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A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

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VIVIEN RACY

A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CÓDIGO

CIVIL DE 2002

MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

VIVIEN RACY

A CLÁUSULA GERAL DA BOA-FÉ OBJETIVA NO CÓDIGO

CIVIL DE 2002

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Civil, sob a orientação da Profa. Dra. Regina Vera Villas Bôas.

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, pelo amor, apoio e incentivo em todos os momentos e ao meu irmão caçula, de quem me orgulho muito.

Agradeço aos meus avós Joaquim e Iara, in memorian e Thomás e Terezinha por todo

o carinho, perto ou longe. Aos meus tios, tias e primos, com quem o convívio torna a vida mais divertida, principalmente ao pequeno Leo, que veio colorir ainda mais nossa família.

Agradeço profundamente a todos os meus amigos, mas em especial à Ana Paula, Ariadne, Augusto, Bruno, Cibelle, Isabela, Manuela, Maria Teresa e Maurício. Somente o tempo mostra quem são os verdadeiros amigos. Fico feliz se puder fazer a vocês pelo menos um pouco do bem que fazem a mim.

Agradeço aos meus companheiros de trabalho do escritório Lazzarini Moretti pela compreensão de minha ausência na reta final deste trabalho. Em especial à Renata, amiga querida e agora colega de todos os dias, por quem tenho grande admiração.

Não poderia deixar de agradecer à minha queridíssima orientadora, Profa. Dra. Regina Vera Villas Bôas, que em sua imensa generosidade me acolheu e me nutriu com seus ensinamentos de dignidade, honestidade e preocupação com o próximo. Aos demais professores com quem tive a honra de aprender nesta jornada, especialmente Prof. Giovanni Ettore Nanni. Foram as suas aulas, na primeira disciplina cursada que deram base a esta Dissertação.

Agradeço a todos aqueles que de alguma forma contribuíram durante este longo caminho. Alguns antes outros durante, mas sempre presentes em pensamento e no coração.

Por fim, agradeço àquele que de certa forma, me levou a fazer tudo isto, cuja determinação sempre me inspirou e me deu forças para seguir adiante. Quem teve a paciência de lidar com minha ansiedade e sempre esteve ao meu lado, nos momentos mais difíceis, pois são nestes que reconhecemos o verdadeiro amor. Fernando, obrigada por tudo, sempre.

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Este estudo foi realizado partindo da necessidade de definição do princípio da boa-fé objetiva quando introduzido no ordenamento jurídico positivo do Direito Civil brasileiro. Buscou-se conciliar a figura do princípio com a da cláusula geral a fim de dotar o instituto de eficácia prática e direta no âmbito contratual. Destacam-se, neste sentido, os fundamentos ético-jurídicos da boa-fé objetiva e o princípio da confiança no qual se baseia toda e qualquer aplicação da cláusula geral da boa-fé. Assim, diante da evolução histórica da codificação e da interpretação dos contratos, foi possível transitar pelo sistema jurídico no qual se insere a boa-fé objetiva, compreendê-la de acordo com o respectivo sistema e com os demais princípios que a rodeiam e, por fim, apontar suas principais características e formas de manifestação sob diferentes ângulos. Concluiu-se, após a análise da literatura pertinente e necessária reflexão, que o tema conforme desenvolvido auxiliará a compreensão da cláusula geral da boa-fé objetiva, suas implicações e consequências para a atividade negocial.

Palavras-Chave: boa-fé; cláusula geral; contratos; codificação.

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This study was accomplished from the need of definition of the objective good faith principle when introduced in the positive legal order of Brazilian Civil Law. It sought to reconcile the figure of principles with the general clauses in order to endow the institute of direct and practical effectiveness under contracts. Highlighted in this sense the ethical-legal foundation of good faith and the principle of trust in which is based any and all applications of the general clause of good faith. This way, in face of historical evolution of codification and interpretation of contracts it was possible to transit through the legal system in which is the good faith and understands it according to this system and to others principles that surround the good faith and finally to point its major features and forms of manifestation under different angles. The conclusion after the analysis of relevant literature and necessary reflection was that the theme as developed will help the comprehension of the general clause of good faith, its implications and consequences for the negotiating activities.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...10

2A CODIFICAÇÃO E O CÓDIGO CIVIL...11

2.1 Breve comentário sobre Codificação...11

2.2 A Constitucionalização do Direito Privado...14

2.3 Principiologia do Código Civil de 2002...19

2.3.1 Os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade...21

2.4 Acepção axiológica do Direito e o fundamento ético das cláusulas gerais no Código Civil de 2002...24

3 CLÁUSULAS GERAIS E SISTEMAS JURÍDICOS...31

3.1 Um conceito de sistema...32

3.2 O sistema aberto...35

3.3 As cláusulas gerais no sistema aberto...37

4 PRINCÍPIOS, CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS E CLÁUSULAS GERAIS...44

4.1 Princípios contratuais...49

4.1.1 O princípio da autonomia privada...50

4.1.2 O princípio da função social...53

4.1.3 O princípio da solidariedade...55

4.1.4 O princípio da igualdade substancial...56

4.1.5 O princípio da boa-fé objetiva...59

4.2 A Funcionalização dos direitos...63

5 A BOA-FÉ...64

5.1 Boa-fé e o princípio da confiança...65

5.2 Boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva...69

5.3 Funções da cláusula geral da boa-fé objetiva...70

5.3.1 Flexibilização do princípio pacta sunt servanda...71

5.3.2 Venire contra factum próprio, tu quoque, supressio e surrectio...74

5.3.3 Deveres laterais de conduta...80

5.4 Boa-fé objetiva e abuso do direito...82

5.4.1 Abuso do direito e exceção de contrato não cumprido...83

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6 CONTRATOS E A OBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ OBJETIVA NO ART. 113 DO CÓDIGO CIVIL...85

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1 INTRODUÇÃO

O princípio da boa-fé objetiva, no que diz respeito especificamente ao Direito Civil, foi introduzido no ordenamento jurídico positivo brasileiro pelo Código Civil de 2002, principalmente por meio dos artigos 113, 187 e 422. Esta inovação é resultado da evolução do Direito Civil sob a influência dos princípios e normas constitucionais, o que, segundo alguns estudiosos, culminou na constitucionalização do direito privado, com enfoque nos direitos fundamentais e principalmente no valor dignidade humana.

Não se ignora, contudo, a previsão do instituto no art. 131, 1, do revogado Código Comercial e nos arts. 4º, III e 51, IV do Código de Defesa do Consumidor. Sua relevância será indicada em momento oportuno.

Para que seja possível trabalhar com este tema, será necessário analisar uma série de fatores, iniciando-se pela situação da codificação na atualidade, bem como pela posição ocupada pelo Novo Código Civil de 2002 no ordenamento jurídico brasileiro e pelos princípios que inspiraram sua elaboração, justificadores da positivação da boa-fé objetiva no referido diploma.

Observados sistema e código que resguardam a boa-fé objetiva, deve-se atentar para a transformação do princípio em cláusula geral, por meio da qual se compreende sua positivação, o que demanda o estudo das figuras do princípio, da cláusula geral e dos conceitos jurídicos indeterminados, a fim de que sejam distinguidos.

Em um segundo momento, indaga-se qual a relação da boa-fé com o sistema jurídico que a abriga e de que forma se realiza a abertura deste sistema, configurando-se a cláusula geral como instrumento importante deste contexto.

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Por fim, conforme já se disse, enquadra-se a boa-fé objetiva como cláusula geral, capaz de promover o equilíbrio entre a garantia da aplicação dos direitos fundamentais do homem, respeitando-se os fundamentos ético-jurídicos do ordenamento e a realização plena dos contratos, dedicando-se um capítulo às formas de sua aplicação de acordo com a orientação dos arts. 113, 187 e 422 do Código Civil.

Importante ressaltar neste tópico a especial relação entre a boa-fé e o princípio da confiança, qual seja, a base para o surgimento e, ao mesmo tempo, o instrumento de avaliação da origem da crença no comportamento alheio.

O princípio da boa-fé objetiva, portanto, positivado no Código Civil de 2002, sob os auspícios de seu coordenador Miguel Reale na forma de cláusula geral, em conjunto com os demais princípios protetores de diversos aspectos que garantem ao ser humano existência digna e realização plena da autonomia privada, exerce influência sobre as partes atuantes em contratos, que deve ser verificada atentamente, a fim de que seja oferecida maior segurança àqueles que ingressam em acordos, no sentido de poderem confiar no cumprimento das obrigações assumidas, ou, pelo menos, de que serão suas expectativas respeitadas, criando-se responsabilidades para os infratores.

2. CODIFICAÇÃO E O NOVO CÓDIGO CIVIL

2.1 Breve comentário sobre Codificação

A palavra código deriva do termo latino codex ou caudex, ambos no sentido de tronco

de árvore. Para os antigos, significava o conjunto de tábuas de lenha enceradas e reunidas, utilizadas como material para escrita.

A idéia foi transferida das tábuas de madeira para o papiro e desde o século IV o termo

codex passou a representar um livro, ou seja, folhas encadernadas como nos livros modernos e

não com madeira. Até então, não havia ligação dos codex com o Direito e somente com o

Codex Theodosiano (438 d. C) é que esta conexão foi feita, como uma compilação oficial de

(12)

Na modernidade, o código se apresenta não apenas como um conjunto de normas, mas como um conjunto sistemático, ordenado e criado em função das necessidades políticas e sociais de determinado momento.

A primeira expressão deste sistema ocorreu no Direito Francês, por intermédio do Código Civil de 1804, que de acordo com Fábio Siebeneichler de Andrade

É corrente considerar a codificação, e de forma especial a codificação francesa, um momento chave da história jurídica, porquanto ela representa o fim do período de pluralidade de ordenamentos na esfera estatal. As fontes são contidas dentro de uma visão estatualista, o que antes não sucedia. O Direito passa a ser visto como um produto do Estado e identificado com a lei.1

O Código Napoleônico despertou a atenção dos alemães para a necessidade de um Código Civil único para a Alemanha. Savigny e Thibaut travaram um duelo, respectivamente, contra e a favor de um Código Germânico. Ganhou o segundo e em 1900, entrou em vigor o Código Civil Alemão, vigente até os dias de hoje.

Mesmo vencido, Savigny fez uso da escola pandectística e buscou um sistema de conceitos precisos para o compêndio a ser realizado. Sendo assim, o BGB (Bürgerliches

Gesetzbuch) foi elaborado exaustivamente com vistas à sistemática perfeita, dividindo-se em

uma parte geral e outra especial, esta dotada de quatro livros, novidade em relação ao Código Civil Francês.

Apesar do rigor de linguagem e conceitos, no BGB foram inseridas cláusulas gerais como as da boa-fé e dos bons costumes, sem as quais não teria sido possível sua resistência ao tempo. Isto decorreu do espírito do Código, de liberalismo econômico e destinado a pessoas empreendedoras. Era um Código aberto a mudanças, maleável em comparação ao Diploma francês e por isso sofreu muitas críticas.

No Brasil, o Código Civil de relatoria de Clóvis Beviláqua também foi dividido em parte geral e parte especial, mas mostrou-se incapaz de tratar dos problemas sociais que o

1 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Da codificação: Crônica de um conceito. Porto Alegre:

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Direito brasileiro passou a enfrentar depois de 1916, principalmente devido à transformação e evolução de uma sociedade predominantemente agrícola à época de sua elaboração.

Por causa desta incapacidade de lidar com as questões que foram surgindo, com o passar do tempo, a codificação entrou em crise. O aparecimento de inúmeros microssistemas gerou a discussão sobre a necessidade ou não de um Código Civil como diploma único. Nas palavras de Paolo Grossi:

A transformação de ontem era extremamente lenta e podia prestar-se, também, a ser ordenada em categorias não elásticas, enquanto hoje a mesma rapidez frequentemente obriga o legislador a uma atividade febril, modificando o conteúdo de uma norma logo após tê-la produzido.2

A proliferação de pequenos focos legislativos, no entanto, resultou da rapidez das mudanças sociais e também não solucionou a questão do enquadramento dos fatos às normas. Neste momento, tornou-se necessária a criação de um Código como grande moldura central, em contraposição ao discurso da descodificação.

José Levi Mello do Amaral Júnior bem definiu este momento e a necessidade de renovação da codificação:

(...) não há mais espaço para codificações legislativas com a pretensão de – em um todo normativo pleno em si mesmo – prever e solucionar todas as situações e conflitos possíveis na sociedade, seja no presente, seja no futuro. É neste contexto que ganham espaço as chamadas “cláusulas gerais”, espécie normativa apta a oxigenar o paradigma oitocentista de código, dotando-o de mecanismos flexíveis, facilmente adaptáveis às novas situações da vida contemporânea. Substitui-se, assim, o modelo de sistema – pretensamente – fechado e totalizante dos códigos oitocentistas por um modelo de sistema relativamente aberto, no qual um código rico em cláusulas gerais – e animado pela axiologia constitucional -, interage, constantemente, com as novas realidades concretas.3

Os Códigos em geral (e aqui se encaixa o Código Civil de 2002) vêm permitindo, por meio de cláusulas gerais, que os juízes adéqüem as normas aos casos concretos, de acordo com as circunstâncias destes e, além disso, trazem princípios constitucionais que reforçam

2 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas na modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Júnior.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 139.

3 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constituição e Codificação: Primórdios do Binômio. In: A

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garantias individuais. Ou seja, os Códigos, apesar de não exercerem o papel de fonte principal dos direitos do cidadão, como se previa pela codificação francesa inaugurada em 1804, o que agora é exercido pelas Constituições, ainda possuem papel fundamental de centro de fonte hermenêutica para os microssistemas criados cada vez mais freqüentemente, inundando-as de princípios e diretrizes que permitem sua aplicação, não havendo porque clamar pela descodificação, que só traria desorganização sem um ente “catalisador”.

A discussão acerca do problema normativo não reside na codificação, mas no sistema utilizado pelo ordenamento jurídico, do qual se tratará mais adiante.

Tendo em vista todas estas considerações acerca da codificação e de sua suposta crise, ao Código Civil de 2002 é dado o papel de veicular princípios e normas infraconstitucionais a fim de complementar a Constituição e harmonizar o Direito Privado. Além disto, o Código representa a ponte para a modernidade, ou seja, o fio condutor que carrega

o conjunto de experiências características do final do século XIX, tais como, de um lado, o predomínio da razão e do saber científico e, de outro, do intenso crescimento tecnológico, apto a conceber previsões totalizantes catalisadoras do sistema4.

2.2 A Constitucionalização do Direito Privado

A questão aqui tratada está relacionada à divisão tradicional do Direito entre público e privado. Há quem faça distinção entre estas áreas com base no critério da forma ou da matéria, ou ainda, quanto à fonte.

Durante a história do direito ocidental, os dois ramos se intercalaram entre a primazia de um sobre o outro e uma espécie de interpenetração. O momento mais marcante da dicotomia, no entanto, ocorreu durante o século XVIII, com o realce das diferenças entre esfera econômica e política, isto é, entre sociedade civil e Estado. “Neste contexto, a dicotomia público vs. privado volta a se apresentar sob a forma de distinção entre a sociedade política (o reino da desigualdade) e sociedade econômica (o império da igualdade).”5

4 ANDRADE, Fábio Siebeneichler de.

Op. cit. p. 146.

5FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito

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Rosa Nery, por sua vez, apresenta três teorias que explicam esta dicotomia, isto é, de acordo com o interesse pretendido, de acordo com a natureza da situação jurídica que gera a norma ou conforme a posição ocupada pelo sujeito a que se destina a norma6.

Com a Revolução Francesa e o Código Napoleônico, toda a nação francesa passou a obedecer determinados valores inseridos neste documento. Esses valores eram os da burguesia, que privilegiava o individualismo caracterizado pela posição social ocupada por cada sujeito. A liberdade dos cidadãos foi marcada pela não ingerência do Estado na economia privada, ou seja, pela plena autonomia contratual. Neste sentido, José Levi Mello do Amaral Júnior afirma:

A burguesia sequiosa por consolidar suas conquistas, logo percebe o valor político do jurídico e o utiliza, habilmente, em seu proveito. Assim, declarados os direitos fundamentais e firmada a separação dos poderes segundo a receita liberal de Montesquieu, entraram em cena os códigos, destinados a fixar o ideário da revolução burguesa. Enquanto as “declarações de direito garantiam a liberdade política dos indivíduos nas relações com o Estado, os códigos tutelavam as liberdades civis do indivíduo na sua vida privada contra as indevidas ingerências do poder político.7

A proteção estatal dos indivíduos se resumia à proteção de sua liberdade econômica, inclusive, contra o próprio Estado. Para tanto, eram necessárias normas claras, completas e coerentes, cujo poder de idealização era de monopólio dos legisladores. Cabia aos juízes tão somente sua aplicação. A segurança perseguida não era de resultados, mas do processo para alcançá-los, das “regras do jogo”8. Propriedade e contrato eram os pilares sobre os quais se

apoiava a ideologia oitocentista.

Sendo assim, a partir da Revolução Francesa, o Direito teve como base fundamental as relações privadas, priorizando-se a liberdade contratual, a patrimonialidade e a propriedade como alicerces do individualismo.

Com o passar do tempo e a retomada do domínio do Estado sobre todas as esferas da vida humana (principalmente em decorrência do segundo pós-guerra, em que o Estado era

6 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao Pensamento Jurídico e à Teoria Geral do Direito

Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 172.

7 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Op. cit., pp. 58-59.

8 TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In:

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imprescindível à reconstrução da sociedade e por força do desenvolvimento dos movimentos sociais iniciados na Revolução Industrial), esta relação de predominância do privado sobre o público se inverteu.

A liberdade absoluta dos particulares foi limitada para que os fins buscados pelos Estados pudessem ser alcançados. Sob outra perspectiva, cresceu a preocupação com o ser humano independentemente de sua posição social – principalmente devido às atrocidades do nazismo – calcada na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana. “Ou seja, abandona-se a ética do individualismo pela ética da solidariedade; relativiza-se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a proteção da dignidade da pessoa humana.”9

Surge, então a busca por um bem comum, assim descrita por Norberto Bobbio:

Não que todas as teorias do primado do público sejam histórica e politicamente passíveis de ser postas no mesmo plano, mas a todas elas é comum a idéia que as guia, resolvível no seguinte princípio: o todo vem antes das partes. Trata-se de uma idéia aristotélica e mais tarde, séculos depois, hegeliana (de um Hegel que nesta circunstância cita expressamente Aristóteles); segundo ela, a totalidade tem fins não reduzíveis à soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez alcançado, transforma-se no bem das suas partes, ou, com outras palavras, o máximo bem dos sujeitos é o efeito não da perseguição, através do esforço pessoal e do antagonismo, do próprio bem por parte de cada um, mas da contribuição que cada um juntamente com os demais dá solidariamente ao bem comum segundo as regras que a comunidade toda, ou o grupo dirigente que a representa (por simulação ou na realidade), se impôs através de seus órgãos, sejam eles órgãos autocráticos ou órgãos democráticos.10

Com o advento das Constituições dos Estados Democráticos nos países de tradição romano-germânica, os princípios basilares dos diversos ramos do Direito passaram a fazer parte dos textos constitucionais. Surgiram desta forma, institutos voltados à maior proteção do indivíduo enquanto ser complexo e dotado de particularidades em relação à que até aquele momento era destinada apenas aos seus bens materiais.

Significa que os países ocidentais começaram a dotar as Constituições de programas cujo conteúdo limitava todos os poderes públicos e privados e perseguia a funcionalização dos direitos fundamentais. Para acompanhar estes objetivos surgiram os mais variados “códigos”,

9 FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit. p. 25.

10 BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. Para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz

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substituindo o monossistema no qual reinava o Código Civil, por um polissistema que atendesse o programa estabelecido na Constituição e que cobrisse a maior gama possível de relações jurídicas. Em decorrência destas modificações foi necessária uma releitura da tradicional dicotomia, em que se assumisse a obrigatoriedade de interpretação e aplicação de qualquer norma com vistas à Constituição.

O fenômeno a que se faz referência acima, da constitucionalização do direito privado, implica em duas etapas. Na primeira, uma série de institutos tipicamente da área privada foram inseridos nas Constituições. Na segunda, verificou-se a força dos princípios e da hermenêutica e suas conseqüências na seara particular (pois toda interpretação e aplicação normativa não só do Código Civil, mas também dos demais estatutos esparsos, deve ser feita de acordo com os ditames constitucionais).

A dicotomia propriamente dita, contudo, vem perdendo força e Direito Público e Privado tendem a convergir cada vez mais. O Estado, ao inserir institutos tipicamente privados nas Constituições, faz uso deles, estabelecendo relações negociais com particulares e, assim, abrindo mão de privilégios que lhe caberiam. Do outro lado, o direito privado se direciona ao público protegendo interesses difusos e coletivos e funcionalizando o direito com base na interpretação de valores fundamentais constitucionais.

Dita constitucionalização, portanto, é fruto de uma doutrina que entende pela aproximação de dois ramos do Direito, até então completamente autônomos, o público e o privado. Trata-se, de acordo com essa percepção, do fim da dicotomia tradicionalmente existente entre essas áreas e a conseqüente convergência cada vez maior entre as mesmas.

Outra leitura desta mesma questão, trazida por Rosa Nery, pode ser feita de forma a se compreender que, na realidade, público e privado são núcleos independentes integrantes de um mesmo sistema jurídico. Quer dizer, são dois ramos desde sempre existentes separadamente, cada um voltado à direção que lhe cabe, e que não necessariamente passam a convergir a partir da contemporaneidade, mas sim, cuja aplicação passou a ser realizada com foco na situação ou no sujeito ao qual se destina, e não mais na classificação até então utilizada de fattispecie previamente prescrita11.

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Em outras palavras, a dicotomia entre público e privado permanece, porém o enfoque se modificou, compreendendo-se que, a uma mesma situação ou a um mesmo sujeito, poderá ser aplicada uma vertente ou outra, dependendo dela própria e de suas características específicas e não de fatores externos que indiquem a subsunção a ser realizada.

Retomando a primeira compreensão do assunto, os pontos de convergência resultam da primazia da dignidade da pessoa humana e da busca pelo desenvolvimento de sua personalidade que levam a uma “união” para alcançar tais objetivos. A dicotomia dá espaço à comunicabilidade entre os ramos público e privado, substituindo diferenças qualitativas por, nos dizeres de Maria Celina Bodin de Moraes, citada por Eugênio Facchini Neto:

“quantitativas”, pois há institutos onde prevalecem os interesses individuais, embora também estejam presentes interesses da coletividade, e outros institutos onde predominam os interesses da sociedade, embora funcionalizados à realização dos interesses existenciais dos cidadãos.12

A partir do momento em que a liberdade econômica sai de foco e dá espaço ao ser humano e ao respeito à sua condição como tal, o patrimônio também deixa de estar no centro das atenções e cede lugar ao valor da dignidade humana. Ocorre o que se chama de

repersonalização do direito civil ou sua despatrimonialização.

É possível perceber este fenômeno no exemplo de Eugênio Facchini Neto acerca do juiz que, ao

interpretar e definir o alcance concreto de certas previsões normativas do Código Civil (...) deve ele levar em consideração, como verdadeiras “linhas diretivas”, o sentido dos direitos fundamentais. Assim, por exemplo, em relação ao princípio da boa-fé, reiteradamente vem sendo decidido que ele representa um limite material à autonomia privada no campo contratual, e, consequentemente, autoriza o controle judicial do conteúdo do contrato, reiterando-se a eficácia de cláusulas contratuais que violem o significado jurídico do princípio da boa-fé objetiva. Embora haja quem entenda que o princípio da boa-fé objetiva derivaria do princípio da dignidade da pessoa humana, tenho que assiste razão aos juristas que preferem ancorar a boa-fé contratual no princípio (ou valor) da solidariedade.13

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O Direito Civil passou, assim, a ter uma função social de justiça, de equilíbrio e de transformação da realidade, no sentido de preservar e efetivar o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, idéia traduzida nos dizeres de Rosa Nery:

É nesse contexto que se pode dizer que, se de um lado o direito público

respeita a estrutura mesma do poder, de onde emana a ordem necessária para a construção e mantença do próprio sistema jurídico, o direito privado se

volta para o elemento mais importante desse sistema, que é o homem.14

2.3 Principiologia do Código Civil de 2002

Miguel Reale, jurista e filósofo, sempre esteve envolvido na política. Em função disto, consolidou uma formação humanista que guiou seu trabalho durante toda a vida. Adotou o culturalismo e, assim, trouxe essa influência à elaboração do Código Civil de 2002.

De acordo com Gerson Luiz Carlos Branco:

Miguel Reale é um culturalista por sua própria definição e por ter fundado sua concepção de conhecimento, ciência e direito, a partir da ação do homem como um ser cultural, imerso na história e em constante relação com a natureza desenvolvida na linha do tempo.15

Judith Martins-Costa, por sua vez, definiu o culturalismo como “a corrente de pensamento que reconhece a importância da cultura como paradigma, passando a examinar sob sua luz antinomias tradicionais”16.

Importante, portanto, trazer à baila o entendimento do próprio Miguel Reale acerca do termo cultura:

Pois bem, “cultura” é o conjunto de tudo aquilo que, nos planos material e espiritual, o homem constrói sobre a base da natureza, quer para modificá-la, quer para modificar-se a sim mesmo. É, desse modo, o conjunto de utensílios e instrumentos, das obras e serviços, assim como das atitudes espirituais e formas de comportamento que o homem veio formando e aperfeiçoando, através da história, como cabedal ou patrimônio da espécie humana.17

14 NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 175.

15MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes teóricas do novo Código

Civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 2.

16 MARTINS-COSTA, Judith. Direito e Cultura: Entre as Veredas da Existência Histórica. In: Revista

da Faculdade de Direito Ritter dos Reis. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2001, pp. 11-28, p. 13.

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Além de Miguel Reale e da importância do culturalismo para a criação do Novo Código Civil, seus demais colaboradores, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro, também tinham perfil humanista e preocupado com a realidade das mudanças sociais que se apresentavam e que estavam por vir.

Dentro do espírito que moveu a Comissão responsável pela elaboração do Código Civil, cumpre ressaltar as fontes de direito consideradas por Miguel Reale, quais sejam, o processo legislativo, a jurisdição, os usos e costumes e os contratos. Tais fontes figuram como estrutura das normas, formas por meio das quais elas podem surgir.

No conteúdo das fontes, nos modelos, portanto, é que se insere o culturalismo, a preocupação com a presença de valores que retratem a realidade, compreendida esta como a experiência humana com determinados objetos. A experiência muda conforme mudam os objetos e, consequentemente, os valores que os representam.

Atualmente, os valores preponderantes do ordenamento jurídico são os valores do ser humano cuja proteção e regular desenvolvimento, considerando-se não apenas os valores presentes, mas também os que deverão existir, conferem ao ordenamento um elemento ético de extrema relevância.

Referida preocupação com o futuro possibilitou a previsão de modelos capazes de recepcionar novos valores, dos quais são exemplos as cláusulas gerais que cuidam da função social, dos costumes, dos direitos da personalidade e, principalmente, da boa-fé objetiva.

Essas “ventanas” ou “janelas” são constituídas pelas cláusulas gerais, técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos ainda inexpressos legislativamente, de standars, arquétipos exemplares de comportamento, de

deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo.18

18 MARTINS-COSTA, Judith. O Projeto de Código Civil Brasileiro: Em Busca da “Ética da Situação”.

(21)

A inovação é pertinente diante do culturalismo. Sendo os valores mutáveis, em função da mudança do objeto e, mais importante, da relação do homem com tais objetos, são imprescindíveis modelos que viabilizem o acompanhamento da evolução das experiências humanas.

Não se trata, no entanto, de conferir crédito absoluto aos criadores do Novo Código Civil, devendo-se recordar que a própria Lei de Introdução ao Código Civil de 1916 em seus arts. 4º e 5º, desde então já abria caminho à adequação da lei à evolução humana, permitindo ao juiz a utilização da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito quando lacunosa a legislação, bem como impondo ao magistrado o dever de atuar de forma a atender aos fins sociais da lei e às exigências ao bem comum.

Não sendo suficientes as previsões acima, tendo em vista que as experiências humanas são as mais diversas e a fim de preservar todos os valores que as permeiam, é necessário que a concretude dos modelos normativos seja realizada por mais de uma fonte de direito. Neste sentido, os criadores do Código Civil procuraram modelos que permitissem participação ativa da doutrina e da jurisprudência e não mais a imobilidade das definições propostas pelos legisladores que tudo tentavam prescrever, considerando que, nas palavras do próprio Miguel Reale, “não existe plenitude do Direito escrito, mas sim a plenitude ético-jurídica do ordenamento.”19

O Código Civil de 2002, portanto, deve ser interpretado e aplicado com esta mentalidade, de modernidade e às vistas de um Direito que atenda os anseios sociais.

2.3.1 Os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade

Três princípios fundamentais nortearam a comissão elaboradora do Anteprojeto do Código Civil de 2002: eticidade, socialidade e operabilidade.

De acordo com o princípio da eticidade, a comissão procurou unir a técnica jurídica apurada até então aos valores éticos, que não poderiam ser ignorados, justificando-se

(22)

(...) a opção, muitas vezes, por normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, a fim de possibilitar a criação de modelos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais.20

É possível exemplificar esta preocupação por meio dos artigos 113, 187 e 422 do Código Civil. Tais exemplos introduziram definitivamente a boa-fé objetiva no ordenamento jurídico civil positivado, em suas funções interpretativa, integradora e limitadora de direitos, conforme será explicitado mais detalhadamente adiante.

Tratando da atuação de Miguel Reale na coordenação da elaboração do Código Civil, Judith Martins-Costa explica:

Como legislador, referiu-se, ao apresentar o Projeto de Código Civil, cuja Comissão elaboradora presidiu, à “ética da situação” para explicar a presença, no novo texto, de modelos jurídicos abertos que conferem ao juiz “o poder-dever de julgar com base nos princípios éticos da equidade, da boa-fé ou da probidade como pressupostos da conduta geral na sociedade civil”, pois, só assim, afirma, “poderemos realizar o ideal de justiça concreta, não

em função de individualidades concebidas in abstracto, mas de pessoas

consideradas em suas concretas circunstâncias”.21

Introduziu-se, desta forma, definitivamente, um elemento ético-jurídico ao ordenamento, traduzido pela “necessidade de uma conduta proba, honesta ou leal. Proceder de boa-fé apela a uma condução, no Direito, de acordo com as determinações da recta

consciência”22.

O segundo princípio norteador é o da socialidade, visando abafar o individualismo patrimonialista preponderante até então, para dar lugar à função exercida pelos sujeitos de direito, por suas manifestações e institutos jurídicos, bem como por seu compromisso com a coletividade. Desta forma, a autonomia da vontade ganha outro sentido devendo se enquadrar em uma moldura de significação social.

Os artigos 421 e 1228, que tratam da função social do contrato e da função social da propriedade, respectivamente, são os exemplos mais nítidos do princípio da socialidade:

20 REALE, Miguel. História do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2005, p. 37.

21 MARTINS-COSTA, Judith. Op.cit. , p. 18

22 CARNEIRO DA FRADA, Manuel António de Castro Portugal. Teoria da Confiança e

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No caso da posse, superando as disposições até agora universalmente seguidas, que distinguem apenas entre a posse de boa e a de má-fé, o Código leva em conta a natureza social da posse da coisa para reduzir o prazo de usucapião, o que constitui novidade relevante na tela do Direito Civil.23

A presença do culturalismo adotado por Miguel Reale é muito forte e vale destacar as palavras de Renan Lotufo a este respeito:

Este Código, pelas suas próprias raízes metodológicas e filosóficas (eticidade – socialbilidade – praticidade), não tem a aspiração de ser um Código fechado. É um Código que está permeado por valores que vão de encontro ao puro liberalismo e ao individualismo exacerbado. É um Código que está imbuído do que o prof. Reale chamou de princípio da socialidade, ou seja, todos os valores do Código encontram um balanço entre o valor do indivíduo e o valor da sociedade. Não exacerba o social e, ao mesmo tempo, procura em todas as regras não exacerbar o individualismo.24

Trata-se de um princípio que decorre, em certa medida, do princípio da eticidade, porque privilegia o social sobre o individual, trazendo os valores éticos que enaltecem o ser humano e a circunstância social em que se situa.

O princípio da operabilidade, por fim, se resume à facilitação da interpretação e da aplicação das normas de Direito Civil, eliminando formalismos desnecessários. É outra explicação para a presença de cláusulas gerais, que permitem decisões de acordo com as circunstâncias dos casos concretos.

A possibilidade de se expandir o campo de atuação, e melhor, o campo de desenvolvimento do raciocínio jurídico do juiz, faz parte das funções da operabilidade. Preciosa neste sentido, a contribuição de Philip Heck trazida por Menezes Cordeiro como crítica à jurisprudência dos conceitos: “Ora a vida é tão complicada que não é possível, apenas pela subsunção, resolver todos os problemas que apareçam”25.

As três diretrizes adotadas para a formulação do Código Civil de 2002 são fundamentais para a compreensão das mudanças em comparação ao Código de 1916. Não obstante sua característica mais marcante seja voltada para o ser humano e seu peculiar

23 REALE, Miguel. Op.cit., p. 38.

24 LOTUFO, Renan. A Codificação: o Código Civil de 2002. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni

Ettore (coord.). Teoria geral do direito civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 99.

25 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa Fé no Direito Civil. Vol. I.

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desenvolvimento dentro da sociedade (aceitando que isto só é possível em condições salutares neste conjunto), é preciso lembrar que o equilíbrio econômico do contrato não foi ignorado. Sempre que circunstâncias inesperadas quebrem a relação equitativa visada pelas partes ao constituir o acordo, a equação financeira do contrato deve ser defendida.

2.4 Acepção axiológica do Direito e o fundamento ético das cláusulas gerais no Código Civil de 2002

Sem ingressar em maiores discussões, pode-se afirmar que a qualidade axiológica do Direito é a justiça. Tal constatação leva a outra afirmação, de que o Direito é dotado de fundamentos ético-jurídicos que devem ser observados quando da sua aplicação, uma vez que, como a ética se associa ao estudo das ações humanas e o Direito regulamenta tais ações, este deve considerar aquela a fim de que se alcance a justiça.

A partir daqui, busca-se aprofundar o conhecimento do fator ético inerente ao Direito, sobretudo porque está expressamente inserido no Código Civil de 2002. Sobre o tema ensina Carneiro da Frada:

Derradeiramente, ele fundamenta-se em que a proteção da confiança corresponde a um princípio ético-jurídico que, por estar firmemente

radicado na idéia de Direito, não pode deixar de transpor o umbral da juridicidade. Há imposições tão fortes da Justiça que não os acolher significaria negar o próprio Direito, a sua razoabilidade e a sua racionalidade; imposições que se sentem de modo particular quando não há alternativa prática que evite, para além do tolerável, a ameaça de ficar por satisfazer uma indesmentível necessidade de tutela jurídica.26

A inspiração da busca pela justiça pode ser encontrada nos ensinamentos de diversos autores, iniciando-se pelos gregos, como Platão e, posteriormente, Aristóteles em cuja obra A Ética a Nicômaco afirma que tudo o que o homem faz tem um objetivo, uma meta a ser alcançada. Esse objetivo pode ser a própria ação em si mesma, ou algo diferente dela, mas por ela produzido.

(25)

Para Aristóteles, diante da constatação de que todas as ações visam um fim, será este o bem, ou o que ele chama de “sumo bem”27. O conhecimento deste bem influencia a vida do homem, isto é, saber o bem que se busca permite que se encontre a ciência ou a faculdade que o constitui. A ciência que determina quais ciências devem ser estudadas em um Estado, e que devem ser aprendidas pelos indivíduos, é a política, portanto, a finalidade da política é o bem humano, seja para o indivíduo, seja para o Estado.

Com tal efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo quanto para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação (...)28

O bem mencionado, no entanto, precisa ser definido. Todos os homens concordam que esse bem é a felicidade, buscada em si mesma e não no interesse de outro bem, como o é a riqueza, por exemplo. O conhecimento de que se age com intenção de alcançar algo confere ao indivíduo racionalidade, distinguindo-o dos demais seres vivos.

A felicidade se torna, desta forma, um bem em si mesmo cujo interesse provém do interior do homem, de sua alma. A alma quer a felicidade e a razão proporciona ao homem meios de agir que o levem ao seu desejo íntimo.

O homem feliz, ou seja, que busca a felicidade como bem supremo é aquele que bem vive e bem age. E a felicidade depende de atos nobres e virtuosos, que pertencem ao bem agir e bem viver.

As virtudes, por sua vez, são hábitos louváveis que podem ser divididos em intelectuais, que dependem do ensino, e morais, que resultam da prática, do exercício de ações boas e honestas. De acordo com Aristóteles, cabe aos legisladores incutir bons hábitos nos cidadãos, afirmando: “Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as boas e as más constituições”29.

27ARISTÓTELES. A Ética a Nicômaco. In: Os Pensadores. Tradução de Leonel Valandro e Gerd

Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. São Paulo: Editora Abril, 1973, p. 249.

(26)

De fato, a função dos legisladores é determinar comportamentos aos cidadãos de acordo com um objetivo comum a todos. No estudo em foco, ou seja, na boa-fé objetiva, tendo o legislador previsto normas que demandam dos cidadãos ações probas e conformes à boa-fé, se nota que a finalidade buscada é a prática do agir ético.

Retornando aos ensinamentos de Aristóteles, a virtude depende da ação e de uma boa ação, portanto, se a finalidade é a virtude e a virtude uma ação boa, logo, a felicidade (bem correspondente à finalidade) é a boa ação, é o bem agir.

As idéias de Aristóteles provieram dos ensinamentos de seu mestre, Platão, que após reflexões do próprio Aristóteles, foram modificadas, adaptadas, aproveitadas em parte e assim por diante. Enquanto Aristóteles conferia à felicidade a busca pelo sumo bem, Platão o fazia sob o argumento de que a prática da virtude era o único meio pelo qual o homem poderia se desprender do mundo terreno para contemplar o mundo ideal: “A virtude é a harmonia, a medida (méton) e a proporção, e a harmonia individual e social e assim uma imitação da

ordem cósmica (cosmos já significa ordem, ao contrário de caos)”30.

Platão observa a ética como fundamento generalizado, comum e universal na busca do mundo ideal, que é um só. Por outro lado, Aristóteles reconhece a individualidade de cada um na busca pelo sumo bem da felicidade, de acordo com suas particularidades e com o que dá prazer a cada homem, do que se aproxima mais o imperativo categórico de Kant, pensado muitos anos depois.

De acordo com Aristóteles, as razões para a prática de qualquer ação humana residem no prazer ou na dor. A virtude é a disposição de caráter para praticar boas ações e em decorrência disto, sentir prazer.

Quer dizer, na alma, se encontram três tipos de atributos: as paixões, as faculdades e as disposições de caráter. As virtudes não podem ser encaradas como paixões, porque o homem não é louvado nem censurado por suas paixões, mas sim por suas virtudes. O sentimento nas paixões não é escolhido, mas apenas sentido, enquanto as virtudes são escolhidas.

(27)

Sendo disposições de caráter que dizem respeito às paixões e às ações (porque buscam o prazer), podem existir em excesso ou em carência, configurando a virtude exatamente o meio-termo. Assim, a virtude é o meio-termo entre o sumo bem procurado e dois extremos.

É difícil encontrar um meio-termo para as ações e por ser muito mais fácil ser arrastado para aquilo que dá prazer, é preciso ir em direção ao extremo contrário (seja o excesso ou a deficiência) para se chegar ao meio-termo.

Todas estas considerações são aplicáveis à justiça, que é uma virtude e a virtude mais completa, pois é completa com relação ao outro indivíduo. O homem justo é o homem que respeita a lei, porque esta é dotada da legitimidade com que o legislador trabalha. A lei visa ao bem comum, portanto, quem segue a lei é justo, justo em relação ao próximo, virtuoso em sua completude. Esta conclusão por si só justificaria a ligação do presente capítulo ao tema investigado. Quem segue a lei age com virtude.

A justiça política é determinada pelos legisladores e pode ser contratual, quando tem a mesma força onde quer que seja, independentemente de pensarem os homens de modos distintos; ou legal, que passa a ter relevância depois de estabelecida.

Sendo a justiça, papel dos legisladores, que devem buscar o bem comum e habituar os cidadãos à virtude, sua virtuosidade consiste no bem do próximo. Quem respeita a lei é justo e virtuoso, porque é justo com o próximo. Quando isto não acontece, surge a equidade para devolver a proporção da justiça. Ou seja, a justiça é uma virtude equânime.

A relevância do tema é visível, podendo e devendo influenciar a forma de pensar o novo Código Civil e de interpretar seus institutos, principalmente a boa-fé objetiva, a confiança e a relação com o próximo que dela derivam. Para Camila de Jesus Mello Gonçalves:

A sociedade contemporânea é extremamente diversa da grega. Mas o tempo e a complexidade das relações típicas da sociedade de massa não foram suficientes para tornar ultrapassadas as idéias de bem geral, mal e virtude, entre outras, tornando relevante o debate sobre a ética no Direito (...)31

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Portanto, os fundamentos ético-jurídicos implementados no Código Civil de 2002 apenas cumprirão sua função quando interpretados objetivando a justiça, que é o bem maior visado pelo Direito, a virtude finalística dos legisladores, de habituar os cidadãos a praticar boas ações.

Sob outra perspectiva, se debruçou Kant na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes32, entendendo estes como moralidade, como ética, criados pela sociedade. Kant rejeitou o conhecimento empírico e criou o imperativo categórico, uma ordem incondicional que traz em si uma lei universal pura (sem nenhum caráter empírico), chegando à normatização da ética.

Kant reorganizou em sua teoria os elementos considerados por Aristóteles, legalizando, assim, a eticidade das ações humanas. O caráter subjetivo, principalmente configurado pela vontade e desta decorrente, a liberdade, é o motivo pelo qual o imperativo categórico se torna necessário, admitindo Kant que o homem não é ser apenas e totalmente racional.

No que diz respeito à busca do homem pela felicidade, o autor desvinculou as boas ações dessa busca, invertendo a relação entre elas. Adotou o bem agir como condição e não como meio para ser digno da felicidade. Caráter e virtudes foram considerados instrumentos, cujos fins podem nem sempre ser éticos e, portanto, não garantem ações morais, devendo ser desconsiderados. É a crítica kantiana aos filósofos utilitaristas da época.

Sendo assim, o raciocínio para se chegar ao mandamento, ao imperativo estabelecido por Kant é o seguinte: um dever decorrente de uma vontade nascida da racionalidade, quer dizer, a razão identifica o que é bom e, por consequência, a vontade leva a escolher o que é bom, ou seja,

Se a razão determina infalivelmente a vontade, as acções de um tal ser, que são conhecidas como objectivamente necessárias, são também subjectivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como

praticamente necessário, quer dizer como bom.33.

32KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa:

Edições 70, 2009.

(29)

Ocorre, no entanto, que, por vezes, as condições subjetivas poderão não coincidir com as escolhas da razão, pois o homem, apesar de ser racional assim distinguível dos demais seres, não é somente razão. Em tais casos, surgirá o dever, a obrigação de agir em conformidade com as ações objetivamente determinadas pela razão como necessárias, ou seja, com os princípios da razão. Tal dever ou obrigação consiste no imperativo34.

Em seguida, Kant define como categórico o imperativo que ordena uma ação não qualificada como instrumento para alcançar outro fim, devendo ser realizada como fim em si mesma, daí sua necessidade objetiva. A ação deve ser boa em si mesma de acordo com princípios racionais.

Desta forma, definem-se as ações que devem ser realizadas pelos indivíduos independentemente das inclinações subjetivas e dos propósitos visados. Por meio da razão é possível vislumbrar qual ação pode se tornar uma máxima universal, ou seja, uma ação que o próprio sujeito pode desejar que seja realizada sempre, estando ele de um lado ou de outro da relação. “É absolutamente boa a vontade que não pode ser má, portanto, quando a sua

máxima, ao transformar-se em lei universal, se não pode nunca contradizer.”35

Visível se torna a crítica a Aristóteles, no sentido de que a boa ação pode estar, mas não está obrigatoriamente vinculada à busca da felicidade pessoal. Está condicionada, isto sim, a princípios racionais que indicam que a ação a ser tomada é aquela que possa se tornar uma máxima universal, praticável por todos.

O imperativo categórico nasce com um caráter ético, aplicável a todos, universalmente, mediante condutas das quais não se pode escapar, pois racional e objetivamente identificadas como condutas a serem adotadas, permitindo-se a convivência e a continuidade das relações humanas. Trata-se de ações às quais todos os seres humanos,

34Bis in idem, p. 50: “Mas se a razão só por si não determina suficientemente a vontade, se esta está

ainda sujeita a condições subjectivas (a certos móbiles) que não coincidem sempre com as objectivas; numa palavra, se a vontade não é em si plenamente conforme a razão (como acontece

realmente entre os homens), então as acções, que objectivamente são reconhecidas como necessárias, são subjectivamente contingentes, e a determinação de uma tal vontade, conforme as leis objectivas, é obrigação (Nötigung); quer dizer, a relação das leis objectivas para uma vontade não

absolutamente boa representa-se como a determinação da vontade de um ser racional por princípios da razão, sim, princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não obedece necessariamente.”

(30)

independentemente da posição que ocupam, de credor ou devedor, por exemplo, conferem o dever moral de adoção.

Levando-se em conta o fato de que, por mais que o indivíduo saiba, através da razão, de que forma deve agir, ainda assim pode não obedecer a esse comando racional, o imperativo categórico se impõe como um dever de respeito aos princípios racionais. Ou seja, Kant racionalizou a ética e normativizou o dever de obedecê-la independentemente da vontade do indivíduo de seguir ou não a razão.

A teoria kantiana do imperativo categórico pode ser reforçada, por exemplo, pelo artigo 1.7 (Good faith and fair dealing) dos Princípios da International Institute for the

Unification of Private Law (UNIDROIT/2010) que diz: “(1) Each party must act in

accordance with good faith and fair dealing in international trade. (2) The parties may not

exclude or limit this duty”.

Significa que o dever de se conduzir conforme a boa-fé e bem agir é absoluto, não pode ser suprimido ou limitado por nenhuma das partes, quaisquer que sejam as posições ocupadas. O dever, neste caso, de fato se torna lei universal e atinge todos aqueles que pratiquem o comércio internacional e optem por se submeter aos princípios da UNIDROIT. Trata-se da normatização da boa-fé no âmbito do comércio internacional.

A cláusula geral, diante destas considerações, se mostra apta, em função de sua abertura semântica e de conferir ao juiz a possibilidade de trabalhar com valores e ponderações diante dos casos concretos, a proporcionar a busca pela ética da ação tomada por cada parte. Quer dizer, ao juiz é conferida a tarefa de verificar se as condutas realizadas foram efetivamente aquelas que deveriam ter sido adotadas, observando-se objetivamente as posições jurídicas ocupadas pelas partes e aplicando-se, racionalmente, os princípios norteadores de cada máxima, lei ou imperativo em questão.

No caso do art. 422, do Código Civil, a boa-fé representa o imperativo categórico, devidamente legalizado e normatizado, a ser observado por todos.

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valorativa de todas as questões envolvidas, conforme previu Enzo Roppo ao cuidar da relação entre a lei e o juiz no regulamento contratual36.

3 CLÁUSULAS GERAIS E SISTEMAS JURÍDICOS

Conforme se disse anteriormente, o princípio da boa-fé objetiva foi positivado no Código Civil sob o modelo de uma cláusula geral. Sendo assim, antes de se cuidar deste modelo normativo, deve-se tratar do sistema ao qual pertence, isto porque, em função da flexibilidade de aplicação do instituto em questão, se preocupa a doutrina com o leque de possibilidades de decisão que, em conseqüência disto, poderá ou não se dirigir em conformidade com o Código Civil e com as diretrizes de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Para evitar esta consternação, é preciso conhecer o sistema ao qual pertence a referida cláusula geral, pois com base no seu funcionamento será possível evitar a má aplicação da norma, ainda que se constitua esta de modelo flexível. Tal análise implicará na observação dos modelos de sistema propostos por Larenz, Canaris e Bobbio, conforme a escolha realizada no presente trabalho.

Primeiramente, cumpre conceituar o que é um sistema. Em seguida, deve-se indicar onde, dentro do sistema, se encontram as cláusulas gerais e de que forma são trabalhadas de

36 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009, pp. 166-167: “as fontes de determinação do regulamento contratual, diversas da vontade das partes, podem reconduzir-se a dois tipos fundamentais. Sendo certo que a operatividade de todas estas fontes pressupõe a intervenção combinada da lei e do juiz, pois cada uma delas encontra o seu fundamento numa determinada prescrição legislativa, sendo também que, nenhuma delas pode produzir, em concreto, os seus efeitos senão através de uma tomada de posição judicial, pode-se de facto considerar no seu âmbito, uma espécie de repartição de papéis entre o juiz e a lei: no sentido em que, de um lado, se colocam as

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acordo com a posição que ocupam. Por fim, é indispensável a conclusão acerca dos efeitos gerados pela atuação destas cláusulas gerais no próprio sistema.

3.1 Um conceito de sistema

São muitos os autores que trabalham com o conceito de sistema. É possível dedicar um trabalho inteiro somente à compilação dos mais variados entendimentos. No entanto, deve-se, neste momento, abordar somente algumas obras e ao final apresentar, de maneira clara, um conceito próprio que atenda às proposições feitas.

Adotando-se a concepção de Claus-Wilhelm Canaris37, um sistema é uma ordenação de elementos vinculados por uma qualidade em comum, que devem, em função disto, ser manuseados de forma harmônica para levar quem o utilizar a um determinado fim, que justifique a criação do sistema.

A partir desta idéia pode-se compreender toda a matéria que relaciona o Direito à sua característica sistêmica e consequentemente científica.

Inicialmente, cuida-se do sistema como uma ordenação de elementos, consistindo estes nos valores socialmente considerados como relevantes. Tal relevância social é a característica comum entre os elementos, guiando-os em uma mesma direção.

Não se pode esquecer que o sistema depende de um sujeito para ser aplicado e, portanto, o fator humano, daquele que manuseia os elementos, não pode ser ignorado. Trata-se de um fator externo ao sistema, devendo Trata-ser analisado sob outra perspectiva.

Retomando, a utilização dos elementos dentro do sistema deve ocorrer coordenadamente, pois tais elementos são valores essenciais e, portanto, devem ser ponderados em sua aplicação para que não haja sobreposição de um pelo outro, o que seria inadmissível. Aí se nota influência de Karl Larenz no que diz respeito aos valores e sua coordenação harmoniosa, ao qual será dado o devido tratamento adiante.

37 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do

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Por fim, o sistema deve ter uma finalidade, pois, sem um propósito a ser alcançado, não há ciência. O Direito é uma ciência cujo conteúdo teleológico reside na ética e na justiça, ou seja, seu sistema foi criado para aprimorar o que já se buscava antes de seu estabelecimento.

O homem forma um sistema do qual faz uso para alcançar o fim para que foi criado, no caso do Direito, para alcançar a justiça.

Sendo assim, os elementos vinculados devem ser manuseados harmonicamente, criando-se, se necessário, instrumentos que permitam essa ação, para ao final ser alcançado o objetivo pré-estabelecido.

Sob outra ótica, porém com semelhanças facilmente reconhecíveis, Norberto Bobbio38, fortemente inspirado em Hans Kelsen, afirma que um sistema ou, ordenamento, se estabelece a partir da unidade coesa de seus elementos. Uma vez definido que para que haja Direito é preciso haver ordenamento jurídico, é possível separar este em simples e complexo, conforme as normas que o componham derivem de uma só fonte ou de mais de uma.

A necessidade de regas para uma sociedade é tão intensa que um poder isolado não consegue satisfazê-la, recorrendo a dois expedientes, que podem ser considerados fontes indiretas do ordenamento, isto é, a recepção de normas já produzidas (fontes reconhecidas) e a delegação do poder de produzir normas a poderes ou órgãos inferiores (fontes delegadas). Por isso, em regra, os ordenamentos jurídicos são complexos, formados por mais de uma fonte.

Para que não se pense que, por ter muitas fontes, os ordenamentos não sejam unitários, o autor aceita a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Hans Kelsen. Sendo assim, as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano, havendo normas superiores e normas inferiores, sendo que as segundas dependem das primeiras. De acordo com esta escala, de baixo para cima chega-se a uma norma superior, sobre a qual repousa a unidade do ordenamento, que é a norma fundamental. Esta faz das normas espalhadas e provenientes de diversas fontes o conjunto unitário que vem sendo chamado de ordenamento ou sistema.

38 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos

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Igualmente, merece destaque a teoria de Karl Larenz39 acerca do sistema jurídico. O autor delega à atribuição dos significados das normas a tarefa de estabelecer o sistema, de uma ou de outra forma. A maior ou menor abstração dos conceitos contidos nas normas atribui a elas conexões de sentido que permitem sua visualização como um conjunto.

A partir do grau de abstração dos conteúdos, é possível criar dois sistemas jurídicos. O primeiro se baseia em “tipos” que trazem elementos jurídicos mais ou menos específicos, isto é, “tipos inferiores” ou “conceitos inferiores”, menos abstratos porque apresentam elementos mais específicos que permitem com maior facilidade a subsunção dos fatos reais ou seu dispositivo. Ainda que esta subsunção não seja perfeita e imediata, os conceitos inferiores, por sua vez, podem ser subsumidos a “conceitos superiores” a eles ligados, que permitem, “finalmente, reconduzir a massa do material jurídico a alguns poucos conceitos “supremos”40. Este sistema permite, através da subsunção, a ordenação de seus elementos com base na simples lógica formal.

Por outro lado, o conteúdo das normas pode ser estabelecido não por elementos jurídicos que findem na subsunção lógica dos fatos, mas pela função que exercem ou devam exercer diante do complexo ao qual pertencem. Ingressa-se, aqui, na importância dos valores para a definição de sistema. Nas palavras de Larenz:

Daqui surgiram indicações para a formação de um sistema de outra espécie. Os tipos jurídicos são em si próprios “sistemas móveis” de elementos ordenados entre si, sob um determinado critério diretivo. Como tais, podem ordenar-se em “séries de tipos” que, por seu lado, podem ser concebidas como “sistemas móveis parciais”. Os princípios diretivos que estão mais ou menos concretizados na regulação dada, mas que precisam ainda de ser concretizados, representam elementos de um “sistema interno”, que tem por missão tornar visível e pôr em evidência a unidade valorativa interna do ordenamento jurídico. Como elementos de união, de certo modo, entre estes princípios e os conceitos “abstratos”, que não são tão pouco de eliminar por completo, servem, finalmente, os conceitos “determinados pela função”.41

O fator valorativo das normas recebe importância até então não explorada. O sistema se estabelece, portanto, de acordo com os valores determinantes das funções das normas criadas, mostrando-se necessário à sua decifração um mecanismo apto a concretizar as

39 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3ª Ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbekian, 1997.

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normas quando da sua aplicação, apontando-lhes a função e justificando-as nos valores sobre os quais se funda o sistema. Tal mecanismo é a jurisprudência científica.

Depois de expostas conceituações ou classificações distintas de sistema, é possível estabelecer um conceito que abranja tais definições, extraindo-se de cada uma determinada qualidade.

Um sistema jurídico é um ordenamento de elementos normativos com a característica comum de estarem vinculados entre si e a uma norma superior, a qual lhe dá fundamento e cuja essência reside em valores previamente estabelecidos quando da sua criação.

Portanto, para a concretização de qualquer norma, em respeito ao sistema ao qual pertence, é imprescindível a análise do valor e do escopo que a sustenta.

3.2 O sistema aberto

Uma vez estabelecido que os elementos do sistema jurídico sejam os valores, há que se admitir que os instrumentos criados para sua operabilidade tenham fundamento nestes valores.

A primeira criação que se faz imprescindível à funcionalidade do sistema é a de princípios, de diretrizes que norteiem a garantia de seus valores fundamentais, diferenciando-se destes, dizendo Canaris:

(...) o princípio está já num grau de concretização maior que o valor: ao contrário deste, ele já compreende a bipartição, característica da proposição de Direito em previsão e conseqüência jurídica.

(...) O princípio ocupa, pois, justamente, o ponto intermédio entre o valor, por um lado, e o conceito, por outro: ele excede aquele por estar já suficientemente determinado para compreender uma indicação sobre as conseqüências jurídicas e, com isso, para possuir uma configuração especificamente jurídica e ultrapassa este por ainda não estar suficientemente determinado para esconder a valoração.42

Contudo, os princípios não são suficientes à realização plena do sistema, continuando Canaris:

(36)

Finalmente, os princípios necessitam, para a sua realização, da concretização através de subprincípios e de valorações singulares com conteúdo material próprio. De facto, eles não são normas e, por isso, não são capazes de aplicação imediata (157), antes devendo primeiro ser normativamente consolidados ou “normativizados” (158). Para tanto, é imprescindível a intermediação de novos valores autônomos.43

Percebe-se desde já que a especificidade e singularidade de abrangência dos instrumentos do sistema aumentam na medida em que se distanciam dos seus valores constituintes. Consequentemente, a maleabilidade do seu tratamento diminui conforme se destinam à aplicação de casos determinados.

Vêm à tona controvertidas questões da abertura e da mobilidade do sistema bastante trabalhadas por Canaris, distinguindo o autor o conceito de sistema sob duas perspectivas, de cientificidade e de objetividade.

Quanto ao primeiro aspecto, admite-se que como toda ciência, o que está posto não deve ser limitado face à evolução do conhecimento. Isto é, o sistema científico é incompleto, porque a evolução do que se conhece e o surgimento de novos conhecimentos é inevitável, da ordem natural das coisas.

Desta forma, o sistema científico é aberto porque apto a aceitar o que surge, superando o momento anterior no qual não se conhecia o que se passou a conhecer.

Por outro lado, entende-se como sistema objetivo aberto aquele que, e aqui se faz uma crítica ao pensamento de Canaris, diante do alcance de novos conhecimentos sofre reflexos nos valores até então escolhidos como socialmente relevantes. Quer dizer, a inovação do conhecimento exige valores novos que digam respeito a esse conhecimento e, portanto, novos instrumentos que permitam a proteção de tais valores.

Novamente, nas palavras de Canaris: “A abertura como incompletude do conhecimento científico acresce assim a abertura como modificabilidade da própria ordem

jurídica”44.

43

Idem, pp. 96-97.

(37)

No entanto, é impossível prever e criar todos os instrumentos necessários ao acompanhamento simultâneo dos progressos do conhecimento, que, na maioria das vezes, ocorre mais rápido do que se imagina, tornando-se necessário o uso da interpretação, para que se permita ao sujeito adaptá-los e aplicá-los aos problemas que surjam, fazendo prevalecer os valores do sistema.

É este o tema que se abordará adiante ao tratar das cláusulas gerais como instrumentos de um sistema.

3.3 As cláusulas gerais no sistema aberto

Entre os diversos instrumentos criados para permitir a operabilidade do sistema estão, mais ligados aos seus valores, os princípios. Como foi dito, os princípios são as diretrizes da maneira pela qual os instrumentos devem ser interpretados e utilizados.

No entanto, a abrangência dos princípios muitas vezes dificulta sua aplicação aos problemas concretos que surgem. Sendo assim, criam-se normas específicas para uma série de situações cujo conteúdo se permite assemelhar mais diretamente a cada caso.

Aparentemente, resolve-se a questão da subsunção do problema ao princípio, porém, quanto mais específico o conteúdo da norma, mais árdua a tarefa de aplicá-la a outros casos que não idênticos àquele para o qual foi criada.

De um lado, há princípios que apontam a direção a ser seguida para solução de problemas com base em valores fundamentais e, de outro, há normas que indicam soluções prontas para determinados casos específicos. Precisa-se, assim, de um caminho que una esses dois instrumentos e permita sua aplicação conjunta, ou seja, um caminho que permita a criação jurídica válida e legítima dentro do sistema.

Referências

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