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EIXO TEMÁTICO: Direitos Humanos e Movimentos Sociais O direito à educação na história constitucional brasileira: textos e contextos

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EIXO TEMÁTICO: Direitos Humanos e Movimentos Sociais

O direito à educação na história constitucional brasileira: textos e contextos

LEMES, M. B.1*; SEVERI, F. C2.

Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP)

RESUMO: O presente artigo apresenta e discute alguns resultados parciais da nossa

pesquisa em andamento, que tem como problemática fundamental os processos sócio-políticos recentes de democratização do Estado e da sociedade brasileira, com foco na implementação de políticas afirmativas de cotas nas instituições públicas de educação superior. Nesse trabalho, nosso objetivo central consiste em analisar alguns aspectos do direito à educação na história constitucional brasileira, buscando, nesse percurso histórico, identificar algumas das tensões e das contradições imbricadas nas disputas pelo acesso à educação pública. Como fundamento teórico, recorreremos a algumas categorias analíticas presentes na Teoria da Constituição de Lassalle (1933) e de Hesse (1991), como fatores reais de poder e força normativa da Constituição. Enquanto metodologia de investigação, faremos a análise documental referente aos textos das Constituições brasileiras (de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988).

I – Discussão teórica: Constituição e força normativa da Constituição

Nos estudos sobre Teoria Constitucional dos séculos XIX e XX, há importantes teóricos que são comumente citados por seus esforços em compreender as tensões entre poder constituinte e Constituição. Lassalle (1933), no esforço de definir a Constituição

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Acadêmico do quinto ano de Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP). Atualmente, é bolsista de Iniciação Científica (IC) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), desenvolvendo pesquisa sobre teoria constitucional, direito à educação, políticas afirmativas, democratização da educação superior brasileira, sociologia política e subjetividades. Membro do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP, cadastrado no CNPq, e integrante do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP).

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Professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) e do Programa de Mestrado da mesma instituição. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000), mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003) e doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (2010). Realiza atividades de pesquisa e de extensão ligadas aos temas: direitos humanos, violência de gênero, movimentos sociais, educação popular e assessoria jurídica popular. Coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP) e líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP.

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do Estado para além dos seus aspectos intrinsicamente jurídicos, a associa aos fatores reais de poder que regem uma determinada sociedade, conformando as leis e as instituições político-jurídicas. O autor cita elementos típicos do século XIX que constituíram, de modo efetivo, os fatores reais de poder das Constituições liberais daquela época: a monarquia, o exército, a aristocracia, a grande burguesia industrial, os banqueiros, a consciência coletiva, a cultura, a pequena burguesia, a classe operária, o povo em geral. São esses fatores de poder, de cada contexto concreto, que determinam a Constituição jurídica, escrita numa folha de papel.

Décadas depois, nos marcos dos Estados constitucionais democráticos da segunda metade do século XX, Hesse (1991) retoma as teses de Lassalle (1933) e desenvolve argumentos que refutam a ideia de Constituição jurídica enquanto uma mera folha de papel. Para Hesse (1991), afirmar que as normas constitucionais expressam tão somente as relações de poder dominantes numa determinada sociedade significa descaracterizar o Direito Constitucional enquanto ciência normativa, do dever ser, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Assim, restaria à Constituição jurídica constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik, não estando a serviço de uma ordem estatal justa, mas de justificar as relações de poder dominantes. Discordando da perspectiva de Lassalle (1933), Hesse (1991) argumenta que há um condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social, que impõe pensá-las de modo contextual e relacional. Ainda que de forma limitada, a Constituição contém uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado. A Constituição real, efetiva, dos fatores reais de poder a que se referia Lassalle (1933), e a Constituição jurídica estão numa relação de coordenação, condicionando-se mutuamente. Ainda que de forma relativa, a Constituição jurídica tem significado próprio, com pretensão de eficácia no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que alcança concretizar essa pretensão de eficácia, projetando construir o futuro a partir da natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas, objetivos fundamentais, projetos a serem realizados. Se houver a disposição dos atores sociais em orientar as condutas de acordo com os princípios nela consagrados, para além da vontade de poder, existirá a vontade de Constituição (HESSE, 1991).

A Constituição jurídica está, assim, condicionada pela realidade histórico-concreta. Sua pretensão de eficácia depende dessa realidade. Contudo, essa Constituição

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jurídica não configura apenas expressão de uma dada realidade, mas, graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade político-social. As possibilidades e os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação de forças, da tensão, entre o ser e o dever ser (HESSE, 1991).

Ao analisar o direito à educação na história constitucional brasileira, Vieira (2007) demonstra que a presença da educação nas Constituições está relacionada com o seu grau de importância ao longo do tempo. Enquanto nas primeiras Constituições (1824 e 1891) as referências à educação são escassas, a presença de artigos que regulam o tema cresce significativamente nos textos posteriores (1934, 1937, 1946, 1967 e 1988). Contudo, é importante ter em perspectiva o movimento dialético e contraditório do fenômeno:

As constituições expressam desejos de reforma da sociedade, apontando possibilidades sem assegurar garantias. Ao mesmo tempo, reforçam privilégios de grupos que fazem valer seus interesses junto ao Legislativo. O aprofundamento do tema permite apreciar o contraditório movimento da educação enquanto um valor que passa a incorporar-se aos anseios sociais sem, contudo, oferecer a cidadania plena. Do mesmo modo, permite melhor situar as reformas de educação propostas ao longo da história (VIEIRA, 2007, p. 291).

A interpretação crítica dos textos constitucionais requer uma compreensão do cenário mais amplo em que as decisões sobre os rumos da política educacional são forjadas. Desse modo, os textos das Constituições precisam ser interpretados à luz dos

contextos em que são produzidos, buscando-se as razões que ultrapassam a mera

vontade dos legisladores e as explicações para as mudanças e as permanências macroestruturais que determinam, em boa medida, as circunstâncias do fazer educativo. As Constituições expressam a correlação de forças sociais e políticas que perpassam a elaboração de políticas públicas no âmbito do Estado (VIEIRA, 2007).

II – O direito à educação na história constitucional brasileira

1. A Constituição de 1824

A primeira Constituição brasileira data do Império, tendo sido outorgada por Dom Pedro I. Reflete o momento político subsequente à Independência, em que os anseios de autonomia convivem com as ideologias advindas da Colônia. Uma das frentes de conflito do período se dá na elaboração da primeira Carta Magna. Convocada em junho de 1822, a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Reino do Brasil é

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efêmera. O imperador, buscando preservar o seu próprio poder, a dissolve e convoca um Conselho de Estado a fim de refazer o projeto (VIEIRA, 2007).

A Constituição de 1824 consagra os princípios de um liberalismo moderado e conservador, expressando a busca de separação entre Colônia e Metrópole, processo marcado por ambiguidades e contradições. O fortalecimento da figura do Imperador se concretiza através do Poder Moderador, que lhe garante ampla margem de intervenção na vida pública do país e a possibilidade de nomeação dos presidentes das províncias. O Legislativo é organizado através do Senado e da Câmara dos Deputados, sendo os senadores vitalícios e os deputados eleitos por voto indireto e censitário, por eleitores representados apenas pelos homens livres (VIEIRA, 2007).

Adorno (1988) afirma que a sociedade brasileira pós-colonial do século XIX experimentou um dilema democrático que percorreu as estruturas de apropriação do poder. A cisão entre princípios liberais e democráticos, entre liberdade e igualdade, expressa pelo antagonismo entre posições políticas conservadoras e radicais, manifestou-se desde as lutas pela Independência do país e contribuiu com a configuração do Estado nacional. Assim, as forças populares foram expulsas do âmbito institucional e silenciadas as reivindicações verdadeiramente democráticas. Gradualmente, o liberalismo moderado, conservador3 e autoritário, distante das preocupações em democratizar a sociedade brasileira, passou a orientar a ação político-partidária.

Nesse sentido, a estrutura político-jurídica inaugurada pela primeira Carta Constitucional de 1824 impediu a democratização4 da sociedade brasileira, limitando a participação política aos grupos sociais proprietários e dominantes e institucionalizando a desigualdade social na esfera pública. Nessa medida, o liberalismo político revelou a sua verdadeira face, o conservadorismo, afastando-se de suas raízes revolucionárias e expurgando os seus traços radicais e democráticos (ADORNO, 1988).

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Sucupira (2005, p. 67) afirma: “Numa sociedade patriarcal, escravagista como a brasileira do Império, num Estado patrimonialista dominado pelas grandes oligarquias do patriciado rural, as classes dirigentes não se sensibilizavam com o imperativo democrático da universalização da educação básica. Para elas, o mais importante era uma escola superior destinada a preparar as elites políticas e quadros profissionais de nível superior em estreita consonância com a ideologia política e social do Estado, de modo a garantir a „construção da ordem‟, a estabilidade das instituições monárquicas e a preservação do regime oligárquico.”

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Aqui, pensa-se em democratização da sociedade brasileira quando comparada aos moldes do que já emergia em outras Constituições liberais da mesma época.

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Essa Constituição foi a de mais duradoura vigência em toda a história constitucional brasileira, tendo orientado o ordenamento jurídico da nação por 65 anos e regulamentado, de maneira estável, a vida institucional nas diversas crises e turbulências atravessadas pelo Império. Foi substituída apenas em 1891, com o advento da República (VIEIRA, 2007).

Com a proclamação da Independência e a fundação do Império, em 1822, inicia-se uma fainicia-se de debates de projetos que visavam à estruturação de uma educação nacional. Com a abertura da Assembleia Constituinte e Legislativa, em 03 de maio de 1823, Dom Pedro referiu-se à necessidade de uma legislação particular sobre a instrução. Abertas as sessões da Constituinte e eleita uma Comissão de Instrução Pública, os trabalhos desenvolvidos nos seis meses de seu funcionamento produziram dois projetos de lei referentes à educação pública. Embora esse debate tenha sido intenso, devido à dissolução da Constituinte de 1823, não veio a traduzir-se em dispositivos incorporados à Constituição de 1824 (VIEIRA, 2007).

A primeira Carta Magna brasileira traz apenas dois parágrafos de um único artigo sobre a matéria:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos

Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...)

XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos.

XXXIII. Collegios, e universidades, aonde serão ensinados os elementos das

Sciencias, Bellas Letras, e Artes (BRASIL, 1824).

A presença desses dois únicos dispositivos sobre o tema no último artigo da Carta de 1824 é um indicador da pequena preocupação suscitada pela matéria educativa naquele contexto político. Entretanto, importa destacar a referência à ideia de

gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos5, aspecto não contemplado pela primeira Constituição republicana, de 1891. Mesmo no nível das expectativas, a República silenciou sobre um direito acerca do qual o Império se manifestou. Como se constata, na conjuntura de nascimento do Estado brasileiro, o texto constitucional passou ao largo da matéria educacional, embora o Brasil tenha sido um dos primeiros países a inscrever em sua legislação a gratuidade da educação para todos os cidadãos, apesar de essa gratuidade não ter se efetivado na prática (VIEIRA, 2007).

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De fato, Chizzotti (2005) aponta que, até a criação do Ato Adicional de 1834, a educação básica ficou absolutamente relegada à iniciativa privada e o projeto de criação de universidades foi mais um motivo de arroubo teórico, de improvisação circunstancial e de emulação entre deputados provinciais que uma proposta efetiva para a formação de estudos superiores no Brasil6. O direito dos cidadãos à instrução primária gratuita, genericamente proclamado na Constituição outorgada, não decorreu de interesses articulados e de reivindicações sociais organizadas, inserindo-se no texto mais como um reconhecimento formal de um direito do que uma obrigação efetiva do Estado.

2. A Constituição de 1891

A Constituição de 1891 é bastante generosa no acolhimento dos direitos civis, tendo como base a inflexão não intervencionista sobre o indivíduo, a propriedade e o mercado. A partir de um regime político recém-extinto, fundamentado nas desigualdades conformadas com a escravidão, erige-se um postulado de “sociedade de iguais” que ignora as expressões sociais de negros recém-libertos, caboclos e índios e as suas demandas por direitos sociais e justiça distributiva7 (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

O texto é produto do nascimento de uma República proclamada pelo Exército, tendo à frente um monarquista e marcada por contradições. A Assembleia Nacional Constituinte é instalada um ano após a proclamação da República, sendo a nova Constituição promulgada em fevereiro de 1891. A passagem do Império para a República faz emergir anseios de um novo projeto para a educação nacional (VIEIRA, 2007).

Uma hipótese interessante para se entender o mutismo da Constituição republicana de 1891 a respeito da gratuidade da instrução primária, quando a Constituição Imperial de 1824 a garantia, pode ser encontrada na polêmica questão de centralização versus descentralização. De fato, o instituto da gratuidade vigia, formalmente, para todo o Império sob a modalidade centralizadora que o caracterizava,

7 Do ponto de vista distributivo, Fraser (2002) argumenta que a injustiça surge na forma de desigualdades semelhantes às de classe, baseadas na estrutura econômico-social, envolvendo também a exploração, a privação e a marginalização ou exclusão dos mercados de trabalho. Nesse sentido, é preciso pensar em políticas de redistribuição, que contemplem, além da transferência de rendimentos, a reorganização da divisão do trabalho, a transformação da estrutura da posse e da propriedade e a democratização de processos pelos quais é decidida a alocação dos recursos socialmente produzidos.

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em que uma lei regulava a criação de escolas de “primeiras letras” em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do país. Todavia, o Ato Adicional de 1834 transferiu a reponsabilidade de garantia da instrução primária gratuita para as províncias. Essa descentralização, criticada por alguns intelectuais e deputados da época, foi possível devido à omissão das elites governantes centrais em concretizar o direito à educação, devendo essa tarefa ficar a cargo das províncias, carentes de recursos para viabilizá-la. Além disso, o Ato Adicional de 1834 não despertou nas assembleias provinciais a consciência do imperativo democrático-liberal de universalizar a educação básica. Nesse sentido, os constituintes de 1891 omitiram-se diante da questão da gratuidade do ensino primário como princípio declarado para toda a União e mantiveram a descentralização8 herdada do Ato Adicional de 1834 (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

3. A Constituição de 1934

Os anos de 1930 representam um fértil período preparado pelos movimentos sociais da década anterior, a exemplo da fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922 e das Revoltas Tenentistas ocorridas de 1922 a 1924, que traduzem insatisfações contra as oligarquias dominantes e o sistema republicano vigente. Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, os conflitos políticos se materializam na Revolução Constitucionalista de 1932 (VIEIRA, 2007).

O momento também é rico para a educação. Estados como Ceará, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais deflagram reformas e é criado o Ministério de Educação e Saúde em 1930, sendo seu primeiro ministro dirigente Francisco Campos, jurista e político mineiro que orientou sua ação para a reforma do ensino secundário e superior. As ideias pedagógicas são fortemente influenciadas pelo escolanovismo, expresso no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932, marco referencial importante do pensamento liberal em educação, com repercussões sobre as ideias e as reformas propostas em momentos subsequentes (VIEIRA, 2007).

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No entanto, Sucupira (2005) alerta que seria uma atitude simplista atribuir toda a responsabilidade pelo fracasso da instrução primária no Império à descentralização decretada pelo Ato Adicional de 1834. Não faltaram denúncias da ineficiência da ação provincial e apelos à participação efetiva do governo central no campo da educação primária e secundária. Enquanto as províncias, em 1874, aplicavam em instrução pública quase 20% de suas escassas receitas, o governo central não gastava, com educação, mais de 1% da renda total do Império. No que dizia respeito à instrução primária e secundária, o governo central não colaborava com as províncias para ajudá-las a cumprir a obrigação constitucional de oferecer educação básica gratuita a toda a população.

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Saviani (2010), ao analisar esse documento, explicita que a Educação Nova, ao contrapor-se ao modelo tradicional, artificial e verbalista de educação, funda-se no “caráter biológico” que permite a cada indivíduo se educar, conforme é de seu direito, “até onde o permitam as suas aptidões naturais, independente de razões de ordem econômica e social”. Assim procedendo, a Educação Nova assume sua verdadeira feição social, formando a “hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, construída a partir de todos os grupos sociais, cujos membros seriam contemplados com as mesmas oportunidades educacionais. Se a escola tradicional mantinha o indivíduo na sua autonomia isolada e estéril, a nova educação, embora pragmaticamente voltada para os indivíduos e não para as classes sociais, fundando-se sobre o princípio da vinculação da escola com o meio social, forma para a cooperação e solidariedade entre os homens.

O documento, quando considera “o conceito moderno de Universidade e o problema universitário no Brasil”, reporta-se às limitações do ensino superior no país, restrito às profissões liberais (Medicina, Engenharia e Direito), advogando o alargamento da educação superior com a criação de faculdades de ciências sociais e econômicas; de ciências matemáticas, físicas e naturais; e de filosofia e letras. Destaca a proeminência da pesquisa na universidade e a necessidade de organizar universidades para garantir o estudo científico dos grandes problemas nacionais e para combater o ceticismo, a falta de crítica, o enciclopedismo e o autodidatismo (SAVIANI, 2010).

Como uma espécie de corolário da questão universitária, o Manifesto passa a tratar do “problema dos melhores”, ligado ao papel da universidade na formação das elites intelectuais, compreendendo pensadores, sábios, cientistas, técnicos e educadores: “se o problema fundamental das democracias é a educação das massas populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma pirâmide de base imensa”. Cabe à universidade, não por motivos econômicos, mas por diferenciação das capacidades mediante a educação fundada na ação biológica e funcional, selecionar os mais capazes e elevar ao máximo o desenvolvimento de suas aptidões naturais. Eis, portanto, a via para constituir a elite de que o país precisa para enfrentar a variedade de problemas postos pela complexidade das sociedades modernas (SAVIANI, 2010). Esses argumentos sintetizam uma visão elitista9 de acesso à educação que, em alguma medida,

9 No entanto, Saviani (2010) alerta que o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932, não é um texto homogêneo, sendo possível considerá-lo um documento contraditório. Nesse sentido, Luiz Antônio Cunha, nas várias oportunidades em que foi chamado a se pronunciar sobre o Manifesto, chama a atenção para o caráter heterogêneo e contraditório do texto, que expressa uma “colagem de princípios elitistas e igualitaristas”. Como documento de política educacional, está em causa no Manifesto a defesa da escola

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irá permear a história constitucional brasileira até a Constituição de 1988, que consagra o princípio meritocrático10 de ingresso no ensino superior.

Kowarick (1976) radicaliza a crítica aos fundamentos liberais11 de acesso à educação e aos limites estruturais impostos pelo modo de produção capitalista à democratização do ensino e à concretização da igualdade. As desigualdades existentes determinam fortemente os grupos sociais que terão maior ou menor probabilidade de estudar mais e melhor. Desse modo, a competição que marca a trajetória escolar não é igualitária, sendo condicionada por diferentes capitais que transcendem, em muito, as potencialidades individuais. O autor parece centralizar sua análise da reprodução das desigualdades no acesso à educação ao marcador referente à classe social. No entanto, conforme a perspectiva interseccional que propomos em nossa pesquisa, esse marcador precisa estar articulado a outros eixos estruturantes de formação das hierarquias de poder nas relações sociais, como a raça/etnia.

Nesse sentido, Carvalho (2005) sustenta que a composição racial vigente nas comunidades universitárias é um reflexo da história do Brasil após a abolição da escravidão. O Estado brasileiro, na virada do século XIX, ao invés de investir na qualificação dos antigos escravos, estimulou e apoiou a imigração europeia. Devido a uma política racial deliberada de branqueamento, os europeus que chegaram ao Brasil, também com baixa qualificação, em poucas décadas experimentaram uma ascensão social impressionante, enquanto os negros foram sistematicamente compelidos a viver nas margens da sociedade. Essa política de exclusão dos negros, praticada pelas elites brasileiras, foi consistente, contínua e intensa durante todo o século XX.

O código universalista e liberal europeu influenciou o meio social e acadêmico brasileiro de modo alienante e autoritário, na medida em que silenciou o debate sobre as práticas político-jurídicas, também silenciosas e sutis, mas sistemáticas e generalizadas, pública, emergindo como uma proposta de construção de um amplo e abrangente sistema nacional de educação pública, que abarque desde a escola infantil até a formação dos grandes intelectuais pelo ensino universitário. Ao que parece, os princípios elitistas foram incorporados às políticas públicas de educação, enquanto os princípios igualitaristas de formação de um sistema nacional de educação pública foram relegados a segundo plano pelo Estado brasileiro.

10 A CF/88 assim dispõe: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a

garantia de: (...) V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; (...)” (BRASIL, 1988).

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Kowarick (1976) argumenta que mesmo nas sociedades capitalistas avançadas a questão da igualdade de oportunidades e o suposto sistema de gratificações baseado na “meritocracia” nada mais são do que expressões da ideologia burguesa liberal.

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de discriminação racial. A ideologia da meritocracia e do concurso, colocada e defendida cegamente, é desvinculada de qualquer reflexão social e passa a flutuar num vácuo histórico. É como se alguém, independente dos obstáculos que enfrentou, no momento final da competição aberta e feroz, fosse equiparado aos seus concorrentes de melhor capital social. Universalizou-se somente a concorrência, mas as condições para competir permanecem desiguais. Numa perspectiva que leva em conta as desigualdades histórica e cronicamente construídas entre brancos e negros, as noções abstratas de concurso, de vestibular, de competição, de rendimento, de quantificação das trajetórias individuais, precisam ser radicalmente reformuladas (CARVALHO, 2005).

A Carta de 1934 é a primeira a dedicar um espaço significativo à educação, com 17 artigos, 11 dos quais em capítulo específico sobre o tema (capítulo II, arts. 148 a 158).

Art. 149. A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela familia e

pelos poderes publicos, cumprindo a estes proporciona-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no paiz, de modo que possibilite efficientes factores da vida moral e economica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciencia da solidariedade humana. (...)

Paragrapho unico. O plano nacional de educação constante de lei federal,

nos termos dos arts. 5.º, n. XIV, e 39, n. 8, letras a e e, só se poderá renovar em prazos determinados, e obedecerá ás seguintes normas:

a) ensino primario integral gratuito e de frequencia obrigatoria extensivo aos adultos;

b) tendencia á gratuidade do ensino educativo ulterior ao primario, a fim de o tornar mais accessível;

c) liberdade de ensino em todos os gráos e ramos, observadas as prescripções da legislação federal e da estadual;

d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no idioma patrio, salvo o de linguas estrangeiras;

e) limitação da matricula á capacidade didactica do estabelecimento e selecção por meio de provas de intelligencia e aproveitamento, ou por processos objectivos apropriados á finalidade do curso;

f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino sómente quando assegurarem a seus professores a estabilidade, emquanto bem servirem, e uma remuneração condigna.

Art. 153. O ensino religioso será de frequencia facultativa e ministrado de

accordo com os princípios da confissão religiosa do alumno, manifestada pelos paes ou responsaveis, e constituirá materia dos horarios nas escolas publicas primarias, secundarias, profissionaes e normaes.

Art. 154. Os estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou

profissional, officialmente considerados idoneos, serão isentos de qualquer tributo. (...)

Art. 156. A União e os Municipios applicarão nunca menos de dez por cento,

e os Estados e o Districto Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na manutenção e no desenvolvimento dos systemas educativos. (...) (BRASIL, 1934).

Ao lado de ideias liberais, o texto constitucional também expressa tendências conservadoras, favorecendo o ensino religioso e apoiando o ensino privado através da isenção de tributos. Importante matéria do texto constitucional é o financiamento da

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educação: pela primeira vez, são definidas vinculações de receitas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para a educação. Outro destaque do texto de 1934 são as normas do Plano Nacional de Educação12 (VIEIRA, 2007). Com relação às normas do Plano Nacional de Educação, há a previsão de ensino primário integral, gratuito e de frequência obrigatória, de tendência à gratuidade do ensino posterior ao primário e de processos seletivos baseados em provas de inteligência e de aproveitamento. Todavia, esses exames tendem a funcionar, a exemplo do acesso à educação superior, como filtros sociorraciais, que privilegiam indivíduos brancos e de classes sociais mais altas, perpetuando desigualdades na efetivação do direito à educação.

4. A Constituição de 1937

Com Vargas no poder, a política brasileira volta a mergulhar em um novo período autoritário, que corresponde a um processo de mudanças de amplo espectro a partir das quais são construídas as bases para a modernização conservadora do Estado brasileiro. No campo da educação, o Estado Novo corresponde à retomada da centralização. Se nos anos anteriores a autonomia dos Estados emergiu com o surgimento de vários movimentos reformistas, o início dos anos de 1940 corresponde a reformas desencadeadas pelo poder central. De orientação oposta ao texto liberal de 1934, a Carta de 1937 é claramente inspirada nas Constituições de regimes políticos fascistas europeus (VIEIRA, 2007).

A livre iniciativa é objeto do primeiro artigo dedicado à educação no texto de 1937 e o dever do Estado com a educação é colocado em segundo plano, sendo-lhe atribuída uma função compensatória na oferta escolar:

Art. 128. A arte, a ciência e o seu ensino são livres à iniciativa individual e à

de associações ou pessôas coletivas, públicas e particulares. É dever do Estado contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento

12 O Plano Nacional de Educação (PNE) é um documento referência da política educacional brasileira, para todos os níveis de governo, que contempla um diagnóstico da educação no país e, a partir deste, apresenta princípios, diretrizes, prioridades, metas e estratégias de ação para enfrentamento dos problemas educacionais. Embora previsto pela primeira vez na Constituição de 1934, o primeiro PNE somente foi elaborado em 1962, pelo Conselho Federal de Educação, como cumprimento ao estabelecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961. Para um histórico do PNE, consultar: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/ce/plano-nacional-de-educacao/historico>. Acesso em 30 de dez. de 2015.

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de umas e de outras, favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e de ensino.

Art. 129. À infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários à

educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais. O ensino prevocacional profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado. Cumpre-lhe dar execução a êsse dever, fundando institutos de ensino profissional e subsidiando os de iniciativa dos Estados, dos Municípios e dos indivíduos ou associações particulares e profissionais. É dever das indústrias e dos sindicatos económicos criar, na esfera de sua especialidade, escolas de aprendizes, destinadas aos filhos de seus operários ou de seus associados. A lei regulará o cumprimento dêsse dever e os poderes que caberão ao Estado, sôbre essas escolas, bem como os auxílios, facilidades e subsídios a lhes serem concedidos pelo poder público (BRASIL, 1937).

É evidente uma concepção de educação pública como aquela destinada aos que não puderem arcar com os custos do ensino privado, revelando a persistência de uma mentalidade de desvalorização de um ensino público e de qualidade para todos e todas. Sendo o ensino vocacional e profissional a prioridade eleita pela Constituição, com uma visão de política educacional totalmente orientada para esse fim, o texto omite-se em relação às outras modalidades de ensino. À ideia de gratuidade da Constituição de 1934, o texto de 1937 contrapõe uma noção estreita e limitada, reservando a educação gratuita às camadas sociais economicamente vulneráveis (VIEIRA, 2007):

Art. 130. O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém,

não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por occasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notòriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar (BRASIL, 1937).

Em matéria de ensino religioso, a Constituição de 1937 também assinala uma tendência conservadora:

Art. 133. O ensino religioso poderá ser contemplado como matéria do curso

ordinário das escolas primárias, normais e secundárias. Não poderá, porém, constituir objeto de obrigação dos mestres ou professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos (BRASIL, 1937).

A ambiguidade do texto é óbvia, deixando margem a um facultativo que acabou por tornar-se compulsório, em se considerando a hegemonia da religião católica e a significativa presença de escolas confessionais no cenário brasileiro (VIEIRA, 2007). Além disso, é importante destacar que, ao contrário da Constituição de 1934, no texto autoritário de 1937 não há qualquer vinculação de receitas dos entes federados para a manutenção e desenvolvimento dos sistemas educativos, inexistindo, assim, uma previsão constitucional de financiamento da educação.

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5. A Constituição de 1946

A queda dos regimes políticos fascistas ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) enfraqueceu, no Brasil, o governo autoritário de Getúlio Vargas, onde as insatisfações contra a Ditadura são crescentes entre os militares e entre as categorias profissionais. As condições que levarão o país à redemocratização13, aos poucos, vão se consolidando. Com a queda do Estado Novo no fim de 1945, o general moderado Eurico Gaspar Dutra assume o poder em janeiro de 1946, promulgando a nova Constituição, orientada por princípios liberais e democráticos e que restabelece o Estado de Direito e a autonomia federativa. Todavia, essa ordem é rompida pouco tempo depois, quando, em 1947, ocorre a intervenção estatal em mais de uma centena de sindicatos e é decretada a ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB)(VIEIRA, 2007).

No campo da educação, as reformas realizadas mantiveram e acentuaram as contradições entre a educação escolar das elites e a ofertada para as camadas populares. Essa democracia de caráter limitado também se aplica às concepções pedagógicas que circulam no período e que foram materializadas na Constituição de 1946, em que convivem tendências conservadoras e liberais. Nesse contexto, a promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei n. 4.024/1961) foi a expressão da necessidade histórica de estruturação de um sistema nacional de educação (VIEIRA, 2007).

O texto de 1946 resgatou a educação como um direito de todos. Contudo, não há um vínculo direto entre esse direito e o dever do Estado em um mesmo artigo, como ocorreu no texto de 1934:

Art. 166. A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve

inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.

Art. 167. O ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos poderes

públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que o regulem.

Art. 168. A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: I – o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional;

II – o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao

primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos; (...)

V – o ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é

de matrícula facultativa e será ministrado de acôrdo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por êle, se fôr capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável; (...)

Art. 169. Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os

Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de vinte por cento

(14)

da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino (BRASIL, 1946).

De acordo com Vieira (2007), é a primeira vez em que a expressão “ensino oficial” aparece no texto constitucional. Esse registro tem sentido, uma vez que coloca mais um elemento de diferenciação entre o ensino oferecido pelos Poderes Públicos e aquele livre à iniciativa particular. Parece colocar-se a possibilidade de ensino oficial não gratuito, pois a Constituição determina que a instrução oficial subsequente à primária somente seja gratuita para aqueles que “provarem falta ou insuficiência de recursos.”

O ensino religioso continua a assegurar seu espaço no texto constitucional. Como se vê, a laicidade não é garantida nas escolas oficiais, no entanto, há a conquista formal na determinação de que a religião seja ministrada de acordo com as confissões de cada um, embora seja difícil constatar se as religiões não católicas puderam adentrar livremente nas escolas oficiais (VIEIRA, 2007).

A vinculação de recursos dos entes federados para a manutenção e o desenvolvimento do ensino está presente na Carta, devendo a União colaborar com o desenvolvimento dos sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal.

6. A Constituição de 1967

Após vivenciar uma experiência de redemocratização, o país volta a mergulhar em uma nova e longa fase ditatorial de sua história, inaugurada pelo golpe de 1964. Sob a égide da Ditadura, é elaborado um novo marco político-jurídico para o país, representado pela Constituição de 1967. Como essa Carta é criada antes das medidas que instauram efetivamente o Estado de exceção, com a suspensão dos direitos individuais, as características do regime autoritário nem sempre são visíveis no texto (VIEIRA, 2007).

Na esfera da educação, as principais reformas do período são encaminhadas somente após a Constituição de 1967. É concebida a reforma do ensino superior, com a Lei n. 5.540/1968, e a reforma da educação básica, a partir da Lei n. 5.692/1971, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus. A reforma universitária objetiva oferecer resposta às demandas crescentes por vagas no ensino superior, através da expansão do setor privado, formando quadros para o mercado aquecido pelo “milagre econômico” (VIEIRA, 2007).

(15)

Nesse sentido, observam-se transformações nas desigualdades de oportunidades educacionais. Nos anos 1960 e 1970, críticas são dirigidas ao projeto incompleto de democratização da educação, enfatizando o descompasso e a contradição entre a visão liberal da educação como espaço da igualdade de oportunidades, da meritocracia e das capacidades individuais e a realidade da sociedade brasileira, marcadamente oposta, seja no campo político, econômico, social ou cultural. O processo de expansão do ensino superior esteve centrado no setor privado e na forma de escolas isoladas, distanciando-se de ideais democráticos, republicanos e igualitários. A mera expansão do sistema educacional tendeu a refletir as desigualdades de oportunidades existentes entre os diversos grupos sociais (MOEHLECKE, 2004).

O fato mais marcante da política educacional brasileira depois de 1964, ou seja, após a derrota das forças sociais nacionalistas que elaboravam um projeto socialista para o país, foi a estagnação da rede de ensino público universitário, conjuntamente com a expansão do ensino privado em todos os níveis de educação – o elementar, o médio e o superior. Esse relativo abandono da educação pública por parte do Estado brasileiro é parcialmente responsável pelo fato de que apenas 7,8% da população brasileira de 18 a 24 anos estivesse nas universidades em 1998 (GUIMARÃES, 2003).

Por sua vez, a reforma da educação básica pretende promover a profissionalização do nível médio, contendo a crescente demanda sobre o ensino superior. Do ponto de vista da organização administrativa, há uma expressiva subordinação das unidades federadas às decisões tomadas pelo poder central, com o aumento da intervenção dos ministérios na esfera estadual (VIEIRA, 2007).

Como a Constituição de 1967 foi formulada num contexto em que a supressão das liberdades individuais e políticas ainda não tinha atingido o seu grau máximo, os seus dispositivos não chegam a traduzir uma ruptura com os conteúdos das Constituições anteriores. Antes, expressam a permanência de interesses políticos já presentes em outras Cartas, como aqueles ligados ao ensino privado. A liberdade de ensino, tema chave do conflito entre o público e o privado na educação, é visível no texto produzido pelo regime militar (VIEIRA, 2007).

Art. 176. A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais

de liberdade e de solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola.

§ 1º O ensino será ministrado nos diferentes graus pelos Podêres Públicos. § 2º Respeitadas as disposições legais, o ensino é livre à iniciativa particular,

a qual merecerá o amparo técnico e financeiro dos Podêres Públicos, inclusive mediante bôlsas de estudos.

(16)

I – o ensino primário sòmente será ministrado na língua nacional;

II – o ensino primário é obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e

gratuito nos estabelecimentos oficiais;

III - o ensino público será igualmente gratuito para quantos, no nível médio e

no superior, demonstrarem efetivo aproveitamento e provarem falta ou insuficiência de recursos;

IV - o Poder Público substituirá, gradativamente, o regime de gratuidade no

ensino médio e no superior pelo sistema de concessão de bôlsas de estudos, mediante restituição, que a lei regulará;

V – o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos

horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio; (BRASIL, 1967; EC n. 1/1969).

À noção de educação enquanto direito de todos, presente no texto de 1946, é acrescida a ideia de dever do Estado, no mesmo dispositivo. Com relação ao oferecimento do ensino, tanto a Constituição de 1946 quanto a de 1967 definem que este é livre à iniciativa particular. Todavia, enquanto o texto de 1946 observa que devem ser “respeitadas as leis que o regulem”, a Carta de 1967 avança visivelmente no campo de apoio ao ensino privado, visto que este merecerá o amparo técnico e financeiro dos Poderes Públicos, inclusive mediante a concessão de bolsas de estudos (VIEIRA, 2007). Destaca-se, no texto, a introdução do mecanismo de mérito demonstrado pelo “efetivo aproveitamento” e a falta ou a insuficiência de recursos enquanto critérios para acesso ao ensino médio e superior públicos e gratuitos (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

Guimarães (2015) situa em 1968 a primeira14 proposta de adoção de políticas de ações afirmativas no mercado de trabalho para combater a discriminação racial no Brasil. Entretanto, essa tentativa logo fracassou, devido a alguns traços marcantes da ideologia racial brasileira, mesmo quando professada pelas esquerdas progressistas: o reconhecimento da discriminação racial caminhava ao lado da negação de legitimidade de um protesto negro que pudesse ganhar contornos por demais políticos; o racismo era tratado como preconceito, seu caráter estrutural negado e tomado como manifestações de indivíduos e não de coletividades. Desse modo, o campo autoritário da democracia racial permaneceu hegemônico e foi transformado em ideologia oficial do regime militar. Portanto, o desafio colocado aos movimentos negros, a partir dos anos 196015, consistia em problematizar o racismo enquanto mecanismo de limitações estruturais ao desenvolvimento pessoal e coletivo dos negros.

(17)

É relevante registrar, no texto de 1967, o retrocesso representado pela ausência de previsão de vinculação16 dos recursos dos entes federados para a educação. A vinculação seria reeditada muitos anos depois, por força da Emenda Constitucional (EC) n. 24, de 1983, que inseriu o § 4º no artigo 176, dispondo que “Anualmente, a União aplicará nunca menos de 13% (treze por cento), e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, da receita resultante de impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino.”

7. A Constituição de 1988

O fracasso político e econômico do regime militar brasileiro inaugurado em 1964 encerrou um longo período de exceção à ordem constitucional, em que as liberdades e garantias individuais foram suspensas. Esse processo de finalização do autoritarismo oficial e das bases políticas e jurídicas que o sustentaram motivou o início dos debates acerca da necessidade de uma nova Lei Fundamental para o país, capaz de atender às demandas dos diversos grupos, setores e movimentos da sociedade civil. Sob a presidência de Ulysses Guimarães, uma Assembleia Nacional Constituinte foi formada. Após ampla participação popular, estimulada pelos meios de comunicação – televisão, rádio e jornais – o texto constitucional de 1988 foi promulgado.

A Constituição de 1988 é a mais extensa de todas em matéria de educação, tratando-a em seus diferentes níveis e modalidades e abordando os mais diversos conteúdos.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será

promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte

e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de

instituições públicas e privadas de ensino;

IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma

da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;

16

Em tema de financiamento da educação, a Constituição de 1967, reformada pela Emenda Constitucional n. 1/1969, no artigo 15, § 3º, f, dispõe: “A intervenção nos municípios será regulada na Constituição do Estado, sòmente podendo ocorrer quando: (...) f) não tiver havido aplicação, no ensino primário, em cada ano, de vinte por cento, pelo menos, da receita tributária municipal. (...)”

(18)

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII – garantia de padrão de qualidade;

VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação

escolar pública, nos termos da lei federal.

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a

garantia de:

I – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)

anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

II – progressiva universalização do ensino médio gratuito;

III – atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,

preferencialmente na rede regular de ensino;

IV – educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos

de idade;

V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação

artística, segundo a capacidade de cada um;

VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII – atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por

meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

§ 1.º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2.º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua

oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3.º Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino

fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola. (...)

Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes

condições:

I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público. (...)

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os

Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. (...)

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração

decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar; III – melhoria da qualidade do ensino; IV – formação para o trabalho;

V – promoção humanística, científica e tecnológica do País;

VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação

como proporção do produto interno bruto (BRASIL, 1988).

Em sintonia com o momento de abertura política, a tônica do texto é a de uma “Constituição Cidadã”, expressa principalmente nos artigos que tratam da concepção, dos princípios e dos deveres do Estado no campo da educação, propondo a inclusão de sujeitos historicamente excluídos desse direito, através do princípio de igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola (VIEIRA, 2007).

Pela primeira vez, o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é reconhecido como um direito público subjetivo, o que confere ao indivíduo o poder de ação para proteger

(19)

ou defender um bem legalmente assegurado. Daí decorre a faculdade, por parte da pessoa, de exigir a defesa ou a proteção desse direito por parte do sujeito responsável, ou seja, o Poder Público. Ao mesmo tempo, esse direito subjetivo tem sua face pública, na medida em que expressa o reconhecimento de um direito relacionado ao interesse coletivo, o que amplia a dimensão democrática da educação. Ao longo da história brasileira, a ambiguidade entre instituições responsáveis pela garantia da oferta de educação obrigatória talvez explique por que se levou tanto tempo para que a educação fosse reconhecida como direito público subjetivo, auxiliando e trazendo um instrumento jurídico-institucional capaz de transformar esse direito num caminho real de efetivação de uma democracia educacional (CURY, HORTA, FÁVERO, 2005).

Nessa Constituição, a vinculação de recursos para a educação recebe tratamento prioritário. A liberdade de ensino para a iniciativa privada continua com o seu espaço no texto. A Carta ainda prevê lei que deverá estabelecer o Plano Nacional de Educação (PNE) (VIEIRA, 2007).

III – Considerações finais

Como pretendemos demonstrar, nas primeiras Constituições (1824 e 1891), as referências à educação são mínimas, o que evidencia a sua pequena relevância para a sociedade da época e a falta de uma perspectiva política capaz de democratizar o acesso e a permanência na escola para as camadas sociais mais vulneráveis. Com o aumento das demandas sociais relativas ao direito à educação, a presença de dispositivos relacionados ao tema cresce significativamente nas Constituições posteriores (1934, 1937, 1946, 1967 e 1988). Todavia, as Cartas materializam as disputas e os conflitos existentes entre os grupos sociais, em que determinados privilégios são mantidos junto ao Estado, a exemplo do apoio público ao ensino privado, o que parece contribuir para a perpetuação de desigualdades. Nesse sentido, a reflexão crítica sobre esses documentos históricos permite apreciar o movimento contraditório da educação enquanto um valor que passa a incorporar-se aos anseios sociais sem, contudo, assegurar a cidadania plena (VIEIRA, 2007).

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