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Conteúdos Específico determinismo, liberdade, condicionantes da ação, livre arbítrio

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II — A AÇÃO HUMANA E OS VALORES

1. A ação humana: análise e compreensão do agir

1.2. Determinismo e liberdade na ação humana. Reflexão sobre o problema mais abrangente do determinismo e liberdade na ação: reconhecendo as condicionantes físico-biológicas e histórico-culturais; reconhecendo a ação como um campo de possibilidades-espaço para a liberdade do agente.

Conteúdo Estruturante – Filosofia da Ação

Conteúdos Específico – determinismo, liberdade, condicionantes da ação, livre arbítrio

Psycho, de Alfred Hitchcock (1889-1980), começa colocando, desde logo, os espectadores no lugar de voyeuristas. Somos introduzidos num quarto de hotel onde encontramos Marion Crane/Janet Leigh e Sam Loomis/John Gavin que, depois de fazerem amor, discutem sobre o dinheiro e a sua falta, o que os impede de concretizarem os seus projetos.

Quer Marion, quer Sam, estão presos a uma vida que não querem e a identidades que rejeitam. Este é o pano de fundo do diálogo que trocam por trás das persianas do quarto. As persianas são um dispositivo cénico que expressa a ideia de se estar preso a determinadas circunstâncias.

Depois deste encontro, quando Marion volta à imobiliária onde trabalha, são-lhe entregues 40 000 dólares para depositar no banco, dinheiro esse pago por um cliente, Mr. Cassidy/Frank Albertson pela compra de uma casa como prenda de casamento

Psycho (1960)

Realização │ Alfred Hitchcock │ Argumento │ Joseph Stefano, adaptado de um romance de Robert Bloch │ Fotografia │ John L. Russell Montagem │ George Tomasini │ Música │ Bernard Herrmann │ Produção │ Alfred Hitchcock (Paramount, EUA, 1960) │ Intérpretes │ Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam, John McIntire, Simon Oakland, Frank Albertson, Lurene Tuttle, Patricia Hitchcock, Vaugh Taylor… │ 109 minutos │ EUA │ P/B

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para a sua filha. Vemos, aqui que o tema central ainda é o dinheiro e o facto de, segundo Mr. Cassidy, o dinheiro ser o meio para que a infelicidade desapareça.

«Mr. Cassidy – Sabe o que faço à infelicidade? Pago para que se vá. A menina é infeliz?

Marion Crane – Não particularmente.

Mr. Cassidy – Vou comprar esta casa para o casamento da minha filhinha. 40 000 dólares em dinheiro. Isto não é comprar felicidade, é pagar à infelicidade para que se vá.»1

Mr. Cassidy é uma personagem irritante e o instrumento perfeito para nos fazer ficar do lado de Marion. É ele que lhe dá um motivo, uma razão para agir de determinado modo, predispondo Marion para um impulso irresistível: o desejo de roubar. Ela parece determinada a roubar não tanto pelo valor efetivo da soma em causa, mas mais pelo seu poder mágico de afastar a infelicidade.

Colmatado o desejo de roubar, já no quarto da casa onde mora com a irmã, é-nos dado um grande plano do dinheiro2 e surge uma Marion Crane decidida. Em contraste

com a cena inicial, onde aparecera de lingerie branca ela surge, agora, de lingerie preta. Marca do pecado cometido? Marca da fraqueza de ter cedido ao desejo? Ou, como defende Philip Tallon3 um sinal de abrupta transformação da personagem?

Em fuga, Marion Crane parece incapaz de julgar e de escolher. Fascinada, deixa-se levar pelo absurdo do deixa-seu ato.

A viagem que Marion Crane leva a cabo surge marcada por sinais que nos fazem temer por ela: o patrão vê-a parada num semáforo; é envolvida pela escuridão da estrada; depois, por contraste, é a claridade intensa provocada pelos faróis dos carros que fere os seus olhos; mais tarde, a chuva torrencial, o para-brisas em movimentos ritmados, e até o aparecimento de um polícia inquisitivo. São muitos os sinais de que

1 Alfred Hitchcock, Psycho, 1960.

2 Este plano do dinheiro é um Mac Guffin, termo que Alfred Hitchcock utilizou, embora não o tivesse inventado, para designar os pormenores do enredo que constituem armadilhas narrativas e que servem para orientar o espectador numa falsa solução ou orientação da intriga.

3 cf. Philip Tallon in David Baggett e William Drumin (org.), A Filosofia segundo Hitchcock, Lisboa: Estrela Polar, 2008, p.71.

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algo muito grave irá acontecer, como se nos dissessem que o que começa mal tarde ou nunca se endireita.

É nesta sequência da fuga de Marion que a música de Hermann entra pela primeira vez depois do genérico. A música cria um desconfortável clima de perigo, exercendo uma função próxima da função do coro da tragédia grega: antecipa o mal que está para acontecer.4

Perdida, no pleno sentido do termo, Marion vê-se condicionada a parar num motel – Motel Bates – que, por acaso, encontra na estrada.5 O motel propriamente

dito é uma estrutura sem grande interesse arquitetónico que se ergue próximo de uma mansão de inspiração gótica6.

A câmara apresenta-nos a mansão gótica de Psycho filmada em contrapicado, o que aumenta, ainda mais, o impacto desconfortável que a mansão tem no espectador. É uma imagem intrigante e, praticamente, uma citação de uma cena de Vertigo (1958). Uma luz acende-se e vislumbramos um vulto à janela. Como em Vertigo, a mulher que se vê à janela não existe realmente.

Só, então, quando já passaram 27 minutos e 53 segundos de filme, é que entra em cena Norman Bates/Anthony Perkins, que virá assumir o papel de protagonista. Este é um homem só, aparentemente inocente, indefeso, tímido, simpático, que se apresenta a tremer, soltando “risinhos” e gaguejando. Mais tarde, iremos perceber que também se caracteriza por uma ambiguidade sexual: se é homossexual, também se sente atraído pela figura feminina, sentimento que desencadeia nele a culpa.

Norman recebe Marion, instala-a no quarto ao lado do seu escritório e convida-a para jantar. De seguida, sobe até à casa onde mora com a mãe e Marion ouve uma violenta discussão entre “Mrs Bates” e o seu filho. Esta tenta impedi-lo de estar com Marion. Norman não cede à vontade da mãe. Uma vez mais, Hitchcock dá-nos uma

4 Esta fuga é uma das mais longas sequências mudas de Psycho, que revela o fascínio de Hitchcock pela ideia de contar uma história pictoricamente. Esta cena, tal como, ainda, neste filme, a cena da banheira, quando Marion Crane é morta ou, por exemplo, em North by Northwest a cena de perseguição e ataque de um avião a Cary Grant são cenas sem palavras, desenhadas, filmadas e montadas com a máxima precisão e rigor, que resultam profundamente perturbadoras.

5 Hitchcock interessa-se pelo acaso porque este reflete a sua crença de que o mundo é indiferente aos nossos projetos e ao nosso sofrimento. Somos vítimas do acaso e escapamos por acaso, afirma Hitchcock numa entrevista que consta do documentário de Richard Schickel.

6 Parece-nos evidente que a estrutura arquitetónica do motel simboliza a nova América e a mansão uma América do passado que está a desaparecer.

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imagem do dinheiro e nós, incautos, continuamos a acreditar que o que quer que vá acontecer se prende com o dinheiro roubado.

Enquanto come, numa sala decorada com a morte (aves empalhadas pelo próprio Norman, que é taxidermista), Marion toma contacto com a vida daquele homem aparentemente inofensivo. Falam do que os aprisiona, das tentativas de fuga e da impossibilidade de fugir, como acontece com as aves embalsamadas que estão de asas abertas mas não conseguem voar. A conversa que mantêm é mais um sinal de que a fuga de Marion não será bem sucedida.

«Marion – Estou em busca de uma ilha privada. Bates – De que anda a fugir?

Marion – Porque pergunta isso?

Bates – Não sei. As pessoas nunca conseguem fugir de nada (…) Acho que estamos todos presos em armadilhas individuais, entalados nelas e ninguém consegue escapar. Arranhamos e esgravatamos mas só no ar, e uns aos outros. E por muito que o façamos nunca nos desprendemos nem um milímetro.»7

Norman Bates defende aqui uma tese determinista da existência e da ação humana que supõe a negação do livre arbítrio. Não podemos escolher ser livres e sair das nossas armadilhas, estamos determinados a viver as nossas prisões. Ao defender o determinismo, Bates defende que não é possível fazermos qualquer coisa diferente daquilo que de facto fazemos. As circunstâncias que existem, antes de agirmos, determinam as nossas ações e tornam-nas inevitáveis.

Nesta conversa, ouvimos ainda Norman dizer que o melhor amigo de um rapaz é a sua mãe mas que um filho não pode substituir um amante, revelando sinais muito evidentes de uma relação com a mãe que não se pauta pelos parâmetros da normalidade.

A desrazoabilidade da conversa com Norman acaba por devolver a consciência a Marion, trazendo-a à normalidade e levando-a a compreender que caíra numa armadilha. Decide, então, voltar e restituir o dinheiro, tentando, deste modo,

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quebrar a grade da prisão onde se colocara. Aqui Hitchcock permite-nos a ilusão de pensar que enquanto seres humanos somos dotados de livre arbítrio e que podemos ser construtores de nós próprios.

Quando Marion volta ao quarto, Norman não resiste a espiá-la. Norman exerce o seu poder sobre Marion, objetiva-a e torna-a o objeto secreto do seu desejo, um desejo incontrolável que, por instantes, o afasta da mãe.

Neste momento, somos cúmplices de Norman e com ele ocupamos o lugar do voyeurista.

Um extraordinário close up do olho de Norman, enchendo o ecrã, faz-nos sentir o poder do olhar. O voyeurismo é um tema recorrente na obra de Hitchcock. O voyeurista possui um olhar dominador e intruso, é aquele que pode ver sem ser visto; este olhar representa o poder de alguém sobre um outro.

O olhar de Norman Bates é um olhar nidificante e objectivante sobre o qual Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreve em L’être et le néant:

«Ainsi, être vu me constitue comme un être sans défense pour une liberté qui n’est ma liberté. C’est en ce sens que nous pouvons nous considérer comme des «éclaves», en tant que nous apparaissons à autrui. Mais, cet esclavage n’est pas le résultat – historique et susceptible d’être surmonté – d’une vie à la forme abstraite de la conscience. Je suis esclave dans la mesure oú je suis dépendant dans mon être au sein d’une liberté qui n’est pas la mienne et qui est la condition même de mon être. En tant que je suis object de valeurs que viennent me qualifier sans que je puisse agir sur cette qualification, ni même la connaître, je suis en esclavage. Du même coup, en tant que je suis l’instrument de possibilités qui ne sont pas mes possibilités, dont je ne fais qu’entrevoir la pure présence par-delá mon être, et qui nient ma transcendance pour me constituer un moyen vers des fins que j’ignore, je suis en danger. Et ce danger n’est pas un accident, mais la structure permanente de mon être-pour-autrui.»8

O olhar confere a Norman uma sensação de poder e essa sensação fá-lo voltar à mansão, lugar da mãe, do outro que o objetiva, decidido a fazer qualquer coisa,

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insinua subir as escadas, enfrentar a mãe (talvez para tentar libertar-se), mas perde a força e isola-se na cozinha, subjugado pela culpa.

A cena que se segue é a mais marcante cena do filme e, sem dúvida, uma das mais significativas sequências da história do cinema. Vemos Marion a tomar banho, ouvimos a água a correr, até que entra em cena a sombra de uma mulher que, progressivamente, ocupa o ecrã, secundarizando a protagonista. Neste momento, sublinhado com a música de Bernard Herrmann9 (com uma intensidade antes não

sentida), Marion é brutalmente assassinada com oito violentas facadas.

O que se passa no ecrã é pure film. A cena foi pensada e montada durante meses, sendo desenhada e filmada com a intenção de causar uma forte sensação no espectador.10

Marion cai e a câmara desenha um movimento que vai do corpo de Marion até ao ralo da banheira, por onde o sangue e a vida de Marion se esvaem; do ralo somos conduzidos para o olho de Marion e daí até ao dinheiro (e percebemos que este é um Mac Guffin).

A partir daí vemos Norman esconder todo e qualquer traço do crime cometido pela sua mãe. Coloca o cadáver e os seus pertences (também o dinheiro) na mala do carro e faz desaparecer tudo nas águas negras e paradas de um pântano. A cirúrgica limpeza é para nós desconfortante porque percebemos que nem agora Norman consegue fugir da sua prisão.

9 A inquietante partitura de Herrmann tornou-se num ícone das bandas sonoras dos filmes de

suspense, sobretudo as notas agudas, em meio tons cromáticos sobrepostos, com arcadas muito

marcadas do tema principal.

Alternando entre os ostinatos rítmicos marcados e as frases fluidas com harmonia dissonante o tema vai-se adensando criando a atmosfera tensa e dando um ritmo em que se alterna a tensão extrema com a expectativa. Ao recurso a acordes dissonantes vão-se somando alívios pontuais na tensão harmónica de modo a que o crescendo se vá fazendo de forma progressiva.

Foi o próprio Hitchcock que propôs ao compositor a utilização do recurso às notas mais agudas das cordas e o padrão rítmico muito marcado, ao que Herrmann soma uma melodia com violoncelos que faz contraponto aos violinos e que dá uma dimensão mais complexa a uma partitura já por si muito densa.

10 O cinema possui a capacidade de conduzir as sensações e o olhar do espectador através da montagem, luz, composição do plano, etc. e Hitchcock é mestre a desenhar cenas que causem a máxima sensação.

Alguns espectadores declararam, na altura da estreia do filme o quanto a cena os tinha aterrorizado, como relata Philip Tallon, in David Baggett e William Drumin (org.), A Filosofia segundo Hitchcock, Lisboa: Estrela Polar, 2008, p.74: «Uma anedota amplamente divulgada conta que um homem

escreveu a Hitchcock a dizer que, depois de ver Les Diaboliques, de 1955, a mulher se recusava a entrar na banheira e que, depois de Psycho, a mulher se recusava a tomar duche. Hitchcock enviou ao homem uma curta nota que dizia: “Mande-a para a lavandaria.”».

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As cenas que se seguem introduzem novas personagens: Lila Crane/Vera Miles, irmã de Marion, que tenta descobrir as razões do seu desaparecimento, e o Detetive Arbogast/Martim Balsam que procura o dinheiro. São as buscas de Arbogast que o levam até ao Motel Bates onde Norman vive cada vez mais isolado. Arbogast viola a mansão onde Bates vive com a mãe. É a primeira vez que entramos na casa sem ser a acompanhar Norman Bates e, por isso, sentimos que estamos a violar a privacidade de alguém. A violação da privacidade e o voyerismo merecem ser castigados e quando vimos o detetive a subir as escadas, sabemos que algo de mal vai acontecer e ‘Mrs Bates’ não hesita e executa mais um crime de modo brutal, mais uma vez, à facada.

Como Arbogast demora a dar notícias, cabe a Lila e Sam Loomis irem à procura de Marion. Decidem expor a situação ao Xerife da cidade. Nesta conversa, sabemos que Mrs Bates morreu há vários anos, tal como o padrasto de Norman. O espectador percebe que algo de muito absurdo se passa.

Segue-se a vez de Lila e Sam entrarem no mundo de Norman Bates. O objetivo é saber quem é a mulher que vive com Norman e se ela tem informações da irmã. Perante esta dupla, Norman sente-se ameaçado. Serão Sam e Lila a descobrir que na mansão apenas existe ele e que a mãe não é senão um outro de si mesmo. A explicação é-nos dada, já em sede do tribunal distrital, por um psiquiatra que fala com Norman, ou melhor, com a mãe:

«Lila – Ele matou a minha irmã?

Psiquiatra – Sim e não. (…) Para compreender o caso como eu o compreendi, pelas palavras da mãe – ou seja, através da metade “materna” da mente de Norman, temos de voltar atrás 10 anos, quando o Norman matou a mãe e o seu amante. Ele já era perigosamente desequilibrado, fora desde que o pai morrera. A sua mãe era uma mulher possessiva e exigente. Durante anos, viveram como se mais ninguém existisse no mundo. Depois ela conheceu um homem. Ao Norman pareceu-lhe ter sido substituído por este homem, e matou-os a ambos. O matricídio é provavelmente o crime mais insuportável de todos, sobretudo para o filho que o comete. Assim teve de apagar o crime, pelo menos na sua mente. Ele roubou o cadáver dela. Enterraram um caixão com pesos. Ele escondeu o corpo na cave, até o tratou o melhor que soube

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para que se conservasse. E mesmo assim não bastou. Ela estava lá, mas era um cadáver. Por isso, ele começou a pensar e a falar por ela, a dar-lhe metade da sua própria vida. Por vezes, podia ser as duas personalidades, ter conversas. Outras vezes a metade “materna” tomava posse total. Ele nunca era só o Norman mas muitas vezes era só a Mãe, e por ter tantos ciúmes patológicos dela, assumiu que ela tinha ciúmes dele. Assim, se ele se sentisse atraído por outra mulher, o lado “materno” enlouquecia. (…) Ele tentava ser a mãe. E agora ele é.»11

O discurso do psiquiatra remete-nos para o terreno da psicanálise, já percorrido por Hitchcock em Spellbound e Vertigo. Mas a explicação psicanalítica não parece suficientemente convincente. Temos essa consciência quando vemos, por uma última vez, Norman, ou melhor, o seu duplo, a “mãe”, a convencer-se a si mesma que tem de mostrar aos polícias que “ela” não era capaz de fazer mal a uma mosca. Nem no final Norman aparece livre, a “mãe” condiciona e determina a sua ação.

O filme termina com a imagem da polícia a dragar a carro do pântano onde encontram outros corpos e aí percebemos que não há justificação psicanalítica para tanta desrazoabilidade, não há explicação para os demónios do irracional (cf. Spellbound, 1945).

A narrativa de Psycho assenta num triângulo cujos vértices são Marion Crane, Norman Bates e a “mãe”. Estas personagens jogam um jogo de desejo, de fuga e de morte. Um jogo de repetições (num tempo que é o do eterno retorno) e de duplicações. Marion Crane é a amante que deseja uma família, ser a mãe de família, Norman Bates deseja viver na mãe (recusa de nascer, desejo de habitar um útero materno do qual parece ter sido desalojado abruptamente) e a “mãe” deseja exercer o seu poder sobre o filho, viver a vida do filho… ser o filho.

Alfred Hitchcock escolhe para este filme a temática da duplicidade e a incapacidade/impossibilidade do livre arbítrio e de nos construirmos a nós próprios. Para tratar a temática da duplicidade12, Hitchcock não fica pelo nível psicológico da

11 Alfred Hitchcock, Psycho, 1960.

12 Psycho é um filme onde o duplo está obsessivamente presente. O duplo é o diferente de mim, o estranho em mim, o que não domino. Sabemos que o duplo de Norman é “Mrs Bate”. A separação da mãe (o nascimento) é recusada por Norman, porque ele sabe que a ausência da mãe o enfraquece e a fraqueza o leva a pecar, tornando-o num ser decaído. Fraco, mata, e acaba por matar a própria mãe

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dupla personalidade. Antes parte dele para colocar a questão mais profunda, antropológica, dos dois lados da existência humana: um lado marcado por uma aparente, patética e monótona realidade; e o outro lado, o que mergulha no obscuro dessa mesma existência humana. Na personagem humana jogam, simultaneamente, Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte), a normalidade e anormalidade, o racional e o irracional e por estas pulsões somos determinados. Pulsões inconscientes que fazem de nós meras marionetas. Marionetas de um inconsciente que nós não dominamos; seres determinados por condicionantes bio-físico-sócio-culturais.

A conceção de Homem aqui apresentada é de um Homem que não é exclusivamente dotado de racionalidade mas fragmentado e atravessado pelo mal que nele está inscrito. O mal em Norman Bates é provocado pelo desejo, um desejo que é um outro que o próprio Norman tenta rasurar como se tratasse de algo estranho. Mas o desejo recalcado trai Bates e ressurge, sob a forma pulsão de morte, condicionando as suas ações.

O estranho-outro que Norman tenta rasurar é o uncanny de que Freud fala no ensaio de 1919, Das Unheimliche.13 Este conceito, que Freud vai buscar à estética e

que surge no conto fantástico de Ernst Hoffmann, The Sand-Man (1817), está ligado ao que amedronta, ao que desperta em nós terror. Um terror que vivenciamos em relação a situações que, outrora familiares, misteriosamente se tornaram estranhas e assustadoras. O uncanny é, pois, o retorno dos afetos, desejos e pulsões recalcadas.

(transgressão das transgressões). Mas esta separação, esta ausência, torna-se insuportável e Norman “ressuscita” a mãe e o peso dela na sua vida, assumindo uma natureza dupla, masculina e feminina, que se caracteriza pela máxima ambiguidade. O mecanismo do duplo, associado à ideia de ambiguidade e indefinição, é sublinhado em determinadas cenas. A duplicação de Marion, dada pelas suas imagens refletidas nos espelhos (por exemplo, quando Marion, no seu quarto, já com o dinheiro, prepara a fuga, na casa de banho da garagem onde troca de carro ou ainda quando chega ao Motel

Bates), sugere, no filme, a dúvida em que se encontra e o facto de ter tomado uma decisão irrefletida,

de estar fora de si. Reforça, por instantes, a incerteza sobre se roubar o dinheiro é o melhor caminho para afastar a infelicidade.

O duplicar da imagem no espelho também tem a função de assustar e, desse modo, chamar a atenção para ou denunciar comportamentos inaceitáveis. Quando Lila viola a privacidade de Norman e da mãe e entra na mansão e no quarto de ‘Mrs Bates’, a sua imagem refletida no espelho assusta-a e lembra-a de que o que está lembra-a flembra-azer não é correto. É como se lembra-a sulembra-a próprilembra-a consciêncilembra-a lembra-a quisesse lembra-advertir e condenar por aquilo que está a fazer.

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Algo que era para se manter em segredo, mas que se tornou visível, algo que se manifesta e deveria ter permanecido oculto.

Quando este íntimo estranho (desejo recalcado) se manifesta, surge a culpa e o medo. Por isso, Norman assassina as mulheres que deseja. Assim, o efeito uncanny provoca a divisão do eu, a duplicação, que caracteriza Norman Bates. Ele é ele e, ao mesmo tempo, é a “mãe”.14

O tema central de Psycho é o retorno à mãe e a negação do nascer ou dito de outra forma, a negação da liberdade. Norman impede o curso da sua vida e fecha-se no seio da mãe, que assassinara juntamente com o padrasto. Mumifica a cadáver da mãe, dá-lhe voz e veste-se com as suas roupas. Mas vai ainda mais longe: ocupa o seu lugar, apropriando-se do seu eu e duplicando a sua identidade. Metade do seu eu é ele, o filho, mas a outra metade pertence à mãe. No final, Norman consegue colmatar o seu desejo e retorna à unidade, o que implica a abolição do duplo. O seu eu nega a sua própria existência e Norman é, por fim, a mãe. É como se retornasse ao ventre materno, à unidade inicial.

Outros temas que Hitchcock privilegia são, sem dúvida, o tema da substituição (aqui, substituição de Bates pela “mãe”), o refúgio nas trevas, no obscuro (aqui, o sombrio Motel Bates), a perda da identidade, o medo, o indizível do desejo e ainda o absurdo de os tentar compreender através da psicanálise ou de qualquer outra explicação mais ou menos científica.15

Em suma, acredite ou não Hitchcock na Psicanálise como teoria ou método, negue ou não as suas explicações, parece evidente que não lhe consegue fugir. Filmes como

14 O estranho está intimamente ligado ao fenómeno do duplo manifestado no curso da identidade do sujeito. Inicialmente manifesta-se como denegação narcísica da destruição do ego e que a censura vem reconverter na função censória da consciência. As oscilações da personalidade tendem a confrontar-se através de temas que se podem tornar recorrentes e impregnados de um forte sentimento de estranheza. Diz Freud «Quando tudo está dito e feito, essa qualidade de estranheza só pode ter origem no facto do duplo ser uma criação que data de um estádio mental inicial, há muito ultrapassado – um estádio que incidentalmente revelou um aspeto amistoso. O duplo tornou-se um objeto de terror, tal como depois do colapso da religião, os deuses se transformaram em demónios.» - cf. Sigmund Freud, «The Uncanny» in http://www-rohan.sdsu.edu/~amtower/uncanny.html

15 No documentário de Richard Schickel, Hitchcock assume que, ele mesmo, não acredita na possibilidade de qualquer explicação para temáticas como a perda de identidade, o desejo desmesurado e irracional ou o medo. A propósito do medo, sensação fulcral trabalhada nos filmes de Hitchcock, refere que a teoria psicanalítica ou psiquiátrica nos ensina a procurar a sua raiz e explicação na infância mas o próprio nega essa possibilidade: Os psiquiatras dizem que para resolver problemas,

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Spellbound, Vertigo e Psycho estabelecem uma relação intertexual com a Psicanálise. Ela é, muitas vezes, o esquema estruturador dos filmes e das personagens. Por isso, Slavoj Zizek considera Hitchcock o mais freudiano dos realizadores.

Zizek apresenta a casa gótica de Psycho como uma metáfora do psiquismo humano:

«Os acontecimentos desenrolam-se em três planos: primeiro piso, rés do chão e cave. Estes espaços reproduzem as três instâncias do psiquismo humano. O rés do chão é o Ego16, onde Norman se comporta como um filho normal ou quando o seu

lado normal está no comando da sua personalidade. O primeiro andar é o lugar do Super-Ego17. Um Super-Ego materno. Na cave está o Id18, a instância das pulsões

ilícitas. Podemos interpretar o que acontece a meio do filme, quando Norman carrega a mãe (...) do primeiro piso para a cave, como se ele estivesse a transpor, na sua própria mente, a instância do Super-Ego para o Id. Trata-se da velha lição de Freud segundo a qual Super-Ego e Id estão intimamente ligados. A mãe reclama como uma figura autoritária – Como podes fazer isto comigo? Não tens vergonha? - Até que se torna obscena – Numa cave escura, húmida, onde se guarda a fruta? Crês que sou suculenta? – Ora, o Super-Ego não é uma instância ética mas obscena, que nos bombardeia com ordens impossíveis, que goza connosco, sempre que tentamos fugir às suas ordens e quanto mais lhe obedecemos mais nos sentimos culpados.»19

Cada ser humano é falado por uma pluralidade de vozes das quais, ora uma, ora outra, ocupam a frente do palco e domina o eu, deste lugar contempla as outras forças como um sujeito contempla um objeto que lhe é exterior, o mundo que o influencia e determina.

16 O Ego é uma estrutura do psiquismo humano que se define por ser a verdadeira residência da angústia dado que é uma instância de relação entre as outras instâncias conflituosas

17 O Super Ego é a instância severa e crítica, exerce uma ação de coação sobre o eu. Pode ser hiper moral e tornar-se cruel.

18 Os conteúdos do Id não são somente recalcados e adquiridos mas também hereditários e inatos. O

Id inclui originariamente os dois tipos de pulsões, Eros e Thanatos, que nos impelem a agir

impossibilitando o livre arbítrio.

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Esta abordagem conduz-nos ao problema filosófico do livre arbítrio. Por livre arbítrio entende-se a capacidade de escolha e de decisão, isto é a ideia de que depende de mim o que escolho fazer ou ser. A crença no livre arbítrio é a crença de que há ações que não são simples desfechos de acontecimentos anteriores mas sim escolhas que dependeram inteiramente da vontade e das deliberações do ser humano.

O determinismo na sua versão radical nega o livre arbítrio e defende que todos os acontecimentos estão causalmente determinados por acontecimentos anteriores e por condicionantes histórico-culturais e condicionantes físico-psicológicas. Estar causalmente determinado é não poder decidir nem poder querer outra coisa além do que efetivamente decidimos e queremos. Parece-nos que somos livres porque escolhemos fazer uma coisa em vez de outra, desconhecendo as causas que determinam a nossa ação mas, na verdade, e como refere Norman Bates, estamos presos numa armadilha.

Psycho é um dos filmes de terror mais famosos, influentes e inovadores da história do

cinema e um filme de suspense.

Como filme de terror a sua principal novidade é ter substituído os seres sobrenaturais dos filmes de terror (vampiros, lobisomens, zombies etc.) por um monstro humano,

demasiado humano, revelando-nos que qualquer ser humano dotado de racionalidade pode

ser determinado por uma irracionalidade desmedida. Neste sentido, acaba por nos mostrar que o mal aparece inscrito na própria humanidade.20

Enquanto espectadores ouvimos e vemos mais do que os personagens mas, tal como eles, não vimos tudo, nem compreendemos tudo o que vimos. Por isso, sabemos que temos de ter medo, sabemos que algo de mal vai acontecer, mas não conseguimos fugir-lhe, pois sentimo-nos agarrados à cadeira, a sufocar perante uma eminente catástrofe, que decidimos observar, porque há algo na dor e na morte que nos fascina.

20 François Truffaut, a este propósito, notou que esta obra de Hitchcock tem, em nós, adultos, o mesmo efeito que a história da Capuchinho Vermelho tem nas crianças. Psycho é uma espécie de remake implícito daquele conto. Efetivamente, neste filme, há uma “menina” (Marion Crane) que sai da estrada e que encontra o “lobo mau” (Norman Bates). A ideia da existência de um lobo mau, que se disfarça de bom e possui uma aparência frágil (difícil de identificar e reconhecer), assusta-nos e coloca-nos num “terreno pantacoloca-noso”. O mal pode introduzir-se em qualquer lugar usando uma qualquer máscara. Como saber quem, de entre aqueles que se cruzam todos os dias connosco, é na realidade um lobo mau? Como distinguir o bem do mal? Como distinguir, de entre os que habitam connosco um mesmo espaço, os que se creem para lá do bem e do mal?

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O efeito de suspense, nas palavras de Jean Douchet «…exprime a mais antiga atitude

filosófica. Ele transporta em si a forma mais primária de angústia existencial pois está ligada a um sentimento radical de insegurança. A ansiedade que surge, com efeito, daquilo que os personagens ou espectadores partilham, divididos entre a esperança da salvação e o medo irremediável, entre a vida e a morte.»21

Psycho coloca os espectadores num estado em que deixam de controlar as suas reações.

A ansiedade que sentimos ao ver Psycho faz-nos viver um tempo dilatado. E a ansiedade é tanto maior quanto mais o tempo custa a passar. Sabemos que estamos a viver um presente que terá de tomar um de dois rumos (ou futuros), ambos possíveis mas inconciliáveis. Nunca sabemos que rumo será esse e somos surpreendidos a cada momento. Estamos colocados numa espécie de curva muito apertada e nunca sabemos o que surgirá depois dela. Aqui, somos nós, espectadores, que estamos colocados na posição do ser humano que está preso

e determinado por circunstâncias que não consegue dominar.

Tal como se o cinema, este cinema, e o recurso ao efeito do suspense no cinema, fossem uma metáfora da condição humana. Preso na teia de uma aparente segurança, dada por todo o conhecimento que possuímos/tudo o que vemos como espectadores e a fragilidade ou impotência perante o desenlace das situações/a vida.

1. Identifica algumas das condicionantes da ação e das escolhas que possibilitam a autoconstrução de um ser humano.

2. Analisando a personagem de Norman Bates, consideras que o nosso eu fala (domina) ou é falado (dominado)? Como explicitas a tua opção?

3. Identifica momentos-chave deste filme que neguem a possibilidade do livre arbítrio. 4. Como pensa o filme o problema do «Determinismo e Liberdade do ser humano ou da ação humana»? A ação humana é determinada (causada) por algo ou por alguém ou livre (sem coações) produto da escolha de cada um?

Referências

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