernismo, estes comentadores observam, resultou num estado de coisas que se assemelha bastante à de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro:

The spread of postmodernist rhetoric, with its pretended skepticism about everything, its attempt to reduce all reality to a “text,” and its wild claims about the instability and self-referentiality of language …. uncannily recall[s] Orwell’s description of Ingsoc, with its denial of objective reality and embrace of an eternally mutable past. (Cushman & Rodden 2004)

Essa é a recente convicção de Daphne Patai, mais conhecida como a mais cáustica crítica feminista de Orwell.

The destruction of the past, or rather of the social mechanisms that link one’s contemporary experience to that of earlier generations, is one of the most characteristic and eerie phenomena of the late twentieth century. Most young men and women at the century’s end grow up in a sort of permanent present lacking any organic relation to the public past of the times they live in. (Hobsbawm 1994: 3)

Estas são palavras de Eric Hobsbawm na Introdução à sua história do século XX, The Age of Extremes, e encontram eco em todos os lamentos sobre o pesado Orwelliano de “twenty-four-hour context-free cable TV driveling amnesia” (Cushman & Rodden 61). No artigo “Orwell, the Lysenko Affair, and the Politics of Social Construction”, publicado no mesma Partisan Review para a qual Orwell contribuiu mais de sessenta anos antes, Gorman Beauchamp desenvolve o argumento mais ainda: o “pioneiro na atitude posmodernista para com o facto – para com objectividade, racionalidade, universalidade, as quais são todas denegridas, se não mesmo negadas – é o Camarada O’Brien de Orwell” (2). Se não o próprio Orwell, então pelo menos a sua personagem tem a honra de inaugurar um paradigma cultural. O pósmodernismo, pelos vistos, é o descendente directo das adulterações totalitaristas com a história e com a ciência que preocuparam Orwell mais do que bombas e às quais dedicou a sua obra mais famosa. A conclusão lógica desta linha de pensamento é afirmada claramente: “qualquer cosmovisão que consegue conciliar a realidade com a ideologia, que consegue “desaparecer” factos como lhe apetece, que consegue subverter o próprio conceito de verdade objectiva claramente serviria as necessidades dos autoritários” (10). Os alvos especiais de Beauchamp são os construcionistas sociais que infestam o campo da sociobiologia, que interferem com as tentativas de determinar o papel dos genes na criminalidade, por exemplo, em virtude de uma fé mal orientada na construção cultural de tudo. O seu método de argumentação científica por calúnia política e tentativa de silenciamento é demasiado reminiscente da destruição da genética soviética feita por Lysenko para o gosto de Beauchamp, mas o que ainda mais o intriga é “porquê esta ideologia específica, facto-fóbica e ultra-esotérica, se tornou o substituto de activismo oara os académicos radicais” (9).

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Esta é efectivamente o centro da questão para a maior parte dos críiticos. Diz-se que a derrota política da Esquerda com a qual Terry Eagleton abre The Illusions of Postmodernism, e James Miller começa o seu artigo “Is Bad Writing Necessary? George Orwell, Theodor Adorno and the Politics of Language”, teve necessidade da fuga para um esquerdismo filosófico substituto. Como confirma Beauchamp, a ligação que Orwell faz de “autoritarismo esquerdóide com relativismo epistemológico e axiológico... previu com exactidão o advento do pós-modernismo actual, que postula ligações entre a negação da verdade objectiva e radicalismo político” (8). Mas a ligação – a existir – é inversa, mantêm os paladinos de Orwell; radicalismo e a negação da verdade objectiva são incompatíveis. Uma escrita opaca, carregada de jargão nos estudos literários, o tratamento do passado como uma compilação de textos ficcionais na história, e o pendor anti-empirista geral das disciplinas suaves podem passar por postulados radicais na torre de marfim da academia, mas não tem relevância prática fora dela. Este é o argumento. Embora polemizando os méritos opostos do empirismo e do discurso comum e as implicações autoritárias do construcionismo social e do jargão rebuscado, o campo de Orwell trata a escrita impenetrável e o idealismo Berkleyiano extremo como se fossem permutáveis. Mesmo Eagleton, quando adverte os pós-modernistas para não deitarem fora o bebé político com a água linguística, equaciona os dois:

Every paid-up Postmodernist knows how to laugh this doctrine [Orwell’s naïve theory of language] to scorn; it is just that most of them disastrously throw out Orwell’s politics of lucidity along with it. His Enlightenment conflation of truth, language, clarity and moral integrity may have involved some questionable epistemology, but politically speaking it is worth a lot more than the work of those whose contribution to the subversion of Western Reason is to write unintelligibly. Orwell thought that the Spanish Civil War provided evidence that the concept of objective truth was falling out of fashion. It has fallen a good deal further since then, not least among the intellectuals who are supposed to be its custodians. (Eagleton 2003: 7-8)

Esta, detalhadamente, é a perspectiva daqueles que ergueram a sua tenda à sombra da bandeira de Orwell, tendo os seus opositores escolhido Theodor Adorno – outro suposto fundador dos estudos culturais – como seu santo padroeiro.5Neste contexto, não é por acaso que a mesma

revista Philosophy and Literature que atribui prémios de Má Escrita aos fãs de Adorno como Judith Butler publique um ensaio excepcionalmente claro e directo sobre Orwell que defende uma apreciação tradicional de Nineteen Eighty-Four como literatura (Posner).

Nada nos escritos de Orwell, claro, nem sequer os seus mais cáusticos ataques ao “relativismo” induzido pelo Partido de intelectuais de Esquerda, sugere que tenha inventado ou mesmo previsto o pós-modernismo e a oposição a este. Mas um público institucional particular insiste em reclamá-lo como profeta do primeiro e, similarmente, como líder espiritual da segunda. São eles, não ele, que fazem a ligação entre reescritas ideológicas da história e da ciência nazis e soviéticas (ou de inspiração soviética) e as práticas dos académicos ocidentais de hoje, e extrapolam consequências totalitárias deste facto. Que ambas as actividades são exemplos flagrantes da falácia do tipo “se Orwell aqui estivesse hoje pensaria como eu”, foge à sua atenção. Mas o trabalho de John Rodden sobre o processo de formação da reputação permite que nós vejamos esta adaptação específica dos conceitos de Orwell como mais uma face na sua galeria de retratos, ao lado da do homem comum

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ou do rebelde, embora distorcida de forma diferente. Que os escritos de Orwell, com selecção e interpretação adequadas, possam servir como arma de eleição na crusada anti-pós-modernista confirma o seu valor instrumental mais do que fundacional. Também constituem a matéria-prima para este tipo de crítico mais preocupado com a política britânica moderna, que trata de pendurar a sua, discutivelmente mais fiel, versão de Orwell na parede.

Num artigo bastante estranho para The Spectator de 21 de Junho de 2003, um correspondente descreve o seu deambular por Kentish Town, em Londres, onde Orwell viveu na década de 1930, e onde presumivelmente colocou o bairro proletário de Nineteen Eighty-Four. O resultado é que “o último pedaço livre da Grã-Bretanha” desapareceu, a velha comunidade de trabalhadores desinte-grou-se sob a dupla pressão do estado e do mercado (Mount 28). Embora errante, incoerente e evidentemente conservador, o artigo toca de facto numa questão que é explorada em muito mais detalhe e conferida de muito mais sérias implicações em Narratives of British Socialism, de Stephen Ingle. Desenvolvendo o pensamento exposto numa série dos seus anteriores livros e ensaios, Ingle define “Orwellismo” como “a crença nos valores das pessoas vulgares”: a força motriz por detrás da concepção de socialismo de Orwell (51). Que o seu socialismo era ético mais do que teórico é um axioma aceite pela maioria dos admiradores e críticos de Orwell,6mas Ingle torna-o central à sua

explicação do declínio do Old Labour e da sua base de classe trabalhadora. As comunidades mineiras dos tempos de Orwell, nas quais baseou o seu mito de uma moralidade decente e equalitária, foram em primeiro lugar minadas pela afluência, por crescentes oportunidades sociais, e por provisões do estado beneficência dos anos do pós-guerra, e acabadas pelo Tatcherismo. A maré de consumismo corroeu a coesão das redes sociais tribais; o neo-liberalismo quebrou o sistema de valores comunitário, e varreu os últimos vestígios de esperança. Dependendo para a sua existência da própria adversidade económica que o socialismo se propunha ultrapassar, a comunidade de trabalhadores não podia sobreviver a esta investida do “progresso”. E a implosão dos valores Orwellianos no seu território central teve paralelo no abandono do socialismo e da política visionária do primeiro Labour.

Embora alguns aspectos da discussão de Ingle sejam discutíveis, na sua maior parte esta apropriação específica de Orwell tem uma base sólida nos seus escritos – quer sejam sobre o conflito de utopias consumistas e irmandade humana socialista, as amplamente conhecidas evocações da família de classe trabalhadora ideal, a questão de saber se a impotência é um pre-requisito da decência da classe trabalhadora, ou as secções de The Road to Wigan Pier que descrevem os luxos baratos e os paliativos que garantiram a passividade dos mineiros. O mesmo não pode ser dito das cansadas utilizações a que os clichés políticos “Orwellianos” continuam a ser postas por autores como Hitchens, que, na sua Introdução de 2003 à nova edição de Animal Farm e Nineteen Eighty-Four mais uma vez invocou o espectro Orwelliano do totalitarismo no Iraque, de uma maneira santificada pelos combatentes da Guerra Fria. Hitchens, em certo sentido, é um alvo fácil. No que toca a reavaliações, Orwell’s Politics, de John Newsinger, uma monografia erudita publicada três anos antes de Orwell’s Victory,7é significativamente mais substancial, antecipando

a discussão de Hitchens da Lista e os duplos padrões de Raymond Williams, e explorando a ligação americana de Orwell com incomparavelmente mais destreza e capacidade de persuasão. Mas, claro,

6 Cf. English Ethical Socialism, de Dennis & Halsey, por exemplo. 7 Intitulado Why Orwell Matters nos EUA.

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as aplicações mais bem sucedidas do legado de Orwell a preocupações actuais são precisamente aquelas que tratam com questões às quais o próprio Orwell respondeu. Quando Newsinger ironicamente observa que “confrontado com o fenómeno de New Labour, ele teria considerado a sua mudança de nome de Blair para Orwell como surpreendente clarividência,” tem um minucioso exame da relação de Orwell com o partido Trabalhista da década de 1940 para sustentar a sua posição. De igual forma, o enquadramento que Ingle faz do declínio do socialismo na Grã-Bretanha moderna em termos da dissolução dos valores de classe trabalhadora Orwellianos, quer seja correcto ou não em si mesmo, é pelo menos baseada no próprio pensamento de Orwell, de uma forma que as mais fantasiosas aplicações dos seus escritos, como a polémica de Jonathan Rose sobre a recente atitude americana ao assédio sexual, não são.8

Num livro publicado na série “Transitions” em 2003, John Brannigan adverte: “we need to be cautious of the extent to which Orwell is constructed as the founding figure, or progenitor, of specific lines of literary and political descent” (3). Ainda que seja verdade que a sua influência em, por exemplo, Membros de Parlamento Trabalhistas mais velhos, os escritores do Movimento, e os Angry Young Men da década de 1950 tenha sido documentada, nenhum dos debates modernos ou discursos considerados aqui devem a sua existência a Orwell, embora todos façam uso dos seus conceitos como ferramentas ou munição, com graus diferentes de fidelidade à fonte. É este processo que merece estudo crítico, e após cem anos de Orwell a teoria da recepção de John Rodden é a única coisa por aí que pode pôr em perspectiva reacções e interpretações tão diferentes como as de Ingle e as de Beauchamp, como parte de uma meta-narrativa global de reputação.

Tradução de Isabel Canhoto

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