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O conto popular na literatura infantil contemporânea: a inscrição do leitor Juliana Loyola PUC-SP

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Academic year: 2021

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Juliana Loyola PUC-SP

A tradição oral popular e o estudo da literatura infantil e juvenil

O conto de tradição oral popular, assim como o cordel, o mito, a saga sempre estiveram diretamente associados aos estudos folclóricos. É recente o interesse dos estudos literários em relação a esse rico material, relegado por muito tempo à condição de produção pouco valiosa do ponto de vista da literatura.

Historicamente, isso se deve à antiga polêmica entre as práticas da escritura e da oralidade, configurada no decorrer do desenvolvimento da escrita, que acabou por identificar o oral com o popular e, conseqüentemente, com o primitivo, cujo valor não alcançava o da escrita, que passava a denotar uma condição privilegiada àqueles que a dominavam, tanto do ponto de vista da produção quanto do ponto de vista da recepção. A idéia do literário ligado àquilo que está articulado em letra distanciou o produto da literatura dos domínios da oralidade e o conceito de literariedade se afastou, portanto, das práticas orais.

Os estudos lingüísticos determinaram alguma abertura nesse campo. Segundo LEAL (1985: 9), no começo do século XX, “(...) graças à contribuição da lingüística saussuriana, houve uma considerável mudança na direção do problema” e surgiram novas propostas para a interpretação dos mitos e dos contos populares.

“A morfologia do conto maravilhoso”, de Propp pode ser

considerado um exemplo de resgate acadêmico do material de

origem oral popular, no que foi seguido por muitos outros estudos

importantes que apresentaram novas perspectivas de leitura dos

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contos populares, sugerindo outros modelos de análise para essas narrativas.

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O espaço aberto ao estudo do conto popular acabou por facilitar também a entrada da literatura infantil e juvenil nas discussões acadêmicas. Herdeira das narrativas de tradição oral, a literatura infantil e juvenil sofreu, como já se sabe, as mesmas ordens de problemas que atingiram a produção oral popular no âmbito da pesquisa acadêmica. Restringida à prática pedagógica durante muito tempo, foi valorizada como instrumento didático, material de formação, o que acabou por prejudicar tanto o seu estudo como literatura quanto os resultados no processo de formação do leitor. Ainda lembrando LEAL,

Es sa si tu aç ã o e r a ext r e ma men t e ne ga tiva ta nt o pa ra p r o fe s s o re s q ua n to p a r a a l un o s , p o rqu e o s te x t o s , v i s to s a pe n as s o b a ó ti c a p e da g óg i c a , e ram p a s s ad os p a r a o a l un o s em o a u x í l i o d a c r ít i c a l i t e rá ri a e d a a ti v i da d e a na l í ti c a , o q ue c o l o c a e m d ú v i da a va l i d ad e o bj e ti v a d o p r oc es s o to t al . ( L E AL , 1 9 85 : 10 ) .

Atualmente, os estudos sobre literatura infantil e juvenil têm- se beneficiado enormemente das teorias formuladas sobre a chamada literatura oral e, em contrapartida, têm podido oferecer contribuições valiosas para a compreensão da oralidade - entendida como uma prática e uma potencialidade que constitui o homem e o revela tanto quanto (ou mais que) a escritura. Nesse sentido, não nos parece arriscado afirmar que os estudos sobre a literatura infantil e juv enil hoje muito têm tido a dizer aos estudos literários de maneira geral.

A presença da tradição oral na constituição do gênero infantil e juvenil é fato aceito hoje em dia; não vamos nos deter nesse aspecto. Interessa-nos a forma como essa tradição tem sido resgatada pela produção literária dirigida a crianças e jovens na atualidade – gesto que comprova o que foi afirmado há pouco e

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J o s é C a r l o s L e a l c i t a , p o r e x e m p l o , C l a u d e L e v i - S t r a u s s , C l a u d e B r é m m o n d ,

G r e i m a s , R o l a n d B a r t h e s .

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que continua oferecendo elementos para a reflexão sobre o gênero infantil e juvenil e sua natureza estética.

O conto popular: características, recolhas brasileiras e seu resgate na contemporaneidade

Câmara Cascudo, importante folclorista brasileiro, assim caracterizou o conto de tradição oral:

É p r ec i s o q u e o c o n to s ej a v e l h o na m e m ó r i a d o p o v o , a nôn i m o e m s u a a ut ori a , di v u l ga d o e m s e u c o nh ec i me n to e pe rsis t en te n os re pe rt ório s ora is . Q u e s ej a o m i s s o nos n o m es p r ó pr i o s , l o c al i z a ç õe s g e og r áf i c as e da t as f i x ad o ras d o c a s o n o t e m po . (CASCUDO, 2004:13)

Alvo de importantes estudos e motivo de centenas de coletâneas, os contos populares brasileiros contam com uma trajetória impressionante. Em publicação recente, as pesquisadoras Maria Inês de Almeida e Sônia Queirós demonstram esse caminho, compondo um volume intitulado “Na captura da voz – as edições da narrativa oral no Brasil”.

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Para além das discussões acadêmicas sobre as narrativas de tradição oral, chama a nossa atenção também o crescente número de edições dessas histórias nos dias atuais, geralmente catalogadas como literatura infant il e juvenil, cujo tratamento editorial e gráfico vem se mostrando cada vez mais sofisticado e complexo.

Neste trabalho, focalizamos a coleção “Contos de Encantamento”, publicada pela Editora Global, que traz para o público leitor alguns contos recolhidos e registrados por Câmara Cascudo e ilustrados por Cláudia Scatamacchia. Composta por conco volumes, um dos quais contendo dois contos diferentes, a

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P u b l i c a ç ã o c o n j u n t a E d i t o r a A u t ê n t i c a e F A L E – F a c u l d a d e d e L e t r a s d a

U F M G , 2 0 0 4 . A s a u t o r a s p e r c o r r e m m a i s d e u m s é c u l o d e h i s t ó r i a d o c o n t o

p o p u l a r b r a s i l e i r o , l e m b r a n d o o s c o m p i l a d o r e s , s e u s m é t o d o s , s u a

c o n t r i b u i ç ã o p a r a a c u l t u r a b r a s i l e i r a , b e m c o m o o v a l o r d e s s e r e s g a t e p a r a a

c o n s t r u ç ã o d e u m a m e m ó r i a d e l e i t u r a d o p o v o b r a s i l e i r o .

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coleção data de 2000, mas já atingiu outras edições e reimpressões.

O projeto editorial para os volumes segue um mesmo padrão:

cores diferentes para cada capa de livro, ilustração de capa emoldurada ao centro, com acabamento semelhante e uniformidade nos traços que definem os elementos visuais.

Originalmente publicados como resultado de uma pesquisa sobre o folclore brasileiro, os contos de Câmara Cascudo ganham nessa coleção outra configuração, diferente daquela que ele mesmo definiu para esse material.

O estudo da obra de Cascudo revela que seu método de recolha das narrativas orais orientava-se para o registro documental das histórias contadas pelo povo, especialmente o habitante do nordeste brasileir o. Na introdução de “Contos tradicionais do Brasil” Cascudo declara:

A l i n gu age m d os na r r ad o re s f oi r es p ei t ad a n o ve n ta p o r c e n to . N e nh u m v o c á bu l o fo i s u bs ti t uí d o. A pe na s n ã o j ul g ue i i n dis pe n s á v e l g r a fa r mu i é, p ri ns p o, pr i ns pa , ti mi v e, te rriv e. C ons e r v ei a c ol o ra ç ã o d o v o c a bu l á rio i n d i vi du a l , as i m a g en s , p e rí f ra s e s , i n te rc o rr ên c i as . Imp o s s í v el s er á a i d éi a d o m o v i m e n to , o t i m b re , a r e p res e nt aç ão p e rs o na l i z a d o ra d a s f i gu ra s e vo c ad as , instintivamente feita pe lo narrador. (CASCUDO, 2 0 04 : 16 )

Segundo ALMEIDA e QUEIRÓS

( . . .) o au to r , na s e di ç õ es b ra s i l e i ras d e c o nt os ora i s , é s e m pr e o c ol et ado r , u m a es p éc i e de e s c ri b a, o u , p a r a us a r a s p al a v ra s d e B art h es , u m e s c r e v en te e n ã o u m es c r i t o r. A o b r a de s s e s a ut o res é c i e n tí fi c a – c o ns ti tui n do -s e da r e c o l h a , t r a ns c r i ç ã o ( q ue e m g e r al s e qu e r ‘ au tê nt i c a’ , ‘ fi el ’ ) e a ná l i s e d os c o nt o s – e n ão po é ti c a . ( AL M E I D A e Q U E I R Ó S , 20 0 4: 15 5 )

Sem dúvida são muitos os aspectos que emergem desse

material e várias as possibilidades de abordagem dele. Muitas

também as discussões que ele fomenta. Interessa-nos aqui refletir

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sobre os resultados obtidos pela coleção em análise quanto a dois elementos fundamentais: a questão da autoria e a inscrição do leitor.

Wayne Booth, em “A retórica da ficção”, defende de forma contundente a impossibilidade do desaparecimento do autor.

Segundo BOOTH:

P o r i m p es s o al q ue e l e [o au to r ] t en t e s e r, o l ei to r c o ns tr ui r á, i n e vi t a v el m e n te , uma i m a g em d o e s c ri b a o f i c i al q ue e s c r e v e d e s ta m a n ei r a – e , c l a ro , e s s e e s c ri b a of i c i a l n u nc a s e rá n e ut r al em r e l aç ão a t o do s os va l or es . ( BO O T H , 1 98 0 :8 9 )

Booth trabalha na construção do conceito de “autor implícito”

– uma espécie de alter ego do autor real, que ganha estatuto ficcional e pode ser depreendido por meio de todas as relações identificáveis quando do contato com a obra e não apenas daqueles elementos meramente verbais. O autor se refere a uma

“percepção intuitiva de um todo artístico completo”; somente ela é capaz de nos revelar o autor implícito.

Cabe então a indagação: no caso dos contos populares, o coletador transcreve a intenção do contador? Pode isentar-se de colocar, ele mesmo, suas marcas autorais? A leitura das coletâneas dadas ao público por Câmara Cascudo mostra que há nos textos um “estilo”, uma voz que guarda inequivocamente uma particularidade. Não se trata aqui de discutir o método de trabalho de Cascudo, sob nenhum aspecto, mas de identificar que os textos por ele escritos revelam uma inscrição autoral que leva, conseqüentemente, a uma forma específica de inscrição do leitor.

A característica de anonimato dessas narrativas talvez deva ser, então, compreendida como um a forma peculiar de composição, resultante de uma performance oral necessariamente marcada pela escritura.

É aí que a coleção “Contos de Encantamento” surge como

exemplo revelador não apenas do valor literário que possui o

material coligido e registrado por Câmara Cascudo, mas da

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intrigante permanência dessa voz que, ao longo dos tempos, vem buscando diferentes suportes para se manifestar em estado de movência e de performance.

A leitura dos livros da coleção “Contos de Encantamento”

mostra que se, segundo Cascudo, não é possível registrar os elementos vivos, apenas experimentados durante a contação e perdidos no momento mesmo em que acontecem, as ilustrações de Cláudia Scatamacchia parecem resgatar justamente essas possibilidades: a de que a mesma história seja contada muitas e muitas vezes (pois ela não é matéria estática, imóvel), e a presença viva de um corpo que sinaliza com movimentos e gestos performáticos os conteúdos impressivos da história.

A autoria de Cascudo é assim modificada pela introdução das imagens, que se caracterizam pelo traço móvel, deslizante, que projeta a experiência do inacabamento, da continuidade, do hibridismo, do espelhamento.

Sendo o texto, segundo ISER (1996), um potencial de efeitos que se atualiza no ato da leitura, o leitor dos livros da coleção

“Contos de Encantamento” se insere na ordem movente dessas narrativas, mergulhadas em gesto poético composto por uma autoria múltipla.

O conto revela-se como um espaço oral articulado, pois, não apenas pela escritura, mas também pelos elem entos visuais, aqui responsáveis pelas marcas da presença viva do corpo do contador – não como experiência de contat o, mas de memória. Memória de uma cena de contação que está sendo resgatada e projetada como inacabamento.

O leitor assume o lugar de contador, na medida em que precisa performatizar sua leitura, transitando dos elementos verbais aos visuais e significando (em ato de leitura) os componentes da narrativa – aqui convertida em espaço dialógico.

Tais possibilidades não seriam viáveis se os textos

registrados por Câmara Cascudo estivessem sob o julgo de um

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gesto apenas científico e não poético – gesto esse que está na origem das narrativas de tradição oral.

Considerações finais

Se Cascudo procurou ser objetivo no método e produziu coletâneas “científicas” desses contos, o resultado de leitura dos livros da coleção “Contos de Encantamento” traz, sem dúvida, uma outra marca autoral, uma imersão no universo pouco objetivo que permeia essas narrativas, contadas em cada tempo, em cada lugar de formas diferentes, o que lhes garante a longevidade. Do ponto de vista da literatura e da leitur a, a força desse material de tradição oral está justamente na abertura que oferece a novas experiências significativas de percepção do mundo, por meio do contato direto, carnal com ele, possibilitado pela inequívoca presença da voz humana.

O projeto gráfico da coleção “Contos de Encantamento”

aponta para o retorno a uma autoria coletiva de histórias, própria dos primeiros tempos em que a composição do mito, realizada em situação viva de presença dos corpos humanos e, conseqüentemente, da voz, não podia ser atribuída a um único membro do grupo social que se servia dessas narrativas como alimento para a vida diária.

O intérprete e o leitor são múltiplos, porque atualizam várias vozes de uma só vez. O lugar do corpo do contador é um lugar de memória, materializada pelo produto: objeto-livro composto como forma literária dotada de palavra, traço, cor, movimento, luminosidade, textura. Elementos que sugerem fortemente a presença viva de uma voz em performance oral.

Se a intenção documental de Cascudo guardava, entre outras

coisas, a idéia da preservação do ato de contar histórias, a

coleção “Contos de Encantamento” atualiza essa intencionalidade

do folclorista, valorizando assim seu grandioso trabalho e também

a sua existência como contador de histórias.

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Referências

ALMEIDA, M. I. de e QUEIROZ, S. Na captura da voz – as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

BOOTH, W. A retórica da ficção. Tradução Maria Teresa H.

Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980.

CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo:

Global, 2004.

______. e SCATAMACCHIA, C. Contos de encantamento (coleção).

São Paulo: Global, 2007.

ISER, W. O ato da leitura. São Paulo: 34, 1999.

LEAL, J. C. A natureza do conto popular. Rio de Janeiro:

Conquista, 1985.

ZUMTHOR, P. A letra e a voz. Tradução Amálio Pinheiro e Jerusa

Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Referências

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