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A EXIGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE ÉTICA FRENTE AO AVANÇO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO EM O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

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A EXIGÊNCIA DA RESPONSABILIDADE ÉTICA FRENTE AO AVANÇO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO EM O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

Elias Fochesatto*

Resumo: O trabalho pretende refletir a proposta ética de Hans Jonas, tendo por base sua obra O princípio responsabilidade, que apresenta como exigência a apropriação de uma nova ética por parte da sociedade tecnológica contemporânea. Seu ponto de partida é a crítica à moderni- dade a partir do ideal baconiano, que eleva o conhecimento científico a poder de dominação do homem sobre a natureza. Sua compreensão da técnica moderna leva-o a tomá-la como elemento responsável pela modificação na natureza do agir humano e, por conseguinte, pela im- plementação de uma ética pautada em um novo princípio. Nesta, é necessário que se considerem a totalidade, continuidade e futuro do homem para que este, integralmente, possa se reconhecer como ser racional, uma condição de liberdade que o faz um ser de respon- sabilidade. O método utilizado para atingir o que sua ética propõe é o temor, a heurística do temor. Remetendo-se às figuras do pai e do governante público, Jonas aponta os modelos paradigmáticos de sua teoria, que tem na criança – recém-nascido – o objeto originário e no outro – alter – sua destinação. A ruptura com o hic et nunc das princi- pais teorias éticas da tradição, erige-se como um dos traços marcantes de seu pensamento.

Palavras-chave: Responsabilidade. Jonas. Ética. Ciência. Técnica. Temor.

* Bacharel em Filosofia pelo IFIBE (2013). Bacharelando em Teologia pela Itepa Fa- culdades. Artigo elaborado a partir de pesquisa monográfica apresentada ao IFIBE para obtenção do grau de Bacharel em Filosofia sob a orientação do professor Paulo César Carbonari.

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A sociedade tecnológica moderna ampliou o poder do homem e transformou as condições de seu agir. A manutenção da vida humana nesse meio passa a exigir novos fundamentos que orientem o homem:

há uma necessidade a ser satisfeita. Esta é a constatação de Hans Jonas,1 que propõe, como novo princípio para o agir humano, a responsabili- dade.

Etimologicamente, responsabilidade provém do termo latino res- pondere (re, em retorno, para trás, de volta; spondere comprometer-se, responder, prometer em troca). Na análise de Jonas, o grande avanço tecnológico desencadeado com o advento da modernidade e o uso deste em vista de interesses particulares teria demonstrado que a capacidade de destruição e intervenção na natureza a que chegou o homem, tam- bém em função de uma contribuição da ciência, exige que se postulem princípios a fim de evitar que estes avanços ponham em risco as con- dições de possibilidade de vida no planeta Terra. Nessa perspectiva, o conceito responsabilidade ganha o centro de uma nova proposta ética.

Duas questões ganham força em seu discurso: a possibilidade de conti-

1 Hans Jonas nasceu em 10 de maio de 1903, na Alemanha, em Mönchengladbach.

Teve como professores figuras conhecidas da tradição filosófica como Husserl e Heidegger. Quando, em 1933, Heidegger aliou-se ao Partido Nazista, Jonas se sentiu pessoalmente “traído” já que era de origem judia. Isso fez Jonas questionar o valor da filosofia. No mesmo ano, e com o advento do nacional-socialismo, emigrou para a Palestina, depois se transferindo para a Itália, onde, como soldado da brigada judaica, ajudou a combater o fascismo. Após a guerra voltou a Mönchengladbach, com a intenção de buscar sua mãe, porém descobriu que ela havia sido enviada às câmaras de gás de Auschwitz. Sabendo disto, desconsiderou a ideia retomar sua vida na Alemanha. Jonas lecionou na Universidade Hebraica de Jerusalém, por um breve período, antes de mudar-se para a América do Norte, fato ocorrido em 1950 quando se transferiu para o Canadá. Lá, passou a ensinar na Universidade de Carleton. Em 1955, mudou-se para New York, onde viveu o resto de seus dias.

Tornou-se conhecido, primeiramente, por sua obra sobre a Gnose e, mais tarde, por seus trabalhos sobre a filosofia da biologia. Desde o final dos anos de 1960, Hans Jonas voltou sua atenção para as questões éticas suscitadas pelo progresso da tecnologia. Sua obra principal, O princípio responsabilidade, foi publicada em 1979 e constituiu a razão principal para a outorga do título de doutor honoris causa em filosofia, concedido em julho de 1992 pela Freie Universität Berlin. Faleceu no dia 5 de fevereiro de 1993, em New York.

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nuidade da humanidade frente à evolução tecnológica ocorrida, princi- palmente nas últimas décadas e, em segundo, a relação do homem com o extra-humano, ou em outros termos, com tudo o que existe, com toda a natureza, levando em consideração as implicações da ação humana nas diferentes formas de vida. Agir de tal forma a fim de não pôr em risco a vida das gerações futuras constitui o cerne de seu pensamento ético. Isso exige pensar as relações e consequências geradas pelo ho- mem na atual sociedade tecnológica.

O itinerário que o pensamento de Jonas aponta, exige compreen- der a configuração da ciência, a constatação de uma ética defasada por não mais responder às novas formas de atuação e possibilidades de intervenção do homem e, por fim, a proposta da responsabilidade como princípio para uma ética da civilização tecnológica. O homem, em Jonas, é conduzido a reconhecer que o mundo não lhe pertence, mas que, ao mesmo tempo, tem condições de influenciar na forma como o mundo pode ser. É exatamente por tais condições que o ho- mem também é ser de responsabilidade.

1. A técnica moderna e a natureza modificada do agir humano

Quem não sente entusiasmo ante as renovadas conquistas ou be- nesses proporcionadas pelo progresso tecnológico em todas as esferas da sociedade? Quem se preocupa com as consequências indesejáveis ou imprevistas decorrentes dessas mesmas conquistas? É para essa espécie de hipnose provocada pelo “canto da sereia” que Jonas quer chamar a atenção, para que a audácia prometéica do homem moderno não se converta, como outrora, em castigo. N’O princípio responsabi- lidade, Jonas apresenta a urgência de apropriação de uma nova ética por parte da sociedade tecnológica contemporânea que, pelo êxito do ideal baconiano, tornou a ciência expressão de poder e dominação do homem sobre a natureza. A humanidade não tem o direito de estabele- cer o fim da vida humana e planetária e o poder que a técnica moderna confere ao homem apresenta também o perigo de inviabilizar as con- dições de perpetuação da vida no planeta.

Transformações sociais relacionadas a divergências na concep- ção de valores e de mundo impulsionaram o surgimento da ciência

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moderna numa tentativa de, por meios racionais, compreender e ex- plicar o mundo, o universo e o homem. Como atitude crítica, a ciên- cia moderna busca formular, testar e confirmar hipóteses que possam consolidar-se como leis e como teorias válidas, necessárias e univer- sais. A esta se soma a técnica, que se constitui como um apoio ao ho- mem em virtude de necessidades que precisam, permanentemente, serem sanadas.

A técnica moderna é uma forma de estabelecer relação com a na- tureza assim como era a forma antiga e medieval da arte, porém com um modo de ser diferente A maneira como o homem utilizava a téc- nica em suas atividades cotidianas, outrora promovia interferências essencialmente superficiais, impotentes se acusadas de prejudicarem o equilíbrio do todo.2 Se antes as artes deviam, ao imitar tal raciona- lidade, contribuir para que o homem adentrasse na harmonia do cos- mos, completando as finalidades cósmicas da natureza, agora a técni- ca toma o sentido de dominar, reestabelecer funções, forçar, oprimir e passa a contar com uma nova aliada: a ciência. É o Renascimento que,] enquanto retomada dos gregos, visa reviver a importância dada à ciência e à razão, à estética artística da antiguidade, ao conhecimen- to em várias áreas, ao reconhecimento do homem como o elemento principal e decisivo no que diz respeito à condução da história da hu- manidade (e não mais Deus, como no período medieval); enquanto

2 Um rio, por exemplo, não mais é visto como aquele sobre o qual se constrói uma ponte (respeitando sua constituição natural), mas como aquele que pode ter seu leito transposto, ou então, como aquele que serve meramente como parte de um complexo hidroelétrico que tem a função de fornecer a pressão da água, ou ainda, como “[...] um objeto encomendável para a visitação de um grupo de turismo, que uma indústria de turismo encomendou (bestellt) para poderem visitar este local”

(HEIDEGGER, 2007, p. 382). Já não se trata de um apresentar a natureza, mas de um representar a natureza, que é perpassado pela observação, pela classificação, pela generalização, pela previsão e pelo controle. Assim, tem-se que a “representa- ção é a recriação do real na medida do cálculo e da razão. O real é a reconstrução calculadora do real: re-presentação do real. Em outras palavras, o real é a ideia do real. A representação calculadora, portanto, não olha para o real a partir dele mes- mo, mas das possibilidades representativas da razão. Olha para a lente como que se deve olhar para o real e, então, requisita o real a partir dela. [...] Assim, opera em relação ao real um controle sobre sua possibilidade de manifestação. [...] A esse poder de interpelação produtora está subordinado tudo o que é e pode ser: o existir diário dos homens, as ciências, a indústria e a economia” (CRITELLI, 2002, p. 86).

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ruptura, tem a intenção de, possuindo aparatos técnicos, ampliar a aplicabilidade prática do conhecimento, erigindo, assim, os alicerces da técnica moderna.3

O conhecimento, antes visto como uma virtude, torna-se expres- são de poder. O plano baconiano revela a aspiração por propor novos métodos e princípios que conduzam a busca da verdade e o progresso científico e tecnológico. O segredo e o sagrado dão lugar à apropriação intelectual como ato de subjugar, submeter, dominar, manipular e exer- cer poder, em que o que vale é a precisão. A verdade deixa de ser con- templada para ser construída pela força da demonstração, e o universo, agora, é o do discurso científico: tudo deve ser ordenado em função da

3 “O projeto da modernidade, nascido com o Renascimento, mas formulado nos seus traços essenciais pelos filósofos do iluminismo, pretende liberar o potencial cogni- tivo dos diversos domínios da sociedade – ciência, arte, moral, etc. – e livrá-los de suas formas esotéricas. Para fazê-lo, contudo, tem necessariamente, de desencantar a sociedade sacralizada; e a única maneira viável é subtrair, à toda população, suas antigas crenças e, consequentemente, seu Deus” (MAGALHÃES, 1999, p. 386-387).

Ainda, é importante ressalta a importância do Oriente e da América como elemen- tos propulsores do Renascimento europeu. O Ocidente precisou conhecer o Oriente para que pudesse aprender técnicas que possibilitaram a este o status de ativo, de conquistador, de utilizador dos recursos naturais e, assim, tivesse condições de apli- car e de aprimorar suas teorias científicas. Quando se tornou necessária a busca de novas rotas para o comércio com o Oriente, a Europa tem contato com um continen- te até então desconhecido, vindo a ser chamado de América. Esse processo, marcado por uma decorrente dominação física e subjugação cultural dos povos destas terras, fez com que a Europa se nominasse o “centro” do mundo. Há uma forte expropriação de bens dessa região que enriquece as metrópoles europeias. A isso, Karl Marx deu o nome de acumulação primitiva que, resumidamente, trata-se da formação de dois grupos sociais: de um lado, uma minoria portadora de uma grande quantidade de riquezas (dinheiro, ouro, prata, terras); de outro lado, uma grande massa de pessoas sem posses e, por isso, obrigadas a subordinarem-se aos donos de terras e de manufaturas, vendendo sua força de trabalho. Isso leva Enrique Dussel a de- monstrar que a “periferia” do mundo não é simplesmente um aspecto do período moderno, senão que a razão para sua existência. Contudo, a América não é reco- nhecida nem como periferia, mas como espaço de projeção da sociedade europeia, como coloca Dussel, tomando como base o fundamento ontológico de O’Gorman:

“[...] esta experiência não é um ‘descobrimento’ do novo, mas simplesmente o re- conhecimento de uma matéria ou potência onde o europeu começa a ‘inventar’

sua própria ‘imagem e semelhança’. A América não é descoberta como algo que resiste distinta, como o Outro, mas como a matéria onde é projetado ‘o si-mesmo’.

Então não é o ‘aparecimento do Outro’, mas ‘a projeção do si-mesmo’: encobrimen- to” (DUSSEL, 1993, p. 35).

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inteligência humana segundo normas de conhecimento racional e ex- perimental. Os fundamentos da ciência moderna estão num modelo de inteligibilidade e de linguagem geométrica e submetida à disciplina ri- gorosa da física matemática, em que experimentar é interrogar a nature- za a partir desse modelo: é um modo de saber e de agir por objetivação e por mecanização e, epistemologicamente, um meio para atingir o saber por decomposição da natureza em seus diferentes elementos, com a fi- nalidade de fornecer um conhecimento empiricamente verificável e sus- tentável. O domínio físico é desligado da ordem metafísica. Com isso, de um lado, tem-se o mundo da ciência e, de outro lado, o mundo dos va- lores éticos. A vida terá como símbolo o relógio: para compreendê-la, é necessário decifrar as engrenagens de seu funcionamento: justifica-se a intervenção. A ciência moderna apresenta-se como aquela que suspende a dúvida, promete a felicidade e assegura que todas as soluções nascem dela e passam por ela. Dominada a natureza, torna-se necessário do- minar o homem. O desejo de dominação é inerente à ciência moderna.

Jonas analisa a técnica através do seu conteúdo material e de sua dinâmica formal. Se no início da modernidade, a Física servia de base, com a ascendência das biotecnologias, na contemporaneidade, de- correntes do surgimento da biologia molecular e da compreensão da programação genética, o próprio homem se torna objeto da manipu- lação, que encontra possibilidade teórica via outra ciência: a Biologia.4

4 Sobre a biologia, Jonas afirma: “Reduzir a vida ao que não tem vida não é outra coisa senão dissolver o particular no geral, o composto no simples, a exceção aparente na regra con- firmada. Esta é precisamente a tarefa imposta à ciência moderna da vida, à biologia, pelos objetivos da ‘ciência’ em si. O grau de aproximação a este objetivo é uma medida de seu êxito; e o resto que permanece ainda sem ser conquistado constitui sua fronteira divisória, destinada a ser sempre mais ampliada. Antes dizia-se que o que aparenta não ter vida pre- cisava ser interpretado no quadro da vida, que a vida tinha que ser prolongada na morte aparente. Nessa época era o cadáver, este caso primário de matéria ‘morta’, que constituía a fronteira da compreensão e, em consequência, a primeira observação a não ser aceita. Hoje este papel foi assumido pelo organismo que vive, que sente e que busca, ele é desmascarado como um subtil logro da matéria, ludibrium materiae. De conformidade com isto, entre os estados do corpo, o cadáver é hoje o mais fácil de ser compreendido. Só na morte é que o corpo deixa de ser um enigma: na morte ele retorna do comportamento enigmático e inor- todoxo da vida – para o estado claro e ‘familiar’ de um corpo dentro do conjunto do mundo corporal, cujas leis gerais constituem a regra de toda compreensão. Aproximar desta regra a morte do corpo orgânico, portanto diluir neste sentido os limites entre a vida e a morte;

a partir da morte, do estado de cadáver, suprimir a diferença de essência – esta é a linha da reflexão moderna sobre a vida como um fato do mundo” (JONAS, 2004, p. 21-22).

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O homem torna-se o objeto. A técnica restrita à dimensão mecâni- ca atinge, agora, a orgânica. Decorrente disto, Jonas aponta para uma neutralização metafísica do ser humano que, ao mesmo tempo em que permite fazer o que quer, nega o guia para saber o que quer de tal forma que esse novo estágio da técnica encontra o homem, estranhamente, sem preparação para seu uso responsável:

[...] vivemos permanentemente à sombra de um utopismo inde- sejado, automático, que faz parte do funcionamento do nosso mundo, somos permanentemente confrontados com perspecti- vas finais cuja escolha positiva exige a mais alta sabedoria e, para o homem contemporâneo em particular, que até mesmo nega a existência de seu objeto, ou seja, a existência de valor absoluto e de verdade objetiva. Quando mais necessitamos de sabedoria é quando menos acreditamos nela (JONAS, 2006, p. 63).

A liberdade da ciência é uma liberdade carente de norma. O ho- mem busca ter em suas mãos as rédeas de sua evolução e já não é mais fantasiosa a ideia de reelaborar ou de desenhar as futuras gerações humanas. Se o homem, porventura, começar realmente a confeccio- nar o “novo homem”, o pensamento acerca do que deve determinar essa seleção, ou então, “pensar a ‘imagem do homem’ – será mais im- perioso e mais urgente que qualquer pensamento que se possa exigir da razão dos mortais. A filosofia está preparada para pensar o novo homem da ciência? Jonas admite, lamentavelmente, que não.

A técnica teria, segundo Jonas ascendido à posição de uma das principais tarefas da humanidade, destacando-se a tentação à qual a humanidade está sujeitada em razão do prestígio “prometéico” atri- buído à técnica, ou seja, de tornar fim o que no começo era meio e de ver nele o verdadeiro destino da humanidade. Isso exerce encanto ao espírito humano, quando se compreende por progresso do homem ou da sociedade o avanço científico e tecnológico como avanço de poder em poder. É a compreensão da técnica como “vocação” da humanida- de, um infinito impulso da espécie, como apresente Jonas:

Hoje, na forma da moderna técnica, a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie, para adiante, em seu em- preendimento mais significativo. Somos tentados a crer que a

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vocação dos homens se encontra no contínuo progresso desse empreendimento, superando-se sempre a si mesmo, rumo a feitos cada vez maiores (JONAS, 2006, p. 43).

O homem moderno, que se pensa vocacionado à técnica, à sua manutenção e ao desenvolvimento, é o mesmo que destrói as pró- prias condições para a perpetuação das possibilidades de uma au- têntica vida humana. O homem se torna vítima de um sistema que ele mesmo criou e, já não bastasse isso, arrisca o equilíbrio vital de toda a biosfera.5 O prolongamento da vida, o controle de comporta- mento e a manipulação genética são os avanços que Jonas analisa e que aponta como sintomáticos para a urgência de se pensar uma éti- ca que possa dialogar com a ciência e com as novas modalidades de apresentação e atuação desta na sociedade. No entanto, se a técnica já penetrou tão profundamente a existência humana, a ponto de tornar- -se a vocação e o destino do homem, como imaginar um retorno do homem a sua condição de homo sapiens? Como aproximar tecnologia e ética? Segundo Jonas, somente com a antevisão da desfiguração do homem, ou seja, somente colocando-se diante da técnica numa posi- ção não de confronto de forças, mas por meio de uma heurística do temor.6

5 “Dado que, hoje em dia, a técnica alcança quase tudo o que concerne aos homens – a vida e a morte, o pensamento e o sentimento, o agir e o padecer, o ambiente e as coisas, os desejos e o destino, o presente e o futuro –, em resumo, dado que se con- verteu em um problema tanto central como ameaçador a toda existência humana sobre a terra, já é um assunto da filosofia e há que ter algo como uma filosofia da tecnologia” (JONAS, 1997, p. 15).

6 A heurística jonasiana, traduzida pelo conceito de heurística do medo precisa ser tomado com certa atenção. Em sua formulação original, heuristik der furcht pre- tende ser não exatamente o que se compreende por medo na língua portuguesa, mas seria uma tradução melhor, a utilização do conceito temor. Isso porque, tal heurística não quer representar um medo passivo, senão que um receio fundamen- tado que tenha por consequência uma conscientização da força do mal eminente.

Tem mais a ver com o zelo do que com a compreensão que se tem do medo, como algo negativo e desagradável. Neste estudo utiliza-se o termo temor, mesmo que na edição d’O princípio responsabilidade utilizada para a pesquisa a tradução seja por medo.

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2. O método da heurística do temor e a primazia do ser

Não há uma reflexão ética que instrua a humanidade no que con- cerne a formas e meios adequados de compreender e agir em relação a estas novas modalidades de poder. Essa afirmativa fica mais bem evi- denciada quando Jonas elenca três pressupostos que, segundo ele, toda a ética anterior, explicitamente, compartilhou e que, agora, mesmo em vigência, teriam perdido sua validade:

(1) a condição humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas, encontra-se fixada de uma vez por to- das em seus traços fundamentais; (2) com base nesses funda- mentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; (3) o alcance da ação humana e, portanto, da responsabilidade humana, é definida de forma rigorosa (JONAS, 2006, p. 29).

Há a demanda de uma dimensão inteiramente nova de significa- ção ética. O homem enquanto criador de sua vida como vida humana, como referido por Jonas, modela o mundo de acordo com suas vontades e necessidades.

Segundo Jonas, o conhecimento ético deve ter sua origem naquilo que devemos proteger e, por isso, o temor deve ser posto antes do de- sejo. Este temor não pretende representar um medo passivo, mas um receio fundamentado que tenha por consequência uma conscientização da força do mal eminente. Tem mais a ver com o zelo do que com a compreensão relativa ao medo, a algo negativo e desagradável. Desponta como categoria da capacidade que o homem deve ter de interpretar e so- lucionar problemas imprevistos, pretendendo ser um critério pelo qual o homem possa avaliar os perigos que a técnica pode ocasionar. Não é e nem quer ser paralisante ou patológico, ou então, um mero pessimismo ou um procedimento puramente instrumental, mas quer despertar ao pensar e agir.

Na construção jonasiana, a verdade relacionada às situações fu- turas, localiza-se entre o saber ideal, que se trata da doutrina ética dos princípios, e o saber prático, que é a dimensão da utilização política.

Essa verdade intermediária, que chama de saber real, é, também, cien- tífica, ou seja, há a exigência de uma ciência que formule tais previsões

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hipotéticas e, ao mesmo tempo, que utilize as predições e os presságios já apontados pelos saberes científicos modernos. A heurística do temor liga esse saber real aos princípios filosóficos, ou seja, o saber real (o das projeções futuras) está heuristicamente presente nos próprios princípios filosóficos: funciona como uma diretriz moral em vista da reelaboração moral almejada por Jonas.7 A heurística do temor pretende fundar-se cientificamente.

O papel de tal heurística está em, ao prever a deformação do homem futuro a partir do atual, considerar quais valores e características devem ser preservados e que, em caso de não se fazerem presentes na constitui- ção do homem no futuro, afetariam sua existência de forma a pôr em risco a sua vida ou a perpetuação daquilo que se compreende por uma autêntica vida humana. Essa ameaça à imagem humana que deve pautar a ética do futuro, não possui analogias na experiência do passado e do presente, tendo que, por isso, ser intencionalmente representada. Assim como se reconhece o valor da vida porque se sabe da morte e se reconhe- ce o valor da verdade porque se sabe da mentira, deve-se reconhecer a necessidade de uma ética do futuro em virtude da previsão de uma de- formação do homem. O temor não é o princípio ético jonasiano, mas faz parte da responsabilidade, esta sim proposta como princípio. Pelo temor, o autor considera a possibilidade de efetivação de uma tomada de cons- ciência e de um despertar do homem para a responsabilidade que tem em garantir a perpetuação das condições de vida do homem e do mundo.8

7 Um dos elementos essenciais desta heurística é uma prática constante da prudên- cia. Isso implica que, ao serem comparados os prognósticos negativos e positivos, os primeiros devem ‘pesar’ mais. Não é uma mera oposição ao desenvolvimento tecnológico, mas se trata de tomar as ações e práticas de tal desenvolvimento tendo presente o Outro enquanto destinatário de erros e efeitos colaterais dos empreen- dimentos tecnológicos. Na ética aristotélica, a prudência é tomada como base para a possibilidade de uma vivência ética, sendo entendida como excelência do agir humano na busca pela realização humana que nesta proposta ética é a felicida- de (eudaimonia). O sujeito prudente, na perspectiva aristotélica, é aquele que age fundamentando-se em princípios que apontem para uma visão de conjunto, tendo, para isto, a capacidade “[...] de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesmo, não em relação a um aspecto particular e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de um modo geral” (ARISTÓTELES, 2001, p. 116).

8 Ao propor o temor como elemento da responsabilidade, Jonas reforça o caráter de sua proposta, a de uma nova ética. Contudo, este conceito é tido, também, como problemático e polêmico. O fato de ter fundamentado a ética na necessidade da

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A heurística aponta também para a ilegitimidade de serem realiza- das apostas de quaisquer naturezas que possam pôr em risco as condi- ções de perpetuação e manutenção da vida, visto que o homem precisa reconhecer a primazia do Ser e, nisso, se fundamenta o dever para com o futuro. Sendo que deve haver um futuro, também deve haver o Ser e este, desde já, possui um dever para com o futuro. A proposta ética de Jonas, toma como objeto o que ainda não existe, o que faz com que tenha que ser pensada independente tanto de uma ideia de direito (tradicio- nal), quanto de uma ideia de reciprocidade. Esse dever do homem atual para com a posteridade se resume, pois, em não arruinar as condições de sua existência, já que possui um dever como agente causal pelo qual assume a responsabilidade por atos que impliquem repercussões a longo prazo. A suposição, pois, da continuidade da existência coloca, ao mes- mo tempo, a questão sobre o modo de ser da futura humanidade. Não se podem consultar os desejos daqueles que vem depois, mas sim seu dever-ser, que transcende tanto à geração presente (não sendo gerado por esta) quanto às futuras. Tornar impossível esse dever-ser é um crime e o atual estágio da tecnologia tem condições de destruir a capacidade de o homem de cumprir ou mesmo de atribuir esse dever. O temor fren- te a possibilidade de não realização desse dever é que deve motivar o homem a assumir uma nova ética.

Esse dever para com a existência do homem futuro, que não é um direito da geração presente, concede à humanidade o direito e a possi- bilidade de trazer ao mundo seres humanos sem que estes tenham soli- citado isso e que, ao mesmo tempo, tenham as condições de perpetuar esse dever. O dever primário da humanidade, que é o de garantir a exis-

representação de um perigo exterior que, como sentimento de temor (medo), tenha a força de mobilizar o sentido ético dos sujeitos é considerado como um elemento problemático na elaboração de sua ética. Ao mesmo tempo, há outro elemento que desponta como crítica à proposição jonasiana: a acomodação dos homens frente ao fim evidente (fruto das projeções). Ao fazer uso da heurística do medo, projetam- -se efeitos que podem decorrer dos empreendimentos científicos e tecnológicos e que poderiam acarretar a extinção de condições adequadas e favoráveis à vida. A gravidade deste prognóstico poderia, numa segunda crítica feita a tal heurística, fazer surgir um efeito contrário, fruto do exagero das projeções: um conformismo frente à impossibilidade de reverter o processo já em andamento de destruição das condições de vida, ou então, uma descrença na possibilidade de tais projeções ocorrerem em função de não terem nenhuma semelhança com a experiência real de mundo das pessoas.

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tência de futuros sujeitos de direitos, fundamenta-se: não cabe apenas conceder existência, mas impor-lhes uma existência capaz de arcar com o ônus de perpetuar o dever primário da humanidade. Como primeiro imperativo, portanto: deve existir uma humanidade. É uma responsabi- lidade ontológica, pois a humanidade não é responsável pelos homens futuros, mas sim pela ideia do homem, que para ser exige corporificação no mundo. Essa definição da essência humana não é a garantia do objeto (do homem), mas a afirmação de que deve haver tal presença em relação à qual a atual geração é responsável exatamente por poder ameaçá-la. É pela ideia de homem que se concebe o porquê devem existir homens e como devem ser. Isto exige não um imperativo hipotético (se), mas um categórico (que). Não é uma ideia do fazer, mas do Ser: o primeiro prin- cípio da ética do futuro não está nela, mas na metafísica como doutrina do Ser.

Assim, o dever para com o futuro exige reconhecer a primazia do Ser e isso significa que é necessário afirmar que algo deve existir de preferência ao nada e para isso importa o sentido desse “deve” o que faz com que tal tarefa se torne objeto da filosofia relacionando imedia- tamente com a questão do conhecimento do valor em geral: a possi- bilidade de atribuir valor reivindica uma existência, transformando a existência em obrigação do agir no caso em que o Ser dependa da livre escolha desse agir. É a atribuição de valor ao que existe (e o reconheci- mento de valor no que existe) que demonstra a primazia do Ser sobre o nada. O compromisso com a preservação do Ser, sob a forma de uma responsabilidade relacionada ao Ser, advém necessidade de estabeleci- mento de um status ontológico e epistemológico da objetividade do va- lor e não duma atribuição subjetiva de valor.

Esse dever para com o Ser também deve contemplar a vida da na- tureza. A natureza não é algo privado de interioridade e subjetividade a ponto de ser entendida apenas como algo inerte: há um valor intrínse- co que a torna mais que mero instrumento de satisfação das necessida- des humanas, um valor que determina a presença de fins na natureza.

O surgimento da consciência não se dá sem um impulso, mas “[...] algo já próprio de sua espécie deve ter feito esse impulso emergir da escuri- dão rumo a uma maior claridade” (JONAS, 2006, p. 138). Isso exige pen- sar que se a subjetividade enraíza-se na natureza de forma que, em uma continuidade essencial, ambas participam do fim e, portanto, “[...] o fim,

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de modo geral, tem seu domicílio na natureza” (JONAS, 2006, p. 139).

“[...] implica nada menos do que a afirmação de que mesmo em suas estruturas mais primitivas o orgânico já prefigura o espiritual, e que mesmo em suas dimensões mais elevadas o espírito permanece parte do orgânico” (JONAS, 2004, p. 11). Em outras passagens de seus escritos Jo- nas afirma que “[...] se o ser humano é aparentado com os animais, então os animais também são aparentados com o ser humano, e, em diferentes graus, portadores daquela interioridade da qual o ser humano, como o mais avançado de seu gênero, está consciente de si mesmo” (JONAS apud LOPES, 2010, p. 53-54). Há, pois, um fim imanente, inconsciente e involuntário, como o exemplo do órgão digestivo dentro do conjunto do corpo humano.

3. A responsabilidade

Há a demanda de uma dimensão inteiramente nova de significação ética. A fim de explicitar o modelo ético que considera insuficiente fren- te ao novo cenário em que a humanidade se encontra, Jonas apresenta cinco elementos caracterizadores da ética tradicional. Num primeiro momento, a neutralidade da ética no que se refere ao domínio da tech- ne, ou então, ao trato com o mundo extra-humano. A interferência nos objetos promovida pela técnica doutros tempos não era considerada no- civa, já que compreendida apenas como algo de efetividade superficial à natureza das coisas, sendo que estas eram preservadas enquanto tais.

Como segundo elemento, Jonas compreende que toda a ética tradicional dizia respeito à direta relação do homem com o homem, sendo, assim, antropocêntrica. Somado a isso, o terceiro elemento caracterizador é de que a essência humana era entendida como uma constante no que se refere à entidade “homem” e sua condição fundamental, não sendo co- gitada uma reconfiguração pela tecnologia. O quarto elemento exposto por Jonas reflete a proximidade, ou então, o alcance imediato da reflexão sobre o bem e o mal, com os quais o agir tinha de se preocupar, de modo que “[...] o longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência” (JONAS, 2006, p. 35).

Por fim, reforça a tese da preocupação da ética com um círculo imediato da ação e a ausência de uma preocupação com alguma análise

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significativa a longo prazo. Ao citar Kant, lembra que, por assim ser compreendida, a ética (dentro da extensão previsível do tempo de vida de cada indivíduo e, espacialmente, considerando como o outro apenas o vicinal) não demandava do conhecimento do cientista ou do especia- lista, mas estava acessível a todos os homens de boa vontade. Essa dimi- nuição do lado cognitivo do agir moral é descrita por Jonas em relação ao pensamento kantiano e a outras posições da tradição. Assim, “[...]

o braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a do outro” (JONAS, 2006, p. 37). Ao apontar essa deficiência da tradição ética, Jonas chama atenção não apenas à possibilidade da destruição física da humanidade decorrente da ausência desse diálogo, mas alerta para sua morte essencial, o que num segundo momento le- varia a sua destruição física.

A ambivalência dos efeitos, a automaticidade da aplicação e as di- mensões globais de espaço e tempo, ruptura com o antropocentrismo e a questão metafísica justificam a urgência categoria ética que possa dia- logar com essa nova dimensão posta pelo poder humano. Pelo primeiro, ambivalência dos efeitos, Jonas afirma que algo se torna nocivo quando abusivo, ou seja, que “[...] é inegavelmente bom usar o poder da pala- vra, mas é mau usá-lo para enganar outros ou levá-los a sua perdição”

(JONAS, 1997, p. 33, tradução nossa) Entretanto, o que dificulta e torna perigosa a técnica moderna é que quando é buscada e usada de com reta intenção, também pode causar efeitos ameaçadores a longo prazo.

Trata-se de uma ambivalência de efeitos, porque, segundo Jonas, estes estão incertos/camuflados na ação que demanda de técnica.

Para o autor, a técnica moderna se configura também por uma auto- maticidade de sua aplicação, visto que a sociedade moderna “[...] funda- mentou toda a configuração de sua vida no trabalho e no esforço por atualizar continuamente seu potencial técnico na ação recíproca de todas as suas peças” (JONAS, 1997, p. 34, tradução nossa). Isso leva a uma terceira característica que são as dimensões globais de espaço e tempo, ou seja, o aqui e agora de muitas ações, às vezes até aparentemente pri- vadas, acabam por hipotecar a vida de todo o planeta e das futuras gera- ções: tudo em nome de necessidades criadas por nós mesmos.

Há que se romper com uma ética que volte sua preocupação unica- mente ao homem: já não são apenas o bem humano, os direitos e inte-

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resses dos congêneres que precisam ser respeitados, mas toda a biosfera, com sua complexa e diversa abundância de espécies e tramas tende ser postas como objetos duma ética para que se possa garantir a possibi- lidade de pensar o bem, os direitos e os interesses humanos.9 Isto está intimamente ligado ao dever que a humanidade tem de proporcionar às futuras gerações condições e possibilidades de realização de uma autên- tica humanidade. Jonas não quer apenas reconhecer a importância da biosfera para a vida humana, mas quer incluir a existência da diversi- dade como objeto da ética. É mais que utilitarismo.10 É vincular o bem

9 A crítica feita por Jonas ao antropocentrismo da ética tradicional se resume a uma tentativa de superar o modo de compreensão ocidental que tem seu ponto culmi- nante na modernidade e que configura uma dicotomia entre o espírito e a matéria, o homem e o natural, o corpo e a alma. Superar esse dualismo significa apon- tar para uma teoria que estabeleça uma integração do ser humano na natureza a partir de um modo complementar-orgânico. Trata-se também de contrapor-se ao naturalismo mecanicista, “[...] que não admite outra explicação possível para os fatos naturais, seja qual for o domínio a que eles pertençam, além daquela que os interpreta como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espa- ço” (ABBAGNANO, 1999, p. 653) e que, na filosofia, faz-se presente no atomismo antigo e do materialismo moderno. O ponto central se refere ao que Jonas chama de integração psicofísica. Trata-se de uma tentativa de superação do postulado pela filosofia dualista de forma a fundamentar a subjetividade não de um modo antropocêntrico apenas, mas biocêntrico. Nisso se encontra o pilar que sustenta uma ética da responsabilidade para com a vida. Por via da complementaridade natural, que faz da natureza elemento essencial para a vida humana, a propos- ta ética de Jonas tenta ser uma proposta sobre a existência do homem enquanto homem e natureza, de tal modo que não rompe com o antropocentrismo, mas o quer sob uma nova perspectiva e compreensão. O bios é visto a partir de um novo estatuto que exige pensar a dignidade do organismo enquanto dignidade do Outro.

Compreender que subjetividade e dignidade são elementos presentes em toda a natureza (humana e extra-humana) é abrir mão de uma ética embasada num an- tropocentrismo acrítico para assumir uma ética embasada num antropocentrismo cósmico: o poder humano, no sentido de sua condição transanimal, faz com que a biosfera como um todo e em suas partes “[...] se tornem um bem a nós confiado, ca- paz de nos impor algo como uma exigência moral – não somente por nossa própria causa, mas também em causa própria e por seu próprio direito” (JONAS, 2006, p. 41).

Os fins e valores da natureza devem tornar-se valores humanos.

10 “Sob a perspectiva de uma ênfase sobre os ‘efeitos finais’ da ação no futuro, a ética da responsabilidade poderia ser interpretada como uma ética utilitarista, no sen- tido de que as consequências produzidas pelas ações definem se essas são moral- mente boas ou más. Apesar de Jonas referir-se [...] à previsão de um futuro concre- to, sua ética distancia-se do utilitarismo clássico, na medida em que não se trata

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humano com a garantia e manutenção da vida em seu conjunto. É uma obrigação que se enraíza no excesso de poder que o homem detém se comparado às outras formas de vida.

Por fim, Jonas elenca o confronto com a metafísica. Trata-se do porque deve existir a vida e se deve haver e porque deve haver humani- dade. O uso de fertilizantes e defensivos químicos na agricultura, por exemplo, pode ser tão apocalíptico quanto uma guerra nuclear: um, pois, a longo prazo, outra, a curto. Por isso, a questão metafísica ganha importância fundamental: há que se elucidar se o existir é um impera- tivo categórico para a humanidade ou não. Se sim, deve-se, categori- camente, proibir todo jogo suicida com essa existência. O fato de o fu- turo ser, ao mesmo tempo, condição de possibilidade de continuidade da humanidade e, doutro lado, espaço de efetivação de consequências longínquas e ameaçadoras fruto da ação humana, justifica a reivindi- cação de uma ética de natureza extra-humana, de horizonte longínquo e pautada na responsabilidade.

Jonas convoca o saber ético a pensar a relação do homem com a técnica moderna, de forma que se deve pensar não apenas a ética da responsabilidade frente a uma sociedade científica e tecnológica, mas pensar a responsabilidade da ética frente essa civilização: não é a ética, como categoria filosófica, que nos exige responsabilidade, mas nossa humanidade; não se trata de algo posto ao homem pelo homem, mas de algo posto ao homem pela natureza, pela vida e, assim sendo, que cons- titui seu Ser. Assumir a responsabilidade não pode ser uma resposta da vontade ou do querer do homem, mas posta em função da liberdade lú- cida do homem, que deve fazer com que o “sim” à vida seja incorporado pela vontade humana, submetendo o poder humano ao não ao não-ser, ao nada, à ameaça perene, à morte (enquanto possibilidade encarnada no ser).

meramente de calcular os efeitos finais das ações. E note-se que ele se refere aos efeitos imprevisíveis e incalculáveis, o que elimina a possibilidade de qualquer an- tecipação” (SANTOS, 2011, p. 134). “A ética jonasiana distingue-se, portanto, do utilitarismo porque propõe que o valor moral reside no princípio, não no fim que orienta a ação. E, mesmo assim, a ética jonasiana pode ser interpretada, em certo sentido, como negativa. Ela parece primar muito mais pela prudência, pelo cuidado e pela precaução. O que importa ‘é colocar a vida no conteúdo do imperativo’. Mas justamente por isso pode-se levantar a objeção de genericidade ou abstração. Tal tese diz tudo e nada diz” (SANTOS, 2012, p. 431).

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Com essas considerações em relação à ética, pode-se compreender as perspectivas da proposta jonasiana que ficam claras no imperativo por ele proposto:

Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra; ou, expresso negativamente: Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida; ou, simplesmente: Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade so- bre a Terra; ou, em um uso novamente positivo: Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer (JONAS, 2006, p. 47-48).

É o reconhecimento de que não temos o direito de pôr em risco a vida da humanidade ou, então, a não existência de futuras gerações. O homem tem um dever para com aquele que não existe, que não reivindica existência e/ou que quiçá virá a existir.

Jonas apresenta figuras paradigmáticas para uma ética da respon- sabilidade: o pai e o homem público como modelos paradigmáticos, a criança como objeto originário e o outro como destinatário. Compreen- der esta articulação é compreender a responsabilidade na proposta de Jonas. A criança desponta como o objeto originário da compreensão da responsabilidade humana: o simples respirar de um recém-nascido constitui um apelo por cuidado que não pode ser refutado ou contes- tado. Há a exigência de interferência de uma causalidade externa, ou seja, não é um simples pedido da criança e, menos ainda, o cuidado será um ato de compaixão dos que estão ao seu entorno: a simples existên- cia de um Ser contém intrinsecamente, e de forma evidente, um dever.

O recém-nascido não deve ser tomado não como mera existência, mas como existência portadora de um dever e que por portar um dever pre- cisa ser-lhe garantido o ser. A criança é, pois, o locus mais exemplar da responsabilidade: “[...] o Ser mergulhado no devir, abandonado à tran- sitoriedade e ameaçado de destruição” (JONAS, 2006, p. 225).

Da figura originária, aos modelos paradigmáticos: o pai e o ho- mem público. No caso da responsabilidade pública, o político terá como objeto um grande número de indivíduos anônimos que pressupõe o interesse coletivo para a assunção de determinado indivíduo à condi- ção de executar de atos causais que interfiram em toda a sociedade e

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no futuro desta. O homem público não é o genitor de seu objeto, ou seja, da coletividade, da mesma forma que os pais são os genitores de seu objeto. Afetivamente, o político será, no máximo, um guardião, mas deve haver uma espécie de relação de amor na responsabilidade política, afinal, é “[...] impossível assumir a responsabilidade por algo que não se ame” (JONAS, 2006, p. 183).11

No caso da responsabilidade parental o objeto são os frutos ou é o fruto da procriação: há uma causalidade direta, mesmo que não deseja- da, no ato de procriação, de forma que a criação se constitui como total dependência do criador. Jonas considera ser esta a mais elementar das responsabilidades, sendo exercida no âmbito íntimo e imediato e estan- do o objeto não idealmente presente, como no caso anterior, mas carnal- mente presente.12 É pelo fato de os pais terem a consciência de serem os

11 Ao tomar o exemplo do homem público, do governante, Jonas aponta para um debate de parti- cular relevância: a relação entre ética/moral e política. Muitas mazelas da sociedade capitalista e de massa não apresentam condições de terem sua causa atribuída a um sujeito singular, de modo que é possível perceber os “efeitos colaterais” de certas ações, mas não há como responsabilizar um determinado sujeito por uma ação que teria gerado tais efeitos. Mesmo que o governante deva responder a tais situações perante a coletividade, o que levaria este a atender tais incum- bência ética ou moralmente? Trata-se de um problema intrínseco à carreira política: seguir con- vicções pessoais ou agir de acordo com o que as circunstâncias exigem. Maquiavel promoveu uma ruptura ao não mais apresentar um pensamento político vinculado a um comportamento ético universal, mas sim vinculado a uma convicção – concepção sobre algo com base em razões íntimas. Max Weber apresenta uma distinção entre a ética da convicção – o que orienta o gover- nante em sua esfera privada – e ética da responsabilidade – as decisões, normas e regras do polí- tico ao assumir sua posição de governante. Esclarece Bobbio: “O critério da ética da convicção é geralmente usado para julgar as ações individuais, enquanto o critério da ética da responsabili- dade se usa ordinariamente para julgar ações de grupo, ou praticadas por um indivíduo, mas em nome e por conta do próprio grupo” (BOBBIO, 1998, p. 961). Tome-se como exemplo a baixa renda salarial de determinado grupo social: enquanto convicção, o governante tem por pressu- posto, baseado em suas razões íntimas, o ensejo de ampliar a rentabilidade deste grupo. Porém, quando de posse do poder de governo, depara-se com a inviabilidade de tal ação (note-se: nem tanto a impossibilidade, mas inviabilidade), que pode ocorrer por tal ação demandar um gasto maior de recursos públicos o que exigiria reduzir gastos em outra área. O dilema, então, está posto: seguir a norma particular ou agir conforme sua posição enquanto governante.

12 Há outro elemento diferencial entre a responsabilidade paternal e a do homem público que pode ser considerada na perspectiva de clarear a natureza de ambas: “a responsabilidade paternal termina no tornar-se adulto da criança, fazendo com que o que antes era ‘objeto’ da responsabilidade, passe a ser ‘sujeito’ de responsabilidade. Esse caráter não pode ser empregado em nível de esfera política, pois não há um período na história que evidencia a infância, nem a maturidade da sociedade”

(MOMO, 2009, p. 25).

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autores exclusivos da nova vida que “[...] a relação de procriação goza de uma primazia incontestável diante de todas as outras relações humanas em termos de evidência e responsabilidade” (JONAS, 2006, p. 182).

Do objeto originário, aos modelos paradigmáticos e, destes, ao destinatário: o outro. A trajetória filosófica de Jonas culmina no pensar o homem como ser de responsabilidade e carrega o elemento da alte- ridade, do Outro: há a necessidade de responder ao outro, ao que é e àquele que ainda não é, ao outro humano, e ao outro extra-humano. A pluralidade da natureza se manifesta enquanto alteridades que, sendo portadoras de dignidade e valor exigem uma ação responsiva. Pensar o Outro é reconhecer a pluralidade e a diversidade, como condição de vida: a procriação, enquanto ato de tal perpetuação, somente se dá na passagem do Ego ao Alter: o desejo pela vida só se completa com o Ou- tro. O não ao não-ser exige a pluralidade de origem na vida.

Há uma alteridade da natureza, bem como uma subjetividade e um valor e, singularmente, no homem, uma liberdade que é, também, responsiva. O poder causal do homem o faz responsável pelas gerações futuras e o poder, fruto dos empreendimentos tecnocientíficos sobre a natureza, traz junto de si a exigência de responsividade para com ela.

É o alargamento objetual que singulariza a ética jonasiana em relação à tradição. A alteridade, que aqui está presente, é assimétrica: não há igualdade entre o ego e o alter, e o exemplo da responsabilidade pater- nal demonstra isso claramente. Isso exige que a responsabilidade se torne cuidado pelo Ser do Outro, numa relação em que a primazia cabe à alteridade e não à vontade particular do indivíduo ou, então de uma coletividade. No agir do Eu, o Outro se torna a primeira instância que deve ser pensada, ou seja, o outro é que determina a ação. Jonas, n’O princípio Vida, acentua a faculdade visual do homem que, pelo fato de sua condição de ter a capacidade de transformar os conteúdos da visão em idealizações, constitui o homem como homo pictor, ser que simbo- liza, que representa. Associar essa dimensão à Alteridade é entender que o homem olha o Outro de forma a tomá-lo como princípio para seu agir. Trata-se de pôr aquilo que o homem tem de mais excelente em função do cuidado com o Outro.

Jonas compreende o metabolismo como uma troca de matéria, como uma espécie de relação dialética onde o orgânico se constitui.

A identidade se põe em tensão com a totalidade para, no contato com

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a alteridade, constituir seu Ser: a dialética da liberdade e necessidade.

Ao se transpor essa compreensão para a dimensão ética, o homem se defronta com a tensão entre valor e obrigação e, assim, o bem abso- luto da ética jonasiana tem suas raízes no cuidado responsável pela vulnerabilidade da vida num total e contínuo respeito ao alter, ou seja, reconhecer responsabilidade pelo outro mesmo que este seja absolu- tamente estranho.13

Jonas compreende que - e isso também justifica seu posicionamen- to antidualista - não há ruptura, mas relações, ou seja, “o homem não é mais um ente desligado das demais formas de vida e do reino orgânico em geral, mas apenas uma forma mais acabada do desenvolvimento vi- tal, no qual a liberdade atinge um grau superior” (OLIVEIRA, 2010, p.

79). A atuação do ser humano se dá sobre a mesma realidade que o fez possível, que também é a mesma sobre a qual tematiza. A racionalidade humana, que Jonas compreende como expressão da plena liberdade e fruto de um desenvolvimento progressivo,14 exige o exercício da respon- sabilidade.15 A possibilidade de assumir responsabilidade faz do homem um ser singular: responsabilidade que é responder à realidade e assu- mir a tarefa de manter a possibilidade de responsabilidade na realidade.

Assim, trata-se inibir qualquer tentativa de impedimento da realização

13 O desrespeito e desvalorização do Outro gera a morte. Jonas, em um ensaio intitu- lado El concepto de Dios después de Auschwitz: una voz judia reflete o não reconhe- cimento do Ser do Outro tomando como exemplo os campos de concentração de Auschwitz: “Os judeus de Auschwitz não morreram pela fé (como os antigos pro- fetas de Javé) e não foram assassinados por sua fé ou por alguma orientação de sua vontade como pessoas. O que precedeu a sua morte foi a desumanização por meio da mais extrema humilhação e miséria. Aos destinados à solução final lhes foi des- pojado até o mais tênue brilho de sua dignidade humana, que havia se tornado por completo irreconhecível nos esqueléticos espectros sobreviventes que ainda foram encontrados depois da libertação dos campos” (JONAS, 1998, p. 2, tradução nossa).

14 Este desenvolvimento que aponta para um horizonte de transcendência é relativo ao “[...] crescente desenvolvimento das capacidades e funções orgânicas: metabolis- mo, movimento e apetite, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito – uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano” (JONAS, 2004, p. 8).

15 “[...] a racionalidade do ser humano [...] é expressão de sua plena liberdade e de seu maior risco – porque, no limite, a liberdade emerge como tentativa e desejo de desligamento da vida em relação à matéria inerte e, consequentemente, quanto mais desligada, mas a vida se torna suscetível aos perigos de sua própria extinção”

(OLIVEIRA, 2010, p. 79).

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de tal possibilidade, visto que isso desfiguraria a constituição natural do homem. É pela possibilidade de responsabilidade - que se apresenta no homem como momento da evolução vital do todo - que o homem precisa garantir dignidade de vida às gerações futuras. O humano e sua essência são compreendidos, portanto, nesta solidariedade cósmica.

Nisso se fundamenta o tripé da responsabilidade para que se pos- sa entender a criança e o outro e, assim, a responsabilidade jonasiana.

É, portanto, sobre os conceitos de totalidade, continuidade e futuro que Jonas apoia a responsabilidade.

Pela dimensão de totalidade impõe-se à responsabilidade abranger o Ser total do objeto, de forma a serem contemplados todos os seus as- pectos e modos de existência: desde a mais bruta e elementar até a mais elevada. Em se falando dos pais, a criança como um todo é objeto da responsabilidade parental, o que não se limita às carências, mas inclui também as possibilidades. Não há como negar a primazia do aspecto físico, o que não exime a responsabilidade pela educação. Da mesma forma se pode tomar o homem público. No período de vigência de seu governo, tem a totalidade da vida da comunidade como objeto de sua responsabilidade. Como resultante da natureza total da responsabilida- de Jonas elenca uma segunda dimensão, a continuidade. Os dois casos de responsabilidade explicitados, a pública e a parental, não podem ser cessadas por um período de tempo, ou seja, a responsabilidade parental e do homem público não pode pôr-se em um estado de vacância, pelo fato de que, ininterruptamente, o objeto renova suas demandas: a isso, soma-se o elemento da continuidade: a responsabilidade total (a pa- rental e a pública) “[...] tem de proceder de forma ‘histórica’, apreender seu objeto na sua historicidade” (JONAS, 2006, p. 185). Na dimensão política a herança dessa historicidade e a preocupação para com o fu- turo tem maior amplitude, visto que há de ser considerada a história da comunidade, os costumes, tradições e legados dos antepassados. Na responsabilidade paterna, a continuidade precisa ser compreendida em dois sentidos: o devir individual da criança, que se constituirá na histo- ricidade (constituir-se-á uma identidade); e a comunicação da tradição coletiva, que a prepara para viver em sociedade (transmitir uma identi- dade cultural à criança). Há uma identidade a ser garantida e respeitada que define os contornos da dimensão da continuidade na responsabili- dade paternal e política. Isso remonta a uma responsabilidade para com

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o passado não, talvez, no sentido de imputar responsabilidade pelo que já ocorreu, mas de, ao assumir a responsabilidade para com os filhos ou os cidadãos, reconhecer o passado que os antecede. Fazendo memória do já vivido a responsabilidade efetiva-se em sua dimensão de continui- dade.

Por fim, a dimensão do futuro. Mesmo que reconhecendo na teoria marxista traços de uma ética do futuro, um dos diferenciais da ética de Jonas é esta dimensão, basicamente ausente na tradição ética ociden- tal. Pensar o horizonte de futuro “[...] requer a capacidade de precisão e o controle causal como premissas essenciais” (JONAS, 2006, p. 192).

Volta aqui a reflexão sobre a primazia do Ser em relação ao não-ser e o dever do homem atual para com a humanidade futura. Falar em uma humanidade futura (como dever do homem) não desvincula ou exclui a demanda de reconhecer a necessidade de futuro também para a natu- reza (extra-humana). Não há uma pretensão, inclusive reconhecida pelo próprio autor, de pautar a teoria da responsabilidade sob um reducio- nismo antropocêntrico, mas compreende-se que, ao falar em humani- dade futura se está, impreterivelmente, a falar de uma natureza futura.

Afinal, não há como pensar uma autêntica vida humana para as gera- ções futuras e, ao mesmo tempo, ser passível para com uma deteriora- ção da natureza extra-humana: “Um patrimônio degradado degradaria igualmente os seus herdeiros” (JONAS, 2006, p. 353).

Considerações finais

A dificuldade de traçar uma linha que defina até que ponto a natu- reza pode suportar a intervenção humana é o componente que impulsio- na Jonas a refletir sobre a ação humana. O avanço da técnica desde a mo- dernidade – no que diz respeito à ampliação da possibilidade de seu uso como instrumento de manipulação por parte do homem e que se deve, em grande medida, à contribuição advinda das diversas áreas da ciência – é tomado como pressuposto para apontar a ausência de uma reflexão ética que interaja com a magnitude que esta dimensão da vida humana atingiu. Chega-se, com isso, a um momento que exige um posicionamen- to crítico frente a técnica, seja no que diz respeito à forma de utilização que o homem promove ou aos resultados que se tem obtido com ela.

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A técnica como instrumento de realização humana almejado pela modernidade teria gerado, na proposta de Jonas, uma série de pro- blemas com os quais o homem parece não saber lidar: o problema da alimentação (a necessidade de adição de componentes químicos nos processos de produção e o melhoramento genético das sementes); o problema das matérias-primas (exploração desenfreada, exigência de processos de beneficiamento ou refinamento industrial); o problema energético (a poluição decorrente do uso destes e a falta de uso cons- ciente das matrizes renováveis). Há que se ter uma reflexão ética que lide com isso, que lide com os campos de extração, com os laborató- rios, com as indústrias, com as farmácias, com os centros de pesqui- sas científicas, com o modelo educacional, com um planeta finito.

Empenhar-se no estudo de Jonas é uma tarefa que exige dispor-se a uma construção que, ao buscar uma ruptura com um modelo de orien- tação econômica, social e cognitiva que estaria se mostrado prejudicial à vida (técnica moderna) rompe-se também com o modelo utilizado pela tradição para orientar o agir humano. Trata-se pois de uma ruptura de mão-dupla: em vista de romper com um modelo de apresentação da téc- nica, precisa romper com uma concepção de ética.

Ao romper com a tradição, Jonas não pretende invalidar as éticas anteriores, mas compreende que seus princípios e formas de articula- ção já não estão em condições de responder à realidade contemporânea, do final do século XX, na complexidade científica e tecnológica com que esta tem se apresentado. Em seu embate com Bacon e Descartes, decorrente de propor uma teoria de integração das partes (numa clara afirmação de oposição ao dualismo cartesiano) e da racionalidade como liberdade, que é parte de um processo ascendente presente em todas as formas de apresentação da matéria orgânica (oposição à concepção de racionalidade/conhecimento como poder, como instrumento de domi- nação, conforme a perspectiva baconiana), Jonas põe-se na contramão de um processo de pensamento e de organização social vigente desde os períodos iniciais do renascimento. Ao mesmo tempo, utiliza-se de pon- tos de referência da tradição para sustentar sua proposta e não incorrer num isolamento ingênuo de seu pensamento. Com sua proposta contri- bui para a evolução da filosofia enquanto construção filosófica coletiva e histórica. Assim, assenta sua forma de proposição da nova ética no modelo kantiano, porém diferente do kantismo – com um imperativo

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ético categórico – e, no que concerne ao conteúdo e perspectivas de de- finição de conceitos, repõe, em partes, traços presentes no pensamento aristotélico, porém diferente do aristotelismo.

É, pois, uma ruptura que se compreende dentro de uma continui- dade. O mesmo, como já se constatou no decorrer deste estudo, acontece com a compreensão jonasiana do homem: um ser fruto de uma conti- nuidade natural (orgânica) e de uma ruptura, que faz com que o homem se apresente como transanimal. A responsabilidade emerge justamente dessa dinâmica de ruptura e continuidade: o nível superior de apresen- tação de liberdade no homem, que torna a racionalidade um atributo de sua condição, ao mesmo tempo que provoca uma espécie de rompi- mento, configura no homem a exigência de responder, somando à exis- tência humana a dimensão da responsabilidade. Essa responsabilidade só tem vigência se pensada como continuidade: a responsabilidade não como uma aparição momentânea no ser do homem mas como fruto de uma evolução e, assim, como um elemento que se efetiva não com o isolamento, mas na relação, na percepção do homem como parte, con- tinuidade. Logo, pela ruptura, a dimensão da responsabilidade se tor- na possível e pela continuidade ela se justifica, encontra o espaço para efetivar-se no dar-se conta de responsabilidade do homem como solida- riedade cósmica – a responsabilidade não é fruto de seu querer, mas do ser, que se apresenta intrínseco em cada objeto ao qual o sujeito se volta.

Nesse movimento aqui expresso através das relações de ruptura e continuidade (que nessas colocações não se refere à continuidade que Jonas apresenta como conceito componente do tripé base de sua teo- ria – totalidade, continuidade e futuro) se edifica o empreendimento de Jonas. O fato de Jonas trazer tais problemáticas à reflexão filosófi- ca já se constitui como componente de substancial importância para a construção filosófica ocidental e da humanidade inteira. O fato de identificar e tentar superar lacunas do pensamento com sua teoria, não significa que seu pensamento tenha se isentado de outras lacunas, va- zios, incongruências ou, nas palavras do autor, áreas pantanosas que não conseguiram ser mapeadas ou entendidas adequadamente.

Isso é prova de que a resposta à filosofia de Jonas, também precisa ocorrer nesse movimento de continuidade e ruptura: a continuidade se encontra em reconhecer a pertinência da proposição de tal temática e, assim, dar sequência ao seu debate, rompendo com perspectivas tra-

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çadas por Jonas que não sejam, numa análise posterior, consideradas como as mais adequadas. Em função disso, surgem abordagens que se opõem ou apresentam necessidade de mudanças, rupturas, com a pro- posta jonasiana na intenção de possibilitar continuidade a esta reflexão.

A necessária continuidade da relação do homem com a técnica, constitutiva da presença do homem no mundo, exige, para que se possa pensar na continuidade do homem, romper com um modelo de técnica estruturado com a modernidade, e que Jonas analisa não de forma pes- simista, mas em vista do potencial que atingiu nas últimas décadas. A humanidade atual, o homem atual, deve assumir o imperativo propos- to por Jonas de que exista uma humanidade futura. Isso não cabe como objeto de escolha ao homem, é um dever do homem, enquanto ser, para com a própria existência.

Não é incomum falar em responsabilidades específicas de áreas de ação, como responsabilidade civil, empresarias, do docente ou do dis- cente, social, entre tantas outras. Não é desta esfera de responsabilida- des que Jonas trata, mas da responsabilidade enquanto elemento cons- titutivo do homem, configuração de sua condição: é a responsabilidade ontológica. O homem não é responsável, ou seja, não deve dar resposta em função de suas obrigações diárias, mas em função de seu ser. Res- ponsabilidade, pois, não é uma obrigação, mas uma carga moral: esta se torna um valor, um dever.

Se o homem não pode decidir sobre assumir ou não a responsabi- lidade, atributo concedido a este pela evolução natural, sobre o modo- -de-ser do homem futuro o homem pode influir, porém, este poder não deve pôr-se em contradição com a exigência da existência. Esta exigên- cia se faz presente em todos, porque, segundo Jonas, não é a descen- dência direta que nos torna responsáveis pelo homem futuro, mas a ideia ontológica: não se é responsável em função da procriação, mas em função desta ideia ontológica que – mesmo que não defina a presença corpórea no mundo como no caso da procriação – garante a existência de determinado objeto no que concerne à sua essência, afirmando, por conseguinte, que tal presença – a corpórea – deve existir. A responsa- bilidade pela criança ou, então, pela coletividade não cabem apenas aos pais ou aos governantes, mas a todos os homens, visto que a responsa- bilidade é traço fundamental da condição humana, enquanto condição superior de liberdade – que torna possível que o homem ameace a ideia

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de homem e que, por isso, exige que este a preserve – no processo de evolução da vida e, por isso, racional. Como vimos, este imperativo on- tológico da ideia do homem tem como base a suspensão de qualquer aposta, numa busca pela perpetuação da vida que se dá pelo caminho do temor de a humanidade ser causadora de sua própria impossibilida- de de perpetuação.

Um aspecto que merece destaque na construção jonasiana - e que ao mesmo tempo é alvo de controvérsias - é o lado subjetivo da respon- sabilidade. A responsabilidade como um sentimento ou como vinculada diretamente aos demais sentimentos humanos. A sensação de remorso por prejuízos decorrentes de ações passadas podem servir de balizas para futuras ações. O sentimento do temor frente à possibilidade de nos- sas ações desencadearem realidades irremediáveis e que sejam danosas à existência humana pode auxiliar no processo de reconhecer a respon- sabilidade como traço da condição humana. Assim, a responsabilidade na proposta de Jonas se torna uma articulação que precisa acontecer e contemplar a realidade objetiva e a realidade subjetiva, ou seja, implica o sujeito e a ação.

A proposta de Jonas abre perspectivas amplas de reflexão sobre o tema da responsabilidade que permeiam a vida humana. Ao longo do processo de construção deste estudo, foi-se tomando conta de diversos panoramas, áreas e formas através das quais a responsabilidade poderia ser abordada. É o caso de algumas proposições que seguem e que, in- quietam: estando um indivíduo posto sob coação de uma força superior, ou seja, estando subordinado a uma força que lhe obriga a realizar de- terminados atos, é este responsável por comportamentos como tortura ou mesmo a morte? Ou seja, a responsabilidade está implicada em todo ato humano mesmo que este seja decorrente não da deliberação do in- divíduo que o pratica, mas de uma força que o conduz a tal ação? E as consequências não previstas no momento da prática de uma ação - mas frutos desta - são de responsabilidade do indivíduo que as desencadeou?

Será que todos os homens e em todos os momentos da vida um indiví- duo e dispõe realmente daquilo que se poderia chamar de instrumentos ou referenciais para a tomada de boas decisões, sobretudo em situações difíceis, nos casos de exceção às regras? Questões como estas nasceram da pesquisa, mas permanecem abertas e se põem como desafios para empreitadas futuras.

Referências

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