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O campo e a cidade na literatura brasileira Luiz Ricardo Leitão

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Academic year: 2019

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1ª edição

Veranópolis, 2007

O CAMPO E A CIDADE NA

LITERATURA BRASILEIRA

iterra

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Copyright © Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária – Iterra

Revisão de português: Miguel Cavalcanti Yoshida Projeto gráfico, capa e diagramação: ZAP Design Impressão e acabamento:

Capa:

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização.

1a edição: junho de 2007

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

ITERRA

Rua Rua Princesa Isabel, 373 Cx. Postal 134

CEP 95330-000 – Veranópolis-RS Fone/Fax: (54) 3441-1755

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Sumário

ApreSentAção

Aos educandos e educadores do movimento social ...7

pArte 1 - o conceito de litArAturA e SuAS

pArticulAridAdeS

cApítulo 1 - o que é literAturA?

Funções básicas da criação estética. linguagem literária e

linguagem não-literária. ...17

cApítulo 2 - noçõeS de VAriAbilidAde lingüíSticA língua escrita e língua falada. cultura letrada e cultura popular.

gírias, jargões e falares regionais na literatura. ...27

cApítulo 3 - noçõeS de SemânticA e eStilíSticA

denotação, conotação e polissemia. tropos e figuras de linguagem. ...33

cApítulo 4 - FormAS de compoSição VerbAl linguagem em prosa e linguagem em verso.

descrição, narração e dissertação. ...41

cApítulo 5 - oS gêneroS literárioS A tríade clássica: o lírico, o épico e o dramático.

Formas da era moderna: a crônica, o conto, a novela e o romance. ...51

cApítulo 6 - oS eStiloS de épocA As fontes seminais da literatura ocidental:

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pArte 2 - o cAmpo e A cidAde

nA literAturA brASileirA

cApítulo 7 - A primeirA ondA de globAlizAção Sobre A pátriA grAnde

A literatura da conquista, os “cronistas das índias” e a obra dos jesuítas.

os filhos da terra: os textos de resistência dos povos pré-colombianos. ...93

cApítulo 8 - oS cAminhoS e deScAminhoS dA erA coloniAl origens da literatura nacional.

A exuberância do barroco na poesia e na oratória. ...105

cApítulo 9 - o Surgimento dAS eliteS oligárquicAS no brASil colonizAdo os mitos bucólicos do Arcadismo de importação.

o legado do iluminismo europeu nas minas gerais. ...121

cApítulo 10 - A independênciA conSentidA no Século dA expAnSão imperiAliStA

o projeto de “documentação da nacionalidade”: o indianismo na i geração romântica. ecos da crise espiritual burguesa sobre a poesia periférica na ii geração. A luta pelo abolicionismo na iii geração.

As ambigüidades do romance romântico. ...131

cApítulo 11 - do império à repúblicA, do reAliSmo Ao pré-moderniSmo

os impasses da ordem liberal-oligárquica na Belle Époque

o triunfo da ficção e da autonomia estética no realismo brasileiro o naturalismo e a emersão do popular sob a ótica positivista.

A letra a serviço dos excluídos: os escritores militantes do pré-modernismo. ...153

cApítulo 12 - umA experiênciA periFéricA de modernidAde: de JecA A mAcunAímA, o dilemA dA identidAde nAcionAl regionalismo e cosmopolitismo: a geração de 1922 e os dois pólos do modernismo. A representação do campo no imaginário coletivo nacional: visões do

pós-modernismo. ...179

cApítulo 13 - doS “AnoS de chumbo” à erA neoliberAl: oS diVerSoS cAminhoS dA Arte

Anos 60: entre as “reformas de base” e a eterna viagem à utopia. As trincheiras poéticas da mpb.

A lírica do campo e da cidade e a afirmação da escrita feminina.

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enSinAr literAturA: por que e pArA quê?

toda literatura sempre faz parte do patrimônio cultural de um povo. Afinal de contas, nenhuma língua é propriedade privada desta ou daquela corporação. Ainda que os manuais de lingüística consignem o conceito do idioleto (a linguagem exclu-siva de um único indivíduo), não existe, na prática, nenhuma língua individual. A expressão verbal humana, bem o sabemos, é fruto da interação social. Ao contrário do que supõe o pensamento idealista, segundo o qual a categoria fundadora da história é a linguagem, esta constitui, em última instância, um produto do laborioso processo de construção da humanidade por meio do intercâmbio social, engendrado pela necessidade de produção da vida, conforme tão bem descreveram Friedrich engels e Karl marx em A ideologia alemã.1 portanto, as línguas e as literaturas são um produto social, compartilhado por membros de uma comunidade que costuma servir-se de tal produção como se ela fosse a sua própria “carteira de identidade”. o lingüista britânico m. halliday frisa que, mesmo que um indivíduo domine e empregue vários idiomas, a sua língua materna, com a qual satisfará todas as tarefas que exijam o uso de uma linguagem, só pode ser definida pelo grupo social que ele integra;2 ou, como diria o poeta, “minha pátria é minha língua”.

como a história do homo sapiens tem sido a história da luta de classes, nenhuma atividade humana pôde dissociar-se das mazelas advindas do caráter desigual e con-traditório de nossas sociedades. dessa forma, por força das distorções empreendidas pela ideologia dominante, aquilo que costuma ser designado como uma literatura nacional termina por ser, quase sempre, apenas a produção literária reconhecida

1 Marx assinala: “Os homens têm história porque têm de produzir a sua vida, e para mais de determinado modo: isto é dado pela sua organização física, tal como o é a sua consciência”. Sobre a linguagem e a consciência, os dois autores escrevem: “A linguagem é tão velha como a consciência – a linguagem é a consciência real prática que existe também para outros homens e que, portanto, só assim existe também para mim, e a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física de intercâmbio com outros homens”. ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A ideologia alemã. In: Obras escolhidas, t. I. EdiçõesAvante!/Edições Progresso, Lisboa/Moscou, 1982, pp. 21-22.

2 HALLIDAY, M. K.; MCINTOSH, Angus & STREVENS, Peter. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Editora Vozes, Petrópolis, 1974, pp. 257-258.

Apresentação

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pelas elites de uma nação ou etnia. conforme já denunciaram inúmeros histo-riadores, a memória oficial de uma sociedade registra tão-somente os relatos dos vencedores. por isso, quando algumas das mais pródigas e férteis criações do nosso povo são agrupadas sob o pomposo título de Literatura Brasileira, convém examinar com rigor a amplitude e abrangência desse conceito. Se o aparelho estatal de um estado capitalista periférico como o nosso o converte em uma disciplina “escolar”, por exemplo, a cautela deverá ser redobrada. nunca é demais relembrar que a criação do mec, nos anos 30, por iniciativa do governo getúlio Vargas, procurou uniformizar os currículos para a formação da mão-de-obra imprescindível à nova etapa – corporativo-monopolista – da evolução capitalista brasileira e, de quebra, empenhou-se em aniquilar toda e qualquer influência de anarquistas e comunistas sobre o processo de educação popular (a alfabetização dos filhos dos operários com cartilhas e panfletos sindicais era algo inadmissível para as elites tupiniquins).

Assim, a construção do conceito de nação na era Vargas, com a efetiva partici-pação de renomados artistas e intelectuais (o poeta carlos drummond de Andrade era chefe de gabinete do ministro gustavo capanema e o genial compositor heitor Villa-lobos contou com valioso apoio do ministério para realizar sua vasta pesquisa folclórico-musical), influenciou diretamente a pauta pedagógica do estado novo. no âmbito do chamado currículo mínimo do incipiente sistema formal de ensino do país, “disciplinas” como história do brasil ou língua portuguesa raramente concederam espaço aos relatos dos vencidos ou às formas lingüísticas e artísticas de menor prestígio dentro da hierarquia social vigente.

oS AbiSmoS iletrAdoS de noSSA pátriA

em 1960, 40% dos brasileiros eram completamente analfabetos. Se acrescentás-semos a esse percentual os semi-ágrafos e os analfabetos funcionais, ou seja, aqueles que não conseguem redigir um único parágrafo articulado ou mal sabem assinar o próprio nome, esse percentual certamente ultrapassaria mais de metade da população do maior país da América latina. em 1990, segundo dados do ibge, apesar de uma queda sensível nos números, a taxa de analfabetismo ainda atingia a inquietante cifra de 17% dos homens e mulheres desta nação que, em compensação, abriga uma arraigada e multifacetada cultura oral e, ao mesmo tempo, possui uma música popular que se tornou um cartão de visitas do brasil nos quatro cantos do planeta.

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dominantes do campo e da cidade dirigiram a evolução capitalista do país e, seja pela repressão, seja pela cooptação, não permitiram que as classes populares viessem a interferir nos desígnios da vida pública nacional.

Face à absurda desigualdade social engendrada por esse modelo, estabeleceu-se entre nós um abismo colossal entre as modalidades escrita e falada da língua, mais um empecilho fatal para o acesso da população às obras literárias de seus conterrâneos. “Falar bem”, no país da casa-grande e senzala, significou quase sempre empregar um idioma alheio às inclinações de nossa gente e de nossa cultura. o maravilhoso português brasileiro de noel rosa e chico buarque, de Vinícius de moraes e mário quintana, de catulo da paixão cearense e de patativa do Assaré – esse sol de prata que clareia a solidão – tornou-se algumas vezes mera moeda sonante na esgrima retórica dos salões. “um invólucro sedutor sob o qual se ocultaram discursos ocos, artificiais, inconsistentes – uma forma despida de conteúdo”.3

essa “privatização” da língua escrita indicia, em última instância, a própria espoliação material e espiritual dos povos situados ao sul do rio bravo. em 1993, um documento do banco mundial informava que, submetidos a exames de leitu-ra, matemática e ciências, os alunos latino-americanos haviam obtido resultados inferiores aos dos estudantes asiáticos. A poderosa instituição, organismo por meio do qual o capital transnacional monitora as possibilidades de desenvolvimento das nações inseridas na ordem neoliberal globalizada, previa graves riscos para a Amé-rica latina, porque o nosso subcontinente apresenta um dos piores desempenhos escolares do mundo (na prova de matemática aplicada em crianças de 13 anos, os brasileiros ficaram em penúltimo lugar, superando apenas as meninas e meninos de moçambique).

Ainda que sejam capazes de fazer contas e dar troco nas feiras de recife ou nas ruas do rio de Janeiro, esses moleques tão criativos não conseguem resolver o mais elementar problema de aritmética ou geometria, porque se sentem incapazes de decodificar o enunciado (por vezes muito mal elaborado) das questões que lhes são propostas. A letra é um dispositivo vital para o raciocínio. todavia, não se fomenta no brasil sequer a leitura e a escrita instrumental, condição básica para o ingresso na atividade produtiva. o direito à leitura é apenas uma figura retórica quando o ato de ler não faz parte do ambiente cultural de um povo (cujo salário mal permite a compra de uma cesta básica), ou quando inexistem livros identificados com os anseios e gostos das diversas faixas etárias da população.

privados do acesso à língua escrita, os filhos deste solo não lograrão jamais ser acolhidos pela mãe gentil. é claro que a vida interior não fenece. “em Vidas secas, as personagens de graciliano ramos nos mostram que o mundo psíquico permanece

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ativo, buliçoso”.4 mas o silêncio eloqüente do papagaio e os gemidos da cachorra baleia nos dizem que o diálogo com a realidade exterior se encontra truncado e que a participação de tantos Fabianos e Sinhás Vitórias no universo social talvez esteja irremediavelmente proscrita.

reduzir a distância entre o horizonte letrado e o oral é uma tarefa urgente da cidadania neste país. Até mesmo o estabelecimento de uma norma padrão do por-tuguês brasileiro também aguarda por um debate amplo e democrático no seio da esfera acadêmica. deverão ser iniciativas generosas e elásticas, com a participação de estudiosos e professores de todas as correntes e instituições. com “espírito crítico”, diria o lingüista mário perini. ou seja, com o rigor científico que repele a falácia da autoridade. e sem chauvinismos, sem a hipocrisia verde e amarela de quem se deitou em berço esplêndido e acordou subitamente rico, enquanto “dormia a pátria-mãe, tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações”.5

o VeStibulAr “rádio relógio”

Acossado por tantas circunstâncias adversas, o estudo da literatura brasileira ainda iria padecer restrições mais graves após o golpe militar de 1964. no início dos anos 70, o furor tecnocrático da ditadura reordenou todo o sistema de ensino do país. Surgia, em 1971, a famosa lei 5692, que reestruturava por completo o ensino médio e Fundamental, extinguindo a tradicional divisão entre “primário”, “gina-sial” e “clássico/científico”, substituídos até o final do século xx pelo binômio 1º e 2º grau. quem mais sofreu com a implantação do novo “sistema” nos anos de chumbo foram as ciências humanas. nos cursos colegiais (2º grau), cresceu assustadoramente a carga horária das disciplinas das áreas ditas “tecnológica” e “biomédica” (carga esta que o estado nem sempre lograva prover nas escolas da rede pública): em geral, 6 tempos semanais de Física e matemática, 4 tempos de química e biologia e apenas 1 ou 2 tempos de literatura (!). Aulas de Filosofia ou Sociologia, nem pensar – a grade curricular previa apenas estudos Sociais, oSpb ou moral e cívica, instrumentos de difusão ideológica do regime reinante.

não era de se estranhar, pois, que a maioria dos exames de literatura dos con-cursos então existentes fossem um verdadeiro Vestibular “Rádio Relógio”. A exemplo da velha emissora que, além de fornecer a hora certa, enchia os tímpanos de seus ouvintes com pérolas da “cultura inútil” (“Você sabia... que o diâmetro equatorial de Júpiter mede 142.800 km? Ao sinal, 13 horas 13 minutos 0 segundo...”), as provas de li-teratura brasileira exigiam dos estudantes uma (pseudo)erudição, a que o saudoso mestre paulo Freire apelidaria de “conhecimento bancário”, que nem machado de Assis ou graciliano ramos pretenderam algum dia em suas vidas ostentar.

4 Idem, p. 17.

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Vivia-se o boom dos vestibulares, que se transformaram em um autêntico “negó-cio” para inúmeras empresas e cursinhos que se expandiam nos centros urbanos, índice flagrante da inexistência de um processo verdadeiramente democrático de ingresso no ensino Superior (uma demanda cada vez mais presente na pauta dos movimentos populares, conforme nos atesta a luta pelo livre acesso ou o acirrado debate acerca das cotas). o aumento extraordinário do número de candidatos a uma vaga nas universidades (mais de 100 mil em cidades como rio e São paulo) fez com que as bancas examinadoras adotassem um modelo “objetivo” de seleção (o famigerado sistema de “múltipla escolha”), com terríveis conseqüências para o ensino médio e fundamental.

em que consistiam essas provas? em geral, elas apresentavam questões de cor-relação entre autores e obras ou de reconhecimento dos traços característicos dos estilos de época e de seus maiores expoentes. tal tendência era absolutamente he-gemônica nas bancas das escolas militares e das faculdades particulares, mas atingia até mesmo as universidades públicas (que integraram, por vários anos, as Fundações criadas para “organizar” o acesso ao 3º grau: ceSgrAnrio/rJ, FuVeSt/Sp, etc.), durante um largo período, que vai de 1970 até meados dos anos 80, quando alguns reitores de universidades federais e estaduais avaliaram que já era tempo de buscar outras fórmulas para o processo seletivo. não é difícil imaginar quanto sofriam (e ainda sofrem) os estudantes, sendo obrigados a decorar tantos detalhes sobre autores, obras e características estilísticas. graças à bur(r)ocratização da lite-ratura, o velho “prazer da leitura” havia se tornado um martírio para os alunos do 2º grau, submetidos a uma torrente de “esquemas” e “modelos” por meio dos quais eles deveriam identificar as “verdades absolutas” de uma obra literária.

A SociAlizAção dA literAturA no moVimento SociAl

A bem da verdade, tal distorção não era um privilégio do brasil do “milagre”, nem tampouco um problema específico de um país situado na periferia do capitalis-mo. o escritor hans magnus enzensberger denuncia fenômeno quase idêntico em relação às aulas de “interpretação de textos” nos colégios da Alemanha, que serviam de “cobaias” retardadas para as sucessivas e inesgotáveis novidades teóricas urdidas pelos acadêmicos nos cursos de pós-graduação alemães. lá, como cá, há centenas de especialistas em criar problemas para os jovens estudantes...

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veementes protestos do movimento social e de diversas entidades de defesa da cida-dania, acabou por determinar a elaboração no congresso nacional da polêmica lei das “cotas”, instrumento provisório de reparação da histórica injustiça cometida contra negros, indígenas e demais excluídos de nossa pátria.

enquanto recrudesce a luta pela democratização do ensino em nossa terra, cabe também uma reflexão mais crítica sobre um tema crucial para os combatentes do povo: por que e para que devemos estudar, ou melhor, apropriar-nos coleti-vamente da literatura brasileira? quais são os poetas e prosadores cuja obra é imprescindível para o nosso aprimoramento estético, político e existencial? quais são os escritores e escritoras malditos ou benditos que os manuais escolares nem sempre destacam? que contribuição eles nos trazem, com suas imagens e inven-ções artísticas, para uma revisão crítica da formação histórico-social do brasil? e que gêneros literários de origem essencialmente popular têm sido ignorados pela Academia, ciosa de suas convenções e de seus laços ambíguos com o poder, mas deveriam ser compartilhados de forma mais crítica e exaustiva pelos jovens estudantes de milhares de acampamentos, assentamentos e ocupações agrárias ou urbanas deste país-continente?

este Breve guia de introdução aos estudos literáriosé tão-somente um singelo passo para dar conta dessa tarefa tão ambiciosa quanto imprescindível. em sua i parte, são revistos alguns capítulos básicos dos estudos lingüísticos e literários (tópicos de variabilidade lingüística, noções de semântica e estilística, formas de composição verbal, gêneros literários e estilos de época, em especial), a partir das contribui-ções teóricas de autores que, não obstante eventuais dissonâncias de abordagem e concepção da literatura, nos ajudam a decodificar certos conceitos presentes nos ‘manuais’ da disciplina. Já a ii parte (O campo e a cidade na literatura brasileira) revisita momentos significativos da produção literária e artística nacional, a fim de propiciar aos militantes das organizações de trabalhadores rurais e urbanos, por meio de uma interlocução mais estreita com alguns de nossos principais autores, novos elementos para uma reflexão acerca da singular trajetória espacial do brasil.

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registro da sua linguagem, todos eles calaram muito fundo em nossos corações e mentes, ensejando-nos com sua arte uma singular releitura do brasil.

por fim, desejamos que a publicação de O campo e a cidade na literatura brasileira contribua para fomentar a unidade dos trabalhadores rurais e urbanos deste país-continente, cujas lutas, ao longo de nossa atribulada história, têm sido reprimidas sem nenhum pudor pelas classes dominantes. não obstante os seus contínuos atritos e recomposições, estas têm ditado há séculos os rumos de uma experiência periférica e dependente de desenvolvimento capitalista, marcada por sucessivas alianças com os interesses estrangeiros. é tempo, contudo, de reavaliar a inserção do sujeito na história e de confiar na dimensão infinita da práxis (que, segundo nos ensina leandro Konder, é uma atividade na qual o homem se realiza porque se supera – e se supera infinitamente). Se os de cima mistificam, oprimem e reprimem os de baixo, então só haverá mudanças efetivas se a senzala crescer, pressionar e derrubar a casa-grande. os pessimistas dizem que os donos do poder estão sempre a postos para cooptar os rebeldes e obstruir as mudanças – há 500 anos mentem com a desfaçatez de brás cubas, mas continuam onde sempre estiveram... Já não será hora de assumir nosso posto nessa dialética?

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capítulo 1

o que é literatura?

Funções básicas da criação estética.

linguagem literária e linguagem não-literária.

Escrever, segundo os escritores

Da preocupação de escrever

Escrever... Mas por quê? Por vaidade, está visto... Pura vaidade, escrever!

Pegar da pena... Olhai, que graça terá isto, Se já se sabe tudo o que se vai dizer!

(Mário Quintana, Espelho mágico)

Escrever é estar no extremo de si mesmo.

(João Cabral de Melo Neto, Museu de tudo)

O escritor é o olho, o ouvido e a voz de sua classe.

(Máximo Gorki, O ensino da Literatura)

Escritor: não somente certa maneira especial de ver as coisas, senão também a impossibilidade de vê-las de qualquer outra maneira.

(Carlos Drummond de Andrade, Passeios na ilha)

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos do nosso posto.

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O que é escrever? Por que se escreve? Para quem escrevemos? eis aí algumas perguntas sobre as quais não apenas os próprios escritores, mas também vários pensadores refletiram e escreveram centenas de páginas. o filósofo francês Jean-paul Sartre publicou em 1948 um trabalho no qual discute uma das maiores inquietudes dos intelectuais do século xx: a necessidade de engajamento do artista nas causas de seu tempo, fazendo de sua arte um instrumento concreto de intervenção na história. dentro de uma sociedade abalada pela trágica experiência da ii guerra mundial, Sartre defende uma concepção antiindividualista do escritor, que jamais poderia alienar-se dos dilemas vividos pela sociedade a que pertence.

o escritor, porém, é um artista singular em nosso meio, já que ele é um artesão da palavra. um pintor, por sua vez, lida com cores e formas; um escultor recria volu-mes; um músico seleciona e combina sons, ritmos e harmonias. Já a literatura opera com um material – as palavras – que é produzido pelo nosso organismo e que se torna, portanto, o veículo mais usual de expressão da vida íntima dos homens. o lingüista russo mikhail bakhtin nos adverte inclusive que a palavra é um elemento de “presença obrigatória” em todo ato consciente da nossa espécie, o instrumento privilegiado da comunicação na vida cotidiana.

não por acaso, um outro lingüista, o inglês John Austin, escreveu um livro com o sugestivo título de Como fazer coisas com palavras, lembrando-nos que muitas vezes as palavras não são usadas para “descrever” ou “relatar”, nem tampouco “constatar” ou “declarar” algo: há frases e expressões que, em certas circunstâncias, ao serem enunciadas produzem uma ação. Assim, um homem só poderá casar-se se responder àquela célebre pergunta (“– Aceita esta mulher como sua legítima esposa?”) formulada pelo padre ou juiz da cerimônia.1

bakhtin também nos ensina que a palavra possui uma rara onipresença social: ela é um indicador bastante sensível das transformações em curso dentro de nossas comunidades. isso porque, em última instância, as palavras são signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. graças a elas, a consciência do indivíduo pouco a pouco adquire forma e existência. A palavra é, portanto, um fenômeno ideológico por natureza. Até mesmo os signos não-verbais (a linguagem dos surdos-mudos ou o código morse, por exemplo) se referenciam no discurso verbal.

A força da palavra é tão evidente em um grupo social, que a linguagem já foi considerada pelos homens uma representação fiel de tudo quanto nos rodeia. con-forme escreveu o filósofo francês michel Foucault, sob sua forma inicial a linguagem

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era vista como “um signo absolutamente certo e transparente das coisas”,2 sobre as quais se depositavam os nomes que as representavam, à sua imagem e semelhança (daí a crença, no imaginário popular, que a simples menção a um termo seria capaz de trazer o ser ou objeto nomeado à nossa presença.3)

mesmo depois que a humanidade conferiu um caráter simbólico à linguagem, deixando de estabelecer uma associação direta e imediata entre as palavras e aquilo que se nomeia, ela continuou a fazer parte do mundo. embora não fosse vista como um espelho cristalino das coisas, a linguagem serviu a todos aqueles que pretendiam reconstruir a própria ordem do universo, como foi o caso do projeto enciclopedista desde o renascimento até o iluminismo francês. A grande mazela desse processo, porém, é que pouco a pouco se consolida a crença de que todo e qualquer conheci-mento provém única e exclusivamente da linguagem escrita: Foucault observa que mesmo o esoterismo do séc. xVi é um fenômeno de escrita, não de fala.

mantém-se, de uma forma ou de outra, a prerrogativa de que os monges já dispunham na idade média, conservando em suas bibliotecas a “sabedoria” acumu-lada da humanidade. os iniciados na escrita e na leitura compõem uma confraria milenar, para quem o saber consiste em referências recíprocas de um texto a outro. como diria o pensador francês montaigne, lá nos idos de 1500: “Nós não fazemos mais do que nos entreglosar”... essa cultura letrada do mundo ocidental explica-nos por que o termo literatura também privilegia a escrita dita “culta” e relega um papel secundário à tradição oral popular na área de abrangência do conceito, conforme evidencia o verbete transcrito do Aurélio:

o conceito de literAturA

literatura [Do lat. litteratura.] S. f. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso.

2. O conjunto de trabalhos literários dum país ou duma época. 3. Os homens de letras: A literatura brasileira fez-se representar no colóquio de Lisboa. 4. A vida literária. 5. A carreira das letras. 6. Conjunto de conhecimentos relativos às obras ou aos autores literários: estudante de literatura brasileira; manual de literatura portuguesa. 7. Qualquer dos usos estéticos da linguagem: literatura oral [q. v.]. 8. Fam.

Irrealidade, ficção: Sonhador, tudo quanto diz é literatura. 9. Bibliografia: Já é bem extensa a literatura da física nuclear. 10. Conjunto de escritos de propaganda de um produto industrial.

2 FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Éditions Gallimard, Paris, 1966. [Edição brasileira: Les mots et les choses: uma arqueologia das ciências humanas. 4ª ed. Martins Fontes, São Paulo, 1987.]

3 O vaqueiro Riobaldo, protagonista do célebre romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ilustra a vigência desse mito no interior do país. Quando se refere ao diabo, toma sempre o cuidado de não mencionar-lhe o nome, com medo de invocar a sua nefasta presença. Por isso, trata-o como “aquele que não se nomeia”,preferindo os apelidos e formas perifrásticas consagrados pelo uso popular: o Arrenegado, o Cão, o Pé-de-Pato, o Tisnado, o Coxo, o Coisa-Ruim, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos...

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como já observou a escritora marisa lajolo, a própria origem latina da palavra literatura atesta a sua estreita relação com a noção de língua escrita, já que no latim o termo litteratura deriva da forma littera, ou seja, “letra” ou “sinal gráfico que repre-senta os sons da fala”. o verbete do dicionário confirma essa tradição: a literatura oral é citada apenas uma vez como um dos “usos estéticos da linguagem”. de resto, a arte literária parece restrita aos domínios da cultura letrada, muito embora diversas literaturas européias (como a espanhola, a lusitana e até mesmo a francesa) tenham nascido sob a marca da oralidade: as cantigas de amor e de amigo do trovadorismo por-tuguês eram de fato cantadas pelos menestréis nas feiras medievais para um público quase inteiramente analfabeto.

na era burguesa, a cultura letrada se sobrepôs à oral e esta passou a ser estigma-tizada por aquela. A presença da linguagem falada nos textos literários tornou-se quase uma exceção: as variantes populares da língua, sobretudo aquelas de origem camponesa ou “caipira”, sempre foram objeto de espanto ou deboche. Até mesmo José de Alencar, um dos grandes autores do nosso romantismo, que pretendia estabelecer uma “língua brasileira” em oposição ao português europeu, optou por valorizar os termos indígenas (abundantes em romances como Iracema, Ubirajara e O Guarani) e ignorou por completo as transformações que os escravos e a população mais humilde promoviam em nosso idioma (é sempre bom lembrar que o cearense Alencar era senhor de terras: ele jamais faria do negro um herói de nosso povo...).

Somente ao longo do século xx começou a romper-se a barreira do precon-ceito lingüístico e a literatura mais consagrada pôde assimilar, seja na prosa ou na poesia, as múltiplas alternativas da cultura oral em nosso país. com o advento do modernismo, vários escritores respeitados pela crítica – do poeta pernambucano manuel bandeira ao romancista mineiro guimarães rosa – souberam incorporar à sua expressão artística as mais criativas formas da linguagem de sua terra. Grande sertão: veredas, obra-prima de rosa, somente foi escrita após uma intensa pesquisa e um estreito convívio do autor com os vaqueiros de minas e bahia.

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– Você por que não planta para você? – “Quá sá dona”! O que é que a gente come?

– O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.

– “Sá dona tá” pensando uma cousa e a cousa é outra. Enquanto planta cresce, e então? “Quá, sá dona”, não é assim.

Deu uma machadada; o tronco escapou; colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:

– Terra não é nossa... E “frumiga”? Nós não “tem” ferramenta... isso é bom para italiano ou “alamão”, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...

A insistência do autor ou, talvez, do editor em demarcar os usos próprios do ca-boclo com o emprego das aspas poderia sugerir ao leitor certa intenção de escarnecer ou fomentar estereótipos. por trás do linguajar aparentemente tosco e “imperfeito” do lavrador, no entanto, despontam verdades que somente a sua fala é capaz de revelar aos olhos da moça citadina, que ainda acredita nos velhos ideologemas de “preguiça” e “indolência” com que as elites secularmente nos pintaram os nativos desta terra – primeiro os indígenas que fugiam do laço assassino dos bandeirantes e por fim os mestiços que até hoje vivem esquecidos às margens do latifúndio e do agronegócio.

A literatura não deve ater-se a uma única variante lingüística, mas isso não basta para que logremos definir o que ela é. existem ainda outros aspectos polêmicos acerca do conceito que merecem uma breve reflexão de nossa parte:

1. Ficção ou reAlidAde?

A fiel correspondência de uma obra literária com o mundo “real” já constituiu, para muitos críticos, uma exigência básica da literatura. escritores ditos realistas e naturalistas pretenderam, por vezes, “documentar” a realidade objetiva que os rodeava, ainda que para isso se valessem de criaturas ficcionais, ou seja, personagens fictícios que não retratavam nenhuma pessoa conhecida do leitor. tal noção prevaleceu até finais do século xix, quando alguns autores, à sua maneira, lograram superar a falsa oposição realidade x imaginação e trouxeram a público eventos extraordinários, como fez machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, obra cujo narrador é um morto, ou melhor, um “defunto autor “ (e não um autor defunto, como ele próprio nos adverte). essa ‘liberdade para o imaginário’ explodiria em vários títulos famosos do século xx, tais como a novela A metamorfose, do escritor tcheco Franz Kafka, cujo protagonista, o modesto caixeiro-viajante gregor Samsa, ao despertar certa manhã em seu quarto, vê-se convertido em um imenso e monstruoso inseto...

o ‘reino do imaginário’ deixou de estar restrito aos contos de fadas e veio ha-bitar definitivamente a literatura adulta. no entanto, isso tampouco significa dizer

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que as obras dedicadas a documentar, denunciar ou testemunhar episódios e fatos mais contundentes da vida social não possuam valor artístico. Ao contrário: o livro Os sertões, de euclides da cunha, que nos descreve as duras condições do homem e da terra nordestina e nos relata a heróica luta de resistência dos sertanejos de ca-nudos frente às expedições militares que buscavam aniquilar Antônio conselheiro e sua gente, é hoje reconhecido como um dos textos mais importantes da literatura brasileira, mesmo que a crítica literária ainda discuta em que categoria ou gênero ele deva ser classificado.

A literatura, pois, não pertence a nenhum reino: ela pode ser documental e/ou ficcional, real e/ou imaginária. Conforme veremos mais adiante, uma obra depende de outros fatores para que

logremos defini-la enquanto arte. Mesmo porque, no império ardiloso da palavra, muito daquilo que soa como realidade é apenas mera invenção letrada. Quem nunca ouviu dizer, por exemplo, que o vocábulo Pindorama [do tupi pindob- + terama =“terra das palmeiras”] é o nome pelo qual os nativos designavam o litoral brasileiro antes que aqui chegassem os colonizadores europeus? Pois

saiba que o topônimo foi inventado pelo general-antropólogo Couto Magalhães e divulgado em seu

livro O selvagem (1876), em que o pesquisador também afirma que a zona interior era chamada

de Tapuirama pelos indígenas, na discutível suposição de que estes possuíam noções precisas da

extensão e configuração do seu território.

2. regionAl ou uniVerSAl?

“Queres ser universal? Canta tua aldeia!” – sugeriu-nos o escritor russo máximo gorki, superando com rara clarividência a falsa contradição que muitos críticos estabeleceram entre os artistas de temática mais regional e aqueles de caráter mais cosmopolita. no modernismo brasileiro e nas vanguardas latino-americanas, a tensão entre os dois pólos suscitou graves polêmicas. monteiro lobato, por exemplo, que criou a figura do Jeca Tatu como um símbolo do atraso e ignorância do homem do campo, foi tachado de provinciano por muitos de seus contemporâneos, que, bastante sintonizados com os temas importados das vanguardas européias, apre-ciavam bem mais o espírito cosmopolita que a arte assumia no mundo ocidental, em meio à expansão dos centros urbanos e ao progresso vertiginoso dos meios de comunicação e transporte.

o tempo mostrou-nos que regionalismo e cosmopolitismo não eram duas ten-dências excludentes na literatura da América latina, mas sim aspectos complementa-res de uma experiência periférica de modernidade. na Argentina, por exemplo, um escritor europeizado como Jorge luis borges, apesar de visivelmente seduzido pela mitologia dos países nórdicos, não se esquecerá dos tipos folclóricos dos subúrbios de buenos Aires. Suas primeiras ficções, visão idealizada e nostálgica de uma cidade que se transfigura com o progresso e a imigração, são fruto dessa cultura de mescla

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que se divide entre a herança criolla7 e a forte presença do imigrante no início do século xx.

no brasil, veremos que os promotores da Semana de Arte moderna de 22, além de assimilar conceitos do ideário estético das vanguardas européias, devem muito a lobato, euclides e outros artistas visionários cujos textos nos ajudaram a conhecer um pouco mais esses brasis e nosso povo tão humilde e valoroso. Afinal de contas, como negar a influência do Jeca tatu sobre a figura de macunaíma, o herói sem ne-nhum caráter? tanto o caboclo raquítico e maltrapilho de monteiro lobato quanto a personagem ladina e preguiçosa de mário de Andrade sobrevivem até hoje no imaginário coletivo brasileiro e representam ícones decisivos para a construção da nossa identidade nacional.

por fim, nunca é demais frisar que o criador do Jeca foi decerto um caipira de índole cosmopolita e universal8. no Sítio do pica-pau amarelo, em meio às aventuras de emília, pedrinho e narizinho, os sacis e curupiras das histórias de tia nastácia conviviam em singular harmonia com os deuses e heróis da mitologia grega, renas-cidos como fênix nos adoráveis serões de dona benta. e bastava o pirlimpimpim da imaginação para que uma boneca de macela e um sabugo de milho falante saltas-sem da terra à lua ou viajassaltas-sem através do tempo de volta à grécia de hércules e homero.

3. FormA ou conteúdo?

“Não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária”, sentenciou o poeta rus-so maiakovski, um dos mais dinâmicos artistas da revolução rus-socialista rus-soviética. A frase enunciada é uma resposta à altura a todos aqueles que advogam uma oposição irreconciliável entre forma e conteúdo na obra de arte. é claro que cada capítulo da história da literatura indica uma franca opção por uma ou outra variante. A tendência à alienação e ao culto exagerado do artesanato artístico foi um traço marcante do parnasianismo no brasil: poetas como olavo bilac, raimundo correia e Alberto de oliveira professavam a “arte pela arte”, dando preferência a temas descritivos (uma sinfonia, uma cavalgada ao luar, um vaso grego ou chinês, etc.) e recalcando por completo os tópicos sociais. representavam uma pretensa elite intelectual que, muitas vezes, serviu conscientemente aos projetos do regime vigente (bilac fez intensa campanha em favor do alistamento militar obrigatório aos 18 anos).

7 O termo criollo, na América Espanhola, refere-se à cultura mestiça forjada nos países da região, em que geralmente se fundem os elementos ibéricos e indígenas (mais influentes que os africanos em várias zonas coloniais, como a América Central e as nações andinas)

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Já os escritores da segunda geração modernista, na década de 1930, seguiram um outro rumo. romancistas como graciliano ramos, José lins do rego, Jorge Amado e érico Veríssimo denunciaram em suas obras as agudas contradições sociais do país e até se posicionaram publicamente contra as tendências autoritárias e fascistas que se disseminavam pelo mundo às vésperas da ii guerra mundial. graciliano, por exemplo, foi encarcerado pelo regime de getúlio Vargas, após o levante da Anl em 1935, e narrou suas desventuras em uma obra admirável (Memórias do cárcere, de 1953, já trans-posta para o cinema pelo cineasta nélson pereira dos Santos). Jorge Amado também foi preso por getúlio, em 1942; após a guerra, em 1946, elegeu-se deputado pelo pcb e depois, com a cassação do partido, viveu largo tempo exilado na europa.

quem imaginar, porém, que a obra dos dois autores é similar, cometerá um grave equívoco. o criador de Vidas secas é um escritor conciso, cortante, com uma técnica narrativa bem complexa e aguda análise psicológica de seus personagens, digna dos mais inventivos romancistas estrangeiros do século xx, como William Faulkner ou Virginia Woolf. Já o inventor de Dona Flor e seus dois maridos é um grande narrador, cujo estilo nem sempre foi reconhecido pela crítica, mas cuja imaginação é admirada até hoje pelo público e por escritores respeitados como gabriel garcía márquez e mario Vargas llosa.

linguagem literária x linguagem não-literária

Finalizamos, pois, este capítulo com uma só conclusão: a literatura é uma arte (“não somente certa maneira especial de ver as coisas, senão também a impossibilidade de vê-las de qualquer outra maneira”, diria drummond) e, simultaneamente, uma missão (“o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão”, aconselhou-nos érico Veríssimo).

Veículo dos mais variados temas , a linguagem literária possui traços bem peculia-res, que a distinguem de outros códigos (como a linguagem científica ou a jornalística, por exemplo) e a situam na esfera estética, para a qual não basta apenas preocupar-se em transmitir um conteúdo: é preciso enunciá-lo de forma criativa e sedutora, para envolver o leitor e despertar-lhe um prazer de rara natureza. o artista, afinal, está sempre à procura do belo; ou, como já cantou o sambista martinho da Vila, em nossa viagem ao templo da criação haveremos de descobrir que “a beleza é a missão de todo artista”.9

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Linguagem literária

• Preocupa-se permanentemente com a seleção e combinação dos signos

• Privilegia a função poética e a função emotiva da linguagem

• Valoriza o sentido conotativo das palavras e o seu potencial polissêmico

• Emprega conscientemente os mais diversos recursos estilísticos

• Pode ser enunciada em verso ou em prosa

A linguagem não-literária, como os textos científicos ou jornalísticos que lemos diariamente, não valoriza o sentido figurado das palavras: sua natureza mais ‘objetiva’ nos impõe o emprego denotativo dos vocábulos. ela tampouco se serve do potencial poético da palavra, valendo-se preferencialmente da função referencial da linguagem, a mais adequada a prestar informações. o uso de tropos e figuras de estilo é menos comum, às vezes quase inexistente.

cientes dessas características, dois compositores populares criaram uma canção antológica, interpretada por chico buarque e maria bethânia, em que uma reles e corriqueira “notícia de jornal”, recriada pela pena sensível e talentosa dos músicos, ganha novos e surpreendentes significados...

Notícia de jornal Luiz Reis e Haroldo Barbosa

Tentou contra a existência no humilde barracão Joana de tal, por causa de um tal João Depois de medicada, retirou-se pro seu lar Aí a notícia carece de exatidão

O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou Joana é mais uma mulata triste que errou

Errou na dose Errou no amor Joana errou de João Ninguém notou Ninguém morou Na dor que era o seu mal A dor da gente não sai no jornal

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do leitor? que boletim médico nas avaliaria a extensão dessa dor que não saiu no jornal? o compositor, como o poeta ou o romancista, é afinal apenas um discípulo do fingidor de Fernando pessoa: finge tão completamente, que chega a sentir que é dor, a dor que deveras sente...

reFerênciAS bibliográFicAS

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capítulo 2

noções de Variabilidade

lingüística

língua escrita e língua falada. cultura letrada e cultura popular.

gírias, jargões e falares regionais na literatura.

Texto I

Soneto – Luís de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um descontentamento tão contente; É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Texto II

Ai! Se sesse!... – Zé da Luz

Se um dia nós se gostasse; Se um dia nós se queresse; Se nós dois impariasse; Se juntin nós dois vivesse! Se juntin nós dois morasse; Se juntin nós dois drumisse; Se juntin nós dois morresse! Se pro céu nós assubisse? Mas, porém, se acontecesse qui São Pedro não abrisse as portas do céu e fosse te dizer quarqué tolice? E se eu me arriminasse e tu cum eu insistisse, pra qui eu me arresorvesse e a minha faca puxasse, e o bucho do céu furasse?

Tarvez qui nós dois ficasse

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o que há de semelhante e diferente entre os dois textos transcritos?

o primeiro, por certo, é bastante conhecido pelos admiradores da poesia universal. trata-se de um soneto1 de luís de camões, célebre autor do poema épico Os Lusíadas e talvez o mais renomado escritor da língua portuguesa em todos os tempos. A maneira sensível e refinada com a qual ele abordou o tema da paixão amorosafez do seu poema um verdadeiro hino ao amor. mesmo aqueles que jamais tiveram a chance de ler a obra do poeta lusitano, falecido em 1580, certamente se encantaram ao ouvir os seus versos na voz de renato russo, que tornou a canção Monte Castelo, composta em 1989, um dos maiores sucessos do grupo de rock brasileiro legião urbana. embora nos impressione bastante pelo ardor sentimental da sua mensagem, o poema de camões também se des-taca pela notável perfeição formal da linguagem empregada pelo artista, a quem muitos gramáticos até hoje consideram um modelo da norma culta de nossa língua.

o segundo é uma singela composição do poeta nordestino zé da luz, que viveu no início do século xx, o qual, após ser advertido de que, para falar de amor, ele só poderia escrever em um português “correto”, sem “erros” gramaticais, resolveu transgredir acintosamente a norma culta2 da sua terra. essa opção por uma linguagem bastante popular, no entanto, não afetou em nada a beleza do seu texto: o lirismo e a criatividade do poema demonstram que a forte presença da oralidade nas expressões literárias brasileiras é a resposta que as classes populares encontraram para a sua exclusão da cultura letrada dos poderosos.

Apesar das distintas modalidades e registros de suas linguagens, fato acentuado ainda mais pelos quatro séculos que os separam, luís de camões e zé da luz sou-beram encantar seus leitores e ouvintes com a maestria dos grandes poetas: ambos selecionaram e combinaram suas palavras com enorme talento e habilidade. A forma como a mensagem é enunciada provoca sentimentos afins em qualquer leitor dotado de sensibilidade e livre dos preconceitos lingüísticos que ainda vigoram em boa parte da classe média e na burguesia brasileira (o que revela um imenso desprezo pela fala “simplória” e “errada” dos caipiras e analfabetos).

Assim, vale a pena lembrar que o nosso português brasileiro é uma unidade na diversidade e que o uso de cada uma de suas variantes depende em muito do contexto ou situação diante da qual o falante se encontra. ninguém emprega uma única modalidade ou registro do idioma ao longo de toda a sua vida. e nenhum artista deve ser digno de elogios apenas porque se expressa segundo a norma culta da língua escrita.

1 O soneto é uma forma poética fixa, estruturada com dois quartetos e dois tercetos, ou seja, duas estrofes iniciais de quatro versos e duas finais de três versos. Foi criado pelo poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374), con-siderado o primeiro grande humanista do Renascimento.

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Veja, a seguir, o quadro de Variabilidade lingüística do português brasileiro: a) Variantes históricas ou diacrônicas – estágios das variações da língua ao longo dos séculos (desde o português escrito por camões até os dias de hoje);

b) Variantes sincrônicas – variações apresentadas pelo idioma em um mesmo período histórico, conforme os mais diversos fatores vivenciados pelos falantes.

VARIANTES DIALETAIS VARIANTES DE REGISTRO

1. Variantes sociais (ou diastráticas) • Língua culta x coloquial x popular

1. Variantes de modalidade

• Língua escrita x língua falada 2. Variantes regionais (ou diatópicas)

• Falares regionais • Dialetos

2. Variantes de grau de formalismo

• Linguagem formal / tensa

X linguagem informal / distensa 3. Variantes profissionais e de grupos

• Jargões

• Gírias

3. Variantes de sintonia

(segundo a natureza do receptor, grau de intimidade, etc.) . Variantes etárias e de sexo

• Fala infantil x adulta

• Linguagem feminina x masculina

Sem dúvida nenhuma, as variantes sociais e de modalidade são aquelas que atestam com maior eloqüência as profundas desigualdades existentes em nosso país. como a linguagem dita culta está restrita à língua escrita empregada apenas pelos falantes de maior escolaridade (quase todos membros das classes mais favorecidas), ela se distancia bastante da linguagem coloquial (mais próxima dos usos orais, sem acatar as prescrições gramaticais da norma culta e repleta de gírias assimiladas de grupos mais restritos, desde presidiários e jovens da periferia até surfistas ou esportis-tas “radicais”) e, sobretudo, da chamada linguagem popular (a dos falantes de pouca ou nenhuma escolaridade, peões e lavradores de baixa renda ou abaixo da linha da pobreza). um breve cotejo entre esses usos ilustra o que pretendemos realçar:

•฀ Forma “culta” – Amanhã nós iremos à praia.

•฀ Forma coloquial – Amanhã a gente vai na praia. •฀ Forma popularManhãarrentevamupa praia.

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o problema também se estende às variantes regionais. O falar caipira do inte-rior de minas e São paulo é discriminado em boa parte do brasil. o falar chiado do carioca também causa estranheza em muitas áreas. cada um julga que o seu falar regional é o mais “correto”, quando, em verdade, nenhuma região deveria ser considerada padrão em um país-continente como é o brasil. em verdade, nenhum falar é melhor ou pior que o outro: todos eles são apenas diferentes... os dois textos transcritos a seguir nos sugerem uma reflexão sobre o fenômeno:

Texto III

A História de Cabeleira(fragmento) – Paulo Lins

Nuvens jogavam pingos sobre as casas, no bosque e no campo que se esticava até o horizonte. Busca-pé sentia o sibilar do vento nas folhas dos eucaliptos. À direita, os prédios da Barra da Tijuca, mesmo de longe, mostravam-se gigantescos. Os picos das montanhas eram aniquilados pelas nuvens baixas. Daquela distância, os blocos de apartamentos onde morava, à esquerda, eram mudos, porém parecia escutar os rádios sintonizados em programas destinados às donas de casa, a cachorrada latindo, a correria das crianças pelas escadas. Repousou o olhar no leito

do rio, que se abria em circunferências por toda sua extensão às gotas de chuva fina, e suas íris,

num zoom de castanhos, lhe trouxeram flash-backs: o rio limpo; o goiabal, que, decepado, cedera lugar aos novos blocos de apartamentos; algumas praças, agora tomadas por casas; os pés de Jamelão assassinados, assim como a figueira mal-assombrada e as mamoneiras; o casarão abandonado que tinha piscina e os campos do Paúra e Baluarte – onde jogara bola defendendo o dente-de-leite do Oberom – deram lugar às fábricas. Lembrou-se, ainda, daquela vez que fora apanhar bambu para a festa junina do seu prédio e tivera que sair voando porque o caseiro do sítio soltara os cachorros em cima da meninada. Trouxe de volta ao coração a pêra-uva-maçã, o

pique-esconde, o pega-varetas, o autorama que nunca tivera e as horas em que ficava nos galhos das

amendoeiras vendo a boiada passar. Remontou aquele dia em que seu irmão ralou o corpo todo, quando caiu da bicicleta no Barro Vermelho, e como eram belos os domingos em que ia à missa

e ficava até mais tarde na igreja participando das atividades do grupo jovem, depois o cinema, o

parque de diversões... Recordou os ensaios do orfeão Santa Cecília de seus tempos de escola com alegria, subitamente desfeita, porém, no momento em que as águas do rio revelaram-lhe imagens do tempo em que vendia pão, picolé, fazia carreto na feira, no Mercado Leão e nos Três Poderes;

catava garrafas, descascava fios de cobre para vender no ferro-velho e dar um dinheirinho a sua

mãe. Doeu pensar na mosquitada que sugava seu sangue deixando os caroços para despelarem-se em unhas, e no chão de valas abertas onde arrastara a bunda durante a primeira e a despelarem-segunda infância. Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato do rico ir para Miami

tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que

as laranjadas aguadas-açucaradas que bebera durante toda a sua infância não eram tão gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram, uma a uma, a cada topada que dera

na realidade, em cada dia de fome que ficara para trás. Recordou-se de dona Marília, de dona

Sônia e das outras professoras do curso primário dizendo que, se estudasse direito, seria valorizado no futuro, porém estava ali desiludido com a possibilidade de conseguir emprego para poder levar seus estudos adiante, comprar sua própria roupa, ter uma grana para sair com a namorada e pagar

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tudo corresse bem, se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina e uma porrada de lentes. Sairia fotografando tudo que lhe parecesse interessante. Um dia ganharia um prêmio. A voz de sua mãe chicoteou sua mente:

– Esse negócio de fotografia é pra quem já tem dinheiro! Você tem é que entrar pra Aeronáutica...

Marinha, até mesmo pro Exército, pra ter um futuro garantido. Militar é que ta com dinheiro! Não sei o que você tem na cabeça, não!

Texto IV

Na quadrada das águas perdidas... – Elomar Figueira de Melo

Da Caratonha mili légua a caminhá Da Caratonha mili légua a caminha muito mais, inda mais, muito mais mil badaronha tem qui tê p’rá chegá lá da Vaca Seca, Sete Varge inda p’rá lá Sete jinela sete sala um casarão muito mais, inda mais, muito mais

Dispois dos derradero cantão do sertão Laço dos Moura lá na quadrada das águas perdida Varge dos trumento

Reis, Mãe-Senhora Velhos Domingos

Beleza isquicida Casa dos Sarmentos

bens, a lagoa arriscosa função Moças, sinhoras Mitriosa função

Ô câindo chiquera as cabra mais cedo Dá pressa kin Guilora a ingomá nossos terno aparta os cabrito mi cura Segredo Albarda as jumenta cum as capa de inverno

chincha Lubião, esse bode malvado, cuida as ferramenta num dexa ela vê

travanca o chiquero Si não pode ela num anuí nois i

ti avia a cuidar Onte pr’os norte de Mina o relampo raiô

Mucadim a mãe do ri as água já tomô Alas qui as polda di Sheda rincharo ao lua Anda mantemo o mondengo na madrugada suadas de medo p’rá lá p’rá nois i p’rá lá

Runcas levando acesas candeia ilusão

Glossário

arriscosa função = festa arriscada, em lugar de difícil acesso; alas qui = eis que, acontece que; as polda de Sheda = águas ainda jovens (Sheda seria o proprietário da área); Runcas = homenagem

a Dona Runquinha, senhora alegre, festeira e figura lendária na caatinga; badaronha = recurso, artifício; mitriosa = misteriosa; albarda = arreia os jumentos; anuí = anuir, consentir; Guilora = Glória

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reFerênciAS bibliográFicAS

cAmõeS, luís de. Redondilhas/canções/sonetos. real gabinete português de leitura, rio de Janeiro, 1980.

linS, paulo. Cidade de Deus. companhia das letras, São paulo, 1997.

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capítulo 3

noções de Semântica e estilística

denotação, conotação e polissemia.

tropos e figuras de linguagem.

Texto I

No meio do caminho

Carlos Drummond deAndrade

No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse [acontecimento

na vida de minha retina tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do

[caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

Texto II

A rosa de Hiroshima

Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroxima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada.

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esse sentido “ao pé da letra” talvez só esteja presente nos três versos finais, quando o autor explicita que a rosa de Hiroxima é o oposto da rosa: ela é uma “anti-rosa”, sem os atributos próprios de uma flor (“sem cor sem perfume / sem rosa sem nada”). e o que seria a rosa do título, afinal? Seu sentido, não resta dúvida, é totalmente figurado: ela é uma bomba, uma arma que silencia, cega, fere e queima a todos.

nos estudos de língua e literatura, cabe à Semântica analisar os campos signi-ficativos das palavras. ciente das múltiplas possibilidades de interpretação de um vocábulo, ela estabeleceu os seguintes conceitos:

Denotação – refere-se ao sentido literal e imediato de um vocábulo ou expressão, ou seja, à acepção básica que se registra no próprio dicionário.

Ex.: pedra = “corpo sólido e duro, da natureza das rochas”

Conotação – diz respeito ao sentido figurado que se atribui ao vocábulo ou expressão, associado

a outros elementos ou por eles sugeridos. Ex.: pedra = obstáculo, empecilho, adversidade

Polissemia – é a propriedade que uma palavra ou expressão possui de assumir vários significados. Trata-se de recurso bastante empregado na linguagem poética e na publicidade, assim como em várias expressões de uso mais popular.

Ex.: No meio do caminho tinha uma pedra.” [pedra = 1. fragmento mineral; 2. problema, contratempo.] “Cinzano derrete o gelo.”1

[gelo = 1. água em estado sólido; 2. relação fria ou inamistosa entre duas ou mais pessoas.] Alguns vocábulos também são ditos polissêmicos por apresentar mais de uma acepção concreta

na língua. É o caso, por exemplo, de manga (1. fruto da mangueira; 2. parte da blusa que recobre

o braço) e esperança (1. sentimento de confiança, expectativa; 2. pequeno inseto de cor verde,

semelhante ao gafanhoto).

tropos & figuras de linguagem

Valendo-se do sentido denotativo ou conotativo das palavras, os usuários de uma língua criam formas de expressão próprias, por meio das quais eles conferem maior originalidade à sua própria produção textual. tal recurso serve não apenas ao discurso literário de maior prestígio da língua (a poesia de camões ou Fernando pessoa, por exemplo, ou a prosa de graciliano ramos e machado de Assis), como também aos

1 A frase, evidentemente, possui um contexto. Trata-se de um anúncio televisivo dos anos 80, no qual

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