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Cada um sabe...

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Academic year: 2022

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Cada um sabe...

Três quartos do corpo gelado, eu no fundo de um buraco e a ajuda não chega nunca.

Estou quase me afogando. Meu avião vai se espatifar no chão. O pelotão de execução se apronta para me executar. Minha situação é desesperadora... Assim, o filme de minha vida desfila acelerado na tela de minha imaginação. Em alguns segundos, tudo volta:

meus primeiros passos, minhas primeiras palavras, meus amores, as pessoas e as paisagens que conheci, os ofícios que pratiquei, os combates que conduzi, os cantos que me ninaram, tudo que marcou a minha vida e que faz dela uma existência singular. Esta exaustão da memória, este inventário de pânico é o último esforço da minha vontade de sobrevivência. Talvez alguma informação, algum hábito esquecido, algum saber metido nas dobras do tempo poderia, na situação crítica em que me encontro, salvar-me. Esta lembrança integral de todos os conhecimentos, esta volta condensada da vida como reserva de experiências ou expedientes é o ato último de meu instinto de conservação.

Mas por que seria a minha história, do começo ao fim que me voltaria e não apenas o que sei? Porque toda a minha vida está impregnada de saber. Porque a linha da existência está sempre duplicada por uma linha do conhecimento que a recruza, a desposa e a ilumina. Porque o saber é uma dimensão do ser.

Assim, todo o ser humano, até sua morte, pode ser considerado como um reservatório, um estoque, um capital de conhecimento que nunca acaba de crescer.

Ninguém possui a mesma história, ninguém sabe as mesmas coisas. Haveria uma singularidade, uma identidade específica dos indivíduos que se definiria pelo que eles sabem, como uma impressão digital, um rosto trabalhando pela experiência, o timbre de uma voz, um nome, uma assinatura.

Mesmo se o espírito viaja muito longe e muito alto, é apenas saberes dos seres vivos encarnados, conhecimentos que foram experimentados, suportados pelos corpos. Pois as especulações mais abstratas também supõem vigílias, uma mobilização dos nervos, uma cor emocional, um gasto de energia que engaja ainda mais o animal, o centro vital do humano.

Assim, quando compararmos os conhecimentos desse ou daquele, com as palavras comuns da ciência e da ignorância, da grande cultura e da pequena bagagem, lembremos que, no final das contas, nada mais será do que carne contra carne, mortal contra mortal.

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Mas certos conhecimentos não valem mais do que outros? Não se pode ter um conhecimento qualitativo de um saber? Claro. Quando caio na água, é o saber nadar que importa. Em uma reunião, é o saber falar agradavelmente. Em um encontro de amigos, quem toca uma música, sabe histórias ou conhece jogos encantará a assistência. Em meu trabalho, determinada habilidade, determinada experiência se verificarão indispensáveis. Se preparo uma refeição, o principal é evidentemente que eu saiba cozinhar, ou melhor, que eu seja perito na preparação do prato que destino aos meus convidados, à minha família. Quando meu carro quebra em uma estrada deserta, será bom que eu saiba me virar em mecânica, e, melhor ainda, que eu domine perfeitamente o funcionamento e as falhas desse carro, e assim por diante.

De todos os saberes da vida, somente uma ínfima parte é acompanhada por um reconhecimento oficial de títulos e diplomas. Mas uma infinidade de conhecimentos, que todos podem possuir em um momento ou em outro, aqui e ali, sua pertinência econômica, lúdica, social, científica, etc. circulam clandestinamente, crescem em silêncio, invisíveis, atuantes, prontos para servir. O que nos ensina o filme acelerado da existência no momento do mais extremo perigo é que não importa que parcela de vida, com a experiência que a acompanha, pode encobrir um saber útil, salvador, e que é a priori impossível saber-se qual. Humilde ou glorioso, desprezado ou procurado, a vida não desdenha nenhum saber, faz todos comparecerem: o que pode você, aqui e agora?

Quando dizemos que alguém ”não sabe nada”, enganamo-nos totalmente, pois todo ser humano sabe algo na própria medida em que viveu. Talvez queiramos dizer que o conjunto de seus saberes não vale nada? Mas isto significa julgar que sua vida não vale nada, o que é contrário à humanidade mais elementar e assim julga, em contrapartida, o que proferiu o veredicto. O julgamento de ignorância, posto globalmente sobre um indivíduo, não é somente falso, é uma fonte de desprezo, de humilhação e de violência.

Tendo como princípio que cada um sabe, enuncia-se a mais simples das verdades, restituindo a cada ser humano sua dignidade.

LÉVY, Pierre e AUTHIER, Michel. As árvores de conhecimentos. São Paulo: Escuta, 1995.

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