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Luís Fernando dos Reis Pereira OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS: permanência e movimento nos gibis de super-heróis

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Luís Fernando dos Reis Pereira

OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS:

permanência e movimento nos gibis de super-heróis

e na série Sandman

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Luís Fernando dos Reis Pereira

OS PERPÉTUOS E OS INCOMPLETOS:

permanência e movimento nos gibis de super-heróis

e na série Sandman

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro.

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BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Amálio Pinheiro, pela orientação e confiança;

aos colegas do grupo de pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem;

a Paulo Pereira e Sergio Betarello, pelas colaborações;

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Somos feitos do mesmo material dos sonhos, e nossa pequena vida é rodeada pelo sono.

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PEREIRA, Luís Fernando dos Reis. Os Perpétuos e os Incompletos: permanência e

movimento nos gibis de super-heróis e na série Sandman. 2010. 303 f. Tese (Doutorado em

Comunicação e Semiótica). Programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

RESUMO.

A tese analisa as narrativas ficcionais da série de revistas em quadrinhos

Sandman, do autor britânico Neil Gaiman, publicadas originalmente nos EUA pela editora

estadunidense DC Comics e no Brasil, a princípio, pela editora Globo, entre 1989 e 1996, a partir da tradução e apropriação de elementos provenientes de diferentes contextos culturais para as construções da narrativa, com o objetivo de demonstrar que Sandman apresenta maior tendência à mobilidade e à articulação do que os gibis de super-heróis, que geralmente enfatizam as estruturas de permanência e isolamento. Em nosso trajeto, investigamos como o princípio de identidade, desenvolvido por determinados núcleos do pensamento ocidental, é aproveitado, assim como características distintas, de outros contextos culturais, colocando em jogo conceitos como centralidade/descentralidade, realidade/ficção, estabilidade/instabilidade, etc. Para fundamentar nosso percurso, recorremos às teorias sobre processos e sistemas semióticos da cultura, explorando e articulando estudos de Iuri Lotman, Severo Sarduy, Amálio Pinheiro, Jésus Martín-Barbero e Edgar Morin, enquanto as teorias de Scott McCloud e Will Eisner embasaram o estudo da linguagem recente e ainda em formação da mídia “quadrinhos” em conjunto com as teorias do romance e da carnavalização de gêneros de Bakhtin, dando suporte aos aspectos da linguagem narrativa da série analisada. Sandman, composta por 75 edições e algumas publicações especiais, combina aspectos dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses, mitologia, cultura pop, literatura, religiosidade, paganismo, magia, fantasia, horror gótico, fatos históricos, referências filosóficas, elementos da epopeia clássica e do folclore para contar a história de Sonho, também chamado Oneiros, Morpheus, Tecedor de Formas, etc., soberano do Sonhar, e suas complexas relações com a humanidade e outros seres, entre eles seus irmãos Destino, Morte, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio; os deuses modernos e os que já foram esquecidos; suas amantes mortais e imortais; Lúcifer e seus demônios e mesmo os anjos. Na periferia de tal trama em mosaico, pervertendo os elementos épicos clássicos, há resquícios do drama de um herói “ausente”, inacabado e absurdo, incapaz de permanecer igual a si mesmo e que insiste em habitar vários aspectos fronteiriços: ilhas entre a realidade e o Sonhar, regiões brandas, onde o tempo se torna maleável (locais de tradução entre o familiar e o estrangeiro), e seu próprio reino, fronteira metafórica entre a vida e a morte. Tais articulações possibilitam que sejam discutidos o ambiente de operação sígnica proposto por Lotman, a semiosfera, e suas fronteiras móveis/tradutórias, noção-chave para a compreensão das tendências de permanência e de mudança dos textos da cultura. Finalmente, Sonho, protagonista ocasional que é a personificação dos sonhos, questiona, ao longo das histórias, as noções objetivas de identidade, de verdade e de imutabilidade. Pode ser questionado, analogamente, o princípio de identidade de culturas autocentradas e autorreferentes baseadas em lógicas binárias e em sistemas preponderantemente fechados que costumam gerar exclusão, por meio da ideia de verdade e de tolerância, ao contrário dos ambientes do reino do Sonhar de Sandman, afeitos à ideia de hospitalidade discutida por Derrida.

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ABSTRACT.

This thesis analyzes the fictional narratives of the comics books series Sandman, written by the British author Neil Gaiman, originally published by DC Comics and, in Brazil, by Globo, from 1989 to 1996, noting the translation and appropriation of elements from different cultural contexts for the construction of the narrative, in order to demonstrate that Sandman has a higher tendency to mobility and articulation than the superhero’s comic books, which generally emphasize the structures of permanence and isolation. We investigate how the principle of identity, developed by certain core of Western thought is used, as well as different characteristics from other cultural backgrounds, bringing into play concepts such as centrality and periphery, reality/fiction, stability/instability, etc. In support of our journey, we turn to theories about the processes and semiotic systems of culture, exploring and articulating studies of Yuri Lotman, Severo Sarduy, Amálio Pinheiro, Jesus Martín-Barbero and Edgar Morin, while the theories of Scott McCloud and Will Eisner served as basis for studying the “recent” and still “in process” language of the "comics" as art and media; we counted, as well, with the major contributions of Bakhtin’s theories of novel and literary genres carnavalization, to support aspects of narrative language on the studied comics. The Sandman series, with 75 editions and some special publications, combines aspects of the American superhero comics, mythology, pop culture, literature, religion, paganism, magic, fantasy, gothic horror, historical facts, philosophical references, elements of the classic epic and folklore to tell the story of Dream, also called Oneiros, Morpheus, etc., ruler of the Dreaming, and their complex relations with humanity and other beings, including his siblings Destiny, Death, Destruction, Desire, Despair and Delirium; modern gods and those who have been forgotten; their mortal and immortal lovers; Lucifer and his demons; and even the angels. In the periphery of such a mosaic plot, perverting the classic epic elements, remnants of the drama of a “missing” hero, unfinished and absurd, unable to remain equal to himself, and who insists in to inhabit different borders: islands between reality and the Dreaming; soft regions where time becomes malleable (local of translations between the familiar and the foreign), and his own kingdom, which is a metaphorical border between life and death. Such arrangements allow the discussion of the signic operating environment proposed by Lotman, the semiosphere, and its mobile/translation borders, a key concept to understanding the trends of permanence and change of the cultural texts Finally, Dream, occasional actor, the personification of the dream itself, questions, over the stories, the objective notions of identity, truth and immutability, as well as we may question, similarly, the principle of identity in self-centered and self-referencing cultures based on binary logic and mainly closed systems that tend to generate several ways of exclusion, through the idea of truth and tolerance, unlike the Sandman’s realm environments, linked to Derrida's discussion of the idea of hospitality.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Ilustração de pintura pré-colombiana. Reprodução de Scott McCloud,

Desvendando os Quadrinhos, p. 10.

Figura 2 Ilustração de tapeçaria francesa. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 12-13.

Figura 3 Ilustração de mural egípcio. Reprodução de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 14.

Figura 4 Ilustração medieval de martírio de santos. Reprodução de Scott McCloud,

Desvendando os Quadrinhos, p. 16.

Figura 5 Capa de primeira revista do Superman, de 1939, com arte de Joe Shuster.

Figura 6 Ilustração dos Vingadores, de Alex Ross. Pôster.

Figura 7 Ilustrações de Gibbons para a primeira página da série Watchmen.

Figura 8 Ilustração de Frank Miller em Batman: The Dark Knight Returns, capítulo 1.

Figura 9 Capa de The Amazing Spider-Man #1, 1963.

Figura 10 Primeira página de X-Men #2, 1963.

Figura 11 Combate entre Tempestade e Ciclope, em The Uncanny X-Men #201, 1986, arte de Rick Leonardi e Whilce Portacio.

Figura 12 Homem-Aranha nas Guerras Secretas #8, 1984.

Figura 13 Diagrama de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 48.

Figura 14 Diagrama de Scott McCloud, Desvendando os Quadrinhos, p. 52-53.

Figura 15 Galactus na primeira edição de Silver Surfer, de 1968. Arte de John Buscema e Joe Sinnot.

Figura 16 Norrin Radd sendo transformado no Surfista Prateado, em Silver Surfer #1, 1968, arte de John Buscema e Joe Sinnot.

Figura 17 Ilustração de Fallen Son: A morte do Capitão América, capítulo 3, p. 11 e 13, de 2007. De Jeph Loeb, John Romita Jr. e Kaus Janson.

Figura 18 Primeira página de Superman #300, de 1976. Arte de Curt Swan e Bob Oksner.

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Figura 20 Primeira página de Web of Spider-Man #117. Arte de Steven Butler e Randy Amberlin.

Figura 21 Encontro entre Aranha Escarlate e Venon durante a Saga dos Clones.

Figura 22 Luta entre o Homem-Aranha e o Duende Verde original. The Amazing Spider-Man #122, 1973. Arte de John Romita e Tony Mortellaro.

Figura 23 Jean Grey se transforma em Fênix. X-Men #101, 1976. Arte de Deve Cockrum e Frank Chiaramonte.

Figura 24 Fênix Negra destrói um sistema solar em X-Men #135, de 1980. Arte de John Byrne e Terry Austen.

Figura 25 Última página de Superman #75, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 26 Steel como Superman, em Superman: The man of steel #22, junho de 1993. Arte de Jon Bogdanove e Dennis Janke.

Figura 27 O Último Filho de Krypton, o Erradicador, como o Superman em Action Comics

#687, junho de 1993. Arte de Jackson Guice e Denis Rodier.

Figura 28 A Maravilha de Metrópoles, o Superboy, como o Superman, em Adventures of

Superman #501, em junho de 1993. Arte de Tom Grummett e Doug Hazlewood.

Figura 29 O Homem do Amanhã, em Superman #68, em junho de 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 30 O verdadeiro Superman, em Superman #81, 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding.

Figura 31 Primeiro encontro do Homem-Aranha com o Mancha, em The Spectacular

Spider-Man #98, 1985. Arte de Herb Trimpe e Jim Mooney.

Figura 32 Homem-Aranha, com uniforme negro, após salvar um menino do ataque do Homem de Ferro do futuro, em The Amazing Spider-ManAnnual #20, de 1986.

Figura 33 X-Men #2, 1963. Arte de Jack Kirby e Paul Reinman.

Figura 34 X-Men #262, 1990. Arte de Kieron Dwyer e Joe Rubinstein.

Figura 35 Wolverine e Rachel Summers em X-Men #207, 1986. Arte de John Romita Jr. e Dan Green.

Figura 36 Batman e Duas Caras em Batman: The Dark Knight Returns, de Frank Miller.

Figura 37 Capitão América #125, 1970. Arte de Gene Colan e Frank Giacoia.

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Figura 39 Wolverine em A Saga da Fênix Negra.

Figura 40 Primeira página de Guerras Secretas #12.

Figura 41 Iron Man #231, 1988. Arte de Mark Bright e Bob Layton.

Figura 42 Começo de Guerras Secretas #1.

Figura 43 X-Men #242. Arte de Marc Silvestri e Dan Green.

Figura 44 Final de Guerras Secretas #11.

Figura 45 The Amazing Spider-Man #36.

Figura 46 A morte do Capitão Marvel.

Figura 47 Funeral do Superman, em Funeral for a Friend.

Figura 48 Funeral do Capitão América em Civil Wars: Fallen Son.

Figura 49 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 50 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 51 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 52 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 53 X-Men #245. Arte de Rob Liefeld e Dan Green.

Figura 54 Fantastic Four #49. Arte de Jack Kirby e Joe Sinnott.

Figura 55 Fantastic Four #49. Arte de Jack Kirby e Joe Sinnott.

Figura 56 Sandman #4, p. 1, arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 57 Sandman #4, p. 13-14. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 58 Sandman #4, p. 17. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 59 Sandman #21, p. 18. Arte: Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 60 Sandman #22, p. 23-24. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 61 Sandman #23, p. 3 e 4. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 62 Sandman #23, p. 7. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

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Figura 64 Sandman #23, p. 9. Arte: Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 65 Sandman #17, p. 12-13. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 66 Sandman #17, p. 19. Arte: Delley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 67 Sandman #1, p. 22. Arte de Sam Kieth e Mike Dringenberg.

Figura 68 Sandman #75, p. 36. Arte de Charles Vess.

Figura 69 Sandman #69, p. 7. Arte de Marc Hempel.

Figura 70 Sandman #71, p. 15. Arte de Michael Zulli.

Figura 71 Sandman #37, p. 7. Arte de Shawn McManus.

Figura 72 Sandman #5, p. 5. Arte de Sam Kieth e Malcolm Jones III.

Figura 73 Sandman #9, p. 7. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 74 Sandman #18, p. 14. Arte de Kelley Jones e Malcolm Jones III.

Figura 75 Sandman #25, montagem de várias páginas. Arte de Matt Wagner e Malcolm Jones III.

Figura 76 Sandman #50, p. 20. Arte de P. Craig Russel.

Figura 77 Sandman #14, montagem de várias páginas. Arte de Zulli e Parkouse.

Figura 78 Montagem, a partir de diversas edições de Sandman, das várias formas das Três Mulheres.

Figura 79 Doutor Destino (DC Comics) dos gibis de super-heróis da década de 1970.

Figura 80 Doutor Destino em Sandman #05.

Figura 81 Capas dos gibis de Sandman, super-herói das décadas de 1970 e 1980, por, respectivamente, Simon e Kirby; Thomas e Argondezzi.

Figura 82 Sandman #11. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 83 Sandman #12. Arte de Chris Bachelo e Malcolm Jones III.

Figura 84 Sandman #13. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 85 Sandman #13. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

Figura 86 Sandman #21, p. 5. Arte de Mike Dringenberg e Malcolm Jones III.

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Figura 88 Sandman #46, p. 23. Arte de Jill Thompson e Vince Locke.

Figura 89 Sandman #46, p. 24. Arte de Jill Thompson e Vince Locke.

Figura 90 Capa de Sandman, Casa de Bonecas, por Dave McKean, em Capas na Areia.

Figura 91 Capa de Sandman, Convergências, por Dave McKean, em Capas na Areia.

Figura 92 Sandman #74, p. 16. Arte de Jon J. Muth.

Figura 93 Sandman #74, p. 17. Arte de Jon J. Muth.

AS REPRODUÇÕES CONTIDAS NESTE VOLUME SÃO SOMENTE PARA FINS DE PESQUISA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA, SEM QUALQUER FINALIDADE DE LUCRO.

SANDMAN, SPIDER-MAN, SUPERMAN, X-MEN E OUTROS, ASSIM COMO TODAS AS IMAGENS E PERSONAGENS PRESENTES NAS FIGURAS, SÃO MARCAS REGISTRADAS DAS EDITORAS MARVEL, DC COMICS E OUTRAS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 021

1 O CONCEITO DE IDENTIDADE E OS PROCESSOS CULTURAIS... 053 1.1 A Identidade e os Sistemas Fechados... 053 1.2 Essência, Diferença e Tolerância no Ocidente... 056 1.3 A Identidade e os Processos Culturais... 058 1.4 Especialização e Consciência... 062

2 UMA BREVE HISTÓRIA EM QUADRINHOS... 069 2.1 O Cenário do Mercado Estadunidense de Quadrinhos de Super-Heróis... 070 2.2 Possíveis Traços Distintivos da Linguagem dos Quadrinhos... 082

3 ENTRE AS ESFERAS ÉPICAS E OS ESPAÇOS COTIDIANOS... 091 3.1 Três Narrativas... 099 3.1.1 O Homem-Aranha e seus Clones... 099

3.1.2 A Saga da Fênix... 103

3.1.3 Superman e o Retorno da Morte... 109

3.2 Os Super-Heróis e a Ordem... 115

3.3 Constâncias e Algumas Mudanças... 138

4 OS SONHOS COTIDIANOS... 173

4.1 Elementos do Cotidiano... 177

4.2 Sonho e a Mudança... 200

4.3 As Várias Formas e as Identidades... 222

4.4 As Fronteiras do Sonhar... 253

4.5 A Amargura e o Riso... 260

CONCLUSÕES E DESLOCAMENTOS... 273

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INTRODUÇÃO

As histórias em quadrinhos, ou simplesmente quadrinhos ou gibis, começaram a tomar forma no século XIX, entre artistas europeus e estadunidenses, e se consolidaram como meio massivo, a princípio, com as “tirinhas” publicadas em jornais no começo do século XX, adquirindo diferentes linguagens e formas de expressão de acordo com os contextos culturais em que foram sendo produzidas ao longo do tempo.

Will Eisner, autor de quadrinhos estadunidense, que também lecionou na Escola de Artes Visuais de Nova York e é considerado o precursor dos quadrinhos modernos, definiu-os como arte sequencial (2001, p. 7), levando em consideração que imagens e palavras são usadas em sequência para estabelecer uma linha narrativa. Tal definição significa que somente um desenho ou um quadro não configuram a forma de expressão conhecida como “quadrinhos”.

Contudo, ao abrirmos um jornal, as tirinhas (comics em inglês, que vem do latim

comicus, por sua vez proveniente do grego komikos – “que pertence à comédia”) assumem

diferentes formas, como sequências curtas de quadros, usualmente ligados a temas humorísticos e de crítica social, ou apenas um único quadro ilustrado, podendo conter alguma fala de impacto que condense toda a ideia humorística ou reflexiva do autor.

Segundo Scott McCloud (2005, p. 30), nesse caso estamos tratando de outra linguagem, muito próxima à dos quadrinhos, mas que seria, de forma mais específica, território da charge. Não há necessidade de leitura sequencial e, por isso, tratar-se-ia de outra forma de expressão.

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então, jogando com as mudanças e adições de palavras, chegando ao seguinte resultado: “História em Quadrinhos s. pl. 1. Imagens pictóricas e outras, justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta do espectador” (MCCLOUD, 2005, p. 9).

Seu interesse é abrir o campo de possibilidades de expressão dos quadrinhos, ou seja, aumentar o campo de definição dessa forma comunicativa sem perder de vista seus traços distintivos.

Eisner acredita que uma das características dos quadrinhos é o fato de utilizarem palavras e imagens articuladas como modo de estabelecer sequências narrativas:

A configuração geral da revista em quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. (EISNER, 2001, p. 8)

Os quadrinhos possuem aspectos das artes plásticas e da literatura, que têm seus elementos traduzidos e combinados para expressar ideias, narrativas ou provocar um efeito estético. A partir do momento em que passam a fazer parte de uma história em quadrinhos, tanto os elementos literários quanto os plásticos assumem funções e formas diversas das que teriam num quadro ou num livro, sem perder, ao mesmo tempo, muitos de seus traços distintivos, conforme as diferentes situações de elaboração.

McCloud (2005, p. 10) estudou documentos antigos em busca de formas de artes sequenciais. Encontrou num manuscrito pré-colombiano, descoberto por Hernán Cortés em 1519, uma “tela brilhantemente colorida e pintada” que “conta sobre o grande herói militar e político ‘8-Cervos Garras de Jaguatirica’” (Figura 1). Nela, segundo o autor, podemos combinar as figuras, icônicas e simbólicas, e “ler” que no ano de 1049 d.C., na data de “Doze Macacos”, num determinado local – indicado por outra figura –, de significado ainda desconhecido, 8-Cervos conquistou o referido lugar e aprisionou um príncipe de 9 anos, chamado 4-Ventos “Serpente de Fogo”, e assim por diante até o final da história, que relata mais combates e mortes.

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Também dá o exemplo de arte sequencial egípcia do século XII a.C., claramente narrativa, sobre um evento de colheita bem completo, da semeadura ao pagamento dos impostos devidos, que deve ser lida em zigue-zague, de baixo para cima, para que se tenha percepção da sequência narrativa (Figura 3).

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Figura 2

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Obviamente, McCloud não atribui o nascimento dos quadrinhos aos antigos egípcios, babilônios ou maias. Sua intenção é construir um percurso de utilização de imagens em sequência deliberada com o objetivo de relatar determinado evento, seja ele histórico ou mítico. Normalmente, contam-se ambos ao mesmo tempo, sem que haja uma contradição entre eles.

Devemos considerar, no entanto, que o autor pode estar tentando qualificar de forma “positiva” os quadrinhos ao identificar num passado longínquo exemplos dessa forma de

Figura 3

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expressão. Ao mesmo tempo, pode estar procurando indícios da construção histórica desse tipo de expressão narrativa.

McCloud identifica também, nos relatos medievais do martírio dos santos, mais especificamente numa série de 1460, detalhes das torturas que sofreu Santo Erasmo, desde sua prisão até sua execução (Figura 4). Podemos traçar um paralelo com a sequência da Via Cruzes de Cristo, retratada em doze quadros de diferentes estilos em praticamente todas as igrejas católicas brasileiras. De forma semelhante, é uma narração em sequência, sem texto, somente com imagens.

Em 1731, o pintor inglês William Hogarth (1697-1764) compôs uma história em seis ilustrações chamada O progresso de uma prostituta. Foram expostas e vendidas para serem vistas em ordem determinada, lado a lado, sequencialmente. Hogarth fez outras séries como essa e seu trabalho serviu de inspiração para outros artistas, que começaram a criar sequências pictóricas que, vistas lado a lado, transmitiam significação específica. Ou seja, apresentavam uma linha narrativa sequencial (MCCLOUD, 2005, p. 16).

Entretanto, os quadrinhos modernos teriam surgido somente em meados do século XIX, com Rodolphe Topffer, que empregava “caricaturas e requadros” e, pela primeira vez na Europa, palavras, relacionadas de forma interdependente com imagens1.

Uma ideia bastante difundida – a de que todos os quadrinhos têm como traço distintivo a combinação de imagens e palavras – só é realmente válida em certas tradições. A presença e a importância das palavras na narrativa sequencial variam bastante de acordo com as escolas e artistas.

É consenso que a primeira tira de jornal, tal como a concebemos hoje, apareceu em 18 de fevereiro de 1895 no jornal New York World e se chamava The Yellow Kid. Foi lançada em preto e branco e, a partir de maio do mesmo ano, em cores, e contava as histórias de Mickey Dugan, sendo desenhada por Richard Felton Outcault. Sua característica distintiva, além de ser uma tira e estar num jornal, tal qual as tirinhas modernas, foi o surgimento do balão de diálogo, aquela forma geralmente ovalada que representa a “voz” do personagem que tem a propriedade da fala naquele momento determinado, possuindo dentro de seus limites frases ou formas expressivas variadas.

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Figura 4

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Muitos desses conceitos se devem aos populares gibis estadunidenses de super-heróis, gênero consolidado pelas duas gigantes editoriais responsáveis pelos mais populares personagens com superpoderes do mundo – a Marvel2 e a DC Comics3. Cada uma dessas editoras conta com seus próprios personagens e seu próprio “universo”, com suas cosmologias e lógicas particulares.

O Superman (Figura 5), da DC Comics, criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1933, combate o crime e a injustiça e defende, como ficou evidente no primeiro filme do personagem, de 1978, o “american way of life”. Além disso, durante as guerras em que os Estados Unidos estiveram envolvidos, este e outros personagens, como o Capitão América (Figura 6), da Marvel, idealizado por Joe Simon e Jack Kirby, foram mobilizados política e ideologicamente pelo governo para reforçar ideais de patriotismo, liberdade e heroísmo.

Uma característica importante dos gibis é sua produção massiva, assim como acontece com algumas tiras de jornal. O que os gibis fizeram foi elaborar uma nova mídia na qual as tiras que aparecem nas folhas de jornal assumiram novas formas de elaboração e produção.

Mas foi com o aparecimento de Superman, que se tornaria a referência básica da produção de quadrinhos estadunidense, que o que era anteriormente periódico se tornou também serial. Se nos jornais a tirinha podia aparecer e contar uma história que não teria necessariamente interligação com publicações seguintes, os gibis criaram histórias em forma folhetinesca, a serem lidas como se fossem “capítulos” de um livro, número após número.

Essa foi, talvez, uma expansão da própria estrutura dos quadrinhos, de sua linguagem. Se aceitamos como válida a definição de Eisner de arte sequencial, qual seja, a de que os quadrinhos têm como característica fundamental o fato de poderem ser lidos em sequência deliberada, isso é, estabelecida pelo autor, então é significativo o surgimento das séries quadrinescas, pois estas criam histórias a serem acompanhadas em sequência temporal, ao longo de inúmeras edições.

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A Marvel Comics foi fundada em 1939, em Nova York, tendo como nome original “Timily Comics”. Foi recentemente comprada pela Disney.

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Figura 5

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Figura 6

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Não basta ler um único gibi para entendê-lo, temos de ler o próximo, e depois o próximo e assim consecutivamente se quisermos acompanhar a história do personagem, do super-herói daquele título, e ficar a par de sua saga, de sua “mitologia”. As tirinhas de jornal também apresentam, algumas vezes, histórias maiores que podem ser acompanhadas ao longo de várias edições, como no caso do clássico personagem Flash Gordon4, por exemplo. Mas, hoje em dia, estas são formas narrativas mais raras e que não possuem comparação com a amplitude das séries de super-heróis.

Se não atribuirmos somente à lógica de mercado tal fenômeno que, prendendo o leitor à estrutura folhetinesca de expectativa pelo próximo episódio, garante as vendas, podemos encontrar um prolongamento da leitura sequencial. A própria história do personagem, para além da história específica de um único número, é estruturada de forma sequencial, em pequenos capítulos de cerca de 20 páginas cada. Porém, diferentemente do folhetim, não há expectativa alguma de conclusão. A trama possui início. Mas não possui, nesse contexto, meio ou fim.

Uma história famosa: um ser muito evoluído, superior de várias formas à espécie humana, envia seu único filho ao planeta Terra, onde ele é criado por um casal virtuoso de humanos como se fosse um de nós, sem, na verdade, pertencer a este mundo. Ele logo demonstra ter poderes sobre-humanos e um grande senso de justiça e de compaixão pelas pessoas. Seu destino é salvar a humanidade, sobretudo de si própria.

A semelhança da história do Superman com o mito cristão do salvador do mundo não é casual. Para além dos dramas humanos e das infelicidades banais do dia a dia, os super-heróis, que não envelhecem e podem realmente salvar o mundo, constroem em torno de si mesmos uma aura mítica. Próximos aos heróis míticos, dialogam com tais estruturas narrativas primevas.

Apesar das implicações ideológicas que os quadrinhos de super-heróis têm e tiveram ao longo de sua existência, seja pelas possibilidades de seu uso para a construção de consensos políticos sobre determinados temas, seja por suas visões conservadoras sobre outros assuntos, tais questões não são diferentes das alienações e manipulações atribuídas a outros meios de comunicação massivos, como o rádio, a televisão, o cinema ou mesmo os jornais e revistas, segundo a visão de certos teóricos e pensadores. Tendo em vista a vastidão de tal debate, optamos por apenas mencioná-lo, sabendo que outros autores trabalharam exaustivamente tais relações em outros espaços.

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Em todo caso, o sucesso dos super-heróis não está somente nos gibis. Alastrou-se para a televisão, através dos desenhos animados e séries produzidos desde os anos de 1960, e para os cinemas, mídia em que já foram produzidos, com grandes orçamentos, filmes bem-sucedidos, como Superman, Homem-Aranha, Homem de Ferro, Batman, Hulk, etc.

Como já dissemos, há certo consenso, em determinados meios, sobre os quadrinhos serem uma arte menor, apesar de divertida e até, algumas vezes, criativa.

Tal ideia nos parece antiga – a de que as formas de cultura que combinam diferentes linguagens são menos interessantes, principalmente se forem resultado dos desenvolvimentos da indústria de comunicação massiva e se deverem muito de sua elaboração às técnicas de produção mais tardias. Os quadrinhos não são nem pintura, nem literatura, menos ainda cinema. Ainda assim, fazem uso de elementos das artes plásticas, de certos gêneros literários e da narrativa cinematográfica.

A presença em conjunto de tais elementos configura uma simplificação das linguagens citadas ou uma forma de elaboração de novas linguagens, com seus traços distintivos e códigos próprios?

A articulação entre linguagens quase sempre é vista como algo negativo, como uma “queda” da linguagem original – ou das linguagens originais –, a qual seria vitimada por um processo de empobrecimento decorrente da utilização de seus códigos para a construção de formas terceiras, quartas, quintas de expressão, normalmente assim classificadas por ordem hierárquica de influência, ou seja, da proeminência de uma sobre a outra. Dessa forma, a fotografia seria uma queda da pintura, assim como o cinema seria uma degradação da

performance presencial teatral, por exemplo.

Outro fator que provoca uma visão negativa dos quadrinhos é a época de seu nascimento. Tal linguagem se consolida no auge da formalização dos meios de comunicação massivos, no período entre guerras, período de grande desenvolvimento da indústria das comunicações, da produção em série dos jornais e da propaganda moderna.

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Contudo, tal panorama, nem sempre homogêneo, vem sofrendo modificações. A visão “chapada” que apresentamos corresponde apenas a uma “opinião” geral. Fato é que os quadrinhos estadunidenses não são mais vistos somente como produções de segunda categoria.

Nos anos 1980, a DC Comics lançou um selo para quadrinhos classificados para adultos, ou leitores maduros, de modo a diferenciar a produção com temas direcionados para um público mais velho daquelas de super-heróis tradicionais. Tais publicações, a princípio, focaram o gênero de horror. Exploravam mais a sensualidade e apresentavam personagens mais densos, em enredos elaborados por uma leva de escritores anglo-saxões contratados para “dar cara nova” aos quadrinhos da editora.

Começaram a se popularizar as graphic novels, ou romances gráficos, denominação que passou a ser dada aos quadrinhos considerados “de qualidade”. Criou-se, assim, uma dualidade entre os quadrinhos usuais, os gibis, e os produzidos com suposta qualidade superior, apresentados em forma de graphic novels. Tal termo foi popularizado por Will Eisner, por ocasião da publicação de seu prestigiado Um Contrato com Deus5, com o objetivo de diferenciá-lo dos quadrinhos de produção massiva e sequencial.

O fato de reconhecidamente os quadrinhos terem tornado-se mais densos nas produções denominadas graphic novels criou uma dicotomia entre os quadrinhos considerados de qualidade e aqueles que continuavam sendo vistos como descartáveis e meras expressões da baixa cultura.

Alguns criadores rejeitaram a denominação, que acabava por identificar determinados quadrinhos como forma de arte, de alta qualidade, aproximando-os da literatura, e outros como produções inferiores. Tais artistas afirmavam que os quadrinhos em geral constituíam a linguagem através da qual eram produzidas suas obras, negando e afastando qualquer substituição de termos. Para eles, a utilização de elementos romanescos, cinematográficos e de artes plásticas faziam parte do processo criador por serem pertencentes a séries culturais próximas. Tal processo criativo de apropriação e tradução de materiais alógenos era inerente à produção artística e não deveria ser usado para uma pretensa hierarquização dos quadrinhos.

Numa visão não hierárquica, o que temos são obras quadrinescas estadunidenses que em determinado momento começaram a explorar outras formas narrativas e outros campos temáticos, diferentes daqueles tradicionalmente abordados pelos quadrinhos de super-heróis que se firmaram e fizeram sucesso entre tantos leitores. Os próprios super-heróis receberam

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abordagens diferenciadas, não sendo negados enquanto personagens capazes de gerar histórias mais elaboradas.

O surgimento de obras mais complexas em ambientes saturados por uma lógica de repetição de personagens, ideologias, morais e elementos mais ou menos fixos, como super-heróis com certos acabamentos crônicos, faz parte da própria dinâmica da cultura e não é um fato extraordinário. Sobre os determinismos da cultura, pondera Morin (1998, p. 44):

Basta por vezes uma pequena brecha no determinismo, permitindo a emergência de um desvio inovador ou provocado por um abscesso de crise, para criar as condições iniciais de uma transformação que pode eventualmente tornar-se profunda.

O determinismo, ou imprinting, é a estrutura estável que normaliza e normatiza o pensamento, o conhecimento e a própria cultura. A brecha seria a possibilidade de quebra de tal estrutura rígida, por onde a dúvida poderia “atacar” as certezas fazendo uso do movimento.

Por um lado, o imprinting, a normalização, a invariância, a reprodução. Mas, por outro lado, os enfraquecimentos locais do imprinting, as brechas na normalização, o surgimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, a modificação das estruturas de reprodução. (MORIN, 1998, p. 37-38)

Autores de quadrinhos que começaram a atuar no mercado americano a partir da década de 1980, como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman, inovaram com suas obras. Eles fizeram parte de um momento de desvio dos modos de produção usuais utilizados pela indústria estadunidense de quadrinhos. Watchmen (Figura 7), de Moore, abordou um mundo realista onde heróis mascarados, perturbados e sem poderes, atuavam guiados por uma moral ambígua e um altruísmo pouco convincente, diferentemente do modelo de super-herói tradicional do século XX. Frank Miller, em O Cavaleiro das Trevas (Figura 8), recriou um Batman idoso, melancólico, ressentido com o mundo e frustrado, mas também radical, com uma postura próxima a de um guerrilheiro urbano. E Neil Gaiman, em 1988, começou a escrever a série Sandman, que terminaria em 1996, depois de 75 edições mensais e algumas edições especiais.

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Figura 7

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Figura 8

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Sonho é um dos sete seres antropomórficos conhecidos como Perpétuos (The Endless). A família de sete irmãos é formada por Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio (do mais velho para o mais novo). Segundo a narrativa, os Perpétuos existem e existirão enquanto houver vida ou, talvez, qualquer forma de existência; enquanto houver seres que tenham um destino a cumprir (ou construir?) e que morram, sonhem, destruam, desejem, desesperem-se e delirem.

Os irmãos não são deuses. Não são seres encantados. São personificações de fenômenos constantes, comuns à maioria dos seres vivos.

Diferentemente dos quadrinhos de super-heróis, que não têm perspectiva de fim, Sandman terminou, por decisão do autor, no número 75. Segundo Neil Gaiman, o término ocorreu porque “as histórias que importam têm de ter um final”6.

Dado o sucesso do título, seu término contrariou as lógicas de mercado, que prolongam as narrativas que dão lucro, lançando novas versões e continuações quase que ilimitadamente. A narrativa subverteu também a lógica dos super-heróis: Sonho não se enquadra neste universo tradicional, não é altruísta, não tem ideais a defender nem uma identidade secreta – ou seja, não tem pretensões de salvar o mundo. E o autor contraria ainda mais o padrão, donde lançamos outro questionamento: poderia Sonho possuir uma identidade, uma vez que ele é constituído da própria matéria de que os Sonhos são feitos?

Esta tese visa analisar as narrativas da história em quadrinhos Sandman a partir das traduções, apropriações e subversões que a obra realiza de certos elementos das histórias de super-heróis, bem como suas articulações e montagens com determinados aspectos da cultura massiva, da filosofia e da tensão entre formas cotidianas e eventos extraordinários. Procuraremos estabelecer reflexões sobre os processos de comunicação dos textos culturais e sobre o princípio de identidade desenvolvido por determinados núcleos filosóficos ocidentais, bem como sobre as características distintas que tais questões assumem em outros contextos nos quais centralidade/ex-centralidade, realidade/ficção, estabilidade/instabilidade não se encontram em oposição, mas em jogo comunicativo.

Gaiman coloca em contato diversas características das séries culturais: elementos épicos, aspectos do herói trágico, fragmentos de cultura pop, estruturas super-heróicas, literatura, fatos históricos, contextos mitológicos, referências religiosas e filosóficas, etc. Contudo, apesar de ser interessante a enumeração de apropriações7 e traduções8 presentes na

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GAIMAN, Neil. Gaiman se dedica à alegria de contar histórias. O Estado de São Paulo, São Paulo, Caderno D2, 13 abr. 1995. Entrevista concedida a Gabriel Bastos Junior.

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série, nosso interesse está nas operações de sintaxe9 – de articulação e montagem dos elementos, responsáveis pela criação de atritos e movimentos – ao mesmo tempo em que conferem traços distintivos à obra, diferenciando-a das demais de sua série cultural, ou seja, dos quadrinhos do universo de super-heróis, sem os negar ou se opor a eles e sem conferir, tampouco, harmonização final e ideal.

A construção da identidade e da transformação na modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e opções. Esta equação confere ao pensamento moderno um carácter dual: de um lado, pensamento de raízes, do outro, pensamento de opções. O pensamento das raízes é o pensamento de tudo aquilo que é profundo, permanente, único e singular, tudo aquilo que dá segurança e consistência; o pensamento das opções é o pensamento de tudo aquilo que é variável, efémero, substituível, possível e indeterminado a partir das raízes. (...) É verdade que certos momentos históricos ou certos grupos sociais atribuem predominância às raízes, enquanto outros as atribuem às opções. Vêem-se num jogo ou movimento de raízes para opções e de opções para raízes, em que um dos vectores predomina na narrativa da identidade e da transformação. (SANTOS, 2006, p. 54-55)

Se por raízes temos construções que tendem a e buscam o constante, o estável, o singular, o essencial, tal qual concebemos o princípio de identidade e as produções em série mais ou menos “pasteurizadas” – certa característica dos quadrinhos de super-heróis estadunidenses –, por opções temos o detalhe improvável que se torna possível, o variado, a abertura para a chance, no sentido de diversidade de propostas e de combinações inesperadas. Sandman é opção frente à raiz da tradição de um mercado que tende ao homogêneo e à repetição e que prega, usualmente, o discurso fictício de ausência de opções frente a um mercado onipotente que, ironicamente, acaba por se configurar como terreno fértil para o surgimento de articulações de outras variedades de expressões culturais.

É exatamente no limite, quando um movimento, uma escola, uma tradição, parece não ter mais por onde se desenvolver, em sua fronteira de permanência, de raiz, que combinatórias imprevisíveis abrem possibilidades, as quais são, algumas vezes, intensas e rápidas na disponibilização de opções.

relações; tornar o objeto outro que não ele próprio, sem integrá-lo ou diluí-lo em um si mesmo autorreferente; apossar-se do estranho para que haja incômodo mútuo.

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Tradução: interpretar e recriar um texto cultural (uma dança, um livro, um texto, um prato culinário, uma peça teatral, uma expressão de alegria, um deus) a partir de uma estrutura de códigos de linguagem que não coincida com a estrutura anterior, com o texto de partida. “Não há tradução se o que vier de fora não reagir, por sua vez, sobre todo o conjunto lingüístico em que entrou, como uma pilha voltaica acelerando novas conexões a partir da imantação entre dois ou mais sistemas de linguagem” (PINHEIRO, 1995, p. 52).

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Se, como procuraremos demonstrar, uma das características de Sandman é a construção narrativa a partir de fragmentos e se o princípio de identidade, “pensamento de raiz” por excelência, tal como foi concebido e desenvolvido por certos aspectos da cultura ocidental, pressupõe a aniquilação das estruturas fragmentadas em prol de uma fala unívoca, essencialista e totalizante, a criação de Neil Gaiman consegue abrir espaços através de novas combinações e relações, configurando certa constelação de “pensamento de opções”, sem com isso negar a cultura clássica, tradicional, à qual sua obra está associada em decorrência dos próprios contextos culturais e históricos de produção. O que ocorre é que, através de deslocamento, toma-se o clássico, antes raiz, também por opção e, assim, acionam-se forças inclusivas. Se houvesse negação do meio em que está inserido, surgiria consequentemente um “delírio” de que Sandman poderia ter uma essência superior a dos outros gibis. E a opção tenderia a se tornar um variedade de pensamento de raiz, nos termos discutidos por Boaventura de Souza Santos.

Se há inovação em Sandman, mais interessante que isso é notar a tradução de temas recorrentes e presentes na cultura, objetivando incluí-los às formas e ritmos narrativos através da tradução e da montagem. Tal movimento traz densidade às discussões, símbolos e reflexões precipitadas pela estrutura combinatória desenvolvida na obra. Ao invés de mero acúmulo de elementos sem ligas ou pontos de articulação, é proposta uma capacidade de sintaxe, característica própria de textos culturais complexos que buscam determinados efeitos sobre si mesmos, sobre a cultura e sobre seu público:

Em vez de sincretismo acrítico, proponho a mestiçagem ou a hibridação com a consciência das relações de poder que nela intervêm, ou seja, com a investigação de quem hibrida quem, o quê, em que contextos e com que objectivos. (SANTOS, 2006, p. 29)

Se partirmos da premissa de que a reunião de elementos heterogêneos, por si só, não é capaz de garantir complexidades combinatórias nem ampliação da comunicação entre os diferentes aspectos das culturas, faz-se necessária a análise de como foram combinados os diferentes elementos para a construção de um texto cultural, porque, evidentemente, qualquer combinação é tão passível de falhas tradutórias quanto as simplificações o são, por exemplo, no que tange à sua pretensa possibilidade de objetividade analítica.

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É uma analogia aos universos imaginários, seus comportamentos, suas alternâncias. A discussão sobre permanência e mudança na cultura, assim como aquela sobre o princípio de identidade, ecoa nas histórias ao lado de outros elementos e elaborações. O Sonhar é metalinguagem de si próprio porque, de certa forma, é reflexo: um sonho dentro do sonho. Não por acaso, em uma das histórias, o povo das fadas assiste à peça de Shakespeare Sonho de uma noite de verão, criando reflexos e espelhamentos – fadas estão presentes no enredo – numa peça que também apresenta o elemento de duplicação, por meio da presença de personagens que ensaiam, de forma cômica, para uma apresentação teatral.

Textos e séries culturais se combinam a todo momento. Tal evento não é incomum. Por isso mesmo, nosso interesse está na articulação e nos movimentos que tornam possível a construção de relação e, dessa forma, a elaboração de novas esferas de significados. A quantidade de elementos é menos importante do que o procedimento operatório de encaixe que se dá entre eles.

Neil Gaiman sempre negou a afirmação, comum entre os fãs da série, de que Sandman não era história em quadrinhos, mas literatura:

Adoro fazer quadrinhos porque há tanto a ser explorado, tanto que ninguém fez até hoje. Desde o início quis levar os quadrinhos a sério, o que parece que não vinha sendo feito. Sempre quis fazer quadrinhos para pessoas que não lêem quadrinhos. O problema é que muita gente diz: ‘Eu não leio quadrinhos, leio Sandman.’ (...) É claro que Sandman é quadrinhos. A diferença é que é bom. Ou pelo menos eu espero que seja. Fui cogitado para receber um Pulitzer e a idéia foi descartada porque não sou americano. Por mim tudo bem. Fiquei satisfeito assim mesmo.10

Ao negar uma nova conceituação da obra, o autor impede a ruptura, a negação e, consequentemente, a construção de novo parâmetro de identidade. Permite que sua produção se situe como processo, como elemento contributivo, talvez até mesmo diferenciado e inovador, mas ainda assim como um texto cultural que faz parte de uma série mais ampla que, por sua vez, está também em contato com outras séries. É comum à Teoria dos Sistemas a noção de que um único elemento diferenciado, ao passar a integrar certo conjunto, modifica toda a estrutura e a si próprio. A ruptura com a tradição é forma de negação e oposição. Por estar inserido na série quadrinesca, Sandman pode ter contribuído para tornar mais maleável a indústria dos gibis de super-heróis.

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A história de Sandman, abordada ao longo de 75 edições, conta, muitas vezes, a aventura de um protagonista ausente. Como o próprio Sonho confessa a Shakespeare:

Shakespeare - Você vive numa ilha?

Sonho - Eu sou, ao meu modo, uma ilha.

Shakespeare - Mas isso pode mudar. Todos os homens podem mudar... Sonho - Eu não sou um homem.

Shakespeare - Mas...

Sonho - E eu não mudo. Eu lhe perguntei antes se você se via refletido em seu conto.

Shakespeare - Sim.

Sonho - Eu não. Eu não posso. Eu sou o príncipe das histórias, Will; mas eu não tenho minha própria história. Nem nunca terei.

(Sandman #75, p. 25)

O príncipe das histórias não tem uma história própria. Discutiremos isso mais adiante. Por enquanto, basta citar que Sonho é um protagonista ausente. Na verdade, esta é uma denominação equivocada. Não se trata de protagonismo nem de ausência. Como personificação dos sonhos, sua ausência/presença é bastante questionável, assim como seu papel em seu próprio arco de histórias – sua ausência pode ser presença constante e vice-versa. Até que ponto ele é/pode ser considerado o protagonista das histórias que se pretendem sobre ele?

As edições de Sandman foram sucesso de público e crítica. Gaiman esteve no Brasil três vezes – em 1995, em 2001 e na 6ª edição da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em 2008. A lista de prêmios ganhados pelo título inclui o maior prêmio do mundo dos quadrinhos, o Eisner Award de Melhor Escritor, vencido por quatro anos seguidos, entre 1991 e 1994, e o de Melhor Série, em 1991, 1992 e 1993; o prêmio Harvey de Melhor Escritor em 1990 e 1991 e o de Melhor Série em 1992; e o mais notável, o World Fantasy Award, na categoria Melhor História Curta, pela edição 19, Sonhos de uma Noite de Verão, de 1991, primeiro grande prêmio literário dado a uma revista em quadrinhos.

Evidentemente, não são os prêmios conquistados que caracterizam a qualidade da história. Os prêmios não são usados aqui para honrar a obra, mas apenas para ilustrar, de forma breve, o impacto da série entre a crítica e os fãs.

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No Brasil, as reuniões de fãs da década de 1990 para conversar e assistir a palestras sobre Sandman eram bastante diversas. Muitas delas ocorreram na Gibiteca Henfil, situada, à época, na Vila Mariana. Para conversar com os editores brasileiros da revista, lá se encontravam as velhas guardas dos quadrinhos, os fanzineiros, os góticos, os nerds, os intelectuais e os adolescentes em geral que gostavam de um bom gibi.

Sandman foi publicado integralmente pela Editora Globo, de 1989 até 1996, com algumas interrupções. A Globo chegou a publicar também algumas encadernações que reuniam certos períodos da série. Em 1998, a Brainstorm republicou os gibis, mas de forma incompleta. A editora Conrad lançou, nos anos 2000, todos os 10 arcos, em livros encadernados com capa dura. Hoje, os direitos da série são da Editora Pixel, que tem o projeto de relançá-la integralmente com material extra, assemelhando a publicação à última edição americana, denominada Absolute Sandman, que traz rascunhos, roteiros, esboços de desenhos, cartas trocadas entre o autor e os desenhistas e outros itens de interesse sobre o processo de construção dos quadrinhos.

O estudo comparativo e relacional da série Sandman com séries culturais próximas serve à reflexão sobre questões concernentes à dinâmica de permanência e mobilidade da cultura e, consequentemente, aquelas que tangem as relações entre as estruturas de núcleos duros de identidade e os ambientes com outras formas de produção e organização de conhecimento.

Nossa base de pensamentos, teorias e hipóteses para o plano de estudos acima referido foi extraída de diversos campos que desenvolveram, ao longo de seus processos, comunicação e relações entre si, articulando conceitos sem perder seus traços distintivos.

Desde a perspectiva da semiótica da cultura e da obra teórica e analítica de Iuri Lotman, concebe-se a cultura como sendo formada por textos. Os textos, segundo tal concepção, seriam conjuntos de códigos e linguagens que possuem, entre outras características, traços distintivos e certa integridade interna. Em nosso estudo, por exemplo, as histórias em quadrinhos são um texto cultural – possuem traços distintivos, como quadros, nos quais podemos encontrar desenhos e palavras que interagem, sequencialmente, com outros quadros justapostos, que têm linguagem própria baseada em traços, etc. Também possuem certos limites – podemos ver uma tirinha de quadrinhos num jornal, mas não há diluição entre ambas: a tirinha continua sendo uma tirinha e o jornal permanece como um texto cultural distinto.

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delimitadora, haveria a diluição da tirinha de quadrinhos no jornal, não sendo possível qualquer relação. Não existiria tirinha, mas apenas jornal. É seu caráter fechado, seus traços distintivos, que permite que a gramática da tirinha mantenha relativa estabilidade quando em contato com outro texto da cultura. Obviamente, a estabilidade, como dissemos, é relativa – a mesma tirinha, num jornal, possui determinadas regras constitutivas e operativas; quando presente numa revista ou na Internet, possui outras. Ainda assim, poderá ser percebida como uma tirinha. Mas não como a mesma tirinha. Daí que os textos da cultura têm características móveis, que variam de acordo com os contextos com os quais se relacionam.

Há dois casos em que a relação é impossível ou, ao menos, sofre grandes prejuízos: quando da diluição dos textos, exemplificada acima, e na oposição entre textos. Quando dois textos criam condições de antagonismo absoluto, a distância entre eles atrofia os pontos de troca, impossibilitando combinações. Numa situação-limite, de guerra ou segregação, tal coisa pode acontecer. Porém, devemos lembrar, tais situações de diluição e oposição total são exemplos ideais. Geralmente, o que podemos observar são textos, ou conjuntos de textos, ou mesmo culturas, mais ou menos afeitos às relações entre si.

Lotman (1995, p. 91) observa que outra característica dos textos culturais é sua multiplicidade interna, ou o texto no texto. Em resumo, o texto cultural “história em quadrinhos” possui dentro de si outros textos, como o das histórias de super-heróis ou o das histórias de horror, que, por sua vez, possuem outros textos, como as histórias de vampiros e as histórias de zumbis, e assim consecutivamente. Tal configuração não é mera agregação de elementos, mas diversidade de sentidos, vozes e significações.

Assim como a biosfera é algo diferente da simples “soma” dos seres vivos, constituindo um ambiente de contato e possíveis diálogos, os textos culturais operam entre si por fazer parte da semiosfera.

Como agora podemos supor, não existem por si só, de forma isolada, sistemas precisos e funcionalmente unívocos que realmente funcionem. A separação destes está condicionada unicamente por uma necessidade heurística. Tomado em separado, nenhum deles tem, na verdade, capacidade de trabalhar. Só funcionam estando submersos em um continuum semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de diversos tipos e que se acham em diversos níveis de organização. A esse continuum, por analogia com o conceito de biosfera introduzido por V. I. Vernadski, o chamamos semiosfera.11

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A semiosfera parece ser, segundo Lotman, um ambiente operativo que não é formado somente pelo conjunto das linguagens, códigos e textos culturais. É diferente da soma dos signos. Ao mesmo tempo, não existe por si só, ou seja, sem a presença de textos em estado dinâmico.

Mais adiante, no mesmo texto, há uma passagem elucidativa:

Pode-se considerar o universo semiótico como um conjunto de distintos textos e de linguagens fechados uns em relação aos outros. Então, todo o edifício terá o aspecto de ser constituído por distintos tijolinhos. Não obstante, parece mais frutífera a aproximação contrária: todo o espaço semiótico pode ser considerado como um mecanismo único (se não um organismo). Então, resulta como primário não um ou outro pequeno tijolo, mas sim o “grande sistema”, denominado semiosfera. A semiosfera é o espaço semiótico fora do qual é impossível a existência da semiose.12

A semiosfera não é a soma dos elementos presentes em seu interior. Tais elementos também não possuem uma hierarquia quanto à sua preponderância nesse ambiente de operação sígnica. Podemos diferenciar os textos da cultura do conceito de semiosfera. Mas a semiosfera, configurada como um ambiente operatório, caracteriza-se antes pelo conjunto flutuante e transitório de operações, pelo movimento dos textos uns em relação aos outros, do que pela soma dos textos separadamente. A semiosfera é forma de operação dos textos e não sua mera reunião.

Da mesma forma, a biosfera não pode ser considerada a soma dos seres vivos. Como sistema único, a biosfera é, de fato, o conjunto das relações desenvolvidas pelos seres vivos. Não se trata de “algo”, mas de um ambiente.

Ainda na mesma linha de raciocínio, um organismo não é a soma de suas células ou órgãos, mas sim os procedimentos operativos de seus conjuntos e unidades que, ainda que delimitados, são incapazes de funcionar se apartados – não do conjunto, mas do organismo, ou seja, da organização operatória.

Lotman estipula ao menos dois importantes traços distintivos da semiosfera: o caráter delimitado e a irregularidade semiótica. Tais características são de difícil definição, contudo são fundamentais para que haja uma melhor compreensão de tal ambiente operativo.

por analogía con el concepto de biosfera introducido por V. I. Vernadski, lo llamamos semiosfera” (LOTMAN, 1996, p. 22).

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O caráter delimitado diz respeito “a determinada homogeneidade e individualidade semióticas” (LOTMAN, 1996, p. 24). Resumidamente, podemos dizer que a semiosfera tem certa coerência interna, logo, pode ser delimitada em relação ao que está dentro ou fora de seu espaço operativo, de forma figurada, é claro. Entretanto, a semiosfera é ambiente relacional para os elementos que se encontram em seu interior, como também para todo e qualquer texto externo a ela. Isso é possível em virtude do seu limite. Da fronteira. Ao contrário da usual impressão, a fronteira não é barreira ao externo. Antes, é o local de tradução, de passagem e mediação entre dada semiosfera e os textos culturais externos a ela:

a fronteira semiótica é a soma dos tradutores – “filtros” bilíngües passando através dos quais um texto se traduz a outra linguagem (ou linguagens) que se acha fora de dada semiosfera. O “caráter fechado” da semiosfera se manifesta em que esta não pode estar em contato com os textos alossemióticos ou com os não-textos. Para que estes adquiram realidade para ela, é indispensável traduzi-los a uma das linguagens de seu espaço interno ou semi-otimizar os fatos não-semióticos. Assim, pois, os pontos da fronteira da semiosfera podem ser equiparados aos receptores sensoriais que traduzem os estímulos externos à linguagem de nosso sistema nervoso, ou aos blocos de tradução que adaptam a uma determinada esfera semiótica o mundo exterior em relação a ela.13

Outro exemplo de Lotman pode esclarecer melhor a questão:

Todos os grandes impérios que lidavam com nômades, “estepes” ou “bárbaros”, assentavam em suas fronteiras tribos desses mesmos nômades ou “bárbaros”, contratados para o serviço da defesa da fronteira. Essas colônias formavam uma zona de bilingüismo cultural que garantia os contatos semióticos entre os dois mundos. Essa mesma função de fronteira da semiosfera é desempenhada pelas regiões com diversas mesclas culturais: cidades, vias comerciais e outros domínios de formação de koiné e de estruturas semióticas mestiças.14

A fronteira, como local de tradução, é o ponto de troca entre textos de diferentes culturas. Os pontos de fronteira, as periferias, as margens, todo o espaço distante dos núcleos – que usualmente são pontos ligados às ideias de identidade cultural, pureza, integridade, os

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Tradução livre. No original: “... la frontera semiótica es la suma de los traductores -- “filtros” bilingues pasando a través de los cuales un texto se traduce a otro lenguaje (o lenguajes) que se halla fuera de la semiosfera dada. El “carácter cerrado” de la semiosfera se manifiesta en que ésta no puede estar en contacto con los textos alosemióticos o con los no-textos. Para que éstos adquieran realidad para ella, le es indispensable traducirlos a uno de los lenguajes de su espacio interno o semiotizar los hechos no-semióticos. Así pues, los puntos de la frontera de la semiosfera pueden ser equiparados a los receptores sensoriales que traducen los irritantes externos al lenguaje de nuestro sistema nervioso, o a los bloques de traducción que adaptan a una determinada esfera semiótica el mundo exterior respecto a ella” (LOTMAN, 1996, p. 24-25).

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quais, para manter determinada estabilidade, evitam trocas, hibridações e outras formas de contato – funcionam como tradutores dos textos exteriores a determinada cultura, incluindo-os ao processá-lincluindo-os em suas linguagens e códigincluindo-os, porém alterando a si mesmas no decorrer do processo. Durante a tradução, não é somente o texto traduzido que enfrenta o atrito de novas formas de codificação. Neste ato, o tradutor também tem seus mecanismos reorganizados pelo contato relacional com o “diferente de si mesmo”.

A tradução como ato político desestabiliza não apenas a noção de identidade estável, preguiçosa, mas sobretudo o fanatismo e a isoglossia. Um anacronismo latente faz com que as literaturas compartilhem espaços e tempos heterogêneos e simultâneos. Ao traduzir Homero, Haroldo de Campos heleniza o português ao mesmo tempo em que lusifica o grego – com o que se amplia as identidades, bem como a compreensão do presente. Mimética e não-mimética, a tradução é a “sobrevida” do texto original: vive mais tempo e também de modo diferente. De onde ser a tradução uma experiência expressionista, capaz de transformar uma coisa em outra, de ser ela mesma e seu outro. (MATOS, 2006, p. 167)

Diante de um texto alienígena, há duas posturas possíveis. Tratá-lo como texto estrangeiro à cultura ou como não texto.

A forma de considerar tal elemento externo é, antes, posição ética. Como texto estrangeiro, reconhecemos outros elementos imersos em contexto cultural que não é o nosso, mas que é como o nosso. É tanto quanto o nosso. A fronteira existe e traduz o texto estrangeiro. Torna-se parte nosso, parte do outro – texto único de passagem entre duas culturas. Como não texto, por outro lado, vemos esse outro como não cultura, não inteligível, não operativo. Como não texto, não linguagem ou não código, não é passível de tradução e acaba segregado a partir do centro da cultura – construindo o elemento exótico, que é considerado curioso por não ser classificado como pertencente ao terreno da cultura ou da civilização.

A postura não oposicional e de reconhecimento quanto ao texto estrangeiro, como dissemos, implica uma ética.

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Já a irregularidade semiótica diz respeito à diversidade de elementos submersos em dada semiosfera. Algumas estruturas, que ora ocupam posições e têm caráter mais nucleares e centrais, tendem a se descreverem, servindo de referência para a descrição dos espaços semióticos das periferias. Em outras palavras, determinados textos, que podemos tomar como tendências da semiosfera, alcançam, pela própria dinâmica cultural, posição de centralidade, tornando-se descritivos do todo e criando generalização que impõe tal modelo descritivo a outros elementos, configurando uma ilusão de identidade ou uma identidade ilusória a partir de uma postura totalitária.

As irregularidades existentes entre centro/periferia, memória/esquecimento, sincrônico/diacrônico15 organizam-se em níveis móveis. Elementos centrais podem tornar-se periféricos; elementos anteriormente diacrônicos podem, por cortes em profundidade temporal, ocupar posição sincrônica, ou seja, tornar-se contemporâneos, modernos, por meio de novos textos gerados – semelhantes aos antigos, mas, obviamente, diferentes. A memória e o esquecimento também têm essa dinâmica. Diversos fatores podem tornar alguns textos parte de uma memória ativa, constituintes da história cultural e do presente processual, e levar outros textos à zona do esquecimento. Tais textos, evidentemente, não são apagados da cultura. Um processo interessante mencionado por Lotman é a capacidade de os textos da cultura se reconstruírem em seu todo relacional, isto é, determinada forma de dançar, por exemplo, guarda consigo a memória/esquecimento de outras danças, músicas, livros, objetos da cultura. Sob determinadas condições, tais textos submersos nessa hipotética forma de dançar podem ser reconstruídos, reelaborados, reinscritos na semiosfera (LOTMAN, 1996, p. 31), não como os textos “originais” o foram um dia, mas como novas escrituras dos textos culturais dados como perdidos, traduzidos e mediados por mecanismos semióticos. A semiosfera – a cultura – possui um elaborado mecanismo de memória que reconstitui códigos, linguagens e textos culturais. Claramente, tal processo é analógico: a reelaboração se verifica com elementos presentes e ausentes e no entorno de contextos disponíveis, que guardam a memória do texto “perdido” nas relações que um dia ele estabeleceu com outros signos. Um processo digital não seria capaz, por sua necessidade de alta fidelidade de informações para operar, de realizar tal mecanismo de memória. Entretanto, possui outras capacidades de operação distintas que precisariam ser analisadas em outro momento.

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Tais noções da semiótica da cultura irão nortear nosso estudo a respeito dos sistemas identitários, estáveis, permanentes e rígidos da cultura, bem como de seus movimentos dialógicos, abertos, instáveis e tradutórios, os quais propiciarão melhor entendimento sobre como os textos culturais se articulam em Sandman e como a série articula-se com outros textos ao redor, no ambiente de diferentes semiosferas.

Se, por um lado, Sandman inscreve-se na série cultural “quadrinhos” e, por local de produção, na série estadunidense “quadrinhos de super-heróis”, há outras séries nas quais ele também está inscrito.

Duas delas, concomitantes com os estudos teóricos apontados acima, interessam-nos especialmente no entendimento dos movimentos de articulação de Sandman com os textos culturais ao seu redor, possibilitando a leitura de uma obra complexa e que, analogamente, talvez seja uma reflexão mais ampla do que pode, a princípio, parecer.

Dois operatórios culturais são importantes, em nosso estudo, para situar os mecanismos de elaboração da obra de Neil Gaiman: a tendência à permanência e a tendência à mudança16.

Ambos podem parecer meros conceitos, mas são algo diferente. Primeiramente, não se trata de palavras que guardam oposição entre si. São textos da cultura, mas também são operatórios. Por sua capacidade tradutória, todos os textos culturais possuem determinado nível operatório17.

Porém, a respeito da permanência e da mudança, falamos de textos em que o mecanismo operatório tem preponderância organizacional, hierárquica ou não, sobre outros aspectos.

Lotman (1996, p. 29-30), ao descrever a irregularidade semiótica da semiosfera, delimita o seguinte processo: se uma estrutura nuclear de dada semiosfera ocupa posição dominante e se eleva ao estado de autodescrição, configurando sistemas de metalinguagem com a ajuda dos quais descreve não somente a si mesma, mas também ao espaço periférico, então é construído sobre a irregularidade semiótica real um nível ideal de unidade – que podemos relacionar ao princípio de identidade.

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Mudança e permanência são aspectos em jogo aproximativo e em fronteiras móveis, sendo tendências raramente passíveis de ser encontradas de forma isolada nos diferentes contextos.

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Uma das formas de construção de princípios de identidade nucleares e totalizantes tem lugar quando uma estrutura nuclear desenvolve, numa posição dominante, autodescrição e “sistemas de metalinguagem” descritivos de todos os níveis de dada semiosfera, assim como de outras, se levarmos em conta que culturas usam suas autorreferências para descrever outras culturas, externas a seus sistemas de familiaridade. Em tal processo podemos reconhecer certa tendência à permanência e à estabilidade.

Sobre essa determinada condição:

A criação de auto-descrições metaestruturais (gramáticas) é um fator que aumenta bruscamente a rigidez da estrutura e faz mais lento seu desenvolvimento. Entretanto, os setores que não foram objeto de uma descrição ou que tenham sido descritos em categorias de uma gramática “alheia” obviamente inadequada a eles, se desenvolvem com mais rapidez.18

Fica evidente o caráter de estabilidade e permanência do sistema que desenvolve para si e para seu entorno uma descrição/identidade autorreferente e de todo o sistema. As áreas não descritas, não mapeadas, ou pouco descritas e mapeadas são consideradas menores ou pouco importantes em relação ao centro nuclear “legítimo”. Tais locais periféricos são espaços de aceleração de desenvolvimento de novos códigos, sentidos, linguagens e articulações entre os textos da cultura, desdobrando novos sistemas sígnicos, já que não possuem, em outras palavras, conceitos tão rígidos sobre “si mesmos”, sendo locais com linguagens em aberto.

Para Lotman, tais estruturas, nucleares e periféricas, mudam de posição uma em relação à outra, criando dinâmicas de equilíbrio do sistema semiótico e dos desenvolvimentos das semiosferas. A existência de núcleos rígidos e de periferias suaves é, para o teórico, uma lei organizacional da semiosfera.

Apesar de não propor algum outro tipo de processo organizador da semiosfera, o que faz parecer que determinada identidade autorreferencial, assim como metalinguagens descritivas, é elemento constante em qualquer semiosfera, há um espaço para um operador, de alguma forma, diferenciado:

Não obstante, embora o fato dessa divisão ser absoluta, as formas que toma são relativas desde o ponto de vista semiótico e dependem em considerável medida da metalinguagem de descrição escolhida – ou seja, de se estamos diante de uma

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