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CÓDIGO CIVIL COMENTADO

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2022

Nelson Rosenvald Felipe Braga Netto

Artigo por artigo

CÓDIGO CIVIL COMENTADO

3 ª

Edição revista atualizada ampliada

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LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002

Institui o Código Civil.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

PARTE GERAL

LIVRO I DAS PESSOAS

TÍTULO I

DAS PESSOAS NATURAIS

Capítulo I

DA PERSONALIDADE E DA CAPACIDADE

Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Antes de abordar o artigo 1º do Código Civil nos permitiremos uma palavra mais ampla. Uma contextualização, à luz dos nossos dias, do perfil tão renovado que o direito civil assume, aceitando os novos ventos de uma sociedade em constante transformação. Em outras palavras – para fins de clareza e sistematização – faremos no início desta obra tão vasta uma espécie de síntese dos pontos fundamentais. Daqueles aspectos, não só sociais,

mas conceituais e normativos, que definem o perfil do direito civil do século XXI. Não é exagero afirmar que o direito civil se transformou, está se transformando, de modo tão ágil e intenso que um civilista dos séculos passados teria dificulda- de em compreender muitas das discussões que nos desafiam hoje. Essas mudanças nos modelos teóricos do direito civil resultam, em boa medi- da, de mudanças comportamentais tão intensas

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CÓDIGO CIVIL COMENTADO – Artigo por Artigo • NelsoN RoseNvald / Felipe BRaga Netto

Art. 1º

– pensemos na sociedade brasileira das últimas três décadas – que se o direito civil se mantivesse o mesmo, isto é, se o direito civil continuasse com o mesmo aparato técnico dos séculos anteriores seria certamente condenado à irrelevância.

Virou lugar comum dizer que o universo di- gital revolucionou nossas relações sociais. Pas- samos, em poucos anos, de um universo físico- -tradicional para o mundo digital. Para o bem e para o mal, a dimensão fortemente colaborativa da internet deu voz a todos, ou quase todos. A informação transita em velocidade espantosa e os focos emissores são múltiplos e plurais. Não só. Os modos de comunicações, de adquirir produtos e serviços, de se deslocar nas cidades se alteraram de modo tão profundo que sequer podemos ima- ginar quais serão os próximos passos. Segundo o Fórum Econômico Mundial, 65% dos jovens que estão no ensino médio irão trabalhar em profis- sões que hoje ainda não existem. O advento da internet 5 G, argumenta-se, transformará a medi- cina, tornará as cidades inteligentes, revolucionará os transportes (existem previsões no sentido de que até 2040 metade dos carros existentes serão autônomos, isto é, sem motoristas, e estarão digi- talmente interligados, o que diminuirá absurda- mente os acidentes e os congestionamentos). Há aspectos que parecem ficção: uma parceria entre a Uber e a Embraer promete para os próximos anos o veículo voador que deslizará pelos ares possivelmente sem pilotos, de modo autônomo (os grandes problemas serão, não tecnológicos, mas regulatórios). A medicina e as comunicações em geral sofrerão mudanças ainda mais intensas nas próximas décadas. Parece não haver limite para o que nos espera.

Não é difícil prever que essas transformações terão vasto impacto no direito civil.

Nosso objetivo é construir uma obra com os olhos voltados para o futuro. Olhar para o futuro, entenda-se, não significa negar o passado. Pelo contrário. A absorção do novo exige a compre- ensão do que passou, exige que conheçamos os passos daqueles que vieram antes de nós – e isso vale não apenas para a caminhada humana com seus remotos passos histórico-culturais, mas também para todas as gerações de notáveis civilistas que nos precederam. Sem eles pouco ou nada poderíamos fazer. Gostaríamos, nesta introdução, de registrar nosso agradecimento, nossa palavra de admiração e respeito. Todo

avanço na cultura humana é feito pelo esforço de muitos. Ainda que esses atores estejam separados no tempo e no espaço, são partícipes de uma obra coletiva, feita de contribuições múltiplas. Feita de diálogos com aqueles que vieram antes de nós e deixaram sua marca luminosa na trajetória da cultura humana.

O direito civil dos nossos dias incorpora novos modos de percepção. É chamado a reconstruir o sentido de velhos conceitos e categorias, diante dos problemas inéditos que o nosso século apre- senta. As ameaças que nos afligem, atualmente, parecem se renovar a todo instante. Já se disse que toda época tem seus fantasmas (SAVATER, Fernando. O valor de educar. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 136).

O individualismo jurídico era muito bem re- presentado pelas três liberdades básicas do direito civil: liberdade de contratar, de ser proprietário e de testar (Cf. STOLFI, Giuseppe. Teoria del negozio giuridico. Madrid: Briz, 1959, p. 20; BAR- CELLONA, Pietro. El individualismo propietario.

Madrid: Trotta, 1996, p. 115). Obviamente, são liberdades que ainda persistem, que não desapare- ceram nem desaparecerão, mas sofrem os influxos dos novos valores deste século. Aliás, Pontes de Miranda – com a antevisão que o distinguia – já nas primeiras décadas do século passado já aler- tava para o erro de tratar outros direitos menos favoravelmente que o direito de propriedade (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 367).

O direito brasileiro filia-se à tradição romano- -germânica, da civil law. Bebeu na fonte das gran- des codificações modernas da Europa continental.

O Brasil, desde antes do Código Civil de 1916, recebe forte influência da civilística europeia – sobretudo francesa, alemã, italiana e espanhola – e bem menos dos países da América, mesmo aqueles que se filiam à estirpe cultural do civil law (o que parece estar mudando aos poucos, o Brasil e seus vizinhos sul-americanos estão, por assim dizer, redescobrindo-se culturalmente). Em relação aos Estados Unidos da América, ocorre algo interessante. A influência exercida no Brasil é fortíssima na área do direito constitucional, mas praticamente inexistente no campo do direito civil.

Houve, nas últimas décadas, intensa produção jurisprudencial relativamente ao direito civil bra- sileiro – o que permitiu renovar, criativamente, boa parte dos postulados teóricos aplicáveis à

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disciplina. Após a Segunda Guerra, muitos ju- ristas europeus, sobretudo alemães e italianos, voltaram suas atenções teóricas para a jurispru- dência, afastando-se da redoma conceitual de abstração e conceitualismo puro que por muito tempo marcou os estudos jurídicos, sobretudo na literatura civilística.

O direito civil, nesse sentido, se renovou, está se renovando. Há um choque entre velhas estru- turas e novas funções. Aliás, não é novidade que o direito civil sempre foi visto como o espaço ju- rídico do tradicionalismo. Arnaldo Vasconcelos, escrevendo algumas décadas atrás, apontou que o Direito Civil é tido como o maior representante do conservadorismo jurídico, e isso se retrata particularmente nas codificações. E exemplifica:

“O caso de maior representatividade é o do Có- digo Civil francês de 1804, que nasceu num país agrícola e continua servindo a uma potência atô- mica. Nosso Código Civil já passou dos sessenta e o Comercial festejou seu centenário há vinte e cinco anos. Por isso já se disse, não sem ironia, que em Direito os vivos são regidos pela vontade dos mortos” (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 144). Lembremos ainda que o século XIX foi particularmente representativo das grandes cons- truções conceituais e abstratas (MEAD, George H. Movements of thougt in the nineteenth century.

Chicago: The University of Chicago Press, 1972).

Durante o século XIX e boa parte do século XX, o direito civil orgulhava-se do rigor formal dos seus conceitos, em sistema logicamente impe- cável. Porém, paralelamente aos encadeamentos lógicos dos juristas, os poderes privados eram – e, de certo modo, ainda são – marcados por forte carga despótica. O marido sobrepunha-se, social e juridicamente, à mulher; o pai sobrepunha-se ao filho; os empregadores a seus empregados. A igualdade material não inspirava os códigos civis.

Os códigos civis clássicos não se preocupavam com esses desníveis de poder privado; antes os secundavam. Padrões de comportamento pre- conceituosos se repetiam, e a lei os incentivava.

Os civilistas, com seu conservadorismo in- teligente, hesitam muito em abandonar antigos esquemas ou classificações ou renovar velhas pautas temáticas. A unidade valorativa do siste- ma civil-material exige intérpretes mais atentos às realidades dos nossos dias, mais dedicados a extrair as potencialidades generosas dos prin-

cípios e cláusulas gerais – sem, porém, cair em voluntarismos. Importante dizer que hoje se aceita, no Brasil, de modo crescente, a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas. As normas constitucionais, nesse contexto, têm eficácia direta nas relações de direito privado. Os debates havidos na Alemanha, Itália e Portugal foram valiosos para a experiência brasileira nesse campo.

Hoje sabemos que a Constituição e os direitos fundamentais colorem as dimensões privadas do existir.

O que atualmente parece óbvio – a força normativa dos princípios constitucionais –, há algumas décadas era pouco defendido e menos ainda praticado. Entre nós, no Brasil, só a partir do final da década de oitenta – mais especifica- mente a partir da Constituição de 1988 – é que começou a se fortalecer, aos poucos, uma cultura constitucional. O fenômeno também ocorreu, em maior ou menor grau, em países como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Especial menção deve ser dada à jurisprudência do Tribunal Constitu- cional Federal alemão, cujas decisões impulsio- naram profícuos debates doutrinários. No Brasil, o STJ – criado com a Constituição de 1988 e que tem entre suas funções a uniformização da lei federal em todo o país – também contribuiu grandemente para o fenômeno.

As muitas dimensões atuais do direito civil são revitalizadas pelo farto uso dos princípios e cláu- sulas gerais. O direito privado, nessa perspectiva, sofre uma mutação funcional, aceitando que seus conceitos, categorias e institutos sejam redefini- dos à luz da solidariedade social e da dignidade humana (e da função social, boa-fé objetiva etc.).

Além disso a experiência jurídica moderna é farta em conceitos funcionalizados. São conceitos que ultrapassam a visão puramente estrutural, estática e formal. Ganham vida ao integrarem-se, efetiva- mente, ao contexto histórico, não sendo possível, nem mesmo teoricamente, analisá-los sem a con- trapartida das vivências sociais. Pode-se apontar, como exemplos, a função social da propriedade, do contrato, da empresa, entre tantos outros.

O direito civil do século XXI é o direito civil das relações existenciais. É aqui que mora a cor generosa dos novos tempos. Sim, as lições do pas- sado foram essenciais para a caminhada histórica, para o percurso trilhado. Porém, com o avançar das décadas do século XXI, o direito civil marcará

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seu avanço incorporando – em seus conceitos, categorias e institutos – as dimensões existenciais do ser humano. As esferas de autodeterminação, hoje, fortalecem-se e ampliam-se para além das dimensões patrimoniais. Por alguns séculos, o direito civil era o direito civil da autodetermi- nação patrimonial (bastante seletiva, sabemos).

Hoje o direito civil caminha em direção a espaços mais generosos (normativamente generosos) de autodeterminação nas dimensões existenciais.

Esse é grande passo – ou um deles – do direito civil do século XXI.

Convém lembrar que o direito civil brasileiro pós-1988 já não é um adolescente. Dele já se espera alguma maturidade. Já não fica bem, de modo ju- venil, propor soluções sem condições mínimas de exequibilidade, puramente discursivas. Devemos, ao contrário, de modo criativo e responsável, bus- car padrões doutrinários que auxiliem o intérprete na busca de soluções isonômicas, proporcionais e constitucionalmente consistentes.

Cabe afirmar aqui outra obviedade: o direito civil do Brasil, como democracia constitucional, resulta de infinitas camadas doutrinárias e juris- prudenciais. Em outras palavras: o direito civil brasileiro não se confunde com o Código Civil.

Ele, o Código, é obviamente um diploma de re- levância singular, mas as construções de sentido que formam o direito civil atual vão muito além dele. Aliás, não é raro que a interpretação se firme contra a letra dele. A unidade valorativa e fun- cional do sistema jurídico, como sistema aberto iluminado por direitos (e deveres) fundamentais, permite que o intérprete de hoje trabalhe com essas novas visões, com padrões mentais inéditos para o modelo clássico que dominou a experiên- cia jurídica nos séculos passados.

Nosso propósito é trazer esses novos olhares, essas novas chaves de leitura, para cada artigo do Código Civil. Diante da imensidão da tarefa, é certo que precisaremos da ajuda da leitora e do leitor para nos apontar os equívocos que cometemos e os aspectos que possam ser aprimo- rados. Estamos certos de que não fizemos (longe disso) obra perfeita, mas um livro que tentará humildemente melhorar com os anos, refletindo os fortíssimos ventos de mudança – não só as que já ocorreram, mas também aquelas que nos aguardam nas próximas décadas.

Com o intuito de ser útil à leitora e ao leitor, já no início do livro, como dissemos antes, nos

propusemos a trazer um roteiro sintético de mu- danças fundamentais. De aspectos que redefinem o modo de ser do direito civil atual.

I. IMPACTOS DAS MUDANÇAS SOCIAIS NO DIREITO CIVIL

São tantas, tão fortes e significativas, as mu- danças sociais que projetam efeitos no direito civil dos nossos dias que optamos por eleger algumas e, embora brevemente, apontar aspectos do fenômeno.

a) o direito civil em sociedades plurais e complexas

Tão intensa é a velocidade dos fatos sociais nas últimas décadas – sobretudo no Brasil – que não exageramos ao afirmar que a única certeza é a mu- dança. Barbosa Moreira destacou que a vertiginosa aceleração do ritmo histórico parece consagrar o efêmero como categoria suprema. É natural, até inevitável, que essas profundas mudanças sociais repercutam no direito civil. Já afirmamos em outra ocasião que pessoas que nasceram e foram educadas com a multiplicidade de informações que o mundo digital proporciona não aceitam um direito arcaico preso a fórmulas sem sentido. Um dos desafios do direito atual é se legitimar pela fundamentação de suas decisões. Não basta impor, é preciso impor com legitimidade.

O direito civil atua dialoga com a sociedade complexa em que se insere.

Vivemos tempos (difíceis) que exigem a con- vivência entre direitos fundamentais no contexto de sociedades plurais e heterogêneas. O direito do século XXI se timbra, em boa medida, pelo pluralismo (pluralismo das concepções de mun- do, dos sujeitos protegidos pelas normas, das próprias normas, oriundas de fontes diversas, dos interesses tutelados, e da própria filosofia, fundada no diálogo, na razão argumentativa).

O direito dos nossos dias, de índole difusa, não opera na lógica mais – pelo menos não exclusi- vamente – na esfera do um-contra-um. Aliás, não são apenas os indivíduos que merecem proteção jurídica, mas as coletividades, a comunidade humana (EDELMAN, Bernard. La personne en danger. Paris: PUF, 1999, p. 528).

Os direitos fundamentais, hoje, no Brasil, ab- solutamente não são apenas direitos de defesa em face do Estado. Exige-se muito mais dos poderes públicos. Exige-se uma postura ativa do Estado

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para proteger os direitos fundamentais. Essa a grande mudança havida, com imensas e inten- sas repercussões práticas. Em outras palavras, não basta que o Estado se abstenha de violar os direitos fundamentais. Ele precisa, além disso, evitar que terceiros os violem. Exige-se, portanto, atualmente, que o Estado assuma uma postura ativa, agindo para defender direitos fundamen- tais ameaçados. Isto é, não basta que o Estado se abstenha de agir (não impeça, digamos, que um ato público se realize), é preciso proteger e agir para que lesões não ocorram (agindo para que outros não impeçam a reunião nem agridam quem lá esteja).

Existem deveres estatais de proteção de seus cidadãos (inclusive em relação à violência urbana ou agressões provindas de terceiros), existem deveres dos pais de cuidado em relação aos filhos (o abandono afetivo, convém lembrar, não resulta da infração do dever de amar, mas do dever de cuidar, de índole objetiva). Esses deveres nem sempre resultam de regra jurídica específica, mas da interpretação atual acerca do conteúdo dos direitos fundamentais. Há uma discussão – atual e interessante – que indaga em que medida a efi- cácia horizontal dos direitos fundamentais obriga os particulares a agir desse ou daquele modo.

Hoje temos da família uma visão plural. Uma visão harmônica com o nosso tempo. O direito civil compartilha dessa visão plural. Dois pontos merecem destaque desde já: a) não há hierarquia axiológica entre as entidades familiares (uma não “vale mais” que a outra); b) a Constituição da República não trouxe um elenco fechado de entidades familiares, mas apenas exemplificativo (contribuição doutrinária fundamental, na ma- téria, proveio de Paulo Lôbo através de artigos magistrais, antecipando reflexões e conclusões doutrinárias. Não é exagero dizer que, a partir deles, revolucionou-se, por assim dizer, o modo de enxergar a questão). A família, nesse contexto, passa a ser vista como o locus do afeto, do livre desenvolvimento da personalidade dos seus com- ponentes. Não se trata de impor o dever de afeto (isso o direito não pode fazer), mas de reconhecer no afeto e no cuidado nortes jurídicos para suas decisões, por exemplo. O direito civil dos nossos dias, portanto, tem uma perspectiva inteiramente diversa daquela do direito civil do passado. Dialo- ga com a ética e tem forte acento humanista. Não despreza a pessoa humana, nem a vê de modo

puramente formal. Reconhece, ainda, o pluralismo social, e protege as escolhas existenciais de cada um. O livre desenvolvimento da personalidade é objetivo a ser tutelado no direito civil.

São tantos os setores que podemos escolher para exemplificar as novas cores dos nossos dias que qualquer escolha é um pouco arbitrária. O certo é que vivenciamos nas últimas décadas mu- danças espantosas. Tantas que umas nos fazem esquecer as outras. Mudanças que alteram nossos destinos coletivos. Isso, por certo, repercute forte- mente nas dimensões jurídicas. Só um exemplo, por enquanto: pensemos no meio ambiente. O direito fundamental ao meio ambiente ecologi- camente equilibrado redefine papéis e funções no ordenamento jurídico. Convém não esquecer que há poucas décadas a literatura jurídica – tratados, manuais e monografias – considerava a natureza (ar, mares etc.) res nullius, coisa de ninguém. Algo de menor importância, algo que nem merecia mais que duas ou três linhas nos cursos de direito civil. Hoje, em poucas décadas, a situação se inverteu. O meio ambiente é conside- rado bem de uso comum, direito fundamental de terceira geração. Tivemos, portanto, na matéria, curiosa evolução conceitual: de res nullius para res communis omnium. Temos, portanto, no meio ambiente, um bem difuso, um macrobem.

Interesses transubjetivos ganham especial rele- vância. O interesse público, nesse contexto, não se confunde com o interesse estatal, havendo fre- quentes colisões entre ambos. Cresce em nossos dias a importância do espaço público não-estatal.

b) O direito civil na sociedade digital Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias que desafiam com ousadia nossas antigas certe- zas. Dias cuja única permanência é a mudança.

Velhos hábitos são alterados com rapidez, sobre- tudo a partir do impacto das novas tecnologias em nossas vidas. Aliás, sabemos que um dos modos mais eficazes de criar valor no século XXI é unir criatividade à tecnologia. Tow Goodwin faz observação interessante: Uber, a maior em- presa de táxis do mundo, não é proprietária de carros. Facebook, a rede de comunicação social mais popular do mundo, não cria conteúdo. Ali- baba, o varejista mais valioso, não tem estoque.

Airbnb, o maior provedor de acomodações do mundo, não possui imóveis. O Booking, primeira palavra em reserva de hotéis, não possui sequer um quarto. Enfim, os exemplos são muitos.

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Podemos lembrar ainda do Ifood, um gigante do setor alimentício que não produz comida.

Aliás, o jovem inglês Johnny Boufarhat, criador da plataforma de conferências online Hopin, afirmou em 2021: “Minha empresa é avaliada em US$ 6 bilhões e não tem nenhum escritório”. A empresa conseguiu em 2021 arrecadar US$ 400 milhões em investimentos privados numa rodada de arrecadação de fundos. Os exemplos possíveis seriam inúmeros. Os serviços de streaming, por exemplo, movimentam quantias inacreditáveis na economia digital (no streaming não há propria- mente a transmissão de titularidade do conteúdo, mas apenas a possibilidade de acesso a produtos disponíveis em determinada plataforma). Aliás, a economia do compartilhamento (sharing eco- nomy) vai além da tradicional lógica proprietária e cria novos modos de aproveitamento dos bens jurídicos.

A internet – que surgiu como uma forma de interligação, de modo descentralizado, dos com-putadores militares americanos – passou a ser utilizada comercialmente nos Estados Unidos em 1987. Foi então que ganhou essa denominação, internet. No Brasil, a internet chegou em meados da década de noventa (em 1995, especificamente, é publicada uma norma do Ministério das Comu-nicações que marca esse início). A internet, sob

o prisma técnico, é a conexão entre protocolos, conhecidos como IPs (internet protocol). Esse IP, uma espécie de endereço digital, permite que as investigações descubram (ou tentem descobrir) de onde partiram certas postagens na rede. Há, ainda, os nomes de domínio (domain name system), que são os endereços que digitamos para chegar aos sites, complementados pelas respectivas termina- ções (top level domains), que são os finais dos ende- reços, após o ponto (ou o último ponto, se houver mais de um: .com, .gov, .jus). Nós nos deslocamos pela internet usando navegadores (browsers). Não por acaso, usamos o verbo navegar.

Muitas relações, que antes se davam no mun- do físico, agora são predominantemente vir- tuais. Por exemplo, as relações entre clientes e bancos migraram, em boa parte, do mundo físico-convencional para o mundo digital. Os serviços, aliás, em geral, migraram fortemente para o mundo digital. Vivemos numa sociedade em que os bens físicos perdem muito da primazia que tiveram nos séculos passados. Há uma clara desmaterialização dos bens (a riqueza, que nos

séculos passados esteve indissoluvelmente ligada à terra, hoje está no mercado acionário). Paralela- mente, os serviços ganham intensa, e progressiva, relevância econômica. Nossas profissões surgem a cada dia – ligadas, por exemplo, à culinária, à moda e, sobretudo, ao mundo digital –, e muitas delas são financeiramente mais atrativas do que aquelas convencionais. Talvez não exageraría- mos se disséssemos que muitos pais, hoje, não conseguem compreender bem o trabalho dos filhos (gerente de mídias sociais, por exemplo).

Enfim, podemos dizer, em autêntico truísmo, que o mundo mudou, está mudando.

A tecnologia reduz custos operacionais dos deslocamentos, interliga pessoas e comunida- des, diminui o uso de papel e a necessidade de estocagem física de documentos. As gerações que cresceram e foram educadas longe do mundo digital não se sentem confortáveis com essa “fuga do papel”, digamos assim (paper less society).

Há, nessas pessoas, um apego, até emocional, ao papel, ao documento escrito (como se isso as dei- xassem mais seguras). Mas a desmaterialização é uma tendência irreversível, gostemos ou não.

Nesse contexto, conforme frisamos, nota-se uma progressiva desmaterialização dos bens. Não só a forma de aquisição é digital (pedimos, por exemplo, transporte e alimentos pela internet), como os próprios serviços se desmaterializam (pensemos, por exemplo, num e-book. Não há bem físico palpável, nos moldes do mundo físico- -convencional). Precisamos cada vez menos dos arquivos físicos. A progressiva desmaterialização de processos judiciais, documentos, arquivos, é – mais do que uma tendência – uma realidade que se impõe. A tendência é que tenhamos nossos arquivos nas “nuvens”, acessíveis de qualquer lugar em que estejamos.

Aliás, a internet não apenas reproduz, com extrema velocidade, os fatos que acontecem no mundo físico-convencional. Ela cria novos fatos.

As empresas e os governos, em especial, estão sujeitos a manifestações digitais, com repúdio e ataques diante desse ou daquele modo de agir.

Podemos, de modo breve, sem pretensão de exaustividade, mencionar algumas das caracte- rísticas da internet: a) transnacionalidade por excelência; b) potencial de compartilhamento das informações inédito na história humana; c) velocidade das trocas de informações; d) conte- údo fortemente colaborativo. As três primeiras

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características são de intuitiva compreensão. A internet não conhece as barreiras que separam os países. Permite compartilhar informações de um modo que a humanidade antes desconhecia. E tudo isso ocorre com velocidade estonteante. São pontos que todos nós, de um modo ou de outro, conhecemos. A última característica é formar uma dimensão fundamentalmente colaborativa.

Usufruímos, hoje, da chamada “memória so- cial”, que é aquela acessada instantaneamente por meio da tecnologia. Segundo Clive Thompson,

“as ferramentas tecnológicas não nos isolam, é o oposto. Temos nos tornado pensadores mais sociais. Temos mais oportunidades de dividir o que pensamos o tempo todo”. Enfim, trata-se, sem exagero, de um mundo novo. Um admirável mundo novo, com o qual estamos aprendendo a lidar – menos, ressalte-se, os que já nasceram ou cresceram nesse mundo novo, esses lidam com desconcertante naturalidade com o mundo digi- tal que é, afinal de contas, o mundo dele (fala-se, a propósito, com propriedade, de nativos digitais.

São aqueles que estão em contato com a internet desde que nasceram, ao contrário daqueles que tiveram que se adaptar a ela. Ver: PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants. From on the horizon – NCB University Press, v. 9, nº 5, oct., 2001).

As modificações trazidas pela sociedade di- gital são tão iconoclastas que já se cogita – em acaloradas discussões na União Europeia, so- bretudo a partir da Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações sobre disposições de Direito Civil e Robótica – da atribuição de personalidade civil a máquinas dotadas de inteligência artificial (lembrando que o conceito de personalidade jurídica não se restringe à pessoa humana, indo além, bastando lembrar das pessoas jurídicas).

Trata-se da chamada e-personality. A resolução citada menciona, entre outros pontos: “Consi- derando que, em última instância, a autonomia dos robôs suscita a questão da sua natureza à luz das categorias jurídicas existentes, ou se deve ser criada uma nova categoria, com características e implicações próprias”. Trata-se de discussão que certamente atravessará as próximas décadas.

Conforme frisamos na nota à segunda edição desta obra, parece inegável que a tecnologia apresenta passos (muito) mais rápidos do que o direito. Por exemplo, o impacto da inteligência

artificial sobre nossas vidas já é – e cada vez mais será – imenso. Talvez a maioria de nós sequer se dê conta disso. Uma quantidade impensável de dados alimenta algoritmos, classifica pessoas e coisas, formando perfis (profiling) e tomando decisões automatizadas. Existem benefícios, é óbvio, mas também existem danos. Muitos são discriminados e excluídos por algoritmos en- viesados (cuja capacidade de processamento aumenta de modo exponencial).

Altera-se, de modo inesperado e poderoso, não só o modo de difusão das informações, mas também sua produção. Não falamos, aqui, da produção editada e empresarialmente concebida, nem mesmo aquelas que operam no mundo di- gital (jornais digitais e provedores com conteúdo informativo). Falamos da produção de conteúdo e informação por parte dos cidadãos. Nitida- mente, opera-se um deslocamento dos centros de produção de informação: não mais estruturas centralizadas e, de certo modo, autoritárias, mas cadeias de comunicação reciprocamente conecta- das, que trocam dados numa velocidade incrível.

O Twitter, por exemplo, é bastante forte nesse sentido. Aliás, os membros do universo digital compartilham experiências, históricas, e tendem a resolver problemas de modo compartilhado.

Gostemos ou não, essa é a realidade do século XXI na qual viveremos. Isso, porém, inegavel- mente, traz riscos. Com eles também viveremos.

Há certamente aspectos negativos. Parece ha- ver algo errado com uma sociedade em que quase todos são (ou querem ser) “digital influencer”.

Há excessos, distorções, equívocos absurdos. Há famas vazias, há sobretudo um desejo de apare- cer a qualquer custo. Basta citar dois exemplos recentes. Em Barcelona um jovem youtuber – que era considerado um dos “200 youtubers mais importantes da Espanha e Iberoamérica” – re- tirou o recheio de biscoitos e colocou, no lugar, pasta de dente. Filmou toda a operação e depois ofereceu os biscoitos a um morador de rua que estava com fome. O homem, de 52 anos, chegou a vomitar, e afirmou ao jornal El País que “nunca foi tratado tão mal enquanto morava na rua”. O youtuber comentou no vídeo: “Talvez eu tenha ido longe demais, mas vejam pelo lado bom: acho que ele não limpou os dentes desde que ficou pobre”. O youtuber foi criminalmente condenado.

Em outro caso, também ocorrido em 2019, em Varsóvia na Polônia, uma garota de 17 anos – ob-

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LIVRO III

DOS FATOS JURÍDICOS

TÍTULO I

DO NEGÓCIO JURÍDICO

Capítulo I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I – agente capaz;

II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III – forma prescrita ou não defesa em lei.

O Livro III do Código Civil trata dos fatos jurídicos. Embora tradicionalmente tratado na parte geral do direito civil, o tema – fato jurídico – tem dimensão muito mais ampla. É assunto de teoria geral do direito. Quaisquer efeitos jurídi- cos, de direito público ou privado, lícito ou ilícito, resultante de ato humano ou fato natural, todos eles, sem exceção, decorrem de um fato jurídico.

Fato jurídico é tradicionalmente definido como qualquer fato, natural ou humano, que provo- que o nascimento, a modificação ou a extinção de relações jurídicas. A frase anterior não está incorreta, mas define o fato jurídico pelo seu efeito, por aquilo que ele produz. Melhor e mais adequado, cremos, é conceituar o fato jurídico como o fato que foi juridicizado, isto é, como o fato que recebeu a incidência de uma norma jurídica sobre seu suporte fático suficiente. Isso faz com que o fato penetre no mundo do direi- to, no plano da existência. Seja como for, fato jurídico é um gênero que comporta muitíssimas espécies, dentre elas – como veremos adiante – o negócio jurídico.

Suporte fático é o fato ou conjunto de fatos previstos pela norma jurídica. A usucapião, por exemplo, prevista no art. 1.239 do Código Civil tem como suporte fático: a) posse com ânimo de dono por 5 anos ininterruptos; b) de área de zona rural não superior a 50 hectares; c) sem oposição do proprietário; d) não ser o possuidor proprietário de imóvel rural ou urbano; e) residir nela o possuidor, tornando-a produtiva pelo seu trabalho ou pelo trabalho de sua família. Pre- enchidos, cumulativamente, todos os requisitos previstos pelo suporte fático da norma, esta in- cide, fazendo surgir o fato jurídico (usucapião), e, posteriormente, os respectivos efeitos jurídicos (aquisição da propriedade pelo possuidor). Trata- -se de expressão que foi usada, inicialmente, no direito penal, e posteriormente trazida para o direito privado. Há, em outros países, expressões similares (fattispecie, na Itália; supuesto de hecho, na Espanha; tatbestand, na Alemanha etc.). A expressão “suporte fático” é criação – na língua portuguesa – de Pontes de Miranda, a quem se deve a mais sólida, rigorosa e sistemática abor- dagem dos fatos jurídicos. Sérgio Bermudes

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CÓDIGO CIVIL COMENTADO – Artigo por Artigo • NelsoN RoseNvald / Felipe BRaga Netto

Art. 104

escreveu: “Um dos atributos da genialidade de Pontes de Miranda é sua insuperável capacidade de ler com olhos críticos, de selecionar e apre- ender. Exímio conhecedor das fontes próximas e remotas do direito brasileiro, ele hauriu muito de sua ciência nos autores alemães, que cita a cada passo, mas sem vergar-se ao peso da sua autoridade. Não se acanha de fazer-lhes censuras, quando as entende necessárias. Iguala-se a eles, como permitia a cultura fenomenal, que o torna um dos maiores juristas do mundo, em todos os tempos, e assim será proclamado, à medida que se faça conhecida a sua obra ciclópica, que, escrita em português e num país subdesenvolvido, ainda espera adequado descobrimento”.

Incidência é a propriedade que as regras jurí- dicas têm de, uma vez concretizada, na realidade da vida, a previsão abstrata feita pela norma, incidir sobre o fato acontecido, marcando-o (fazendo-o fato jurídico). É a incidência, se- gundo Pontes, que distingue a norma jurídica das demais normas sociais. Marcos Bernardes de Mello lembra que “a incidência das normas jurídicas constitui a differentia specifica que as distingue das demais normas de convivência social, como as da moral, da etiqueta, da religião e dos outros processos de adaptação social, exata- mente porque as torna obrigatórias e impositivas, independentemente da adesão daqueles a que a incidência da regra possa interessar” (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 16; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. São Paulo: Saraiva: 2014, p. 117). Lembra, adiante, o jurista, que o efeito fundamental da incidência consiste em criar fatos jurídicos. Sempre que incide, a norma cria fato jurídico que corresponde a seu suporte fático.

A relação jurídica é uma relação entre sujeitos de direito que se produz já dentro do mundo jurí- dico, como resultado de um fato jurídico. O fato jurídico é, por assim dizer, a causa das relações jurídicas. É dentro delas, das relações jurídicas, que estão todas as categorias de eficácia, todos os direitos, deveres, pretensões, obrigações etc.

São categorias que existem, cremos, em qualquer sistema jurídico, não importa o conteúdo das normas. Kelsen, já no primeiro capítulo de sua Teoria Pura do Direito, esclarece que sua teoria é uma teoria do direito positivo em geral, e não de uma ordem jurídica específica. Discutiu- -se, em doutrina, se a cada sistema de normas,

conceitualmente dado, corresponderia uma ex- posição sistemática, distinta das demais. Ou seja, se haveria tantas ciências dogmáticas quantos sistemas de direito positivos. (SOMLÓ, Felix.

Juristische Grundlehre, p. 2/10, Apud. Lourival Vilanova, Estruturas Lógicas e o Sistema do Di- reito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 131). Seria a dogmática uma ciência cultural individualizadora, por envolver valores, como quer Radbruch, ou haveria tantas ciências quantos ordenamentos jurídicos hou- vesse? Pontes de Miranda e Lourival Vilanova acreditam que há uma só ciência, com conceitos e proposições universais, que, “relativamente à matéria empiricamente dada, funcionam como conceitos fundamentais” (Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977, p. 132).

Na concepção contemporânea, a norma jurí- dica é um gênero, cujas espécies são: a) as regras jurídicas; e b) os princípios. As regras jurídicas, conforme veremos a seguir, trazem um nexo de imputação entre causa e consequência (estrutura fechada), ao passo que os princípios, ao contrário, mais flexíveis, trazem, quase sempre, a indicação de um valor a ser protegido (estrutura aberta).

O que hoje parece óbvio – a força normativa dos princípios constitucionais – há algumas décadas era pouco defendido e menos ainda praticado.

Entre nós, no Brasil, só a partir do final da déca- da de oitenta – mais especificamente a partir da Constituição de 1988 – é que começou a se for- talecer, aos poucos, uma cultura constitucional.

Atualmente a Constituição da República é vista como um sistema aberto de princípios e regras.

Além disso, os direitos fundamentais colocam-se acima do legislador, condicionando e limitando a sua atividade (não só a sua: também, por exem- plo, a do administrador público e mesmo a dos cidadãos em suas relações particulares).

Podemos dizer que a regra jurídica opera com uma estrutura fechada (nexo de imputação). Nes- se contexto, a estrutura básica da regra jurídica (voltaremos ao ponto) estabelece um nexo de imputação entre: a) uma condição de aplicação (suporte fático); e b) uma consequência (preceito ou efeito jurídico). Para ficar no exemplo mais conhecido, podemos citar a regra que proíbe o homicídio. O Código Penal, art. 121, estatui: “Ma- tar alguém”. Pena: reclusão de seis a vinte anos.

Nota-se, nesse caso, uma clara relação entre uma hipótese de fato e uma consequência.

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Atualmente, se não podemos (nem deve- mos) abandonar as regras jurídicas, tampouco podemos nos dar por satisfeito com um sistema jurídico formado apenas por elas. Diagnostica Canotilho: “Um modelo de sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade práti- ca. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Al- medina, 1993, p. 168). Não basta, hoje, perguntar se determinado ato está de acordo com a lei. É preciso, além disso, que ele esteja de acordo com os princípios.

Os critérios de solução de conflitos normati- vos são distintos, se estamos diante de regras ou de princípios. Nos conflitos normativos entre regras os critérios são lógico-formais: a) hierár- quico (regra de hierarquia superior prevalece so- bre regra de hierarquia inferior); b) cronológico (regra mais recente prevalece sobre regra mais antiga, se pelo menos do mesmo nível hierárqui- co); c) da especialidade (regra especial prevalece sobre regra geral). Já nos conflitos normativos entre princípios, como adiante veremos, preva- lece o critério (axiológico, não lógico-formal), da ponderação, do sopesamento.

Distinção fundamental, de grande repercus- são teórica e prática, diz respeito às normas jurídicas dispositivas ou cogentes. Normas dis- positivas são aquelas cuja incidência pode ser afastada mediante declaração de vontade. A Lei do Inquilinato, por exemplo, diz que a responsa- bilidade pelo IPTU é do locador. É possível, no entanto, contratualmente, atribuir (com eficácia perante as partes) tal responsabilidade ao loca- tário (inquilino). Isso porque se trata de regra jurídica dispositiva, isto é, norma que aceita que as partes convencionem de modo diferente da previsão legal. As normas dispositivas, não cogentes, dividem-se em: a) dispositivas; e b) interpretativas. Marcos Bernardes de Mello, no mesmo sentido, esclarece: “As normas não cogen- tes, ou (a) se destinam a suprir a falta de mani- festação de vontade negocial naquelas áreas em que é livre a estruturação das relações jurídicas, podendo as pessoas estabelecer a regulamentação que melhor atenda a seus interesses, ou (b) têm por finalidade definir o sentido em que devem

ser tomadas as manifestações de vontade, quando duvidoso o seu conteúdo. As primeiras são cha- madas dispositivas e as segundas, interpretativas (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência. São Paulo: Saraiva:

2014, p. 122/123).

Já as normas cogentes são aquelas que não toleram tal disposição em contrário das partes (lembremos que a formação do negócio jurídi- co – e a definição do respectivo conteúdo – só é possível dentro dos limites legais. A respeito de muitas relações não é possível que negociemos).

As normas cogentes, nesse sentido, incidem queiram ou não as partes atingidas, e incidem ainda que haja previsão contratual em contrário (o que acontece, por exemplo, com as normas de proteção ao trabalhador). As regras cogentes dividem-se em: a) impositivas (impõem um fazer); b) proibitivas (proíbem algo). O Código do Consumidor, por exemplo, é formado por normas cogentes. O art. 1º do CDC estabelece: “O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e inte- resse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”. Normas de ordem pública e interesse social são normas cogentes.

Normas inderrogáveis pela vontade das partes.

De pouco ou nada valeria a proteção, legisla- tiva, da parte mais fraca de uma relação jurídi- ca (consumidor em relação ao fornecedor, por exemplo), se uma cláusula contratual pudesse afastar essa proteção. Bastaria que o consumidor, por intermédio de um contrato de adesão prepa- rado previamente pelo fornecedor, “renunciasse”

a essa proteção, e toda sistemática de defesa do consumidor ruiria, se desmoronaria. Para que isso não ocorra existe o mecanismo técnico das normas cogentes, que existem não só no direi- to público (direito penal, por exemplo), mas também, e de modo cada vez mais acentuado, no direito privado. Pontes de Miranda, com a antevisão que o distingue, resumiu: “O direito privado é cheio de regras jurídicas cogentes”.

Cabe, para efeito de sistematização, retomar brevemente alguns pontos já desenvolvidos.

Hoje, ao lado das regras jurídicas, trabalhamos progressivamente com os princípios. Trata-se de espécie normativa que, sem desconhecer a relevância (já muito tradicional) das regras jurí- dicas, constata que as sociedades velozes e plurais

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do nosso século precisam também de normas abertas, normas mais flexíveis e de conteúdo relativamente indeterminado. Lembremos que os princípios têm estrutura normativa aber- ta, flexível. Os princípios constitucionais não são vistos como enunciados apenas políticos, mas fundamentalmente jurídicos, vinculantes (confira-se, como uma das primeiras análises acerca das funções dos princípios no direito privado: ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho pri- vado. Trad. Eduardo Valenti Fiol. Barcelona:

Bosch, 1961). São, ainda, explícitos (dignidade da pessoa humana) ou implícitos (princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, que não têm consagração explícita na Constituição, ou prin- cípio da afetividade, por exemplo). Lembremos, também, que não há hierarquia entre princípios (é a posição da Corte Constitucional Alemã, que só excepciona – colocando-o acima dos outros – o princípio da dignidade da pessoa humana). Os conflitos entre eles resolvem-se pela ponderação ou pelo sopesamento.

É uma técnica que traz, entre outros, três postulados básicos: a) só tem sentido diante de casos concretos, nunca de modo abstrato e apriorístico; b) a solução dada em determinado caso concreto (prevalência, digamos, em deter- minado caso, da privacidade e da intimidade em relação à liberdade de expressão) não será necessariamente a mesma em outro caso com contextos distintos; c) o intérprete, para chegar a uma solução, poderá fazer concessões recíprocas, procurando ponderar os interesses envolvidos.

Por isso é que há autores alemães que dizem que o Estado Constitucional de Direito é um Estado de Ponderação (Abwägungsstaat).

As muitas dimensões atuais do direito civil são revitalizadas pelo farto uso dos princípios e cláusulas gerais. O direito privado, nessa pers- pectiva, sofre uma mutação funcional, aceitando que seus conceitos, categorias e institutos sejam redefinidos à luz da solidariedade social (e da função social, dignidade, boa-fé etc.). Há, tam- bém, uma revalorização da equidade, no sentido aristotélico de justiça do caso concreto. Uma consequência até certo ponto óbvia dessas mu- danças é a seguinte: quanto mais a ordem jurídica se vale de normas abertas, maior é o campo de atuação do intérprete. Porém, se sua liberdade de movimentação é maior ao lidar com princípios e

cláusulas gerais, maiores também serão, propor- cionalmente, seus deveres de argumentação, que se mostram mais rigorosos à medida a norma se evidencia mais aberta.

O sistema jurídico cada vez mais é enxerga- do, no século XXI, como um sistema aberto de princípios normativos.

Os novos padrões de conduta, na esfera civil, são iluminados por valores, tais como a dignidade da pessoa humana, justiça social, igualdade substancial, solidariedade, entre ou- tros. Não existe mais uma rígida tipologia de condutas possíveis e condutas vedadas. Não, pelo menos, na órbita civil. As ações permitidas e as ações repudiadas são definidas em razão dos condicionamentos históricos, recebendo substancial influência de outros setores sociais, que penetram no sistema jurídico através dos princípios, que por sua vez carecem de concre- tização mediadora. Francisco Amaral notou que

“sob o ponto de vista axiológico, a segurança jurídica perde terreno para os valores do bem comum e da justiça social. O pensamento ju- rídico passa a orientar-se mais em função dos valores do que dos interesses, recorrendo cada vez mais às cláusulas gerais e aos princípios jurídicos, categorias que não permitem maior rigor no trabalho lógico-dedutivo, ou raciocínio de subsunção, o que leva a falar-se atualmente em ‘perdas de certeza’ no pensamento jurídico”

(AMARAL, Francisco. Racionalidade e Sistema no Direito Civil Brasileiro. Revista de Direito Civil. São Paulo, n. 63, 1993, pp. 44/56).

Vejamos agora os planos do mundo jurídi- co. A percepção de que o mundo jurídico está estruturado em planos deve-se a Pontes de Mi- randa. O mundo jurídico, nesse sentido, não é unidimensional, são vários os planos que, dentro dele, os fatos jurídicos podem (dinamicamente) estar existindo apenas, existindo com validade, ou existindo com (validade) e eficácia.

Cabe agora verificar, separadamente, com exemplos, cada um dos planos pelos quais os fatos jurídicos podem passar. No plano da existência ingressam todos os fatos jurídicos, lícitos ou ilícitos, resultantes, ou não, da vontade humana.

Qualquer fato jurídico, para produzir efeitos, deve existir, que é o mesmo de estar no plano da existência, que é abstração do pensamento huma- no. Para ingressar basta que a regra jurídica tenha incidido sobre seu suporte fático suficiente. É

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preciso analisar o suporte fático da regra jurídica para definir aquilo que é essencial à existência do fato jurídico. Nos negócios jurídicos, por exem- plo, existem elementos estruturais, essenciais (essentialia negotii): a declaração de vontade, a coisa e o preço. Sem isso, não há negócio.

No plano da validade apenas ingressam os atos humanos voluntários. Apenas em relação a eles é que tem sentido indagar se são válidos ou inválidos. Duas categorias, portanto, passam pelo plano da validade: o ato jurídico stricto sensu (CC, art. 185) e o negócio jurídico (CC, art. 104). Os negócios jurídicos nulos (CC, art. 166) e negócios jurídicos anuláveis (CC, 171) existem, porém são inválidos. Assim, se alguém, absolutamente incapaz por idade (CC, art. 3º), vende a fazenda de que é proprietário sem que tenha havido a devida representação, trata-se de negócio jurídico nulo (CC, art. 166, I). Se alguém é dolosamente enganado e, com isso, compra um carro que não compraria se não tivesse havido o erro (provoca- do pela malícia de outrem), o negócio é anulável (CC, art. 145). Nos dois casos, os negócios jurí- dicos são existentes, porém inválidos.

No plano da eficácia é que são produzidos os efeitos jurídicos. Tanto os fatos jurídicos lícitos como os fatos jurídicos ilícitos os produzem. É no plano da eficácia que estão as relações jurídicas e, dentro delas, os direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e situações passivas de acio- nado. As relações jurídicas são sempre entre sujeitos de direito. Não há relação jurídica entre uma pessoa e uma coisa. Digamos que determi- nada empresa (Google, Microsoft) resolve doar expressivo valor financeiro para uma faculdade privada, com a condição de que seus alunos resolvam determinado problema operacional surgido num dos programas produzidos pela empresa. Ou, de modo mais simples e prosaico, um professor universitário de direito civil doa sua biblioteca para Beatriz, sua aluna, desde que ela atinja a nota máxima em sua disciplina ao final do semestre. Temos, aí, nos dois casos, o modelo conceitual da condição (CC, art. 121:

“Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto”). As condições operam no plano da eficácia, o nascimento dos direitos, na hipótese, fica condicionado ao implemento da condição (na condição suspensiva, mais especificamente,

como adiante estudaremos. Aliás, podemos con- ceituar a condição suspensiva como a condição que impede que o negócio jurídico produza efei- tos até a ocorrência do evento futuro e incerto).

O negócio jurídico, no caso, já existe, mas sua eficácia é que está pendente.

Todos os fatos jurídicos passam pelos três planos do mundo jurídico? Não. Há fatos jurí- dicos, por exemplo, que não passam pelo plano da validade. Imaginemos que alguém, dirigindo negligentemente seu carro, colida com o carro de outra pessoa, causando-lhe danos (CC, art. 186).

Esse ato ilícito (civil) produzirá os efeitos previs- tos nas normas (dever de indenizar pelos danos materiais e, se for o caso, estéticos e morais). O fato jurídico que provoca esse dever de inde- nizar passa pelo plano da existência (resultado da incidência da norma jurídica do art. 186 do Código Civil sobre seu suporte fático suficiente) e vai direto ao plano da eficácia, dando vida aos direitos e deveres correspondentes. Não passa, portanto, pelo plano da validade. O mesmo se diga do nascimento, por exemplo. Não faz sen- tido, obviamente, considerar um nascimento válido ou inválido. Só passam pelo plano da validade os atos jurídicos nos quais a vontade é elemento relevante (atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos).

Para que um fato jurídico exista, ele deve entrar no mundo jurídico. Como isso ocor- re? Com a incidência de uma norma jurídica vigente sobre seu suporte fático suficiente. A norma incide – infalivelmente, segundo Pontes de Miranda – quando os fatos que ela prevê de modo abstrato em seu suporte fático acontecem no mundo social. Alguém, digamos, completa 18 anos. A norma do Código Civil incide fazendo a pessoa plenamente capaz para os atos da vida civil. Não tem, porém, o mundo jurídico um só plano ou dimensão. Na perspectiva que estamos tratando, são três os planos jurídicos, como já vimos: existência, validade e eficácia.

Marcos Bernardes de Mello já expôs as dis- tintas situações pelas quais pode passar um fato jurídico. Sigamos o mesmo esquema conceitual, só que com outros exemplos: a) o ato pode existir, ser válido e eficaz (compra e venda de aparta- mento, por pessoas maiores e capazes, com a observância das formalidades legais); b) existir, ser válido, mas ineficaz (negócio jurídico com condição suspensiva – CC, art. 125); c) existir,

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ser inválido mas eficaz (negócio jurídico anulável antes da decretação da anulabilidade – Código Civil, art. 151 c/c 177. Alguém, digamos, doa um bem porque foi moralmente coagido); d) existir, ser inválido e ineficaz (um menor, 13 anos, ven- de um cavalo de sua propriedade para outrem – Código Civil, art. 166, I c/c 169 –, ou mesmo o contrato feito entre determinado jornal e um político corrupto para que o jornal não publique notícias desfavoráveis a ele; e) existir e ser eficaz (alguém, por exemplo, bêbado, atropela uma família ou colide com outro carro). Lembremos, em relação ao último exemplo, que os atos ilícitos (que são atos jurídicos) não passam pelo plano da validade. Apenas os atos jurídicos lícitos é que precisam passar pelo teste do plano da validade (verificar se são nulos ou anuláveis). Se, porém, são reprovados nesse teste, podemos considerá- -los (também) ilícitos, porque o ser inválido é uma das formas de ilicitude civil (Cf. PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. T.

II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 202; MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico:

plano da existência. São Paulo: Saraiva, 1991, p.

199; LÔBO, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo:

Saraiva, 1991, p. 158; EHRHARDT JR, Marcos.

Direito Civil. v. 1. Salvador: Juspodivm, 2009, p.

384; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 132).

O STJ em certa ocasião destacou: “A controvérsia instaurada remete aos sempre atuais ensinamen- tos de Pontes de Miranda, consistentes nos planos do negócio jurídico. No plano da existência, estão os pressupostos do negócio jurídico, ou seja, os seus elementos mínimos ou essenciais.

Circunscreve-se, portanto, ao suporte fático do negócio, referindo-se apenas a substantivos, sem nenhuma qualificação (adjetivos), a saber: partes (ou agentes), declaração de vontade, objeto e forma. Dentro do plano da validade, surgem os requisitos do negócio jurídico, nos quais os subs- tantivos acima recebem qualificações (adjetivos), passando a ter as seguintes denominações: partes ou agentes capazes, vontade livre e sem vícios; ob- jeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei” (STJ, REsp 1.190.372, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª T, DJe 27/10/2015). Cabe apenas esclarecer que os planos do mundo jurídico não se referem apenas ao negócio jurídico, mas a qualquer fato jurídico, tendo dimensão mais ampla.

A eficácia é essencial ao conceito de fato ju- rídico? A resposta negativa se impõe. Não seria cientificamente correto definir algo pelo seu efeito. Marcos Bernardes de Mello denomina-as definições funcionais, criticando as definições, por exemplo, de Savigny (a primeira que se tem notícia), de Santoro Passarelli e, também, a de Windscheid. Pontes, porém, esclarece que “fato jurídico é o que fica do suporte fático suficiente quando a regra jurídica incide e porque incide.

Tal precisão é indispensável ao conceito de fato jurídico”. Os direitos e deveres – que se produzem no plano da eficácia jurídica – resultam sempre de fatos jurídicos, mas isso não significa que não existam fatos jurídicos que, por uma razão qualquer, estejam desprovidos de eficácia. Um negócio jurídico nulo, por exemplo, é um ato jurídico (espécie de fato jurídico) existente, mas ineficaz, pelo menos em regra. A ineficácia dele decorre de sua invalidade. O inválido é um gê- nero com duas espécies: nulo e anulável. O plano da validade serve para verificar a compatibilidade dos atos jurídicos existentes com o sistema jurí- dico e, em regra, verificada a incompatibilidade, nega-se efeito jurídico (ou alguns deles). O plano da validade é uma espécie de rede de segurança da ordem jurídica.

Cabe agora distinguir os conceitos de eficácia e efetividade. Os conceitos de eficácia e efetivida- de são relevantes e, na mesma medida em que são relevantes, são frequentemente confundidos na prática e mesmo na exposição teórica. Há autores que usam eficácia e efetividade no mesmo senti- do. Não nos parece a melhor solução. Eficácia é conceito do mundo jurídico. É aquilo que o fato jurídico produz – como, por exemplo, direitos e deveres subjetivos – depois de receber a incidên- cia da norma jurídica. Se Fernando matricula-se numa universidade particular, realiza o pagamen- to e todos os demais procedimentos necessários para estudar, mas, mesmo assim, é barrado na catraca eletrônica na primeira semana de aula, podemos dizer que ele tem direito subjetivo (eficácia jurídica) de assistir às aulas. Mas, no plano da realidade social, isso não está aconte- cendo (não está havendo efetividade). Quando há efetividade, há atendimento social à norma. Não importa se voluntário ou provocado. Dizendo de modo mais técnico: quando há efetividade, a eficácia jurídica, que se produziu no mundo jurí- dico foi transplantada para o mundo da realidade social. É isso que o direito objetivo sempre deseja:

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PARTE ESPECIAL

LIVRO I

DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

TÍTULO I

DAS MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES

Capítulo I

DAS OBRIGAÇÕES DE DAR

Seção I

Das Obrigações de Dar Coisa Certa

Art. 233. A obrigação de dar coisa certa abrange os acessórios dela embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso.

A Relação obrigacional não é um conceito neutro, nem tampouco imutável. Trata-se de um modelo redefinido ao longo da história.

Podemos definir três grandes abalos sísmicos neste conceito. O primeiro, provém do direito romano, mais especificamente das Institutas de Justiniano, em que a obrigação é forjada como vínculo jurídico estático entre credor e deve- dor, contrapondo o direito subjetivo de um à obrigação do outro. Vale dizer, prevalecia uma análise externa do fenômeno, uma perspectiva atomística, na qual a obrigação era fracionada em seus três elementos: sujeitos, objeto e o vínculo entre o dever de prestar e o de exigir a prestação. O conceito de vínculo, impunha uma pessoalidade na obrigação que facultava sanções corporais ao inadimplemento: pela privação da vida (ou castigos físicos) ou da

liberdade pessoal, pela escravização ou prisão do devedor.

O segundo capítulo da longa trajetória da relação obrigacional se localiza na Pandectistica germânica e encontra o seu ápice na superação das doutrinas pessoalistas e realistas, a partir da concepção e Savigny da passagem da ideia de vinculo obrigacional para relação obrigacional, ou seja, uma relação entre sujeitos de direito. A partir de então Brinz e Von Gierke introduzem a doutrina dualista, mediante a decomposição da obrigação em dois momentos sucessivos: o schuld (débito), isto é, a dívida vista de forma autônoma, causa da relação obrigacional. Esta prestação de dar, fazer ou não fazer pode ter como fonte um negócio jurídico, um dano, um enriquecimento sem causa ou mesmo um dever legal. O segundo elemento é o Haftung, ou seja, a responsabilidade.

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Art. 233

Com o descumprimento espontâneo do dever de prestar, surge a submissão ao poder de inter- venção do credor. A responsabilidade se verifica independentemente da vontade do devedor, que se sujeita à agressão patrimonial. O conceito de haftung foi edificado com sustentáculo na noção de anspruch, de Windscheid, como pretensão, exigibilidade de obtenção coercitiva pelo aparato estatal do acesso aos bens do devedor, que servem como Garantia geral de débitos e cuja efetividade se consuma por técnicas processuais, como arres- to, sequestro e penhora. Eventualmente surgem as garantias especiais que reforçam a segurança da obrigação. Consistem em garantias reais – mediante a prévia afetação de bens específicos do devedor ou de terceiros ao pagamento do débito (v.g. hipoteca com eficácia de sequela e preferência sobre outros débitos), ou garantias pessoais, pelas quais terceiros asseguram a obri- gação alheia com o seu patrimônio genérico, de forma acessória e subsidiária, gerando uma responsabilidade patrimonial secundária (v.g.

fiança), com a vantagem da redução de custos de transação e ampliação do acesso ao crédito. A partição entre débito e responsabilidade coexiste com hipóteses de obrigações imperfeitas, onde há débito sem responsabilidade, tal e qual nos jogos e apostas tolerados, cuja ausência de utilidade social afasta a coercibilidade dos débitos, todavia, tornando-se irrepetíveis em caso de pagamento espontâneo (soluti retentio).

O grande mérito da doutrina dualista é o de forjar o conceito de Responsabilidade como im- putação. Não se indaga mais quem realizou o ato no mundo dos fatos – ou seja quem é o devedor originário -, mas a quem se atribuí a responsa- bilidade frente a outras pessoas no mundo do direito, ultrapassando-se assim a camisa de força da responsabilidade pessoal do devedor, pela res- ponsabilidade patrimonial. Mesmo na hipótese de prisão por débito alimentar (LVII,5.CF) não há resíduo de pessoalidade da sanção, tratando-se de técnica processual executiva, como forma de coerção ao pagamento e não de uma pena pro- priamente dita. Tanto que a satisfação do débito extingue a medida restritiva e o cumprimento da medida de exceção em sua totalidade não exclui o pagamento do débito. A personalização do direito obrigacional também impacta na funcionalidade do patrimônio: antes tido como uma universali- dade de bens direcionada à satisfação de credo-

res, entende-se atualmente que uma parte deste patrimônio é vocacionada à tutela da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, imunizada de execuções. Os bens mínimos existenciais (Lei n. 8.009/90 e art. 1.711, CC) afastam a exegese restrita dos artigos 789 do CPC e 391 do CC, posto afetados à proteção de um núcleo duro de necessidades humanas, inafastáveis por débitos ordinários. Todavia, a ponderação com o direito fundamental ao crédito, impõe uma flexibiliza- ção do patrimônio mínimo diante de situações creditícias igualmente tidas como prioritárias no ordenamento jurídico. Daí a necessidade de um repensar em algumas impenhorabilidades, como a da imunização total do bem de família independentemente de qualquer valor

O fato é que a teoria dualista aperfeiçoou o conceito de relação obrigacional, porém manteve o atomismo dos dois polos: crédito e débito, ana- lisados externamente e por um viés estático. Em contrapartida, na Alemanha do século XX, com o protagonismo de Karl Larenz se inicia um tercei- ro capítulo na trajetória da concepção da Obriga- ção, agora como organismo: uma totalidade con- creta (conceito apropriado da física quântica). Tal como um ser humano, o ordenamento jurídico é algo vivo e cada relação obrigacional deve ser afe- rida em sua especialidade e concretude, surgindo o conceito de “obrigação complexa”, ou seja, não mais o fato jurídico obrigacional decomposto em direito e dever, porém um conjunto dinâmico de posições jurídicas que incluem sujeições, direitos formativos, pretensões, exceções e ônus. Esta fila de situações subjetivas não compõe uma soma, mas um “todo”, uma ordem de cooperação, com um elemento finalístico: o adimplemento.

No Código Civil, o estudo do direito das obrigações sucede à parte geral e antecede os demais ramos especializados do direito privado:

direito das coisas, direito de família e direito das sucessões. O Livro de Direito das Obrigações engloba as modalidades de obrigações (Título I), a transmissão das obrigações (Título II), o adim- plemento das obrigações (Título III) e o inadim- plemento das obrigações (Título IV). Trata-se de uma teoria geral das obrigações, com perímetro nos arts. 233 e 420 do Código Civil. Segue uma espécie de parte especial das obrigações, na qual se insere prefacialmente o exame dos contratos (Títulos V e VI), dos atos unilaterais (Título VII), dos títulos de crédito (Título VIII), da responsa-

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Art. 233

bilidade civil (Título IX) e por fim as preferências e os privilégios creditórios (Título X).

Tamanha abrangência conduz João Calvão da Silva a designar o direito das obrigações como o direito da dinâmica patrimonial, na medida em que disciplina o tráfico econômico, a circulação dos bens entre as pessoas e a sua colaboração ou cooperação mediante comportamentos (Silva, João Calvão da. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, p. 22-23). As obrigações desempe- nham, assim, uma função econômica e social de enorme relevância prática, tanto mais reconhe- cida e salientada quanto as relações jurídicas privadas que se estabelecem dia a dia são, em sua maior parte, relações obrigacionais. Ensina Fernando Noronha (Direito das obrigações. v. 1, São Paulo, Saraiva, p. 8) que “o direito das obri- gações disciplina essencialmente três coisas: as relações de intercâmbio de bens entre as pessoas e de prestação de serviços (obrigações negociais), a reparação de danos que umas pessoas causem a outras (responsabilidade civil geral, ou em sentido estrito) e, no caso de benefícios indevi- damente auferidos com o aproveitamento de bens ou direitos de outras pessoas, a sua devolução ao respectivo titular (enriquecimento sem causa)”.

A partir do momento em que se domina o conceito das obrigações, é possível perquirir os outros setores especializados do direito civil.

Veja-se: ao se estudar os direitos reais, observa--se que, antes do registro de aquisição derivada de bens imóveis e da tradição de bens móveis, há uma relação obrigacional causal que, poste- riormente, é tipificada em uma das hipóteses do art.

1.228 do Código Civil. O direito de família patrimonial (arts. 1.639 a 1.783-A do CC), que abarca, dentre outros modelos jurídicos, os ali- mentos e os regimes de bens, baseia-se em rela- ções obrigacionais localizadas em uma entidade familiar, sem olvidar a própria natureza negocial do matrimônio, impondo obrigações aos cônju-ges.

Por igual, o direito sucessório desencadeia a transmissão de um patrimônio aos sucessores, composto de bens, direitos e relações obrigacio-nais (art. 1.784 do CC). O próprio testamento, como negócio jurídico unilateral e gratuito, é fonte produtora de obrigações com eficácia post mortem, patrimoniais e extrapatrimoniais. Nesta senda, em 2021, o STJ decidiu que (Informativo nº 706) a declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana

é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embri- ões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deve ser efetivada por testamento ou por documento análogo. Nos casos em que a expressão da autodeterminação significar a projeção de efeitos para além da vida do sujeito de direito, com repercussões existenciais e pa- trimoniais, imprescindível que sua manifestação se dê de maneira inequívoca, leia-se expressa e formal, efetivando-se por meio de instrumentos jurídicos apropriadamente arquitetados pelo ordenamento, sob de pena de ser afrontada. No rumo desse raciocínio, ganha espaço o instituto do testamento, que tem como marca distintiva a declaração de vontade, expressão indiscutível da autonomia pessoal, e, nada obstante escape ao tradicional, a simples análise do seu conceito é o bastante para revelar que seu objeto não se res- tringe a disposição de patrimônio pelo testador (REsp 1.918.421-SP, Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, 4.T, DJe 26/08/2021).

Inegavelmente, o Adimplemento é o fato jurí- dico para o qual a obrigação é imantada e atra-ída, desde a sua gênese. O elemento finalístico do cumprimento da obrigação se apoia em três justificativas: a) propicia a satisfação do interes-se objetivo do credor, pois ele obtém o resultado da prestação, qual seja, a utilidade proporciona-da pelo bem ou pelo comportamento; b) a seu turno, com o adimplemento o devedor recupera a liberdade que cedeu temporariamente ao tempo em que se vinculou. Afirma-se assim a natureza transitória do vínculo: a obrigação nasce para ser cumprida; c) por fim, mas não menos importante, com o adimplemento ocorre a extinção da relação obrigacional pelo modo inicialmente planejado, conforme o programa prestacional. Enfim, há a satisfação total dos Interesse envolvidos na relação.

De fato, o dinamismo da relação Obrigacional é capturado pela própria cartografia do direito das obrigações no Código Civil de 2002. No Tít. I (233/85), que trata das modalidades de obri- gações, vê-se o seu momento constitutivo, com regras sobre os sujeitos, objeto e a formatação da relação; no Título II, que se encontra nos artigos 286 a 303 do Código Civil, o legislador cuida da fase sucessiva da transmissão das obrigações.

Esta é a etapa das vicissitudes do fenômeno obrigacional com as suas naturais transformações

Referências

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