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Área 3: Teoria Social Crítica e Emancipação Humana UM ENSAIO SOBRE O TRABALHO COMO DOMINAÇÃO SOCIAL *

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Academic year: 2021

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Área 3: Teoria Social Crítica e Emancipação Humana

UM ENSAIO SOBRE O TRABALHO COMO DOMINAÇÃO SOCIAL* Henrique Pereira Braga∗ Renata Oliveira Contesini∗ Resumo

A partir das transformações na sociedade moderna, determinadas interpretações da análise de Marx a torna uma crítica inadequada ao sistema capitalista. Acreditamos que compreender a essência do sistema capitalista é fundamental para orientar a prática de todos que o contestam e que vislumbram uma sociedade que não sujeite ou subordine os sujeitos à sua dinâmica autônoma. Em virtude disso, autores, como Moishe Postone, apresentam uma reinterpretação das categorias da análise crítica de Marx. Neste sentido, este artigo pretende apresentar em linhas gerais as interpretações da obra de Marx que embora tenham grande circulação, entendemos que sejam equivocadas. E, com base na reinterpretação de Postone, desenvolver as concepções genuínas da crítica de Marx, em particular, em relação à dominação social no capitalismo. Tentaremos mostrar neste trabalho que a dominação social, em última instância, não está baseada em um modo de dominação e exploração de classe. Ela está fundamentada em um sistema abstrato, objetivo e impessoal, que estrutura e é estruturante da prática social.

Palavras Chaves: Marxismo, Trabalho, Tempo.

Abstract

With the transformations of the modern society, some interpretations about Marx analysis makes an inappropriate critic of capitalist system. We believe that understand the essence of the capitalist system is central for guide the practice of all which contest and see another society in which the people wasn’t subjected to a dynamic automatic. Under this think, authors, like Moishe Postone, present a reinterpretation of the categories of the Marx critical analyses. Therefore, this article is an attempt to present, in general lines, the interpretation of Marx work which though has great circulation, we understand which being wrong. And, with the Postone’s reinterpretation, development the conceptions genuine of the critic of Marx, in particular, concerning to the social domination in the capitalism. We attempt to show, in this work, which the social domination, ultimately, weren’t based in a mode of domination and exploitation of classes. The social domination is founded in an abstract system, objective and impersonal, which structure and is structuring the social practice.

Key-words: Marxism, labor, time. *

Gostaríamos de agradecer ao doutorando Hugo Côrrea pelo incentivo nos dado para escrever este artigo e a todos que contribuíram para a nossa formação teórica, em especial Lérida Povoleri, Mario Duayer, João Leonardo Medeiros e Paula Nabuco. Como não poderiamos deixar de mencionar, quaisquer equívocos ou omissões são, no entanto, de nossa inteira responsabilidade.

Mestrando em Economia da Universidade Estadual de Campinas. ∗

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INTRODUÇÃO

Diante da crise econômica, política e social que atravessa o mundo, cabe-nos questionar sobre o porquê de uma alternativa ao capitalismo não emergir com a capacidade de derrotá-lo. Muitas explicações são dadas a esse respeito, algumas tentam se apoiar na imensa capacidade produtiva do capitalismo aliada a sua habilidade de se reinventar, sendo que outras procuram destacar a forma de organização eficiente promovida pelo mercado – a despeito da atual crise. Entretanto, nenhum desses esclarecimentos mostra o caráter subordinado do homem no modo de produção capitalista e, por conseguinte, a forma como se dá essa subordinação.

Entendemos que a incompreensão desses dois aspectos contribuem para a (des)ordem dos diversos movimentos políticos e sociais que se opõem ao regime do capital. Na agenda destes movimentos estão: a conscientização do aquecimento global, a luta por acesso a terra, equidade e distribuição de renda, o combate a pobreza e a desigualdade social, entre outras reivindicações. Contudo, observa-se que as exigências que são feitas pelos movimentos sociais não envolvem uma mudança substancial. Talvez se possa dizer que estas ações são específicas e buscam soluções imediatas. Em outras palavras, embora estas contestações sejam legítimas e generosas, não atacam a origem dos problemas que contestam. De acordo com Anselm Jappe, autor que reivindica uma crítica imanente ao capitalismo,

Quem se contenta em querer um capitalismo “de rosto mais humano” ou um capitalismo “ecológico” perde o que de melhor havia nas revoltas iniciadas em maio de 68, ou seja, o desejo de tudo transformar em objeto de crítica, a começar pela vida cotidiana e pela “loucura” cotidiana da sociedade capitalista que coloca os indivíduos perante a absurda alternativa entre sacrificar a vida ao trabalho (perder a vida a ganhá-la) e sofrer as conseqüências de não ter trabalho. (Jappe, 2006: 11-12)

É crucial, para que ocorram mudanças efetivas nesta sociedade, uma crítica que realmente compreenda a essência do capitalismo e que possa orientar a prática dos que a contestam. Se o que afirmam Duayer e Medeiros (2003: 245) procede, "se o mundo, tanto o natural como o social, existe independentemente de nossas representações, a sua representação mais adequada possível é condição para a satisfação de nossas necessidades e desejos possíveis", é necessário uma crítica categorial ao capitalismo, de forma a explicitar o caráter subordinado do homem no modo de produção capitalista e, por conseguinte, a forma como se dá essa subordinação.

Com vistas à investigar a submissão do homem e a forma dessa sujeição na sociedade capitalista, torna-se um imperativo investigarmos a obra de Marx e as revisões críticas a respeito dela. É impreterível revisitar Marx por conta do amplo exame que este autor realizou das relações sociais que governam o modo de produção capitalista. Esse objetivo está enunciado no prefácio à primeira edição de O Capital1 e é perseguido durante toda a obra através da construção categorial, cuja preocupação é demonstrar com rigor o desenvolvimento lógico das categorias e sua representação no

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“Mesmo quando uma sociedade descobriu a pista da lei natural do seu desenvolvimento — e a finalidade

última desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna —, ela não pode

saltar nem suprimir por decreto as suas fases naturais de desenvolvimento. Mas ela pode abreviar e minorar as dores do parto”. (Marx, 1985: 131 – grifo nosso)

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mundo social. Essa análise conduz o leitor a áridas abstrações. As abstrações em si não constituem um procedimento maligno, tanto que a economia política clássica utilizou esse recurso analítico para examinar o trabalho na sociedade capitalista. Ao realizar a abstração, diferentemente da economia política clássica, Marx irá explicar a gênese lógica das categorias como formas abstratas que se expressão em fenômenos sociais concretos2. Porém investigar o desenvolvimento categorial realizado pelo autor a partir do exame de sua obra foge ao escopo desse trabalho.

A princípio, nosso trabalho consiste em apresentar a interpretação de Moishe Postone da obra de Marx, retirando desta explanação às principais conclusões que dizem respeito à forma e ao caráter da subsunção dos homens na sociedade capitalista. Contudo, cabe uma breve explicação sobre o porquê da crítica do autor como forma de justificar nossa escolha por ele.

Em seu livro Tiempo, Trabajo e Dominacion Social, Moishe Postone dedica longa crítica as várias interpretações da obra de Marx realizadas ao longo do século XX. O traço característico dessas interpretações reside no tratamento dado às categorias desenvolvidas por Marx em suas obras maduras. Para Postone, é necessário reconceitualizar as categorias da análise crítica de Marx, pois somente assim será possível reconhecer a sua atualidade diante das mudanças na sociedade regida pelo capital. Desta maneira, Postone denomina marxismo tradicional as interpretações que tem uma determinada leitura da obra de Marx, que vem se demonstrando equivocadas. Segundo o autor, o marxismo tradicional não é uma "tendência histórica do marxismo" (Postone, 1993: 4), mas uma interpretação que aglutina todas as abordagens teóricas que analisam a sociedade capitalista do ponto de vista do trabalho e descrevem as estruturas do capitalismo em termos de propriedade privada dos meios de produção e mercado. Nesta concepção, a classe capitalista por deter os meios de produção domina a classe trabalhadora, desta forma, a dominação social é entendida como um modo de exploração e dominação de classe.

De acordo com o autor, o marxismo tradicional ao fundamentar a sua análise na centralidade do trabalho na vida social faz uma crítica “positiva” ao capitalismo. Nesta abordagem, a possibilidade de organizar a produção de uma forma mais justa e racional já está estruturada e é baseada no modo de produção industrial. O que deve ser transformado no capitalismo é o seu modo de distribuição. Nesta perspectiva, a dominação social será superada quando forem suprimidas as relações sociais capitalistas, reduzidas à propriedade privada e ao mercado – se os capitalistas são a classe dominante no sistema capitalista, no socialismo, a classe trabalhadora será a classe universal. (Postone, 2006: 117)

Ao contrário dessa interpretação, Postone sugere que Marx faz uma crítica negativa do trabalho no capitalismo ao tratá-lo como historicamente específico e

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Para apreciação crítica da discussão entre gênese lógica e gênese histórica das categorias, destacamos a seguir a passagem de Jappe (2006: 38): “Com a sua análise da forma valor no terceiro sub-capítulo do primeiro capítulo de O Capital, Marx toma o caminho inverso, que é muito mais difícil, um caminho em que se mostra totalmente hegeliano e em que abandona completamente o método da economia política. Marx quer agora explicar a gênese lógica – não gênese histórica – das categorias encontrada na realidade empírica, em vez de aceitá-las como meros dados. Trata-se, para Marx, de explicar como e por que razão as forma de bases abstratas se tornam os fenômenos visíveis à superfície. Desta maneira, desvela a respectiva relação de pertença a certa formação social, em vez de ver nelas dados naturais presentes em toda a parte, como sucede com a economia política burguesa”.

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estruturante da prática social. Para o autor, a intenção da análise crítica de Marx é compreender a especificidade do capitalismo, mas não com o interesse de apresentar soluções imediatas aos problemas da sociedade porque as mudanças serão fundamentadas em bases distintas do sistema capitalista, o que torna a transformação da sociedade uma possibilidade. Ao entendermos o capitalismo por essa perspectiva, a superação desse modo de produção não se dará quando o proletariado alcançar o poder, pois a dominação não é entendida como uma dominação estruturada em uma forma de dominação e exploração de classe. Postone afirma que embora a sociedade esteja dividida em classes, em última instância, este não é o território da dominação. No capitalismo, o trabalho estrutura a vida social, por conseguinte, todas as relações sociais são reduzidas ao trabalho, portanto, os sujeitos são dominados pela produção. (Ibid: 114)

A caracterização da dominação social realizada por Postone permite aprofundar o entendimento da crítica de Marx e faz da reinterpretação da obra de Marx proposta pelo autor uma contribuição a ser explicitada. Realizar a explanação de toda a contribuição do autor não será o objetivo desse trabalho. Entretanto, iremos tratar das principais formulações que abordam a feição e a especificidade da subordinação do homem na sociedade capitalista.

Para atingirmos este propósito, o trabalho está dividido em duas seções além da conclusão. Na primeira seção iremos caracterizar o que torna o trabalho historicamente específico e a dominação social engendrada por esse trabalho. Esta seção é o fundamento para a seção seguinte, na qual iremos tratar da forma como o tempo é constituído na sociedade capitalista.

2 - TRABALHO ENQUANTO DOMINAÇÃO SOCIAL

Nesta seção, tentaremos abordar a questão da dominação social no capitalismo a partir da reinterpretação de Postone das categorias de Marx. Segundo o autor, a dominação social, em última instância, não é estruturada em um modo de exploração de classe, mas está fundamentada em uma forma historicamente específica do trabalho. Iniciaremos a nossa argumentação a partir da caracterização de Marx sobre a mercadoria.

Marx antes de explicar as estruturas do capitalismo, identificou a relação social básica desta sociedade: a mercadoria. De acordo com Marx, a partir desta categoria é possível desdobrar a totalidade da sociedade moderna, constituída pelas relações sociais fundamentais do capitalismo. A mercadoria é a objetivação do trabalho no capitalismo e, por isso, possui um caráter dual. É, ao mesmo tempo, valor de uso e valor. Ou seja, é a objetivação tanto do trabalho concreto quanto do trabalho abstrato, dois momentos do mesmo trabalho. Por trabalho concreto entende-se que é uma atividade produtiva particular, na qual se produz um bem que possui uma determinada qualidade e, portanto, satisfaz uma necessidade humana específica. Por trabalho abstrato compreende-se que todo trabalho, independente de sua peculiaridade, é dispêndio de força de trabalho. Enquanto o trabalho concreto constitui o valor de uso, o trabalho abstrato constitui o valor (ibid: 188-189).

Postone afirma que uma sociedade que tem a mercadoria como a sua forma elementar da riqueza possui uma interdependência social distinta de todas as outras formas sociais. A conexão social se dá por meio da troca ou da venda de mercadorias.

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Os sujeitos não produzem para o seu consumo, mas produzem com a finalidade de adquirir outras mercadorias e, desta maneira, suprirem suas necessidades. Segundo o autor, quando este novo tipo de interdependência social atinge seu pleno desenvolvimento, passa a ter um caráter sistemático e necessário, que suplanta todas as outras formações sociais à medida que se desenvolve em escala global. O autor destaca que isso ocorre quando a própria força de trabalho transforma-se em mercadoria. Neste momento, a única coisa que pertence aos trabalhadores é sua força de trabalho e para ter acesso às outras mercadorias é preciso que ele a venda (Ibid: 212).

Nas sociedades que não são estruturadas pela mercadoria, a produção e a distribuição são baseadas em relações sociais diretas. Ou seja, por costumes, tradições, dependência pessoal ou decisões conscientes. Nas palavras de Postone, nestas sociedades “as atividades de trabalho se definem como abertamente sociais e qualitativamente particulares, as relações sociais que constituem seu contexto imbuem de significado os diversos trabalhos” (Ibid: 214-215).

No capitalismo, os indivíduos não adquirem ou distribuem os seus produtos através de relações sociais imediatas. É o trabalho que exerce a função de mediação social. Os sujeitos ao não produzirem mais para o próprio consumo necessitam entrar em contato uns com os outros para adquirem outros produtos. A finalidade do próprio trabalho ou da sua objetivação é a aquisição de outras mercadorias que não seja a sua. O que se produz é um valor de uso para o outro e, ao mesmo tempo, um valor para si. Neste sentido, o outro é um meio de satisfação, pois somente através de seu trabalho é possível se satisfazer (Ibid: 213).

O trabalho assume a função de mediador social devido ao seu caráter dual. Enquanto o trabalho concreto é o metabolismo entre os sujeitos e a natureza, o trabalho abstrato é o que constitui a mediação social. Ao se abstrair todas as particularidades dos trabalhos e seus produtos, ao reduzi-los a dispêndio de força de trabalho, eles se tornam equivalentes. Nesses termos, é possível comparar os diversos trabalhos e suas objetivações. Desta maneira, é viável trocar ou vender os produtos sem se basear em costumes ou tradições.

O papel da mercadoria como mediação social independe de seu valor de uso e isto é válido para todas as mercadorias. O produto do trabalho, embora seja adquirido por sua especificidade, é vendido como um meio geral. Isto ocorre em um contexto histórico em que a mercadoria encontra-se generalizada e, por conseguinte, todos os trabalhadores produzem mercadorias e todas as mercadorias têm o papel de mediação social. O trabalho de todos os produtores tem como finalidade ser meio para adquirir outros bens. Em outras palavras, o trabalho de todos tem a função de mediação social não apenas entre os produtores, mas este papel é socialmente generalizado (Ibid: 215-216). Ou seja, mesmo que uma pessoa não trabalhe, o trabalho permanece sendo o vínculo entre as pessoas.

De acordo com Postone, o trabalho de todos os indivíduos no capitalismo representa, por um lado, conjunto de vários trabalhos concretos e, suas objetivações, um acúmulo de valores de uso. Por outro lado, esses trabalhos consistem em mediações sociais. Entretanto, isso não significa que temos um conjunto de distintos trabalhos abstratos, mas sim uma mediação social geral, ou seja, o valor. Nesse referencial, a mediação é geral não apenas porque estabelece o vínculo entre as pessoas, mas porque o trabalho é abstraído de qualquer particularidade (Ibid: 216-217).

Como destacamos anteriormente, a dimensão abstrata do trabalho transforma todas as formas de trabalho e todos os seus produtos em equivalentes. Neste sentido, os

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trabalhos do marceneiro e do sapateiro são iguais, são trabalhos humanos em geral, são mediações sociais. Assim, por um lado, não importa o que se produza desde que a venda da mercadoria seja realizada, desde que se concretize a mediação social. Por outro lado, o que em outras sociedades não é considerado trabalho, no capitalismo passa a ser (Ibid: 217).

Segundo Postone, no capitalismo, as relações sociais são sociais de uma forma particular, existem somente através do trabalho. Embora as relações sociais imediatas permaneçam existindo, elas não estruturam a sociedade, o que permeia a sociedade são as relações constituídas pelo trabalho, pelo caráter historicamente específico do trabalho (Ibid: 218).

Para Marx, a centralidade do trabalho na sociedade capitalista não está relacionada ao fato da produção material ser uma pré-condição para a vida social, mas ao fato de o trabalho constituir as relações sociais. Desta maneira, embora o metabolismo dos sujeitos com a natureza mediante o trabalho seja fundamental para a existência social, é o trabalho que estrutura a sociedade (Ibid: 222-223).

Marx indica que na produção regida pelo valor os sujeitos estão dominados pela produção. Enquanto em outras sociedades, a produção estava subordinada aos sujeitos, no capitalismo, os sujeitos estão subordinados à produção. Em outras palavras, os sujeitos estão dominados pelo trabalho social, precisamente pelo trabalho abstrato. A dominação no sistema capitalista é uma dominação abstrata. Embora a sociedade capitalista esteja dividida em classes, segundo Postone, este não é o território último da dominação social. Na realidade, os sujeitos estão dominados por um modo supra-ordenado e abstrato, o trabalho.

Postone afirma que no capitalismo o trabalho fundamenta um novo tipo de dominação social que possui um caráter impessoal, abstrato e objetivo. Nesta sociedade os sujeitos são obrigados a produzir e a trocar mercadorias não porque são coagidos diretamente, como na escravidão. Insistimos que os limites da dominação não estão fundamentados em uma dominação por uma pessoa, classe ou instituição. A dominação social está fundamentada em um tipo de prática que está estruturada pelo trabalho abstrato e é estruturante do trabalho abstrato (Ibid: 224).

De acordo com Postone, a naturalização da dominação abstrata do trabalho como centralidade da vida social se fundamenta em dois tipos de necessidade. Uma necessidade é transhistórica, trata-se da produção material que é pré-condição para a vida social e que, por isso, pode ocultar a especificidade do trabalho no capitalismo. A outra necessidade é historicamente determinada e é em função do trabalho como mediação social. Segundo o autor, estes dois tipos de necessidade, se apresentam apenas como necessidade transhistórica. Desta maneira, o papel do trabalho como mediação social aparenta ser naturalizado. Nas palavras de Postone, "esta necessidade aparentemente transhistórica - que o trabalho individual é o meio necessário para o próprio consumo (ou familiar) - constitui a base de uma ideologia legitimadora fundamental da formação social capitalista como um todo, através de suas diversas fases" (Ibid: 227). Entretanto, para que se possa compreender a dominação abstrata é necessário entender a categoria valor como uma forma historicamente específica de riqueza, pois o valor é o núcleo da dominação.

Para Postone, do mesmo modo que existem duas dimensões do trabalho, existem duas formas de riqueza no capitalismo, o valor e a riqueza material. A riqueza material é criada pela interação entres os indivíduos e a natureza, e não apenas pelo trabalho. Depende da organização da produção, das habilidades adquiridas pelos trabalhadores,

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do nível de desenvolvimento e aplicação da ciência. Sua grandeza é em função tanto da quantidade quanto da qualidade dos bens. Postone afirma que a forma da riqueza material manifesta tanto a relação dos sujeitos com a natureza quanto com a objetivação dos diversos trabalhos. Desta maneira, a riqueza material não determina as relações sociais e nem a forma da sua própria distribuição. Assim, segundo Postone, se a riqueza material existe como a forma dominante de riqueza social, então são necessárias relações sociais diretas de mediação social (Ibid: 266-267).

Postone destaca que o valor é uma categoria de mediação que tanto é uma forma auto-distribuída da riqueza quanto é uma relação social que se auto-medeia. Esta mediação existe de forma objetivada nas mercadorias, não considera as particularidades do trabalho, é independente das relações diretas entre as pessoas e, por conseguinte, aparenta ter um caráter impessoal.

A grandeza do valor, não está em relação da quantidade ou qualidade dos produtos que são produzidos, mas é determinada pelo tempo. De acordo com Marx, a grandeza do valor não é em função do tempo gasto em uma determinada mercadoria, mas sim do tempo socialmente necessário para sua produção. Desta forma, a referência da grandeza do valor é a sociedade como um todo. Todos os produtores estão subordinados a esta regra geral. Os produtores não apenas são obrigados a trocar o que produzem para sobreviver como precisam seguir esta regra geral caso queiram receber o valor total de sua mercadoria. Em outras palavras, o tempo passa a ser uma necessidade. Segundo Postone, o tempo de trabalho socialmente necessário é uma categoria da totalidade do capitalismo que representa uma necessidade social quase-objetiva à qual todos os produtores estão subordinados. Esta é a dimensão temporal do modo de dominação abstrata no capitalismo (Ibid: 262-263). Abordaremos melhor esta questão na próxima seção.

Nesses termos, enquanto o trabalho abstrato suprime as particularidades dos produtos dos trabalhos, reduzindo-os a dispêndio de força de trabalho, sua grandeza abstrai a quantidade desses produtos, reduzindo-os a tempo de trabalho despendido na sua produção. Desta forma, tanto a forma de riqueza (valor) quanto a sua medida (tempo) são mediações sociais.

Postone aponta que o valor, que é uma categoria de produção capitalista, também delimita as estruturas alienadas. Tanto as relações sociais, que são objetivações do trabalho no capitalismo, como as estruturas alienadas se equivalem (Ibid: 225). A alienação ocorre porque o indivíduo e as suas relações sociais são reduzidas ao trabalho em face de tantos outros momentos de sua universalidade, por exemplo, os laços de amizade que não necessariamente devem ser fundamentados pelo trabalho.

Segundo Postone, caso se compreenda o trabalho como transhistórico, o que distingue a alienação da objetivação está fundamentado em fatores extrínsecos ao trabalho, por exemplo, por relações de propriedade. Neste caso, a alienação é entendida como a apropriação pelos capitalistas de uma parte do que é produzido pelos trabalhadores. Entretanto, não é desta maneira que Marx analisa a categoria alienação. A alienação está baseada no caráter dual do trabalho, ou seja, a alienação tem origem no próprio trabalho no capitalismo. Nesses termos, a objetivação é a própria alienação, pois o trabalho também se objetiva nas relações sociais. Nas palavras de Postone, "este modo de dominação reflexiva auto-gerada é a alienação" (Ibid).

De acordo com Postone, "a alienação é processo de objetivação do trabalho abstrato" (Ibid: 228). Este processo induz um rápido desenvolvimento das forças produtivas, do progresso técnico, da regulamentação formal do tempo e resulta em uma

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rápida acumulação da riqueza. Entretanto, este rápido crescimento, que é necessário para se ampliar o acesso aos outros bens, foge ao controle dos sujeitos (Ibid).

Sob esta ótica, não se deve entender necessariamente o trabalho alienado em termos de esforço, opressão ou exploração, pois, por exemplo, "o trabalho de um servo, uma parte do qual pertence ao senhor feudal, não está, em e por si mesmo, alienado: a dominação e a exploração deste trabalho não são intrínsecas ao trabalho mesmo" (Ibid: 226). Desta forma, a coerção só pode ser mediante a dominação direta. Entretanto, quando a exploração e a dominação são dimensões imanentes do próprio trabalho, a dominação é abstrata. Neste sentido, Postone destaca que "o trabalho de um produtor de mercadorias independente está alienado, no mesmo grau que o do trabalhador industrial" (Ibid). A coação no capitalismo é abstrata, é resultado das relações sociais objetivadas pelo trabalho que tem a função de mediação social. Desta forma, a alienação no capitalismo não está fundamentada no fato de uma classe não produtiva se apropriar do excedente produzido pelos trabalhadores, a mais-valia, mas sim no trabalho no capitalismo.

A mais-valia, o valor produzido além do valor necessário para a própria reprodução dos trabalhadores e que é apropriado pelos capitalistas, é difundida como o excedente produzido unicamente pelo trabalho, marginalizando todos os outros fatores, como a natureza. Nesta interpretação, os trabalhadores são remunerados pela sua capacidade de trabalho e não pelo o que produzem, porém pensam que estão sendo pagos por tudo o que produzem ao receberem os seus salários. No capitalismo, a exploração não é evidente, mas a categoria mais-valia demonstra a exploração não aparente (Ibid: 400).

Nesses termos, a crítica à exploração e à dominação no sistema capitalista restringe-se a expropriação da mais-valia. Entretanto, Marx não apenas se preocupou com a origem da mais-valia, mas como ela é produzida. “Marx analisa o processo de valorização - o processo de criação da mais-valia- em termos do processo de criação do valor” (Ibid). Quando o valor é a forma de riqueza da sociedade a finalidade da produção, essencialmente, é a mais-valia. Em outras palavras, "o objetivo da produção capitalista não é simplesmente o valor, mas a constante expansão da mais-valia" (Ibid).

Segundo Postone, o capital "consome a natureza material não somente como base da riqueza material, mas também como um meio para estimular sua própria auto-expansão - isto é, como um meio para efetuar a extração e absorção de tanto mais-valia das populações trabalhadoras quanto seja possível" (Ibid: 404-405). Nesse referencial, quantidades crescentes de matérias- primas devem ser consumidas mesmo que não haja um aumento na forma de riqueza desta sociedade, ou seja, do valor. A relação entre a natureza e os seres humanos é reduzida apenas ao consumo. Os sujeitos não se vêem mais como parte da natureza, embora sofram as conseqüências desta destruição. De acordo com Postone, mesmo diante das catástrofes ecológicas os trabalhadores não podem prescindir de aumentar a produtividade, pois o trabalho no capitalismo é central a vida das pessoas, é através dele que os indivíduos adquirem produtos para satisfazerem suas necessidades e entram em contato com outros (Ibid).

Na próxima seção, aprofundaremos o debate do trabalho como dominação social e sua dimensão temporal.

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3 - A DOMINAÇÃO SOCIAL REFLETIDA NA TEMPORALIDADE SOCIAL

De início vamos tratar da diferença entre a magnitude do valor e a magnitude da riqueza material presente na teoria marxiana exposta por Postone; em seguida aprofundaremos a investigação da categoria valor e a temporalidade gerada por ela. Ao realizarmos a exposição deste modo, pretendemos mostrar o reflexo da dominação social na forma como se estrutura o tempo na sociedade capitalista, em certa medida apresentaremos a idéia de que a dominação social é uma dominação temporal.

Segundo o Postone, Marx define a riqueza material como resultado do trabalho concreto, i. é, a particularidade do trabalho que permite distinguir os diversos trabalhos entre si. Esta propriedade do trabalho é medida pela objetivação dos trabalhos concretos, ou seja, “pelas quantidades e qualidades dos bens particulares produzidos” (Ibid: 259).

Quando a riqueza material é o modo predominante de mensuração da riqueza, as relações sociais determinadas por ela são de caráter pessoal. Em outras palavras, sendo a riqueza material a forma generalizada da riqueza social, a mediação social pode ocorrer de diversas maneiras. Caracterizando, assim, “um modo abertamente social de mediação” (Ibid: 260).

Em decorrência disto, o valor é abordado como oposto à riqueza material por ser uma forma de riqueza automediadora e sua existência não implica a inexistência das relações pessoais de dominação. Porém estas relações pessoais não são o centro da mediação da riqueza, a mediação da riqueza passa a ser realizada pelo valor. Para Marx, “no valor de troca [valor], a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder pessoal, em poder coisificado” (Marx, 1977: 157).

Embora o valor seja a medida da riqueza social no capitalismo ele não pode ser mensurado pela quantidade física de trabalho, apesar de ser uma objetivação do trabalho. Então, o valor é medido pela quantidade de trabalho abstrato, ou seja, massa de trabalho humano despendido na produção de um dado produto. Assim, “como tudo aquilo que constitui uma mediação social coisal [...] o trabalho abstrato não se expressa nem em termos de objetivações de trabalhos particulares concretos, nem se mede por sua quantidade” (Postone, 2006: 260). Aparentemente temos um problema: como medir o trabalho abstrato? A solução para esta questão está implícita no próprio caráter do valor, isto é, ser expressão do gasto de trabalho e não de objetivações particulares dos diferentes trabalhos. Porém, nos deparamos com outro problema: qual a medida do gasto de trabalho? Para responder, Postone recorre a Marx e observa: “na análise de Marx, a medida do gasto do trabalho humano que não está em função da quantidade e da natureza de seus produtos é [...] o tempo” (Ibid). O trabalho como forma quase-objetiva de mediação social se torna expressão da riqueza sem depender da particularidade dos produtos e, por conseguinte, o tempo de trabalho humano socialmente necessário para produção de uma mercadoria emerge como a medida do valor. Sendo assim, a mediação social está intimamente relacionada com o tempo “determinado e abstrato”. (Ibid: 260-261)

Ao reduzir a magnitude do valor ao tempo de trabalho socialmente necessário podemos notar o caráter redutor (simplificador) do modo de produção capitalista. Trata-se da abstração do caráter particular de cada trabalho, cujo lugar é “tomado” pela massa de trabalho empregada em um espaço de tempo. Nas palavras de Marx:

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À medida que a grande indústria se desenvolve, a criação de riqueza real vem a depender menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregada do que da potência dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, cuja “poderosa efetividade” é, por sua vez, completamente desproporcional ao tempo de trabalho diretamente gasto em sua produção, dependendo mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia […] A riqueza real manifesta-se […] na monstruosa desproporção entre o tempo de trabalho aplicado e o seu produto, bem como no desequilíbrio qualitativo entre o trabalho, reduzido a uma pura abstração, e o poder do processo de produção que ele supervisiona. (Marx apud Postone, 1978: 4)

Deste modo, para Postone, a argumentação de Marx justifica o fato do tempo, enquanto medida do valor, não ser um mero determinante das quantidades a serem trocadas, mas uma peça importante na forma como a sociedade capitalista se estrutura e promove a relação entre os homens (Postone, 2006: 261). Essa particularidade do tempo o torna um elemento importante da análise para Postone e pode ser percebida pelo autor ao tratar da diferença entre a magnitude do valor e da riqueza material. Introduzida essa diferença, podemos avançar na discussão do tempo de trabalho socialmente necessário e suas implicações no valor e na riqueza material.

Ao tempo de trabalho socialmente necessário como medida do valor não podemos atribuir um caráter “individual nem contingente, somente social e necessário” (Ibid: 262). Primeiro, a definição de tempo socialmente necessário é formulada por Marx como o tempo requerido para produzir um determinado valor de uso em condições “normais” vigentes na sociedade. Segundo, a medida do valor envolve toda a esfera social, de modo a não poder reduzi-la ao plano individual, o que “implica uma mediação social geral da ação individual. Supõe a constituição, mediante a ação individual, de uma norma geral externa que atua reflexivamente sobre cada indivíduo” (Ibid). Desta forma, apesar de não existir sem a ação individual, o tempo de trabalho socialmente necessário é expressão de uma norma geral de trabalho, definida socialmente e imposta aos sujeitos. Os sujeitos são compelidos a produzir suas mercadorias no tempo expresso pela norma temporal geral, ou o tempo de trabalho socialmente necessário. De acordo com Postone, a totalidade social constituída pelo trabalho como mediador dos sujeitos tem um caráter temporal no qual o tempo se

converte em necessidade social. Nas palavras do autor:

O tipo de mediação social constitutiva do capitalismo dá lugar [...] a um novo modo de dominação social abstrato: um modo de dominação social que submete as pessoas a imperativos e constrições estruturais impessoais e crescentemente racionalizadas. É a dominação das pessoas pelo tempo. (Postone, 2007: 40)

Neste sentido, para Postone, a forma social dominada pela mercadoria implica uma “tensão e oposição” permanente entre indivíduo e sociedade, de modo que a sociedade caminha na direção de submeter os sujeitos a sua lógica, ou melhor, ao seu ritmo. Subsumir os homens a ponto de torná-los parte da engrenagem social, uma totalidade constituída em torno do valor, cujo tempo aparece como necessidade social, constitui um imperativo da sociedade dominada pela mercadoria. Desta forma, a categoria do tempo deve ser analisada sem deixar de lado a relação com o valor e sua necessidade social, para não perdermos de vista o caráter historicamente específico e

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Além das relações explicitadas até o momento, devemos deixar clara a contradição existente entre o valor e a riqueza material para explicarmos de maneira precisa a natureza do tempo na sociedade capitalista. Ao concebermos o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de uma mercadoria (trabalho abstrato) como único determinante do valor, concluímos que os diversos trabalhos qualitativamente distintos geradores das mercadorias (trabalho concreto) definem a riqueza material. Aparentemente emerge uma oposição entre riqueza material e valor, já que o valor expressa a massa de trabalho corporificada na mercadoria enquanto a riqueza material refere-se às qualidades de cada trabalho empregado na produção da mercadoria. Contudo, trabalho concreto e trabalho abstrato fazem parte do mesmo trabalho gerador de riqueza. Porém a riqueza nesta sociedade aparece na forma de riqueza material, mas tem seu conteúdo expresso no valor. Esta relação entre forma e conteúdo da riqueza social pode ser mais bem explicitada quando consideramos a dinâmica da produtividade na sociedade capitalista.

Como o aumento da produtividade só influencia o trabalho concreto, ampliando a quantidade de produtos gerados pelo mesmo dispêndio de trabalho em um dado período, a magnitude do valor (trabalho abstrato) permanece constante, já que o gasto de trabalho permaneceu inalterado. Em razão disto, a produção aumenta, o seu valor total fica constante, mas o valor contido em cada unidade de mercadoria se reduz. Por conseguinte, quanto maior a produtividade média, menor será o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma dada mercadoria. Para Postone, temos aqui uma relação inversa entre produtividade média e tempo de trabalho socialmente necessário, que constituí um indício claro da diferença entre valor e riqueza material porque:

a categoria marxiana de valor não é meramente a riqueza material que, no capitalismo, é mediada pelo mercado. Qualitativa e quantitativamente, o valor e a riqueza material são dois tipos muito diferentes de riqueza, que podem, inclusive, ser opostas. (Postone, 2006: 266)

Chegamos a um ponto interessante: a riqueza social é valor e, embora se expresse por meio do valor de uso, não se resolve no valor de uso (riqueza material), mas no gasto de tempo de trabalho. De acordo com o autor:

A medida da riqueza social é a medida temporal abstrata, mais que a quantidade material concreta. No capitalismo, esta diferença é a primeira determinação da possibilidade de que, não somente para os pobres, senão para a sociedade como um todo, a pobreza (em termos de valor) pode existir em meio da abundância (em termos de riqueza material). (Ibid)

Um aumento da riqueza material proporcionado pela elevação da produtividade não implica maior valor (riqueza social sob o capital), pelo simples fato de que o trabalho mais produtivo se cristaliza em uma massa acrescida de produtos no mesmo período de tempo e, em conseqüência, decresce o valor unitário dos produtos. Segundo Postone, essa relação entre valor e produtividade constitui, para Marx, a base da contradição fundamental do capitalismo, uma vez que “o valor permanece como a forma determinante da riqueza e das relações sociais, independente do desenvolvimento da produtividade” (Ibid: 270). O que torna o valor “cada vez mais anacrônico em termos do potencial de produção de riqueza material das forças produtivas originadas por ele” (Ibid).

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Sendo o valor a expressão do trabalho humano imediato corporificado na mercadoria e do trabalho passado conservado pelo trabalho imediato, fica patente que a progressiva irrelevância do trabalho imediato compromete a própria produção da riqueza material como valor. Em outras palavras, uma riqueza material crescente, para ser reproduzida como valor, depende de uma quantidade de trabalho imediato sempre menor. Sob outras circunstâncias sociais, essa geração de riqueza material em escala incomensurável proporcionada pelo aumento da produtividade permitiria ao homem depender cada vez menos do trabalho direto (imediato). Possibilidade que, todavia, é negada quando a produção de riqueza social e as relações sociais fundamentadas por esta riqueza, próprias da sociabilidade capitalista, estão fundadas no trabalho humano imediato.

Na crescente negação do trabalho humano imediato como fonte de riqueza desta sociedade, para Postone, funda-se a contradição fundamental da sociedade capitalista exposta pela análise marxiana, embora este trabalho constitua a base da sociabilidade capitalista. Esta contradição só poderia ser compreendida ao tratar o valor como historicamente determinado e distinto da riqueza material. Com isto, seríamos capazes de notar a crítica marxiana do valor como a crítica ao trabalho no capitalismo e, por conseguinte, nos afastaríamos da interpretação marxista tradicional que aborda o trabalho humano imediato como trans-histórico. Desta maneira, a sociedade pós-capitalista não seria reduzida à distribuição mais eqüitativa dos trabalhos. De acordo com o autor:

A distinção que Marx traça entre valor e riqueza material apóia minha posição de que sua categoria de valor não pretende mostrar que a riqueza material é sempre e em todas as partes em função do trabalho humano imediato; nem que, no capitalismo, esta “verdade” trans-histórica está velada por diversos tipos de mistificações; nem que, no socialismo, esta “verdade” da existência humana emergirá claramente. Marx pretende mostrar que, atrás da superfície das aparências, a forma social dominante da riqueza no capitalismo está, de fato, constituída tão somente pelo trabalho (abstrato). Mas é esta forma “essencial” em si mesma, e não somente a forma superficial que à vela, o objeto de sua crítica. [...] Marx não se limita simplesmente a “provar” que o excedente social no capitalismo se cria mediante a exploração da classe trabalhadora, em lugar disto, proporciona, em verdade, uma crítica histórica do papel socialmente sintético que julga o trabalho no capitalismo de modo a apontar para a possibilidade de sua abolição. (Ibid: 271)

Por fim, a crítica de Marx ao trabalho no capitalismo não se dirige unicamente à exploração, mas também ao papel do trabalho como conector social e à possibilidade de sua abolição. Além disto, de acordo com Postone, o caráter contraditório da sociedade capitalista tem seu centro na diferença entre riqueza material e valor. Segundo o autor, para explorar melhor esta contradição se faz necessário analisar a relação dialética entre o tempo e o trabalho. De início, trataremos da dualidade existente na categoria tempo exposta por Postone e deixaremos para mais adiante a relação dialética entre tempo e trabalho.

3.1. Tempo abstrato e Tempo concreto

A categoria tempo pode ser dividida em duas classes, segundo Postone: tempo concreto e tempo abstrato. Esta cisão evidencia a influência do duplo caráter do trabalho

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no capitalismo nesta categoria e possibilita desvendar a relação da categoria do tempo de trabalho socialmente necessário com a natureza do tempo na sociedade capitalista.

O tempo concreto, para Postone, pode ser definido como os distintos tempos regulados em função dos acontecimentos (ciclos lunares, transformações climáticas e etc). Deste modo, o tempo concreto não tem por característica ser uma “variável independente”, pois são os acontecimentos que estruturam e determinam essa classe de tempo. Ademais, não se deve confundir o tempo concreto com tempo cíclico, dado que os cálculos associados à este tempo não estão ligados a sucessões contínuas de unidades temporais constante, mas a um tipo de vida social mais próxima da natureza. O tempo concreto, portanto, está relacionado à forma de trabalho direto que expressa a relação entre homem e natureza (Ibid: 274).

Em oposição ao tempo concreto Postone define a categoria de tempo abstrato. Trata-se de um tempo uniforme, contínuo, homogêneo e vazio que não é influenciado pelos eventos naturais ou sociais. O tempo abstrato constitui um quadro independente dentro do qual se sucedem os acontecimentos, “um tempo divisível em unidades iguais, constantes, não qualitativas” (Ibid: 275).

De acordo com Postone, a origem histórica do tempo abstrato está relacionada com a emergência das relações sociais determinadas pela mercadoria. Nas sociedades pré-capitalistas o tempo não era concebido como algo contínuo, mas variável de acordo com as condições naturais e sociais. Mesmo em sociedades em que tecnologias possibilitavam a mensuração do tempo em unidades constantes, segundo o autor, esta transformação não alterou o modo de organização social. Por essa razão, não se pode atribuir a tecnologia o caráter de determinante único do surgimento do tempo abstrato. O tempo abstrato também surge pelo desenvolvimento histórico-social da forma de sociabilidade mercantil, cuja necessidade da forma temporal “mensurável e trocável” ficou evidente.3

Pode-se dizer que a temporalidade antes determinada pela natureza dá lugar à outra determinada socialmente, de modo que se torna necessária à constituição social do tempo como uma medida abstrata da atividade. Ao contrário das sociedades pré-capitalistas, em que a relação direta entre homem e natureza está presente na vida cotidiana e o trabalho concreto é o determinante da vida social, na sociedade capitalista devemos atentar para a nova peculiaridade do tempo, a saber:

A igualdade e divisibilidade em unidades constantes de tempo abstraídas da realidade sensorial da luz, a obscuridade e as estações, se constituíram como a característica da vida urbana cotidiana [...] como também o fez a igualdade e divisibilidade relativa do valor expressa na forma dinheiro, que é uma abstração da realidade sensorial dos diferentes produtos. (Ibid: 287)

3

Não é oportuno para os objetivos deste trabalho recuperar todos os exemplos de sociedades pré-capitalistas em que o avanço da técnica de produção de relógios tornou possível medir o tempo de modo constante. É necessário apenas indicar que a existência destas variadas formas de medir o tempo constantemente antes ou depois da predominância do tempo abstrato apenas demonstra como o tempo abstrato surge socialmente e não somente por meio de um desenvolvimento tecnológico. Além da explicação tecnológica para a emergência do tempo abstrato, convém destacar a insuficiência, indicada por Postone, das explicações fundadas na diferença entre o contexto urbano e o rural, ou melhor, a formação das cidades é contemporânea ao surgimento do tempo abstrato. Para o autor este argumento é falso, pois as grandes cidades já estavam formadas antes do sistema de horas constantes existir.

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Consideramos a existência da ligação entre valor e tempo abstrato porque o valor não é só tempo de trabalho socialmente necessário, mas um modo de conexão social determinante de um ritmo de vida. Isto porque, o tempo de trabalho socialmente necessário aparece como dependente da atividade humana (variável dependente) na totalidade social por ser determinado pelo nível de produtividade do trabalho, mas este tempo do ponto de vista da atividade individual perde (aparentemente) seu caráter dependente da atividade dos sujeitos (variável independente). Esta forma de aparição do tempo de trabalho socialmente necessário é produto de uma relação dialética entre tempo concreto e tempo abstrato na sociedade capitalista em que “o processo pelo qual o concreto, variável dependente da atividade humana, se converte em abstrato, em variável independente que governa essa atividade, é real e não simplesmente ilusório” (Ibid: 289). O valor, portanto, não é uma mistificação, mas uma compulsão abstrata a qual os sujeitos estão submetidos, já que a temporalidade ditada pelo tempo abstrato configura-se de modo independente dos sujeitos, uma temporalidade coisal, diferente da temporalidade ditada pelo tempo concreto, controlado abertamente pela sociedade.4

O tempo abstrato, portanto, exerce um tipo de compulsão abstrata, cuja expressão pode ser notada no valor e, por conseguinte, no trabalho. Não só o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria forma o valor, mas também está implícita nesta categoria a quantidade de tempo que os produtores devem investir se pretendem receber o valor completo de seu tempo de trabalho. Com isto, Postone reconhece que a “tirania do tempo” na sociedade capitalista é uma dimensão central da análise categorial marxiana, pois:

como resultado de uma mediação social geral, o gasto de tempo de trabalho é transformado em uma norma temporal que não só abstrai a ação individual como está acima dela e a determina. Justamente quando o trabalho se transforma de ação dos indivíduos em princípio alienado geral da totalidade à qual os indivíduos estão subsumidos, o gasto do tempo se transforma de um resultado da atividade em uma medida normativa para a atividade.(Ibid – grifo do autor)

Assim sendo, o tempo de trabalho socialmente necessário torna-se um tipo de dominação coisal que submete os produtores e sua vida cotidiana, pois esta imposição não se restringe aos domínios da produção e constitui o “efeito rotina”. Sendo esta dominação produto da relação dialética entre tempo concreto e tempo abstrato, ambos os tempos não devem ser entendidos somente como formas de medição do tempo, mas também como expressões das relações sociais em que estão imersos. A partir desta compreensão, podemos dizer, com Postone, que a temporalidade da sociedade capitalista não deve ser compreendida como a simples substituição do tempo concreto pelo tempo abstrato, mas como a relação entre tais tempos que gera a dialética tempo-trabalho. Para compreender essa dialética, examinaremos em seguida o efeito rotina gerado por esta lógica temporal.

3.2. Efeito Rotina

Para investigar o efeito rotina e, assim, a relação dialética entre tempo e trabalho, é necessário recordar a existência do caráter dual das formas sociais fundamentais da sociedade capitalista e sua relação. De um lado, a dimensão do valor,

4

Aqui Postone cita o domínio sobre a temporalidade social exercida pelas instituições eclesiásticas nas quais o ritmo de vida era ditado pela rotina destas instituições, sendo esta rotina determinada pelos clérigos destas instituições.

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de outro, a dimensão do valor de uso, não significam uma oposição estática, mas sim uma relação que expressa o duplo caráter do trabalho no capitalismo: ao mesmo tempo atividade produtiva (trabalho concreto) e atividade social mediadora (trabalho abstrato). A relação dinâmica entre valor e valor de uso está intimamente ligada à interação entre produtividade e valor, que só pode ser plenamente desenvolvida quando a forma dominante na produção é a mais-valia relativa. Por isto, cabe aqui uma breve explicação sobre a origem da mais-valia relativa e seus desdobramentos.

Uma das implicações da forma de trabalho imposta pela lógica do valor é a necessidade de mais trabalho. No desenvolvimento inicial do capitalismo esta necessidade se deu principalmente via aumento da jornada de trabalho. Como apontou Marx (1983: 188): “A jornada de trabalho não é, portanto, constante, mas uma grandeza variável”. Contudo ela é variável até certos limites, que são fundamentalmente físicos e sociais. Físicos porque o trabalhador só pode despender força de trabalho durante 24 horas por dia e, nesse período, necessita de um intervalo para satisfazer suas necessidades básicas de forma a repor todas as suas forças e estar capacitado para a realização de um novo trabalho. O limite social liga-se a “necessidades espirituais e sociais” que o trabalhador precisa satisfazer. A jornada de trabalho, portanto, está circunscrita a estes limites.

Em O Capital, Marx descreve em detalhes a luta da classe trabalhadora pela redução da jornada de trabalho. Considerando tal análise, aqui nos interessa particularmente o limite imposto ao capital resultante daquela luta. A redução legal da jornada impossibilitou ao capital produzir mais-valia através do puro prolongamento da jornada, ou seja, da simples produção de mais-valia absoluta. Dada a contínua necessidade de valorização, como o demonstra Marx, a forma encontrada pelo capital para continuar a se valorizar consiste na ampliação da produção da mais-valia relativa através do aumento da produtividade. O incremento da produtividade, sendo sinônimo de redução do tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução da força de trabalho e, em conseqüência, de seu valor, permite ampliar o tempo de trabalho destinado à mais-valia. A produção de mais-valia relativa, portanto, embora já presente quando a extração da mais-valia se dava predominantemente pelo aumento da jornada de trabalho (mais-valia absoluta), torna-se central com a limitação da jornada.

De acordo com Marx, existem duas formas de ampliar a mais-valia diante de uma impossibilidade de aumento da jornada de trabalho. A primeira forma seria mediante compressão do salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho. Porém, o mais-trabalho neste caso apenas seria prolongado por ultrapassar seus limites normais. Marx abandona esta possibilidade, pois “apesar do papel importante que esse método desempenha no movimento real do salário, ele é aqui excluído pelo pressuposto de que as mercadorias, inclusive, portanto a força de trabalho, sejam compradas e vendidas por seu pleno valor” (Marx, 1983: 250). Quando esta possibilidade é eliminada por Marx, resta ao capital a alternativa de ampliar a “força produtiva do trabalho” nos setores que compõem o valor da força de trabalho porque somente assim mais mercadorias poderiam ser produzidas em menos tempo de trabalho.

Em síntese, quando a mais-valia relativa assume lugar relevante na produção social, a produtividade passa a ser o motor da geração de mais-valia. Desta forma, são gerados mais valores de uso por unidade de tempo, ou seja, a riqueza material aumenta e a magnitude do valor também. Contudo, quando o aumento de produtividade é generalizado, o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma dada mercadoria é reduzido e, assim, a magnitude do valor de cada mercadoria individual é

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modificada. Como foi visto acima, o valor por unidade de mercadoria é menor, mas o valor total produzido permanece igual ao valor inicial porque o tempo de trabalho despendido na totalidade do processo produtivo não foi alterado só está distribuído entre uma quantidade maior de mercadorias. Nas palavras de Postone:

Não só a produtividade incrementada produz uma maior quantidade de riqueza material, mas também efetua uma redução do tempo de trabalho socialmente necessário. Dada a medida temporal abstrata do valor, esta re-determinação do tempo de trabalho socialmente necessário modifica a magnitude do valor das mercadorias individuais produzidas e não o valor total produzido por unidade de tempo. Este valor total permanece constante e, simplesmente, é distribuído entre uma massa maior de produtos quando a produtividade é incrementada. (Postone, 2006: 376)

Desta maneira, Postone pretende assinalar que a magnitude do valor aparece determinada somente pelo “gasto de tempo de trabalho abstrato, independente da dimensão do valor de uso do trabalho” (Postone, 2006: 375). Todavia, também é determinada pela dimensão do valor de uso, visto que a produtividade determina constantemente a média do tempo de trabalho, ou seja, o tempo de trabalho socialmente necessário constituinte da magnitude do valor. Para Postone, aqui nos deparamos com uma contradição: a magnitude do valor é função exclusiva do tempo abstrato, mas é re-determinada por mudanças no tempo concreto.

Esta aparente contradição surge da relação dialética entre valor e produtividade. Primeiro, porque o aumento da produtividade re-determina o tempo de trabalho social e, em razão disso, estabelece um novo parâmetro para este tempo. Sob outra ótica: “a constante temporal que determina o valor está, ela mesma, determinada pela dimensão do valor de uso, pelo nível da produtividade” (Ibid: 377). Segundo, porque mesmo com a hora de trabalho social re-determinada, o valor total continua inalterado implicando “que cada nível de produtividade, uma vez convertido em socialmente geral, não somente re-determina a hora de trabalho social como [...] é re-determinado por essa hora como o ‘nível básico’ da produtividade” (Ibid). Para Postone, a contradição provocada pela interação entre valor e produtividade permite abordar o tempo abstrato como constituído qualitativamente e quantitativamente. O desdobramento dessa abordagem consiste em o tempo de trabalho socialmente necessário – a unidade do tempo abstrato – permanecer constante, mesmo com a alteração da produtividade, e a produtividade surgir como determinada também pelo valor.

Esta relação dinâmica presente no duplo caráter do trabalho na sociedade capitalista produz nos sujeitos um “efeito rotina”. A cada novo nível de produtividade socialmente estabelecido observamos um retorno do valor ao seu ponto de partida. Contudo, enquanto o novo nível de produtividade não estiver socialmente posto, a mais-valia obtida pelos produtores que adotem o novo método será maior do que a média até a propagação deste novo nível de produtividade. Esta possibilidade de elevar os ganhos no curto-prazo e a necessidade de se manter no mercado conduz os capitalistas a buscar sempre novos níveis de produtividade. Por outro lado, os capitalistas que estiverem no nível de produtividade abaixo da média precisam adequar-se à nova escala de produtividade vigente sob a pena de serem incorporados pelos outros capitalistas ou desaparecerem. Deste modo, fica explícita a tendência à homogeneização quando um novo patamar de produtividade é atingido. O efeito rotina, portanto, é a busca incessante por produzir mais valores de uso em um espaço de tempo sempre menor, de modo a

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conduzir a uma dinâmica direcional em que a produtividade e a medida temporal abstrata da riqueza se re-determinam constantemente.

Todavia, o efeito rotina não é determinado pelos sujeitos, mas imposto a eles por esta formação social porque a relação entre produtividade e valor é uma objetivação social, não uma ilusão ou mistificação. Embora seja social, é “independente da vontade humana”, ainda que necessite da ação humana para existir. Deste modo, os sujeitos são coordenados em torno deste efeito rotina imposto pela dialética entre valor e produtividade.

Aqui reside, para Postone, a determinação inicial da “lei do valor” marxiana, no sentido de descrever uma norma de transformação e reconstituição social permanente como característica da sociedade capitalista. Esta sociedade é organizada em torno da dimensão temporal do valor, que emerge como uma classe específica de riqueza diferente da riqueza material. Contudo, segundo Postone, a temporalidade ligada ao efeito rotina não pode ser expressa por uma temporalidade abstrata, porque sua re-determinação concreta não se expressa em uma unidade temporal abstrata, mas no tempo concreto, ainda que a medida de valor seja mantida naquela unidade. Então, a temporalidade do efeito rotina está diretamente relacionada a um tipo de temporalidade concreta, que afirma a medida do valor como unidade temporal abstrata. Por esta razão, o efeito rotina é expresso por um tipo de tempo concreto particular do modo de produção capitalista. Este tempo concreto é denominado por Postone como “tempo histórico”.

Em outras palavras, o efeito rotina está baseado na constante re-determinação do tempo de trabalho socialmente necessário por meio do aumento da produtividade implicando no movimento de todo o eixo temporal abstrato – marco de referência – a cada aumento socialmente geral na produtividade. Desta maneira, tanto a hora de trabalho social quanto o nível de base da produtividade são movidos “à frente no tempo”. Este movimento à frente no tempo, de acordo com o autor, exprime a interação entre as dimensões do trabalho na mercadoria e a produtividade, ou melhor, entre a medida do valor e o valor de uso. Esta relação é produto da particularidade do capitalismo de ter “um modo de tempo (concreto) que expressa o movimento do tempo (abstrato)” (Ibid: 381). Como dito a pouco, essa é a definição de tempo histórico dada por Postone. Para o autor, o tempo histórico difere do tempo abstrato, embora sejam definidos socialmente a partir do desenvolvimento da mercadoria como forma social totalizadora. A partir desta definição de tempo histórico iremos abordar no próximo tópico a relação entre tempo histórico e tempo abstrato.

3.3. Tempo histórico e Tempo abstrato

Ao definir o tempo abstrato como independente das ações e acontecimento, mas resultado do agir individual por meio da mediação social, Postone demonstra que as formações sociais regidas por esta temporalidade estão sob uma “norma temporal abstrata”. Esta norma é expressa pelo tempo de trabalho socialmente necessário, mas este não representa o movimento “do tempo”, mas a transformação do tempo abstrato “no espaço”. De acordo com Postone:

[A] atividade individual se realiza então no tempo abstrato, e é medida em relação com ele, mas não pode mudar esse tempo. Ainda que as mudanças na produtividade movam historicamente a unidade de

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tempo abstrata, esse movimento histórico não se reflete no tempo abstrato. O tempo abstrato não expressa o movimento do tempo, ao invés disto, constitui um marco aparentemente absoluto para o movimento; seu “fluir”, uniforme e constante, é, em realidade, estático. Por conseguinte, a quantidade de valor produzida por unidade de tempo, ao estar em função deste tempo [abstrato], permanece constante, à margem das modificações na produtividade. Todo o marco é reconstituído, mas não expressa esta reconstituição: o movimento do marco não é refletido diretamente em termos de valor. (Ibid: 382)

Embora a atividade individual seja realizada no tempo abstrato, ela não modifica esse tempo porque, apesar da ampliação da produtividade deslocar o tempo de trabalho socialmente necessário – a unidade do tempo abstrato –, esse movimento não se reflete no tempo abstrato, que é um tempo homogêneo. Por esta razão, modificações qualitativas no tempo não podem ser expressas no tempo abstrato, pois este tempo é quantitativo, vazio, sem qualquer manifestação qualitativa.

Postone trata o tempo abstrato como o mediador modificado pelas transformações da produtividade, mas incapaz de expressar estas transformações. A categoria do tempo histórico é capaz de exprimir o movimento do tempo por ser expressão da transformação qualitativa permanente do trabalho, da produção, da vida social e de modalidades de consciência, valores e necessidades. Ou seja, um tipo de tempo concreto. O fluir deste tempo diferencia-se do fluxo do tempo abstrato, pois não é uniforme.

A não linearidade do fluxo do tempo histórico subjuga a forma de manifestação deste tempo (histórico) à unidade temporal concreta porque a unidade temporal abstrata não manifesta seus determinantes históricos somente conserva sua forma constante no tempo presente. Contudo, como explicaremos adiante, o tempo abstrato se move dentro da dimensão do tempo histórico porque à medida que a produtividade amplia a quantidade de trabalho passado por unidade de tempo, ela re-determina o tempo de trabalho social.

Neste sentido, a densidade da unidade de tempo aumenta à medida que a produtividade se amplia, tornando a quantidade de trabalho passado (tempo histórico) incomensurável nessa unidade, apesar de a hora de trabalho social (tempo abstrato) não ser deslocada – dado que o novo nível de produtividade não foi generalizado. Então, o movimento de incessante concentração do tempo histórico (trabalho morto) induz o deslocamento do tempo abstrato quando ocorre a redução do tempo de trabalho social por causa da disseminação do novo nível de produtividade. Esta interação do tempo histórico com o tempo abstrato permite afirmar que estas duas classes de tempo não estão separadas, mas são duas dimensões intrinsecamente relacionadas.

Segundo Postone, o tempo histórico manifesta as transformações na produtividade que refletem o aumento crescente dos valores de uso, cuja medida é a quantidade de riqueza material produzida. No entanto, o acúmulo de riqueza material não está ligado apenas ao aumento da produtividade do trabalhador, mas também ao nível de conhecimento científico e técnico do processo produtivo. De acordo com o autor, com o desenvolvimento do modo de produção capitalista o nível de produtividade torna-se cada vez menos dependente do trabalho humano imediato e, por conseguinte, mais dependente do conhecimento técnico e científico objetivado nos meios de produção. A partir desta crescente substituição, a quantidade de trabalho morto que é

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posta em contato com o trabalho vivo é constantemente elevada, o que deixa evidente a crescente desproporção entre a força produtiva do trabalho e o valor por ela criado.

De acordo com Postone, portanto, essa crescente desproporção só pode ser apreendida quando se distingue o tempo histórico – que revela as alterações da riqueza material pelo efeito da elevação da produtividade – do tempo abstrato – determinante do valor. Desproporção que se manifesta na crescente disparidade entre a acumulação de tempo histórico e a objetivação do tempo imediato de trabalho. Na medida em que esta desproporção aumenta, o trabalho imediato perde a função de motor do processo produtivo e dá lugar ao trabalho concentrado (acumulação de conhecimento e experiências da humanidade). O que indica uma tendência do processo em substituir as habilidades individuais pelas habilidades coletivas. Por esta razão, segundo Postone, a produção tende a se converter em um processo de objetivação do tempo histórico, em oposição ao tempo de trabalho imediato, embora o valor continue sendo expressão deste último. O caráter tendencial do processo deve-se ao fato de que o tempo histórico não suprime o tempo abstrato, uma vez que é a expressão das modificações na produtividade engendradas pela lógica do valor.

O tempo histórico afirma o tempo abstrato enquanto medida da riqueza, embora contenha a possibilidade da superação da sociedade organizada em torno do tempo abstrato por uma sociedade estruturada com base no tempo histórico. Compreende-se assim, a relação entre tempo histórico e tempo abstrato como uma relação dialética. Por conseguinte, o desenvolvimento histórico do capitalismo pode ser entendido como não linear e contraditório.

Este entendimento do caráter do tempo sob esta forma de sociedade rompe com a concepção marxista tradicional, em que a temporalidade abstrata baseada no trabalho imediato e acúmulo de conhecimento individual dariam lugar automaticamente a um tipo de temporalidade concreta baseada na concentração de conhecimento e experiências da humanidade. Deste modo, a acumulação de tempo histórico diminui gradualmente a necessidade social do gasto imediato de trabalho. Sendo assim, o desenvolvimento da forma social mercantil gera o seu contrário. Contém a possibilidade de uma sociedade na qual o trabalho não é separado dos demais momentos da vida humana. Contudo, a relação dialética determinante das categorias de tempo histórico e tempo abstrato não permite a emergência automática deste tipo de sociedade.

Esta dialética, explicitada na possibilidade de superação desta forma de trabalho individual no capitalismo pela concentração de trabalho coletivo na determinação do tipo de temporalidade concreta, surge do caráter dual das formas estruturais deste modo de produção. Justamente pelo caráter dual das formas estruturais do capitalismo que a passagem para um tipo de relação social fundada em um modo de temporalidade concreta que represente o trabalho coletivo acumulado está posta como uma tendência nesta sociedade, i. é, sua superação completa é uma tendência.

O caráter tendencial da superação do capitalismo implica na dinâmica explicitada acima não significar a superação do tempo histórico pelo tempo abstrato. Porque a interação entre estas duas categorias, não pressupõe a superação do tempo abstrato, mas afirma o tempo abstrato e, no limite, o valor como modo de estruturação social. De outra maneira, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da produtividade eleva a quantidade de valores de uso também re-determina o tempo de trabalho social – o tempo abstrato – e, por conseguinte, naturaliza a forma de trabalho no capitalismo. Afirma, portanto, o valor como conector social, que emerge para os sujeitos como algo natural:

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Cada novo nível de produtividade é estruturalmente transformado na assunção concreta da hora de trabalho social, permanecendo a quantidade de valor produzida por unidade de tempo constante. Neste sentido, o movimento do tempo é continuamente transformado em tempo presente. Na análise de Marx, a estrutura básica das formas sociais capitalistas é tal que a acumulação de tempo histórico não debilita [...] a necessidade representada pelo valor, isto é, a necessidade do presente. [Desta forma a] necessidade presente não é “automaticamente” negada senão paradoxalmente reforçada, é lançada adiante no tempo como presente perpétuo, como uma aparente necessidade eterna. (Ibid: 389)

Nesta passagem, Postone deixa claro como a realidade capitalista se constituiu em dois momentos muito diferentes. Por um lado, uma constante transformação da vida social em todas as suas múltiplas facetas; por outro, a reafirmação do valor como uma inalterável condição da vida social. Para Postone, estas duas dimensões são de difícil apreensão simultânea, porque apesar das estruturas sociais mudarem em uma velocidade vertiginosa, esta mudança conserva estruturas fundamentais desta sociabilidade que aparecem como formas naturais do ser social. Por outras palavras, as mudanças no capitalismo ocorrem no campo das aparências, pois a base geradora de toda a dinâmica social é conservada.

De acordo com o autor, Marx enuncia a relação condicionada e intrínseca entre estes dois momentos (tempo histórico e tempo abstrato) na categoria do capital, em que a análise do capitalismo deixa claro o caráter historicamente dinâmico desta sociedade. Porém, explicita esta dialética na “lei do valor”, na qual a dominação abstrata exercida sobre os homens se encontra na forma de uma temporalidade condutora de uma sociedade ao mesmo tempo estática e dinâmica. Segundo Postone: “um fluir permanente e acelerado da história e [...] uma permanente conversão deste movimento do tempo em um presente constante” (Ibid: 390). Através desta lógica, temos no decurso da sociedade capitalista o constante reforço da dependência do trabalho imediato, não importando o grau de desenvolvimento das forças produtivas, porque o tempo histórico sempre remete ao tempo abstrato, de modo a fixá-lo como base de toda a sociedade.

APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS

Neste artigo, tentamos abordar a questão da dominação social. Mostramos que, ao contrário da interpretação do marxismo tradicional, a dominação não se resolve em termos de dominação e exploração de classes. Segundo Postone, para Marx, o trabalho é a categoria que estrutura a dominação no sistema capitalista.

Na sociedade moderna, os sujeitos não produzem para si, mas com a finalidade de vender ou trocar seus produtos por outros que satisfaçam as suas necessidades. É através do trabalho que as pessoas entram em contato umas com as outras. Como destacamos anteriormente, o trabalho tem a função de mediação social no capitalismo e esta função do trabalho surge por meio de um longo processo de desenvolvimento histórico do capitalismo que suplantou todas as outras formas de organização social.

No sistema capitalista, tal como argumentamos ao longo do texto, os indivíduos não são obrigados a produzir porque são coagidos por relações sociais de dominação direta, mas são constrangidos por um sistema supra-ordenado e abstrato, ou seja, pelo próprio trabalho que exercem. Em outras palavras, caso os sujeitos não produzam não

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