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A Formacao da Cristandade_ Das - Christopher Dawson.pdf

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Christopher Dawson pode ser descrito como o último exem­ plar de sua espécie. Altamente erudito e dono de uma visão his­ tórica monumental, Dawson era um intelectual consciencioso que buscava compreender as ações particulares do processo his­ tórico e encaixá-las em um contexto mais amplo, traços que lhe renderam a alcunha de historiador filosófico.

Ainda que possamos chamá-lo de "gigante", pois permitiu que subissem em seus ombros grandes intelectuais contemporâ­ neos, como, por exemplo, T. S. Eliot e Russell Kirk, Dawson era um homem franzino, de saúde frágil, com capacidades oratórias e didáticas muito inferiores à sua magnífica prosa.

Os anos de Harvard foram os mais produtivos de Dawson desde 1935. Um dos belos frutos do período é A Formação da Cristandade, primeira parte do tríptico que traça o rico processo histórico de constituição da identidade cultural cristã. Neste vo­ lume, Dawson delineia a formação cultural do cristianismo das raízes na tradição judaico-cristã até a ascenção e decadência da cristandade medieval, com incrível riqueza de detalhes, a par­ tir de um princípio que chama de "católico". A presente obra complementa e amplia escritos anteriores como The Making of Europe [A Criação da Europa], de 1932; Medieval Religion and Other Essays [Religião Medieval e Outros Ensaios], de 1934; Religion and the Rise of Western Culture [Religião e o Nascimento da Cultura Ocidental], de 1950; e Medieval Essays [Ensaios Medievais], de 1954.

Certa vez, uma revista de Boston referiu-se a ele como uma "antítese animadora [ ... ] ao acadêmico encastelado na torre de marfim'' , já que Dawson trazia consigo a marca do verdadeiro intelectual: a humildade. Não obstante, esse homem despreten­ sioso e frágil teve imensa coragem e excepcional domínio da His­ tória ao esboçá-la de um ponto de vista absolutamente inovador: a partir de um poder de expressão dinâmico, base de toda a cul­ tura do homem, a pedra angular que os homens de nosso tempo rejeitaram chamada religião.

Márcia Xavier de Brito Vice-Presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP). Editora Responsável de COMM UNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura

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Christopher Dawson foi um dos historiadores mais influentes do século XX na Grã-Bretanhq, e nos Estados Unidos. Nasceu no dia 12 de outubro de 1889 em Hay-on­ -Wye, em Brecknockshire, no País de Gales. Até os dez anos foi educado exclusivamente em casa por tutores. Estu­ dou no Winchester College e cursou história no Trinity College da Universidade de Oxford. Notabilizou-se pela grande erudição e capaci­ dade de transitar com rara

facilidade e sólida competência por quase todos os domínios das ciências humanas, ao abarcar, nos estudos históricos, pro­ fundas reflexões dos campos da Literatura, da Antropologia, da Sociologia, da Filosofia e da Teologia. Durante a maior parte da vida foi um pesquisador independente, no entanto, atuou como professor universitário do University College em Exeter (1930-1936), da Universidade de Liverpool (1934), da Uni­ versidade de Edinburgh (1947-1948) e da Universidade de Harvard (1958-1962). Faleceu no dia 25 de maio de 1970 em Budleigh Salterton, em Devonshire, na Inglaterra. Foi autor de 24 livros publicados originalmente em inglês entre 1928 e 1975. Em língua portuguesa, além do livro A Formação da Cristandade (2014), a É Realizações já lançou Dinâmicas da História do Mundo (2010), Progresso e Religião (2012) e A Divisão da Cristandade (2014).

Imagem da capa: © Cindy Pavlinac ( www.sacred-land-photography.com)

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Impresso no Brasil, setembro de 2014.

Título original: The Formation of Christendom

Copyright © Julian Philip Scott, Literary Executor of the Sta te of Christopher Dawson, 2010

Os direitos desta edição pertencem a

É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.

Caixa Postal 45321 -CEP 04010-970 -São Paulo, SP, Brasil Telefax: (5511) 5572-5363

e@erealizacoes.com. br · www.erealizacoes.com. br

Editor

Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial

Sonnini Ruiz Produção editorial

William C. Cruz e Liliana Cruz Tradução

Márcia Xavier de Brito

Revisão técnica, preparação de texto e elaboração do índice remissivo Alex Catharino

Revisão

Cecília Madarás

Projeto gráfico

Mauricio Nisi Gonçalves/ Estúdio É

Capa e diagramação

André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão

Gráfica Vida & Consciência

Reservados todos os direitos desta obra.

Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja eletrônica ou mecânica fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução sem permissão expressa do editor.

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A FORMAÇÃO DA

CRISTANDADE

Das Origens na Tradição

Judaico-Cristã à Ascensão e

Queda da Unidade Medieval

Christopher Dawson

TRADUÇÃO DE MÁRCIA XAVIER DE BRITO

APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE MANUEL ROLPH CABECEIRAS

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BRADLEY J. BIRZER

INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE DERMOT QUINN

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Apresentação à Edição Brasileira: Christopher Dawson, Historiografia, Cristianismo e os Desafios de Nosso Tempo

S u m á r i o

Manuel Rolph Cabeceiras ... 7

Prefácio à Edição Brasileira: A Cristandade de Christopher Dawson Bradley ]. Birzer ... 31

Introdução à Edição Brasileira: Christopher Dawson e a Ideia Católica de História Dermot Quinn ... 43

Nota sobre a Tradução Márcia Xavier de Brito ... 7 5 Nota do Autor ... 81

PARTE I - Apresentação Capítulo 1 1 Introdução ao Presente Estudo ... 85

Capítulo 2 1 O Cristianismo e a História da Cultura ... 101

Capítulo 3 1 A Natureza da Cultura ... 115

Capítulo 4 1 O Crescimento e a Difusão da Cultura ... 135

PARTE II - Os Primórdios da Cultura Cristã Capítulo 5 1 As Ideias Cristã e Judaica de Revelação ... 153

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Capítulo 7 1 O Cristianismo e o Mundo Grego ... ... 191

Capítulo 8 1 O Império Cristão ... 207

Capítulo 9 1 A Influência da Liturgia e da Teologia no Desenvolvimento da Cultura Bizantina ... ... 229

Capítulo 1 O 1 A Igreja e a Conversão dos Bárbaros ... 249

PARTE III - A Formação da Cristandade Medieval: Ascensão e Declínio Capítulo 11 A Fundação da Europa: Os Monges do Ocidente ... 261

Capítulo 12 A Era Carolíngia ... ... 277

Capítulo 13 A Europa Feudal e a Era da Anarquia ... ... 291

Capítulo 14 O Papado e a Europa Medieval ... 303

Capítulo 1 5 A Unidade da Cristandade Ocidental... ... ... . .. 317

Capítulo 16 Os Feitos do Pensamento Medieval... ... ... 335

Capítulo 17 Oriente e Ocidente na Idade Média ... 359

Capítulo 18 O Declínio da Unidade Medieval .. ... .... . .. 375

Epílogo Capítulo 19 1 A Ideia Católica de Sociedade Espiritual Universal ... 393

Posfácio à Edição Brasileira: Teologia e História na Reconstrução da Unidade Cristã A/ex Catharino ... ... ... 411

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Apr e s e n t a ç ã o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a CHRISTOPHER DAWSON, HISTORIOGRAFIA, CRISTIANISMO E OS DESAFIOS DE NOSSO TEMPO MANUEL ROLPH CABECEIRAS

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Natural do País de Gales, Christopher Henry Dawson nasceu em

12 de outubro de 1 8 89, na pequena cidade de Hay-on-Wye (em ga­ lês "Y Gelli Gandryll" ), também chamada simplesmente de "Hay". À época pertencia a Brecknockshire (condado administrativo de Brecknock, extinto em 1 974) , exatamente na fronteira entre este e

Herfordshire, no lado inglês. Pacata, transformou-se a partir dos anos 1 980, por conta das lojas de publicações usadas, na "Meca dos bibliófilos", sendo muitas vezes descrita como "a cidade dos livros" .

Embora tenha mudado algumas vezes de residência, a infância de Dawson sempre se passou nesse ambiente rural vitoriano (e ele próprio virá a destacar a importância deste fato em sua formação), sendo educado exclusivamente por tutores, em casa, até os dez anos, quando passa a frequentar a escola preparatória. Em 1 908, ingressou no Trinity College da University of Oxford, onde estudou História com o grande helenista Ernest Barker ( 1 8 74- 1 960) .

Em 1 909, acompanhado de seu melhor amigo, Edward 1. Watkin

( 1 888-1 9 8 1 ), viajou para Roma e lá, nos degraus do Capitólio, no lugar

mais sagrado das sete colinas da antiga Roma, para onde levam todas as ruas, sob o impacto da Cidade Eterna, sente-se desafiado a escrever a história da cultura; inspiração que seguirá pelo resto da vida. No mes­ mo ano, já de volta a Oxford, conheceu a futura esposa, Valery Mills, a caçula de três filhas de uma viúva, com quem, em 1 9 1 6, se casou e foi

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

Ao mesmo tempo, por volta dessa época, Dawson trilhava um iti­ nerário espiritual que veio a culminar na sua conversão de um angli­ canismo praticante a um catolicismo não menos engajado. Para a to­ mada de decisão, em 1 9 1 3 , não faltou o apoio do melhor amigo e da

namorada, ambos católicos. No dia 5 de janeiro de 1 9 14, Christopher

Henry Dawson foi batizado na igreja, em Oxford. Iniciada a Primeira Guerra, tentou ingressar no serviço militar, mas é rejeitado em razão da saúde (sempre debilitada) .

Em breve, a s suas pesquisas começaram a dar frutos e sucederam

as publicações: The Nature and Destiny of Man e The Passing of

Industrialism ( 1 920), Cycle of Civilizations ( 1 922 ), The Age of Gods ( 1 92 8 ) , Progress and Religion ( 1 929), Christianity and the New Age ( 1 93 1 ), The Making of Europe e The Modern Dilemma ( 1 932), The Spirit of the Oxford Movement e Enquiries into Religion and Culture ( 1 93 3 ) , Medieval Religion and Other Essays ( 1 934), Religion and the Modern State ( 1 93 5 ) , Beyond Politics ( 1 93 9 ), Judgment of the Nations ( 1 942 ), Religion and Culture ( 1 94 8 ) , Religion and the Rise of Western Culture ( 1 950), Medieval Essays ( 1 954), Dynamics of World History ( 1 956), The Movement of World Revolution ( 1 959), The Historie Reality of Christian Culture ( 1 960), The Crisis of Western Education ( 1 96 1 ), The Dividing of Christendom ( 1 965), The Formation of Christendom ( 1 967) e, postumamente, The Gods of Revolution ( 1 972 ) e Religion and World History ( 1 975 ). Para um

público como o brasileiro, ao qual Dawson foi apresentado apenas recentemente, a relação visa a dar alguma ideia sobre os temas por ele investigados e o ritmo de produção, sem qualquer pretensão de esgotarmos a totalidade de sua obra.

Entre tais títulos, alguns foram aclamados, desde o lançamento, como marcos fundamentais, o que enalteceu a amplitude do conhe­ cimento e a lucidez de estilo do autor. A repercussão dos trabalhos dawsonianos pode ser medida pela eleição do autor, em 1 943, para

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universitário, chegou a ocupar algumas vezes a cátedra no University College em Exeter ( 1 930- 1 936), na Universidade de Liverpool ( 1 934)

e na Universidade de Edimburgo ( 1 947 e 1 94 8 ) no Reino Unido, bem

como na Universidade de Harvard ( 1 95 8 - 1 962) nos Estados Unidos.

No ambiente protestante da Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachusetts, ministrou, como primeiro titular, um curso chamado

Roman Catholic Studies [Estudos Católico-Romanos], criado por inicia­

tiva e a convite do benemérito católico, também convertido, Chauncey Devereux Stillman ( 1 907-1 989). Após a estada norte-americana, retor­

nou para a sua residência em Budleigh Salterton, Devon, na Inglaterra, cidade às margens do Canal da Mancha, onde passou os últimos anos, vindo a falecer em 25 de maio de 1 970. Seus restos mortais foram depo­ sitados em Bumsall, Yorkshire, no norte da Inglaterra, próximos aos dos pais, no local em que passou parte da infância.

São partes do curso ministrado por Dawson na temporada esta­ dunidense as palestras transformadas em três livros, então entregues aos cuidados de Watkin, amigo de toda a vida, companheiro da via­ gem a Roma, e agora seu agente e editor literário. Diferente das outras obras anteriores, a publicação das referidas palestras repercutiu mui­ to pouco. Era o ocaso de um gênio e de um modo de fazer História.

Dos três, o terceiro e último volume The Return to Christian Unity

[O Retorno da Unidade Cristã] permanece ainda inédito mesmo em

língua inglesa. Quanto aos dois primeiros, os já citados The Formation

of Christendom [A Formação da Cristandade] e The Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade], foram publicados respec­

tivamente em 1 967 e 1 965, assim mesmo, nessa ordem (para a qual,

mais adiante, propomos uma leitura interpretativa dos motivos) .

O público de língua portuguesa1 é agora, e m 2014, agraciado no

1 A presente publicação -A Formação da Cristandade -e A Divisão da Cris­ tandade se somam aos outros livros do autor já traduzidos para o português e também publicados pela editora É Realizações: Dinâmicas da História do Mundo (2010) e Progresso e Religião (2012).

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

Brasil com um lançamento simultâneo dessas duas obras, justamente no ano do centenário da conversão de Dawson ao catolicismo, oca­ sião em que assistimos a um renovado interesse pelo seu pensamento em meio aos impasses vividos na atualidade. Impasses historiográfi­ cos e civilizacionais, impasses sobre a presença cristã e, mais particu­ larmente, católica, em tais contextos.

Fiel à inspiração inicial, temos nesse percurso uma vida dedica­ da ao estudo das culturas históricas, ao papel desempenhado pela religião, nesse caso visto como central, e, em particular, o exame do cristianismo histórico e da cristandade. Eis um historiador da cultura britânico; mas, o que significa ser um historiador da cultura ?

Voltando ao público brasileiro, eis uma pergunta pertinente e res­ ta aqui um importante esclarecimento. Para quem, como nós, está ha­ bituado a combinar o binômio "História " e " Cultura ", nessa ordem, sob a etiqueta de "história cultural", o termo "história da cultura " soa como algo estranho, completamente exótico.

A história cultural no Brasil, no recorte teórico-metodológico, é suscetível às modas intelectuais. Estas vêm fundamentalmente dos franceses que, com Roger Chartier ( 1 945-), ao tratar da chamada "nova história cultural"2 sentiu necessidade de fazer dois movimentos para demarcar o terreno: um interno, no bojo da Nouvelle Histoire

[História Nova], cujo objetivo era distingui-la da "história das menta­ lidades", sem deixar de apresentar-se como seu herdeiro; e outro ex­ terno, ao identificar uma "história das ideias" e/ou "intelectual" (vez por outra esses termos se sobrepõem ou são pensados como campos distintos), assinalando-a como pertencente a um universo bastante diverso da sua proposta de pesquisa.

Todavia, do outro lado do Canal da Mancha, apesar dessa história das ideias, independente do nome dado, se fazer hegemônica e usufruir

2 Roger Chartier, A História Cultural entre Práticas e Representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.

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de grande fortuna, o quadro guardava uma complexidade maior. Foi preciso esperar por outro prócer da "nova história cultural", o in­ glês Peter Burke ( 1 937-), cuja carreira teve início como professor de

Intellectual History [História das Ideias] na Universidade de Sussex,

em 1 962, e veio a assumir, em 1 979, a cadeira de História Cultural na Universidade de Cambridge, onde hoje é professor emérito.

Pois bem, como parte do desafio do qual se desincumbe no livro

O Que É História Cultural?,3 Peter Burke faz de seu eixo de argumen­

tação um esquema apresentado com o intuito de distinguir essa "nova história cultural" (NHC ou, em inglês, NCH), da "história cultural" que seria praticada nas " fases" anteriores. E, entre elas, a primeira se­ ria, justamente, mais amiúde chamada de "história da cultura ", apre­ sentada mais como uma "história de obras-primas" estudadas como expressão de determinada cultura seja nas artes, nas letras ou nas ciências, predominando em suas análises o tom filosófico, estetizante e elitista. Burke, ao identificá-la como a primeira fase da história da história cultural, denomina-a de "clássica" e marca o seu início na Alemanha dos anos 1 780, notando-a vigorosa até 1 950, quando seria suplantada pelo movimento da "história social da arte " . Este último, vindo de 1 930, seria representado, entre outros, por Arnold Hauser ( 1 892-1 978 ) e Ernst Gombrich ( 1 909-200 1 ), enquanto da fase clás­ sica, anterior, são destacadas as obras do suíço Jacob Burckhardt ( 1 8 1 8-1 897) e do neerlandês Johan Huizinga ( 1 872- 1 945 ) como as maiores e mais emblemáticas.

Segundo Peter Burke, a história da história cultural ainda teria mais duas fases: a terceira, caracterizada pela "descoberta da cultura popu­ lar" nos anos 1960 e a quarta, justamente a da "nova história cultural", na qual se insere. Entre os primeiros relaciona E. P. Thompson (

1924-1 993), Eric Hobsbawm ( 1924-1 9 1924-1 7-201924-12) e Christopher Hill ( 1924-1 91924-12-2003).

3 Peter Burke, O Que É História Cultural?. Trad. Sérgio Goes d e Paula. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

Já, para a fase presente, iniciada nos anos 1980, aponta o G-4 das re­ ferências teóricas do movimento nas obras de Mikhail Bakhtin ( 1 895-1 975), Norbert Elias ( 895-1 897-895-1 990), Michel Foucault ( 895-1 926-895-1 984) e Pier­ re Bourdieu ( 1 930-2002), distinguindo Chartier como um dos princi­ pais líderes. Completar-se-ia, então, o que Burke considera, numa visão panorâmica, o alargamento do escopo da história cultural, de restrita em sua fase clássica à alta cultura até a inclusão da cultura cotidiana, abrangendo os costumes, valores e modos de vida, convergindo com a maneira de ver a cultura dos antropólogos.

Há sérios problemas nessa classificação, que pelo prestígio de seu autor vem se transformando em cânone, ao menos nas terras brasíli­ cas, tantas são as reduplicações e citações feitas sem qualquer crítica. Não sendo aqui o lugar para exercê-la sistematicamente, pontuare­ mos apenas aquilo que diz respeito ao nosso autor.

Peter Burke observa existir na anglofonia um importante con­ traste, nesse terreno, entre os Estados Unidos, marcado por uma tra­ dição de interesse nos estudos culturais, e a resistência a tal estudo, no lado britânico do Atlântico, mais afeito ao estudo das ideias. As

principais e raras exceções listadas são o Christopher Dawson de The

Making of Europe ( 1 932), os doze volumes de A Study of History

( 1 934- 1 96 1 ) escritos por Arnold Toynbee ( 1 8 89-1 975 ) e, o que mais impressiona a Burke, o projeto concebido e planejado, nos anos 1 930, pelo bioquímico Joseph Needham ( 1 900-1 995 ), cujo resultado foi a publicação, iniciada por ele à frente de um grupo de colaboradores, de Science and Civilisation in China ( 1 954-2008).

Ora, no afã de demarcar terrenos, guiados por afeições inte­ lectuais, muitas vezes a retórica passa a predominar, simplificando posições e, por consequência, aspectos importantes deixam de ser contemplados. Assim, por exemplo, a vitória obtida pelas duas pri­ meiras gerações dos Annales, revista em torno da qual se desenvol­ veu a História Nova, com proposições de enorme relevância para a historiografia contemporânea, deu-se acompanhada pelo desprezo

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e abandono, por um bom tempo, de setores temáticos como o da política e o da guerra, denunciados no combate pela renovação teórico-metodológica como típicos de uma história acontecimental

(événementielle) , de uma história do tempo breve. No entanto, des­

de então, quando o tempo acentuou a relevância de tais domínios, surgiram diferentes iniciativas cujo objeto era a recuperação e reno­ vação dos referidos temas.

À semelhança do ocorrido acima, por mais que Peter Burke te­ nha a delicadeza de afirmar o valor de todas as chamadas quatro fases da história da história cultural e o permanente interesse pelas principais obras de cada tradição (cada fase seria a expressão de uma determinada tradição nos estudos históricos da cultura ), o resultado também aqui é a valorização daquilo que se revela próximo de suas afinidades intelectuais. Isso se revela na breve menção feita à obra de Christopher Dawson, reduzindo-a a um único título significativo e, apesar de positiva, vem acompanhada de um comentário que resume as investigações de Dawson nesse campo aos seis anos de atuação como conferencista de história da cultura em Exeter, ocasião em que teria produzido aquela mencionada obra. Tudo isso somente revela quão imenso é o desconhecimento de Burke a respeito da obra e do pensamento dawsoniano.

O preço pago por tal lacuna mostra ser elevado quando pas­ samos a observar, nas citações e resenhas da revisão historiográ­ fica empreendida por Peter Burke, a tendência de transformar as simplificações presentes em seu texto, em algo caricatural. Enfati­ zando o exercício retórico promovido vemos, entre outras consi­ derações, a " história da cultura " ser chamada de " história das be­ las artes " . E bastaria trazer à memória nomes como os de Oswald Spengler ( 1 8 80- 1 93 6 ) e do já citado Arnold Toynbee, autores que o leitor brasileiro de história tem certa familiaridade, e que, ape­ sar da distância, tiveram várias obras traduzidas para o português (o que permite, pois, que sej am consultados nas boas bibliotecas )

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

para perceber que esse não é o caso. Aliás, em ambos, Spengler e Toynbee, o nosso leitor pode vir a obter uma imagem pouco mais aproximada do tipo de trabalho empreendido por Christopher Dawson. No entanto, ainda assim, são obras bem distintas, sej a em muitos dos procedimentos, sej a mais ainda nas interpretações e conclusões. O próprio Dawson, ao dialogar com elas, mesmo em face da obra de Toynbee, de quem foi colega de classe, não deixa de criticá-las firmemente, e de indicar os pontos que as considerava deficientes ou contraditórias.

Se voltarmos para a fonte das citações e resenhas - o próprio texto de Peter Burke -, um olhar atento torna possível localizar a ra­ zão do desconhecimento e da pouca afeição pela obra de Christopher Dawson. A perspectiva de Burke ao abordar a cultura é a do viés econômico-social, num horizonte nitidamente marxista. Não há mo­ mento em que a dimensão religiosa é tratada com a atenção devida nas considerações e abordagem a respeito da cultura. É como se não houvesse lugar para esse campo de pesquisa. E de fato não há. Por não existir, Dawson permanece deslocado.

Esse não deveria ser um problema para Burke, visto que intenta contemplar diferentes pontos de vista. Em época como a atual, em que os fenômenos religiosos ganham cada vez maior destaque, torna­ -se irrecusável a percepção de sua magnitude na realidade social, e um autor como Dawson, que concede primazia a esse plano na dinâ­ mica das culturas históricas, merece, ao menos, ser lido com um pou­ co mais de atenção. Isso sem contar que, ao continuarmos afastados de tal retórica de combate, entre a " história cultural" e a "história da cultura" , as propostas teórico-metodológicas subjazem variadas, guardando, cada uma, as suas virtudes. E Burke está certo; frequen­ tar as diferentes tradições intelectuais no campo da história cultural areja essa esfera de conhecimento e contribui para o desenvolvimento das investigações, refinando-nos o instrumental. E, entre os grandes expoentes, Dawson é um gigante.

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Um tema, por exemplo, d a "história d a cultura", não contem­ plado pela "história cultural", é o das civilizações, que, pelo caráter compendioso, já foi objeto de estudo de dois dos nomes mais icônicos da História Nova, Fernand Braudel ( 1 902- 1985 ) e Jacques Le Goff (1 924-2014). Hoje, contudo, tornou-se marginal, em virtude daquilo que foi denominado de "história em migalhas" ,4 uma tendência que

se mantém em razão da imensa e nebulosa pluralidade de novos pro­ blemas, novas abordagens e novos objetos que, desde os anos 1 970, quando foi inventariada, já era impactante.5 Essa perspectiva não para de crescer, fazendo-nos descrer da capacidade de uma só inteli­ gência abarcar todo esse universo com um só golpe de vista.

Entre civilização e cultura, é costume aproveitar, em relação à pri­ meira noção, a rota inicialmente traçada pelos franceses e, em relação à segunda, a dada pelos alemães, demonstrando que ambas são oriun­ das de tradições distintas. A partir de tal operação, muitos se sentem autorizados a descolar da noção de cultura o aspecto de grande sínte­ se, o qual também lhe era e é próprio, tanto que, para muitos autores e circunstâncias, os vocábulos são intercambiáveis. Assim, deixam de lado a magistral lição de Fernand Braudel que, aproveitando a existên­ cia dos dois termos, fazia coincidir a ideia de civilização com um tipo

específico de cultura, a urbana ( Grammaire des civilisations,6 de 1 987,

ao retomar o núcleo de outra obra de sua autoria, datada de 1 963 ) . Não obstante, tal visão larga, abrangente, dotada de altos voos, característica dessa "história da cultura ", já tinha sofrido um grande

4 François Dosse, A História em Migalhas. Trad. Dulce A. Silva Ramos. São Paulo/Campinas, Ensaio/Editora Universidade Estadual de Campinas, 1992. 5 Jacques Le Goff e Pierre Nora (dir.), História: Novos Problemas. 4. ed. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novos Objetos. Trad. Teresinha Marinho. 4. ed. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995; Idem, História: Novas Abordagens. 4. ed. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995.

6 Fernand Braudel, Gramática das Civilizações. 3. ed. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2004.

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

estrago, resultado do combate da História Nova em torno das in­ terpretações filosóficas do processo histórico ou, mais precisamente, da energia despendida pelos historiadores em adequar os estudos à determinada filosofia da história. A isto, e assim designa o próprio Dawson, chamamos de meta-história. A ideia dos "novos historiado­ res" era, em troca, apostar no contato com as demais ciências sociais

(a interdisciplinaridade); na prática da pesquisa problematizada; no desenvolvimento de técnicas mais rigorosas e controladas, no intui­ to de evitar interpretações impressionistas dos fenômenos históricos. Essa necessidade ingente de inculcar no historiador um refinamento teórico e metodológico testado na pesquisa sistemática das fontes le­ vava à necessidade de ostracizar a filosofia e, mais particularmente, a filosofia da história da cidadela de Clio, relegando a meta-história a assunto de filósofos.

Ora, os resultados pretendidos foram alcançados. Já são quatro as gerações desde os Annales, a revista em torno da qual, desde 1 929,

se desenvolveu a Nova História. As críticas dirigidas ao movimento nos anos 1 9 80 e 1 990 evidenciaram os limites da proposta e a ne­ cessidade de revisão crítica. Cada vez mais a revisão crítica se faz necessária, pois as questões seguem em aberto, a retomada de certos temas e autores esquecidos no fragor do combate, e é preciso dar-lhes nova dimensão.

Christopher Dawson é um dos autores, como pode ser antevisto, que muito tem a dizer para aqueles que pertencem aos domínios da História. Estamos a falar de um dos pioneiros no diálogo com as Ciências Sociais, particularmente, com a Antropologia e a Sociologia, muitas décadas antes da História Nova. A virada, por exemplo, que Peter Burke identifica, entre os anos 1 960 a 1 990, da história cultural em direção à Antropologia, em decorrência dos problemas de defini­ ção daquilo que viria a ser cultura, encontra em Dawson um expe­ riente precursor, pois, na década de 1 920, inaugurara esse diálogo. De sua meta-história não estão ausentes tais diálogos; evita as excessivas

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simplificações que ele mesmo denuncia em Oswald Spengler e Arnold Toynbee, mas também em Karl Marx ( 1 8 1 8- 1 8 8 3 ) . Aliás, um dos em­ bates da meta-história dawsoniana é contra as excessivas generaliza­ ções e o empenho em fixar leis da história, algo por ele descartado justamente graças à enraizada visão cristã e à profunda atenção para com as particularidades sociais.

Muitas vezes somos levados a pensar que a meta-história está ausente da prática historiográfica vigente. O sucesso das lutas anna­ lesistas nos distrai do fato que as teorias sociais de dois dos autores teóricos mais frequentados por quem pratica História no Brasil, o já citado Karl Marx e Max Weber ( 1 864- 1 920), têm subjacente às suas propostas interpretativas também uma meta-história. Aliás, à medi­ da que se constata ser crescente o renovado interesse pelas obras de Dawson mundo afora (há um reviva/ dawsoniano), Weber tem sido

reiteradamente comparado a Dawson, e com razão, não quanto à meta-história, mas no diálogo entre a história e outras ciências huma­ nas, bem como no interesse do papel da religião na cultura ocidental.

Retornar à ambição pela síntese, tê-la em mente no horizonte investigativo: é preciso reatar essa conexão que se manteve presente

até a terceira geração dos Annales, com Jacques Le Goff, por exem­

plo, como tivemos ocasião de citar. É preciso recordar às raízes dos

Annales, recordar Henri Berr ( 1 863- 1 954 ), para quem, sem tergiver­

sações, a síntese ocupava papel central. Daí a sua Revue de Synthese

Historique ( 1 900, após 1 930, simplesmente, Revue de Synthese) e

o Centre International de Synthese ( 1 925 ), ambos frequentados por

Marc Bloch ( 1 8 86-1 944) e Lucien Febvre ( 1 878- 1 95 6 ) . A evocação aqui, porém, é a da exigência, esgotado o caminho, de resultar na "História em migalhas" . E aqui também Dawson fornece inestimá­ vel contribuição.

O que sustenta a meta-história de Dawson e qualquer meta-his­ tória e qualquer análise relevante dos fenômenos sociais e históricos é a imaginação criativa. O caminho da síntese é o da "imaginação

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

criativa" , de visões inspiradoras que nos lançam para frente e nos permite contemplar grandes horizontes. Quem a estudou suficiente­ mente bem no campo das ciências sociais foi Charles Wright Mills ( 1 9 1 6- 1 962), chamando-a de " imaginação sociológica " .7 A "imagi­ nação sociológica" é um ato que permite a quem a pratica partir do horizonte imediato, no qual se acham as vivências e constatações pessoais, até as grandes questões públicas, inserindo-se compreen­ sivamente no contexto maior da própria sociedade. Por ser uma prática criativa, Mills fala de uma qualidade de espírito que permite ao sujeito usar a informação de que dispõe e desenvolver a própria razão de modo a obter maior clareza acerca do que ocorre no mun­ do e consigo mesmo.

Analogamente, em cada campo, podemos encontrar uma feição dessa "imaginação criativa" . Toda grande obra intelectual, científica ou artística é alimentada e sustentada por tal visão. Principia, dentre

os procedimentos de conhecimento, muitas vezes em um insight, uma

intuição, favorecida por um ambiente, pelo contato com os clássicos, o exercício da fantasia e do jogo, na projeção refletida e vivenciada de nossas ações em um quadro informado por determinada ideologia ou religião. Experiências de construção de sentido. Há, outrossim, uma "imaginação histórica" .

Falamos em ideologia e religião como fontes da imaginação cria­ tiva. Entretanto, não só é fundamental esclarecer o papel desses ele­ mentos em tal processo, como também é crucial ilustrá-lo na obra historiográfica ou em qualquer interpretação a respeito da realidade. No empenho de apresentar Dawson ao público brasileiro e conceder­ -lhe o devido e inestimável valor, é preciso que nos acautelemos dian­ te da leitura fácil e tentadora que pretende encerrá-lo, atendendo a uma perspectiva apologética, em determinado nicho: o do historiador

7 C. Wright Mills, A Imaginação Sociológica. 6. ed. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982.

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conservador e partidariamente católico, como pretendem alguns da­ queles que o têm resgatado recentemente.

A apologética possui função e valor, mas, para ela, a História interessa apenas de maneira instrumental, pragmática, quando está a serviço de determinada causa ou interesse. Não lhe interessa a His­ tória na qualidade de um campo de investigação próprio. Assim o é quando muito abrangida pelo que convencionalmente designamos, hoje, de "história pública", ou seja, o uso social das investigações históricas. Uma vez restritos a tal gênero de história pública, não de­ vemos confundir os campos: a história profissional/acadêmica e tal uso instrumental da tarefa do historiador na defesa de determinada fé, seja ideológica ou religiosa.

A despeito dos historiadores adotarem ideologias e estas inspi­ rarem as suas pesquisas, interpretações e análises, as investigações não são, ou ao menos não deveriam ser, direcionadas por esse mesmo ideário particular. Um trabalho profissional de qualidade ultrapassa as ideologias, seguindo regras próprias do ofício.

Inspirar significa sugerir o que está na raiz dos dilemas e dos ques­ tionamentos do historiador, manifestando o quanto estamos imersos e comprometidos na própria época. Significa dizer, igualmente, que as ideologias estão mediadas por nossas teorias sociais, estão no cerne das hipóteses ou das respostas dadas aos dilemas e questionamentos anteriormente propostos. A ideologia tem relação clara com a per­ cepção da política, no modo como são justificadas e projetadas as ações nesse campo. Já a religião, quando é mais que uma palavra na boca do fiel, extravasa o campo da política e passa a ter um cará­ ter mais existencial, abarcando a vida em todas as suas dimensões, fornecendo-lhe respostas de maior amplitude, capazes de adequada­ mente conferir sentindo ao seu viver. Cumpre observar que apenas uma ou outra possui tal condição - não estamos aqui sectarizando. É da própria vida, da reflexão que fazemos a seu respeito que proce­ dem as questões e hipóteses acerca dessas dimensões. O fundamental

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A Formação da Cristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

aqui é que sejam construídas e testadas conforme os procedimentos de cada disciplina.

Ideologias e religiões, cada uma a seu modo, podem alimentar a imaginação criativa do pesquisador do fenômeno humano, o qual, por natureza, é social e histórico. Se Wright Mills nos fala em ima­ ginação sociológica e igualmente constatamos que não estão des­ providas de imaginação as grandes obras no campo historiográfico, insistimos que uma e outra são formas da imaginação criativa que alicerçam qualquer investimento sério e sistemático em determinado ramo de pesquisa ou saber. Ora, em toda forma de saber, há regras e procedimentos que devem ser seguidos, a despeito das ideologias e das religiões, e a imaginação criativa expressada nas teorias e hipóte­ ses é constantemente posta à prova. Desse modo, apenas resultam, so­ brevivem e se tornam clássicas as teorias e hipóteses que se coadunam em escala significativa com os dados disponíveis. Se a imaginação sociológica é um exercício de construção de sentido social, por via da imaginação histórica opera-se a construção de sentido ao longo do tempo, unindo-nos não só às pessoas, às sociedades e às culturas nas quais vivemos na dimensão temporal mais estrita, como também a outras épocas em perspectivas mais longas.

Assim, é empobrecedor reduzir Christopher Dawson, ou qual­ quer grande autor, ao campo ideológico. Uma boa obra se faz clás­ sica por ultrapassar tal bairrismo sectário, por iluminar desassom­ bradamente aspectos fundamentais da realidade humana . O mes­ mo se pode dizer da religião. Se Dawson é um historiador católico e esta identidade se constitui em chave de sua obra, não o é por atender interesses apologéticos, mas pelo fato de ter tal vivência como ponto de partida das inspirações, dos questionamentos e das hipóteses de um modo que falta, em tempos pós-iluministas, aos intelectuais cristãos em geral, salvo honrosas exceções. Uma delas é a vida, a carreira e a obra de Christopher Dawson que nos trazem riquíssimas lições !

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20 121

Como vimos, o livro que ora temos em mãos, A Formação da Cris­ tandade ( 1 967), foi originalmente lançado após, não antes, o volume

A Divisão da Cristandade ( 1 965 ), que aborda os acontecimentos que

lhe são posteriores. A narrativa deste último inicia com um olhar de conjunto sobre a época contemplada no volume, examinando, no Oci­ dente, os impactos culturais da quebra da unidade cristã. A seguir, des­ creve as manifestações dolorosas de declínio dessa unidade em pleno século XIV até a consumação da Cristandade dividida, passando pela Renascença, pelo Barroco e pelo Iluminismo. O Cisma Protestante, a Reforma e as monarquias nacionais são examinados detalhadamente em seus desdobramentos culturais em um e outro lado do Atlântico.

Já n'A Formação da Cristandade, especial importância adqui­

rem os prolegômenos, de cunho nitidamente teórico, que podem ser divididos em duas partes: uma primeira, histórico-cultural, sobre o cristianismo e a história da cultura, as culturas históricas e sua di­ nâmica; e outro segmento, teológico, sobre Revelação e o Reino de Deus. A seguir, a narrativa acompanha a Cristandade Medieval em seus primórdios, a ascensão e o declínio, examinando os elementos de integração e de dissolução e as manifestações culturais no Ocidente e no Oriente. Ao fim, após apresentar as primeiras fissuras (séculos XIII e XIV), expõe uma análise acerca da ideia católica de sociedade espiritual universal (epílogo) .

Enfim, The Return to Christian Unity [ O Retorno à Unidade

Cristã], ainda inédito e no aguardo de publicação, completa o per­ curso ao abranger o final do século XVIII e os séculos XIX e XX. No título, indica mais um desejo, um empenho e um projeto que uma efetiva realização, ao mesmo tempo aponta, também, ao encaminhar às duas obras anteriores, tratar-se de um conjunto único, centrado na ação da unidade cristã: na necessidade de retomada e de iniciativas nessa direção, o que o remete a analisar o modo como se deu tal perda e seus desdobramentos, bem como recorda sua constituição primeva e a manifestação da força dessa unidade.

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

Um único argumento, uma única ação a costurar os três volumes,

os quais, portanto, fazem parte de um único canto. Assim como a Ilíada

narra a ira de Aquiles e a Odisseia, a volta de Odisseu (Ulisses) a Ítaca,

ou seja, ao lar, temos também uma única ação, como nos ensina a poé­ tica clássica, a presidir a grande epopeia que Dawson nos lega, como a nos deixar um testamento: a grande série de acontecimentos grandio­ sos da unidade cristã no Ocidente, a Cristandade Europeia.

As palestras ministradas entre 1 958 e 1 962, e publicadas em 1 965 e 1 967, ocorrem no contexto do Concílio Vaticano II: eleito pontífice romano o cardeal Angelo Roncalli ( 1 8 8 1 - 1 963) em fins de 1 958 (em 28 de outubro, e assumindo o pontificado em 4 de no­ vembro) com o nome de João XXIII, o novo papa convoca, com a bula papal Humanae Salutis, o Concílio em 25 de dezembro de 1 96 1 ,

cujas sessões ocorrem de 1 1 de outubro de 1 962 a 8 de dezembro de 1 965, encerrando já no pontificado de Paulo VI ( 1 897-1978 ). O ecumenismo que sempre estivera no foco das ações de Dawson, e fora promovido por intermédio das mais diversas iniciativas, encon­ trava em João XXIII largos e decisivos gestos, como a criação, em 1 960, do Secretariado para a Promoção da Unidade dos Cristãos. As palestras em Harvard, portanto, mostravam-se bem oportunas.

À decisão de lançar A Divisão da Cristandade antes de A For­

mação da Cristandade, provavelmente tomada por Watkin, não deve

ter faltado certo senso de dramaticidade, pois visava a introduzir o

leitor in media res, no meio dos eventos que acabaram por cindir

a cristandade e, por tabela, favorecer culturalmente a cristandade, ganhando espaço para uma modernidade que dela estava ausente, apesar do vigor cultural que ainda demonstrava. Essa publicação foi

seguida d' A Formação da Cristandade, como digressão retrospectiva

que pretendia exibir o remédio ao mal, cuja visão da unidade perdi­ da deveria contribuir para o retorno. A fria recepção na ocasião do lançamento dos dois primeiros volumes, e um Dawson cada vez mais doente, somou-se ao acentuado pessimismo de Watkin em face dos

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novos tempos: tais ingredientes compuseram o quadro que conduziu à decisão pela não publicação do terceiro volume, deixando-nos ór­ fãos da obra completa.

Até que venha o terceiro livro temos naquilo que foi publicado um tesouro inestimável, em dois volumes que se justificam por si sós e podem ser lidos independentemente ou na sequência, se o leitor assim desejar. Quanto ao ecumenismo, este continua a ser um desafio para os cristãos. Além da urgência da unidade, dado o avanço do secula­ rismo que alcança no Ocidente uma capilaridade nunca antes vista, a fragmentação da unidade da Igreja revela-se como um espinho à medida que o amor-caridade entre os irmãos não se mostra capaz, dados os limites humanos, de demonstrar, no tempo, sinais mais pa­ tentes da unidade. A ruptura da união desejada pelo Cristo para a Sua Igreja veio a se constituir num doloroso óbice à atividade missionária e à obra de construção do Reino de Deus. Um escândalo. Como co­ adunar unidade e diversidade quando as manifestações culturais e as culturas históricas são plurais ?

Nas pesquisas, Dawson demonstra como os fatores de ordem cultural tiveram forte atuação nos desentendimentos entre cristãos. Logo, compreender as culturas, as dinâmicas e as histórias passa a ser um empreendimento decisivo e central. Isso não significa fazer dos cristãos, historiadores; mas, o cristianismo nunca deixou de ter uma dimensão efetivamente histórica. Eis a compreensão que Dawson pretende proporcionar, não só aos católicos, mas também aos protestantes, pois não podemos esquecer o ambiente no qual as palestras foram originalmente ministradas. Há no historiador galês um empenho em construir pontes, visando ao entendimento mútuo entre os irmãos em Cristo.

A memória sempre foi uma característica decisiva na experiência cristã: Evangelhos, Atos dos Apóstolos, Atas dos Mártires, História Eclesiástica . . . A própria celebração litúrgica é memorial. Distintas em sua dinâmica, memória e história coletivas também se cruzam e tecem

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

relações entre si, nutrindo-se mutuamente. Isso está presente desde o primeiro momento da caminhada do povo cristão. Em diferentes sentidos, o cristianismo é uma religião histórica, e isso pode ser dito de modo mais preciso ao dizer que a todos cabe ter, desta história, algum conhecimento.

Na obra de Christopher Dawson, ao falar de História, podemos entendê-la de três modos diferentes.

1 º) No plano da Fé cristã, a história pode ser vista como uma

perspectiva interna à comunidade de crentes, hermenêutica da me­ mória, na qual, apesar de distinta da memória, não deixa de atuar subsidiariamente, forjando o que podemos chamar de uma "história sagrada", ou seja, de uma História como alimento da Fé. Neste siste­ ma, estuda como se dá a intervenção divina na história. É a crônica de um povo e de sua Fé, sem dúvida, mas não apenas isso.

Interessa-se, todavia, por constatar a intervenção de Deus na his­ tória. Em A Formação da Cristandade, há a nota particular da busca

de uma base comum. Aí, Dawson relembra o ensinamento de Santo Tomás de Aquino ( 1225-1 274), em que é essencial, ao entabular um diálogo com aqueles de quem guardamos diferenças, principiar re­ tomando o patrimônio comum, além disso, mostra ser igualmente necessário identificar a ação de sal da Terra.

Por outro lado, e aqui se faz também presente algo do interesse de quem não pertence à comunidade cristã: tomar Cristo como "ca­ minho, verdade e vida", critério para a ação, alfa e ômega, senhor da História, significa que essa Fé se encarna e se assume como manifes­ tação cultural, informando e conformando a cultura. Não só tal fé transforma por dentro como cria o novo. Para o cristão isso ocorre em virtude do Criador fazer dele o Seu instrumento. A justificativa dada, porém, não importa: o fato é que mudanças históricas e cultu­ rais têm registro. Isso é o que melhor nos permite compreender o pa­ pel da religião nos fenômenos histórico-culturais e, ao mesmo tempo, torna patente ao próprio cristão tais desdobramentos da experiência

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cristã. Então, a história cultural passa, também, a revelar um valor sagrado, ressaltando o sentido pouco aprofundado, mas importante, de testemunho de uma fé.

2º) Há o plano do fazer historiográfico, a dimensão prática. Já o vimos exaustivamente, todavia, vale retomar alguns pontos. Ao his­ toriador católico ou protestante, ao pesquisador cristão em geral, é exigida a feitura de uma " boa" história, rigorosa, como é exigido de qualquer historiador que queira ter o trabalho validado, o que en­ globa o modo como opera suas generalizações. Conceitos, modelos e problemas, tudo é o resultado de generalizações sistemáticas e cons­ cientes, as quais são aplicadas a estudos particulares e bem delimita­ dos. Se assim não fosse, a História não passaria de crônica.

As análises e interpretações, por seu turno, bem como, por sua vez, as sínteses, são interdependentes e uma não subsiste adequada­ mente sem a outra. É fundamental recuperar tal exercício que tam­ bém faz parte da prática historiográfica.

Voltando a Santo Tomás de Aquino, ou à Razão, aquele sabendo-a limitada, faz com que siga autônoma em relação à Fé; caso contrário, não haveria sentido em dela sermos dotados. Assim, da mesma ma­ neira como a filosofia e a teologia possuem suas autonomias, seguin­ do cada uma procedimentos próprios, o mesmo também é válido para a História. Claro que não é suficiente para um historiador católico ser um bom historiador no sentido de aplicar correta e rigorosamente os métodos e técnicas próprios desse campo do saber. No entanto, tal condição é necessária e imprescindível. Igualmente aqui, o agostia­ nismo de Dawson é exemplar ao empregar não só os instrumentos proporcionados pela historiografia do período, como ao atuar pionei­ ramente numa perspectiva interdisciplinar.

3º) Há ainda o plano propriamente da razão histórica como pro­ cedimento interpretativo, vista como um sério empenho de compreen­ são do processos históricos conforme as regras próprias e autonomias desse tipo de investigação. Acima, no plano do fazer historiográfico

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

foram mais considerados os meios; neste campo particular é levado em conta o conteúdo a ser examinado e os resultados obtidos, o co­ nhecimento alcançado, as teorias formuladas e as propostas interpre­ tativas. Sem desdizer a importância de qualquer um desses planos, é deste quesito que mais carecemos. E é aqui que a leitura de Dawson, talvez, mais possa nos ajudar.

A respeito da razão histórica, o católico e o protestante, o cris­ tão em geral carece de uma reassunção de áreas do pensamento em que parece ter abdicado do exercício da cidadania. É preciso uma retomada efetiva. Abrimos mão da formulação de teorias sociais e de hipóteses interpretativas próprias com a marca de uma reflexão genuinamente cristã. Não se assume seriamente o desafio do Cristo, alfa e ômega, do Cristo critério de apreensão da realidade. Quando dizemos apreensão da realidade não é somente no julgar, mas também no ver, no modo de entendê-la e interpretá-la.

Cedemos terreno diante dos ataques da modernidade iluminista.

Sem deixar de reconhecer, na atualidade, o empenho dialogal estabe­ lecido entre a cristandade e a presente modernidade, não podemos es­ quecer a virulência dos ataques passados movidos contra a cristandade. E, não obstante a identificação de elementos profundamente humanos em tal perspectiva de modernidade, a esta também são próprios os fa­ tores que, mesmo hoje, a mantém em rota de colisão com a cristandade.

A vitalidade demonstrada, por exemplo, na modernidade barroca parece ter se assustado diante do desencadeamento, a partir de 1 789, dos ventos revolucionários e do furor das guerras que lhes acompa­ nhavam. A resposta do romantismo em sua vertente católica é tímida e acanhada, está mais preocupada em justificar-se e em lutar pela pró­ pria defesa e sobrevivência. De certo modo, mesmo não tendo faltado santos e profetas, a cristandade encastelou-se.

O campo das ciências humanas, salvo raríssimas exceções, foi de tal modo preterido no exercício intelectual criativo que os pressupos­ tos e leituras secularistas, materialistas e ateus parecem fazer mais

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sentido e parecem mostrar ser os mais adequados. Uma vez que na vertente protestante, para ficarmos em um exemplo, os abusos subje­ tivistas da teologia liberal resultaram na reação do fundamentalismo; no meio católico, a resposta mais emblemática veio, em 1 864, com o

Syllabus Errorum Modernorum [Sílaba dos Erros de Nossa Época],

uma enumeração sumária dos erros modernos apensada à encíclica

Quanta Cura, promulgada pelo papa Pio IX ( 1 792-1 878 ) em 8 de

dezembro de 1 864.

Essas reações costumam ser vilipendiadas ou enaltecidas, num confronto ideológico que nada acrescenta à cristandade, mas é pre­ ciso compreendê-las em seu contexto. Restringindo-nos ao caso da encíclica e do respectivo anexo, havia tamanha indigência intelectual entre os católicos, que o papa, como diz a linha inicial do documento pontifício, "movido por grande solicitude e zelo pastoral", não podia omitir-se, oferecendo a orientação possível no momento (D-2890).8

Era e é preciso sair do castelo. Uma tentativa que se alastrou rapidamente foi a iniciativa do sacerdote belga Josef Cardijn ( 1 8

82-1 967), coadjutor em sua paróquia, que começou, em 82-1 9 82-1 2, a desen­ volver um trabalho pastoral entre os jovens operários que acabou por ser o embrião da Ação Católica, fundada por ele em 1 920. Em pouco tempo outros núcleos se disseminaram, chegando ao Brasil em 1 935. Uma das razões de seu sucesso foi o método de análise da rea­ lidade incutido em seu seio: o ver-julgar-agir. Este método, apesar de desempenhar um relevante papel na recomposição do diálogo com as ciências humanas, em si traz um vício de origem, revelador da mes­ ma indigência no meio intelectual católico demonstrada pela encíclica

Quanta Cura e o seu Sílabo. Na maneira como o método é aplicado,

o ver se remete aos instrumentos de leitura das ciências, ao passo que atribui à Bíblia o julgar. Ou seja, a Bíblia nada teria a dizer em relação

8 Pio IX, Encíclica Quanta Cura de 8 de dezembro de 1 864. ln: Heinrich Denzinger, Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Fé e Moral. São Paulo, Paulinas/Loyola, 2007.

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

ao ver, deixando o terreno aberto, nesse particular, para a semeadura de teorias que em muitas situações não guardam nenhuma relação com a experiência cristã, a exemplo das teorias forjadas no horizonte materialista e ateu.

É um equívoco imaginar tais respostas como permanentes ou ideais. Em ambos os casos, elas tiveram os seus momentos nos respecti­ vos anos de 1 864 e 1 9 1 2 (os anos aqui são apenas simbólicos), e devem ser superadas. Ser católico, como o cristão, em geral, é consequência do seguimento a Cristo e n'Ele nos orientamos, tomando o Evangelho como inspiração ao elaborarmos as nossas teorias e interpretações.

Christopher Dawson, como dissemos, é um exemplo de exercí­ cio vigoroso nesse aspecto. O encontro com a sua obra nos oferece modelos, interpretações e hipóteses, toda uma problemática orgânica e genuinamente cristã, que usufrui de uma tradição de pensar que procede de um período muito anterior. Há temas próprios introdu­ zidos na reflexão historiográfica e há frutos da experiência cristã. O mestre Étienne Gilson ( 1 8 84-1 978), com extraordinário sucesso, demonstrou algo análogo para a Filosofia: a existência, com foros le­ gítimos, de uma filosofia caracteristicamente cristã, iluminada por tal experiência. São várias as obras do eminente filósofo nas quais pode­ mos encontrar uma sistematização a esse respeito, mas em particular

cito O Espírito da Filosofia Medieval,9 obra toda dedicada ao tema

da natureza da filosofia cristã e de suas características; vemos isso,

igualmente, na obra História da Filosofia Cristã, escrita juntamente

com Philotheus Boehner ( 1 90 1 - 1 955).1º

Como aqui não é o lugar para um tratado de maior fôlego, ca­ bem apenas rápidas e modestas anotações de quais seriam alguns

9 Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

10 Philotheus Boehner e Étienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 8. ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis, Vozes, 2003 .

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dos temas trazidos pela experiência cristã à escrita da História e que, portanto, podem ser encontrados em Dawson: o humanismo ou a dignidade própria do aspecto cultural e a autonomia do reli­ gioso; a exigência de síntese ou de perspectiva integral (holística ) da realidade; a relação entre espírito e matéria, o u como atuam as condicionantes ( fatores) materiais e imateriais - como desdobra­ mento desses temas; a relevância e a efetiva dimensão da liberdade humana na ação histórica; o caráter dramático da síntese apre­ sentada como a luta entre forças de integração e de dissolução. Nesses contributos, fundamentalmente enraizados numa antropo­ logia filosófica coerentemente evangélica, pode-se afirmar, indubi­ tavelmente, haver uma História com uma propriedade dita cristã a irradiar-se para outras historiografias.

Não é, pois, menor dizer que, independente da crença (ou mesmo na ausência desta), quem quer que se interesse tanto pela história do cristianismo, bem como pela história da cristandade - esta vis­ ta como expressão cultural daquele -, sairá beneficiado pela leitura d'A Formação da Cristandade: uma obra única, construída em aten­

ção às exigências íntimas de uma humanidade que anseia por reali­ zação plena, que não abre mão de compreender o seu lugar e se sente chamada à ação. A História de Dawson fala-nos ainda hoje, mais que nunca, não só ao cristão, mas ao homem de boa vontade, afirmando­ -se como uma obra clássica e de referência para quem quer que se interesse pela dinâmica das culturas históricas - aqui também inde­ pendente das diferentes filiações teórico-metodológicas que possamos vir a ter nesse campo de estudo. Como se vê, o pensamento e a obra Dawson seguem palpitando de vibrante atualidade.

Uma palavra final de agradecimento e louvor ao empenho de Alex Catharino e de Márcia Xavier de Brito, bem como da É Realiza­ ções Editora, na figura de seu editor Edson Manoel de Oliveira Filho, ao trazer para o Brasil uma obra que não só enriquecerá o leitor como também a nossa cultura, pelo contato mais extenso e intenso com o

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A Formação da C ristandade 1 Apresentação à Edição Brasileira

pensamento dawsoniano, em uma edição tão bem cuidada quanto a presente e que o caro leitor, agora, tem o privilégio de ter em mãos.

Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Na festa dos Santos Mártires Marcelino e Pedro

Manuel Rolph Cabeceiras

Cursou o bacharelado e a licenciatura em História e o mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a dissertação As Metamorphoses de Ovídio e as Lutas de Representação na Roma Antiga, e o dou­ torado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Urbi et Orbi, Nós e os Outros: Romanidade(s), Fronteira Étnica e a História como escrita dos dilemas pátrios. Professor, entre outras instituições, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, 1 986-1 997) e da UFF (desde 1 997), onde fundou, com ou­ tros docentes, estudantes e pesquisadores, o Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA-UFF) . Atua na área de História da Antiguidade Greco-romana e da Alta Idade Média, com ênfase nos seguintes temas: Mediterrâneo, História Cultu­ ral, Discurso e História, Etnicidade, Mitologias, Tradições Clássicas, História Militar, História das Religiões e Paleocristianismo. Sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) e membro da Associação Nacional de História (ANPUH) e da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sócio emérito do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB), ocupando a cadeira 89, cujo patrono é Olavo Bilac. Editor assistente e membro do Conselho Editorial da edição

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P re f á c i o à E d i ç ã o B r a s i l e i r a A CRIS TAN D A D E D E CHRIS TOPH ER D AWSON

-POR BRA DLEY J. BIRZER

1 3 1

Como verificamos, a trilogia da cristandade foi a última gran­ de obra do historiador anglo-galês e literato Christopher Dawson ( 1 8 89-1 970). Mais ou menos. A trilogia surgiu, originalmente, das palestras que Dawson ministrara enquanto lecionou na Universidade de Harvard, entre 1 95 8 e 1 962. Desej ava que fizessem parte da trilo­

gia da cristandade o presente livro, The Formation of Christendom

[A Formação da Cristandade] , lançado originalmente em 1 967; The

Dividing of Christendom [A Divisão da Cristandade], publicado em

1 9651, e The Return to Christian Unity [O Retorno à Unidade Cris­

tã] . No geral, cada volume representava um dos grandes períodos do mundo cristão: o vínculo entre os períodos antigo e medieval; a Reforma Protestante e a Contrarreforma Católica; e a Igreja na era da democracia, dos nacionalismos e das ideologias.

Embora A Formação da Cristandade sej a, tecnicamente, o pri­

meiro volume da série, a obra surgiu dois anos após o lançamento

do segundo volume, A Divisão da Cristandade. A ideia de publi­

car as conferências como trilogia ocorreu a Dawson em 1 96 3 . Seu editor, Frank Sheed ( 1 8 97-1 9 8 1 ), prontamente concordou. A úni­ ca questão era se os publicariam separadamente, como três obras

1 Os dois livros foram relançados em inglês nas respectivas edições: Christo­ pher Dawson, The Formation of Christendom. San Francisco, lgnatius Press, 2008; Idem, The Dividing of Christendom. Pref. James Hitchcock; intr. David Knowles. San Francisco, lgnatius Press, 2008.

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A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira

distintas, ou logo corno urna trilogia. 2 Sheed gostaria de publicá­ -las o quanto antes, pois esperava que os livros pudessem servir de base para os debates do Concílio Vaticano II, realizado entre 1 962 e 1 965. Não sem razão, Sheed acreditava que Dawson - j unta­ mente com urna série de outros humanistas cristãos corno Jacques Maritain ( 1 8 82- 1 973 ) e Étienne Gilson ( 1 8 84- 1 97 8 ) - pudesse ser­ vir corno pedra angular e manancial para as importantes delibe­ rações e reformas do Concílio. Afinal, figuras importantes, corno Romano Guardini ( 1 8 85 - 1 96 8 ), clamavam por reformas litúrgicas desde a década de 1 920.3

Nada, corno de fato aconteceu, poderia estar mais distante da verdade. Corno acreditava a maioria dos teólogos e das editoras ca­ tólicas nos anos 1 960, o Espírito Santo abolira muito do passado recente, e poucos, afora um pequeno número de fiéis, ainda pensavam que Dawson tinha muito a contribuir para o futuro do catolicismo. O próprio sucesso que obtivera corno pensador católico de 1 928 a 1 962, nesse momento, contava negativamente, e muitos o viam corno urna relíquia da geração passada e um símbolo daquilo que acabara de ser superado. Corno posteriormente explicou o teólogo neocon­ servador Michael Novak: "É corno se todos aqueles escritos potentes de Dawson, Maritain, Guardini e de tantos outros nunca tivessem realmente criado raízes" . 4

Além disso, Frank Sheed se aposentou em 1 963, saindo quase to­ talmente do caminho de seus sucessores. Sem Sheed na editora Sheed and Ward, não restava ninguém no mundo editorial que promovesse,

2 Carta de Frank Sheed para Christopher Dawson, de 16 de dezembro de 1 963. ln: Box 1 , Folder 1 3 , Sheed and Ward Family Papers, Archives of the University of Notre Dame, Notre Dame, Indiana.

3 Carta de Sheed para Dawson, 10 de dezembro de 1 963. ln: Box 1, Folder 1 3 , Sheed and Ward Family Papers, Notre Dame.

4 Michael Novak, "The Political Identity of Catholics" . Commonweal 97, 16 de fevereiro de 1 973, p. 44 1 .

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ativa e significativamente, as obras de Dawson. Quando incitado a responder por que a editora Sheed and Ward fez tão pouco para pro­

mover A Formação da Cristandade, o sucessor de Sheed desculpou-se:

"Há, como sabem, uma falta de interesse nesta obra que acho extre­ mamente lamentável. Ao mesmo tempo, só posso sugerir que, em ge­ ral, parece existir uma total falta de interesse na História da Igreja", escreveu numa carta privada o editor-chefe Philip Scharper ( 1 9 1

9-1 9 8 5 ) . Quase ninguém prestou atenção n'A Divisão da Cristandade,

observou, e, provavelmente, um número muito menor de pessoas se importariam com A Formação da Cristandade. 5 Infelizmente, fosse

ou não autorrealizável a profecia de Scharper, muito poucos se deram conta dessa obra quando foi lançada.

A imprensa mainstream norte-americana, como o New York

Times e o Wall Street ]ournal, ignorou-a completamente. Somen­

te duas revistas acadêmicas, a Sociological Analysis e a Catholic

Historical Review escreveram resenhas a respeito do livro de 1 967.6

Os resenhistas apresentaram pontos de vista opostos aos de Daw­

son. Werner Stark ( 1 909- 1 9 8 5 ) , da universidade jesuíta Fordham

em Nova York, nitidamente queria gostar do livro, ao chamar o autor de "distinto" e ao saudar a intenção de escrever uma história a partir da perspectiva católica como algo admirável e louvável. "A questão é, certamente, quão bem tal programa foi implementado e, a esse respeito, infelizmente, não posso negar certo desapontamen­ to", afirmou Stark. As próprias visões datadas de Dawson de uma "teoria da história de grandes homens" já estavam morrendo, la­ mentou o resenhista. O maior problema de Dawson, contudo, vinha de sua incapacidade de explicar o catolicismo e sua profundidade aos protestantes. "A discussão sobre o monaquismo, por exemplo,

5 Carta de Philip Scharper para John Mulloy, de 29 de novembro de 1 967. ln: Box 1 1 3, Folder 44, Sheed and Ward Business Collection, Notre Dame. 6 Ver: Werner Stark, Sociological Analysis 28, Outono, 1 967, p. 1 72-73; Martin R. P. McGuire, Catholic Historical Re11iew 56, Abril, 1 970, p. 2 1 9-20.

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A Formação da C ristandade 1 Prefácio à Edição Brasileira

deixa de transmitir o que era seu significado mais profundo ", escre­ veu Stark. "O professor Dawson não disse aos alunos que os pio­ neiros do monaquismo queriam provar para Deus e para os homens que, na verdade, homens podiam ser divinos e, mesmo decaídos, podiam ser como Adão fora antes do Pecado Original " . 7 O pro­ fessor da Catholic University of America ( CUA), Martin McGuire

( 1 8 9 7- 1 9 6 9 ) , no entanto, não encontrou erros na obra A Formação da Cristandade. Representava o historiador galês "em sua melhor forma " , oferecendo "profundos insights e grande poder de síntese" .

O leitor, McGuire entusiasma, "é arrebatado não só pela profundi­ dade das reflexões, mas pela concretude dos exemplos " . Compará­ vel à originalidade do pensamento de Dawson, conclui, está o estilo de escrita "cativante" do autor.8

Devemos notar que, apesar de Sheed ter-se aposentado da editora Sheed and Ward, nunca perdeu a fé em Dawson. Desde o primeiro encontro, os dois iniciaram uma amizade rápida e, por vezes, frus­ trante. Sheed não só encorajou Dawson profissionalmente, ao editar significativa parcela da obra do amigo, mas também ajudou a dar alguma estabilidade ao maníaco-depressivo Dawson. Se existiu um "renascimento literário católico" no mundo de língua inglesa após a Primeira Guerra Mundial, Sheed o creditou a seis homens: Hilaire Belloc ( 1 8 70- 1 95 3 ) , G. K. Chesterton ( 1 874- 1 93 6 ) , C. C. Martindale ( 1 8 79- 1 96 3 ) , Ronald Knox ( 1 8 8 8- 1 957), Christopher Dawson e ao

inspirador de todos, o maior teólogo de todos os tempos, Santo Agos­ tinho de Hipona ( 354-430).9 Sheed, no entanto, tinha perdido a fé no

renascimento pleno do catolicismo já em 1 95 8 . A mentalidade cató­

lica provara, repetidas vezes, a própria genialidade em autores como Dawson, mas nunca se estendeu além das letras para os domínios

7 Werner Stark, Sociological Analysis, p. 1 72-73 . 8 Martin McGuire, Catholic Historical Review, p. 220.

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da arte e da arquitetura, lamentava. Tal limitação levaria, por fim, à implosão do movimento. 10

Igualmente prejudicial a Dawson foi a indicação de seu melhor anú­ go, E. I. Watkin ( 1 888-1981 ), como seu agente e editor literário. Dawson sofrera uma série de derrames devastadores ao longo da década de 1960, perdendo, por fim, a capacidade de escrever e falar. Certamente precisava indicar alguém para ternúnar a obra. Watkin, entretanto, pernútiu que suas paixões roubassem o que tinha de melhor a oferecer. O Concílio Vatica­ no II o enfureceu. Rotulou o concílio e suas conclusões de "deformação". A nova Igreja, preocupava-se Watkin, tinha retornado ao barbarismo e nunca entenderia as nuances de um pensador tão profundo quanto Dawson.1 1 Desencorajado, Watkin editou as últimas duas obras de Da­ wson, mas com pouco entusiasmo. Em 1969, um ano antes da morte de Dawson, seu melhor anúgo escreveu a respeito dele e das últimas obras. O Vaticano II nunca poderia refutar Dawson, mesmo se tentasse fazê-lo: "Não pode, pois suas interpretações estão seguramente ancoradas no fato histórico. Ele é, simplesmente, descartado" .12 Apesar de Dawson também crer que o Vaticano II estava repleto de erros, aceitara o concílio e seus ensinamentos por questão de autoridade. Watkin nunca o aceitou. 13

1 0 Idem, "I am a Catholic Publisher" . Westminster Cathedral Chronicle, set./ out., 1 959, p. 1 3 7.

1 1 Carta de E. 1. Watkin para Bernard Wall, de 28 de fevereiro de 1 969. ln: Box 1, Folder 24, Bernard Wall Papers, Archives of Georgetown University, Georgetown, Washington, D.C.

12 E. 1. Watkin, "Tribute to Christopher Dawson", The Tablet, 1 969, p. 974. 13 Watkin é uma figura fascinante por si mesma. Escreveu inúmeras obras críti­ cas sobre arte e cultura na mesma época em que Dawson escrevera suas obras. Frequentaram a mesma escola quando crianças e mantiveram uma amizade muito próxima por toda a vida. Watkin, certa vez, descrevera o relacionamento deles em termos clássicos. Ele era grego e Dawson, romano. Watkin, no entan­ to, sempre fora um tanto heterodoxo. Manteve um estrito pacifismo e viveu de modo quase bígamo durante a maior parte da vida adulta. A seu respeito só existe uma biografia, escrita pela própria filha. Ver: Magdalen Goffin, The Watkin Path: An Approach to Belie(. Eastbourne, Sussex Academic Press, 2006.

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