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Nas raízes da memória: entrevista com o poeta Manoel de Barros, em 21 de setembro de

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Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, n. 24, p. 56-60, jan./jun. 2017.

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Nas raízes da memória: entrevista

com o poeta Manoel de Barros, em

21 de setembro de 2006

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In the roots of memory: interview with the poet Manoel de Barros, on September 21, 2006

Francesca DEGLI ATTI2 Kelcilene GRÁCIA-RODRIGUES 3 Rauer Ribeiro RODRIGUES 4

O sol em Campo Grande estava ameno na tarde de 21 de setembro de 2006. Estudiosos da poesia de Manoel de Barros, agendáramos um encontro com o poeta há dez dias. “Sem gravador”, ele nos avisa assim que chegamos, no ritual de entrevistas anteriores.5 Sentamo-nos nas poltronas da sala repleta de objetos de arte e o poeta, miudamente enrodilhado em uma manta, acomoda-se no sofá. A cada observação, pergunta ou provocação, Barros mergulha nas raízes de sua memória, buscando na infância remota, entre tuiuiús e corixos, palavras límpidas que fazem da conversação instantes de poesia que resplendem à réstia de sol.

Anotamos ideias e frases em que fulguram as obsessões do poeta e repontam as lições de autores que informam a sua poética. No ar coagulado, passeiam as vogais de Rimbaud, a sonoridade de Mallarmé, a tropelia de Riobaldo e Diadorim. As letras e as sílabas copulam sob o bigode de Barros. Da fonte imemorial da memória, o palimpsesto da escritura poética torna-se caos revivido, reordenado em cosmos nas palavras do poeta. Parece haver um estatuto da imobilidade e ancestralidade que define o valor das coisas e seres na poesia de

1 Entrevista publicada originalmente na coletânea Nas trilhas de Barros: Rastros de Manoel. Campo Grande:

Editora UFMS, 2009. p. 161-166. O livro é composto por uma série de artigos que focalizam, em diversas perspectivas, a poesia de Manoel de Barros.

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Università del Salento – UNISALENTO. Facoltá di Lettere e Filosofia, Lingue e Beni Culturali. Lecce – Itália. CP: 73100. E-mail: fdegliatti@yahoo.it

3 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Três Lagoas – MS – Brasil. CEP: 79603-011. E-mail:

kelcilenegracia@gmail.com

4

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Corumbá – MS – Brasil. CEP: 79304-290. E-mail: rauer.rodrigues@ufms.br

5 Kelcilene mantém contatos e entrevistas com o poeta desde 1997, quando de seu mestrado; Rauer, desde 2003,

sempre acompanhando Kelcilene; Francesca faz seu primeiro contato pessoal com Manoel de Barros, mas – da leitura de suas obras – sente como se reencontrasse um velho amigo com quem sempre proseia, à proa de uma chalana, observando o pôr-do-sol na imensidão pantaneira, contemplando no horizonte o perfil, imponente e majestoso, dos carandás.

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57 Manoel de Barros. Conviver com o poeta no dia a dia nos coloca tais aspectos como determinantes da ordenação do universo.

Re-evocamos, das raízes de nossa memória, a magia do encontro. Aqui e ali, detalhes nos assoberbam; lá e cá, lacunas, corixos na vazante, fios tênues que escapam. Não nos lembramos do que perguntamos, mas a claridade da fala do poeta ainda nos ilumina e preenche o teor do encontro. Barros, empolgado, discorre sobre a sua própria poesia, sobre o seu fazer poético, sobre as influências que o marcaram, sobre o relacionamento com outros escritores. Fala de si, da sua infância, das viagens ao exterior, do casamento com Stella, dos filhos, dos livros que escreveu e dos que pretende escrever. O marcante teor das respostas contrasta com a figura frágil do poeta, caramujo de si mesmo sob a manta xadrez.

Significados espocam e se aliam aos sinuosos significantes erigidos em linha reta na planura sem régua da memória do poeta. Palavras... Signos de si mesmas, presenças vivas do que aqui é memória pálida, fotografia pré-rupestre sem-sabor na sabedoria saborosa que sobeja das vozes de Manoel – tal é o encanto que delas evola. Nesse reencontro, Barros nos recebe com a simpatia e a humildade que o caracteriza, responde a todas as perguntas que lhe fazemos, autografa e dedica os livros que lhe apresentamos, deixa-se fotografar e descreve o seu processo de trabalho – e, como quem visita um altar, nos mostra o escritório no qual, toda manhã, tateia suas palavras fontanas, vocábulos prenhes de poesia que, em letra miúda, se entregam a ele para o gozo poético.

Informado sobre um trabalho que está sendo desenvolvido em Corumbá para reedição das obras de Lobivar Matos,6 Barros fica muito feliz com a notícia, discorre sobre o seu relacionamento com Matos e, com o auxílio de Stella, nos dá várias informações sobre os herdeiros e sucessores do autor de Sarobá. Conta-nos, ainda, de como vieram ter às suas mãos – logo após o falecimento, em 1947, do escritor corumbaense – os originais de um livro de contos, ainda inédito, de Lobivar Matos7, e de como esses originais lhe foram levados (com a promessa, ainda não cumprida, de breve devolução) por um visitante, um professor, que o poeta, certo dia, há muitos anos, recebeu em sua casa.

A primeira pergunta que fizemos é óbvia, repetida ad nausam: Como se dá o processo de criação de sua poesia? A resposta é rimbaudiana, “Não sei o que é imaginação ao escrever um poema; a poesia não é imaginação, é manipulação da palavra”; e – perdidos – os ecos das reflexões do poeta nos ficam na memória. O Pantanal está, mas não é. As palavras, mansas, desbordam em fonte: o poeta da memória – invisível teleprompter – como que lê. Nós o ouvimos e o vemos.

O localismo, ancestral e perene regionalidade, em contraponto ao cosmopolita, mas não ao universal, toma conta do nosso diálogo. O poeta, no ritmo das águas pantaneiras, sem pressa, escoa: “A palavra em minha poesia não é o retrato do Pantanal. A palavra poética em minhas poesias é pura invenção, e é fertilizada pelas águas, pelo chão, pelos gorjeios dos pássaros: tudo o que vivi e senti na minha infância. Aliás, tive uma meninice pobre e regada pela solidão. No meu insular, meus pais sempre ao pé, mas o vazio sem eco entre as fazendas do Pantanal. É. Naquela época, as famílias moravam muito longe uma das outras. Isso impossibilitava reuniões. O que restava era inventar.”

6 Quando realizamos a entrevista, até junho de 2008, esse projeto ainda não se concretizara. No final de 2009,

sob curadoria de Susylene Dias de Araújo, foi lançada, pela Editora UFMS, em volume único, a edição fac-similar das obras Areôtorare e Sarobá, de Lobivar Matos.

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58 Barros perde o olhar na imensidão de si mesmo. “Minha poesia tem muito desse abandono das distâncias. A minha palavra é abandonada e carrega resquícios da infância.” O menino, Nequinho, suspira; e o poeta, grisalho, sorri na lembrança: “Aristóteles já dizia que o melhor conhecimento que o homem tem e carrega para si é o das primeiras percepções. O olhar a primeira vez, a sensação da primeira vez. Isso é que é verdadeiro e é o que o homem carrega para a eternidade. A minha poesia focaliza esse olhar, é a ele que dá mais valor.”

Na sala acolhedora, os entrevistadores se entreolham. Onde as palavras que nos acudam? E um de nós, a voz tímida após consultar anotações prévias: – O senhor tem um leitor ideal? O poeta nem pestaneja: “Quando escrevo poesia não tenho em mente um leitor ideal. Escrevo para poucos. Recebo muitas cartas de mulheres que são sensíveis às minhas poesias. Recebo também de muitas crianças, que igualmente conseguem captar a minha poesia. Já os homens – é o que me parece – não conseguem entender a minha poesia; mas alguns me escrevem. Acho que aquele que lê a poesia pela razão não é capaz de entendê-la. Com a razão não se lê poesia.”

Manoel cicia. Bemóis e sustenidos flutuam na poalha. As palavras do poeta entregam-se a nós como entregam-se nossas fosentregam-sem. O entregam-sentimento da poesia está no poeta. Cria-entregam-se um poema em

isolamento. A timidez integra o pathos do poeta diante do mundo. Criar um poema é trabalho árduo com a palavra. A palavra é um punhal que brilha ao sol: rasga e fere. A palavra é fruto, é flor, é tudo – e se abre para o mundo quando dilacera as vísceras do poeta. Uma

percepção vaga é uma metáfora complexa. Viver é treino de poesia, há que se achar a torneira do poético. Poesia é o encontro com o primordial, e o primordial tem primazia. Os achadouros do poético estão no próprio ser, todos os tempos da vida sendo bens de raiz. O poeta gera em si a poesia.

Estáticos, no êxtase, acompanhamos o menino Manoel falar em Barros:

A minha poesia é sangue. Para que surja e tome forma poética em uma página de papel em branco, a palavra me dilacera. Depois, justamente por tudo o que passei para escrever, não quero revisar o que fiz. Talvez isso possa explicar a minha obsessão em retornar muitos dos meus versos ao longo da minha obra. Em O livro das ignorãças eu digo isso:

Repetir repetir – até ficar diferente Repetir é um dom do estilo.

Justamente por sentir muita dor e passar por muito sofrimento para construir o poema, para que ele alcance a precisa forma, é que recorro muitas vezes a um determinado verso já escritor anteriormente. Ele deve ter lancetado muito quanto o escrevi, de tal forma que volto a ele. Na verdade, acredito que ao “re-ver” o verso, o poema, eu o esmero para conseguir a exatidão da palavra.

Perguntamos se tem alguma publicação em vista. Barros informa que escreve poemas das Memórias inventadas – A Terceira Infância. Para o poeta, tudo surgiu da editora: “O editor, que é muito meu amigo, sugeriu que eu escrevesse sobre a infância, a adolescência e a velhice. Como posso falar sobre a velhice se só tenho infância?8 É só sobre a infância que

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59 posso falar. Eu já tenho oito poemas prontos. Quando eu tiver quinze ou dezesseis, entrego o livro para a editora.”

Feliz, confirma que recebeu proposta para publicar um volume com toda a sua poesia. “Inclusive”, diz o poeta, “já conversei com as editoras que publicaram os meus livros infantis, se havia alguma problema em inseri-los na obra completa. Elas disseram que não.” Lembra-se também que o professor Adalberto Müller, da Universidade de Brasília, reuniu as entrevistas que ele, Barros, concedeu ao longo do tempo e que esse livro pode ser lançado em breve9.

Quanto a estudos sobre a sua obra, confessa que fica feliz em se saber lido. Recebe em média um trabalho por mês e guarda-o com carinho. Algumas teses de que teve notícia, não recebeu cópia. Lembra-se de haver recebido, nos últimos tempos, pesquisas feitas em Mato Grosso, Rio de Janeiro e na Sorbonne, e agora descobre uma sendo desenvolvida na Itália. Quanto às traduções, lembra-se de ter livros publicados em Catalão e em Alemão. “Quem traduziu para o alemão O livro das ignorãcas foi Curt Meyer-Clason, o mesmo tradutor de Rosa. Eu tenho mais de vinte cartas trocadas com o Clason, de quando ele traduziu o meu livro.”

Perguntamos sobre o propalado encontro, no Pantanal, entre ele e Guimarães Rosa. Confrontamos as datas das versões sobre o fato com os dados indubitáveis das biografias de Barros e de Rosa e concluímos que o encontro é mítico, nunca se deu. Diante da conclusão inevitável, o poeta sorri: “– Isso é biográfico, não importa; minhas memórias são inventadas; o que vale é a poesia, é a invenção; tudo o que não invento é falso.”

Faz uma pausa rápida e, contrafeito, propõe: “– Vamos mudar de assunto?”

De imediato, caramujo lépido, nos convida ao seu gabinete. A oficina de poesia do bugre velho cabeludinho fica no segundo piso. Uma janela ampla se abre sobre os telhados da cidade e o céu azul emoldura uma tarde inusitadamente fresca. Em um recipiente, diversos lápis apontados esperam a mão do poeta. Barros nos mostra as muitas prateleiras com dicionários: neles, procura o verbo sem impurezas, o sema sem o limo do tempo, o vocábulo exato, o manoelês arcaico, o beija-flor de rodas vermelhas, a mais lírica nudez da palavra, a fonte primordial da expressão poética.

Despedimo-nos. Saímos pelas ruas de Campo Grande. Estamos impregnados da voz do poeta, e em nossas roupas carregamos tudo o que, despojo, é matéria de poesia. Se, em

Poemas concebidos sem pecado (1937), Manoel de Barros surge em versos prosaicos – nos

quais lampejam ao fundo a complexidade metafórica e um cosmos linguístico inusitado, de imagens antitéticas cujo surrealismo se firma sobre uma base referencial e de linguagem que aspira à normalidade –, na infância das Memórias inventadas (2003, 2006; ...)10 o poeta retoma, em prosa poética, a temática da infância, refundindo como imaginária a narrativa que o senso comum define como de fatos biográficos objetivamente históricos.

A memória faz a obra do poeta.

9 Adalberto Müller, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), organizou e publicou Manoel de

Barros: Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2010.

10 Manoel de Barros publicou os livros Memórias inventadas: A infância (2003), Memórias inventadas: A

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60 Nesta entrevista, encontramos no achadouro – bem de raiz, fontano – o homem e, nas raízes da memória do homem, encontramos o poeta, raiz do ser, memória do primordial primaz e ancestral. E agora, ele, Barros feito Nequinho feito Manoel, homem e poeta, invenção e poesia, é memória que – liana, lhano, liame – nos faz.

Recebido em 01/06/2017 Aprovado em 19/06/2017

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