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I. INTRODUÇÃO. A HISTÓRIA DO POVO

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Academic year: 2021

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A revolução de 1974 - 75 , que logo foi batizada de Revolução dos Cravos, mudou profundamente o País. Alguns dos seus resultados continuam presentes na educação, na saúde, na segu- rança social, no lazer e espaços coletivos de quem cresceu no Portugal depois de abril. Mas a revolução não mudou de forma duradoura as relações de produção. O Estado recompôs-se, o regime equilibrou-se, e os governos sucederam-se à margem do envolvimento das pessoas, que caracterizou aquele biénio. Po- rém, essas pessoas mudaram. Quem fez a revolução, porque já cá estava, porque veio de longe trazendo na bagagem o roman- tismo das revoluções, porque se recusou a combater na guerra, porque exigiu definir onde ficava a creche, como estavam as contas das empresas, porque geriu o conselho diretivo, porque aprendeu o significado da democracia direta, uma democracia face a face, de um voto de mão erguida, nas comissões de mora- dores, comités de luta, terras ocupadas, comissões de trabalha- dores, assembleias de soldados, reuniões gerais de trabalhadores ou estudantes. Estas pessoas não mudaram tudo. Mas ter feito a revolução mudou-as para sempre.

A história da Revolução dos Cravos, como a história de qual- quer revolução, é a história do Estado e da construção de um poder paralelo a esse Estado, dos que já não conseguem gover- nar e dos que já não aceitam ser governados daquela maneira. A história da Revolução dos Cravos em Sines é marcada pelo con- flito entre o Gabinete da Área de Sines, criado em 19 de junho de 1971 ,

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que iria trazer desenvolvimento e progresso a toda a

1

Pelo Decreto-Lei n.º

270

/

71

.

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região, mas três anos depois, criara apenas um monstro respon- sável por expropriações de pequenos proprietários, pela estagna- ção das obras de construção civil, pela inexistência de esgotos, por danos provocados nos edifícios pelos rebentamentos na pe- dreira, por falta de habitação e danos à atividade piscatória

2

, e a população que começa a organizar-se formando, logo após o 25 de Abril de 1974 , a Comissão de Redenção do Povo de Sines, e depois a Assembleia Popular do Concelho de Sines (em janeiro de 1975 ) e as comissões de moradores de diversos bairros.

Este livro trata de uma parte dessa história conflitual, a dos que já não aceitam ser governados como dantes.

Nunca na história de Portugal os trabalhadores tiveram tanta consciência de o ser e tanto orgulho em sê-lo: «Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, a habitação»

3

, cantava Sérgio Godinho. Meses depois do fim da revolução – que nem todos tinham percebido que tinha acabado – ainda havia jornalistas por- tugueses e estrangeiros a ir às fábricas do País «à procura do socialismo», desse país da Europa Ocidental que tinha inscrito na Constituição a construção de uma «sociedade sem classes». Ape- sar da propalada divisão entre «o povo e os trabalhadores», agar- rada por um lado a um obreirismo pueril e por outro à construção de agrupamentos socioprofissionais supostamente divididos entre aquilo que seriam trabalhadores e a pequena burguesia (o que foi instrumental na construção dos partidos e dos sindicatos), a revo- lução portuguesa tem como protagonistas centrais a gente-que- -vive-do-trabalho

4

, os seus filhos, as suas famílias. Trabalho inte- lectual e manual, feminino e masculino, formado ou não.

Na última década surgiram com ampla divulgação as peo- ple’s histories, depois de Howard Zinn ter tido um súbito e ines-

2

Acusações dirigidas ao GAS na imprensa, em

10

de maio de

1974

, pela entretanto formada Comissão de Redenção do Povo de Sines.

3

Canção de Sérgio Godinho.

4

Sobre o conceito de quem-vive-do-trabalho ver Ricardo Antunes, Os

Sentidos do Trabalho, Coimbra, Almedina,

2013

.

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perado êxito com a sua obra A People’s History of the United States

5

. Tratar-se-ia de algo diferente da clássica história social, seria algo mais como uma história dos «de baixo», como lhe chamou Hobsbawm. Howard Zinn disse que as histórias do povo seriam como «a voz do povo», a voz dos que não tiveram voz. Chris Harman, autor de A People’s History of the World

6

, chamou-lhe o «arcaboiço da sociedade». Porém, dúvida que se ergue de imediato: não é o povo, todo o povo de um país? Não, as people’s histories são a história, se quiserem, do povo revolu- cionário, rebelde, resistente, dos que desafiam a ordem estabele- cida, que em geral é uma desordem de desemprego, subnutrição, analfabetismo e ignorância, repressão aos trabalhadores, conscri- ção para a guerra…

Os leitores encontram em Sines na Revolução dos Cravos a história dos resistentes, dos «sem voz», aqueles que habitual- mente não ficam na história, soterrados por decretos, declara- ções diplomáticas, jogos de bastidores e lutas políticas.

Não sejamos inocentes – uma história total, ambicionada por todos, não é só a história dos resistentes. Mas não pode ser feita sem a história dos resistentes. Dos que não aceitaram as ordens sem primeiro as contestar, discutir e votar. E assim elas deixa- vam de ser ordens e passavam a ser aquilo que foram em grande medida no biénio de 1974 - 1975 : decisões coletivas sobre a forma como uma sociedade quer viver.

«A política foi, em primeiro lugar, a arte de impedir as pes- soas de se intrometerem naquilo que lhes diz respeito»

7

, escre- veu o poeta francês Paul Valéry. O 25 de abril iniciou em Portu- gal um período em que a política foi exatamente o contrário, a

5

Zinn, Howard, A People’s History of the United States, Nova Iorque, Perennial (Harper Collins),

1999

.

6

Harman, Chris, A People’s History of the World, London-Sydney, Book- marks,

2002

.

7 «La politique fût d'abord l'art d'empêcher les gens de se mêler de ce qui les

regarde». Paul Valéry, Tel Quel (

1941

).

(4)

arte de as pessoas se envolverem nas decisões que condicionam o seu dia a dia. A combinação rara de alguns fatores levou a que este envolvimento tivesse criado a maior crise de um Estado europeu desde a II Guerra Mundial: a derrota da guerra colonial, a crise económica de 1973 , uma sociedade desorganizada em que as classes trabalhadoras e populares não tinham um veículo único de diálogo com o Estado (sindicatos ou partidos fortes), uma população operária fortemente concentrada em três lugares chave do País – as margens do estuário do Tejo, Setúbal e Porto.

A revolução portuguesa foi assim marcada pelo protagonismo político de um poderoso movimento operário e social – parte es- sencial da definição do próprio conceito de revolução – que atingiu todos os setores da sociedade portuguesa, em particular o movimento operário, mas não só. Para além dos trabalhadores diretamente ligados à produção de valor, e particularmente os operários industriais e assalariados agrícolas, a revolução portu- guesa caracterizou-se por conflitos sociais muito radicalizados entre os estudantes, o moderno setor laboral dos serviços, o setor informal, uma ampla participação das mulheres e dos setores intermédios e de base das forças armadas. A conflitualidade social em Portugal em 1974 - 75 teve uma amplitude nacional.

Para o período de 1974 - 75 , Duran Muñoz registou 958 conflitos de empresa e fábrica, 300 dos quais ocorreram entre maio e junho de 1974

8

. Com exceção de julho e agosto de 1974 , todos os meses registam mais de 100 conflitos. Este número é claramente subregistado, na medida em que teve por base dois jornais ape- nas. É porém um número indicador de um «outro país».

A maioria dos conflitos sociais da revolução portuguesa é protagonizada pelo operariado ( 19 % da conflitualidade laboral dá-se na indústria têxtil, 15 % na maquinaria e fabricação de produtos metálicos, 9 % na construção e obras públicas, 7 % na

8

Muñoz, Duran. Contención y Transgresión. Las Movilizaciones Sociales y

el Estado en las Transiciones Española y Portuguesa. Madrid: CPPC,

2000

,

p.

105

.

(5)

indústria química e alimentação), em particular o operariado das

grandes cinturas industriais (Porto, Lisboa e Setúbal), com

particular destaque para Lisboa, distrito no qual ocorrem 43 %

dos conflitos laborais. Portanto, trata-se de conflitos que ocor-

rem maioritariamente no setor que produz valor diretamente, de

uma classe operária jovem (a grande migração do campo para a

cidade dá-se a partir do início dos anos 60 ) e concentrada geo-

graficamente. Finalmente, as tarefas «reformistas», no sentido

clássico do termo (nacionalizações, reforma agrária, melhoria

dos salários), ganharam uma dimensão revolucionária porque

foram conquistadas contra a burguesia, com métodos próprios

do movimento operário (greves, ocupações de terras e fábricas)

e, em muitos casos, através de organismos autónomos de traba-

lhadores, de assalariados agrícolas e, em certo momento, de sol-

dados.

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