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CONNERTON, Paul Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora.

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Academic year: 2021

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CONNERTON, Paul. 1999. Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora.

Capítulo 2 – Cerimônias Comemorativas

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[...] Nenhum festival estava dotado de uma força de culto mais poderosa do que aquele que comemorava o Putsch, o "batismo de san gue " de 192 3 . O seu tema era osacrifício, a luta e a vitória final dos "antigos combatentes" do nacional -socialismo. Os sobreviventes do putsch, condecorados com a Ordem do Sangue, encontravam-se para areunião tradicional na Bu r gerb raukeller de Mu n ique, no dia 8 de N o vembr o, para ali o u v i r e m a a l o c u ç ã o c o m e m o r a t i v a d e H i t l e r d e d i c a d a a o s " d e z e s s e i s m á r t i r e s d o movimento nacional-socialista". No dia seguinte, os "antigos combatentes" marchavam doBurgerbraukeller para o Feldherrnhale, repetindo ritualmente a marcha de 1923, ao longode um caminho assinalado por archotes a arder, acompanhados de uma música fúnebre,do dobre dos sinos e da recitação lenta dos nomes de todos os que haviam sido mortos,desde 1919, ao serviço do partido. Estas cerimônias atingiram o aparato máximo em1935. Nesse ano, os cadáveres exumados das dezesseis "testemunhas de sangue" foramcolocados no Felherrnhalle, na véspera do dia das comemorações, e transferidos, a 9 deNovembro, em procissão solene, para o recém-construído Ehrentempel, na Konigplatz. Ocaminho era assinalado por duzentas e quarenta colunas, cada uma delas com o nomede um dos "caídos pelo movimento". À medida que a cabeça da procissão passava por cada coluna, o nome de um dos mortos era proclamado. Quando a procissão chegou aoFeldherrnhalle soaram dezesseis tiros de canhão, um por cada um dos dezesseis caídosde 1923. Enquanto os caixões eram colocados em carruagens para serem transportadospara o Ehrentempel, Hitler depôs uma coroa de flores no monumento aos mortos. NoEhrentempel, os nomes das dezesseis "testemunhas de sangue" foram evocados, um por um, e o coro da Juventude Hitleriana respondeu à chamada de cada nome com o grito"presente!". Após cada grito soaram três tiros em saudação. Esta comemoração era umarepresentação paga da Paixão, apr esentada num vocabulário pedido de empréstimo à religião.A narrativa relata acontecimentos históricos — mas acontecimentos históricostransfigurados pela mitificação que os transformou em substâncias inalteráveis eimutáveis. O conteúdo dos mitos é representado como não estando sujeito a qualquer espécie de mudança e o mito ensina que a história não é um jogo de forças contingentes— as constantes fundamentais são a luta,

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o sacrifício e a vitória. As virtudes cardeais donacional-socialismo consubstanciadas, por assim dizer, mas dezesseis "testemunhas desangue", são a obediência incondicional, a confiança absoluta e a preparação para o sacrifício até à morte. O fiasco político de 192 3 não é , deste modo, reinterpretado erepresentado nem como uma derrota, nem como fútil e sem sentido. O destino mortaldaqueles que nele tombaram deve ser interpretado não como uma morte sem sentido,mas como uma morte sacrificial. Deve ser entendido como um acontecimento sagrado, que aponta em frente, para um outro acontecimento sagrado, o de 30 de Janeiro de 1933,pois a tomada do pod er não é interpretada como um mero êxito político, tal como o putsch de 1923 não o é como um mero fracasso político. Nenhum deles pertence à esferadas coisas mun danas. O acontecimento "sa grad o " d o putsch prefi gura va a vit ória, enquanto o acontecimento "sagrado" da tomada do poder dava, por fim, forma real aoconteúdo da revelação, o "Reich". Entre os dois acontecimentos estabeleceu -se umaconcordância mítica e a data crucial recorrente desta narrativa mítica é o 9 de Novembro.Esta narrativa era mais do que o contar de uma história, era um culto encenado, era um rito estabelecido e representado. A sua história não era inequivocamente contadan o p r e t é r i t o , m a s n o t e m p o d e u m p r e s e n t e m e t a f í s i c o . S u b e s t i m a r í a m o s o p o d e r comemorativo do rito, minimizaríamos o seu poder mnemónico, se disséssemos que ele recordava acontecimentos míti cos ao s participantes. De veríamo s antes d izer que o acontecimento sagrado de 1923 era reapresentado; os que participavam no rito davam -lhe uma forma cerimoniaIment e corpori zada. A realidade trans fi gurada do mito era r e a p r e s e n t a d a u m a e o u t r a v e z , q u a n d o a q u e l e s q u e t o m a v a m p a r t e n o c u l t o s e tornavam, por assim dizer, contemporâneos do acontecimento mítico. Todos os anos, amarcha histórica de 1923 repetia-se; todos os anos, soavam os dezesseis tiros, repetindoos dezesseis disparos mortais de 1923; todos os anos, as bandeiras eram agitadas nãocomo símbolos que se reportassem a um acontecimento acabado, mas como relíquias consub stanciais desse me smo acontecimento. Acim a de tudo, era atra vés de ato s representados num lugar sagrado que a ilusão do tempo mundano era suspensa. No Feldherrnhalle dava-se, todos os anos, uma forma presente à estrutura mítica. Neste locala diferença temporal era negada e a exist ência da mesma realidade, "ve r dadeira " e"autêntica", anualmente desvendada.O regime nacional-socialista era recente e as suas cerimônias recém inventadas,apesar de adotarem deliberadamente alguns componentes cristãos — de calendário e decarater intrínseco — da mesma maneira que as

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cerimônias cristãs primitivas adotaram alguns elementos pagãos. Assim, o nazi estava para o cristão como o cristão estava parao pagão. Há uma tradition germânica muito antiga — assim identificada — e esta tem sidoem parte mantida em funcionamento.

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Ac ontecimentos da natu reza do s que foram atrás refe renciado s faze m parte,c l a r a m e n t e , d e u m f e n ô m e n o m a i s v a s t o , o d a a ç ã o r i t u a l . E x i s t e u m d e s a c o r d o substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser utilizada, mas considero queuma das definições mais sucintas e funcionais à nossa disposição é aquela que Lukespropõe, sugerindo que empreguemos o termo ritual para designar "a atividade orientadapor normas, com carater simbólico, que chama a atenção dos seus participantes paraobjetos de pensamento e de sentimento que estes pensam ter um significado especial".As premissas contidas nesta definição podem ser reveladas através de três proposiçõesinterligadas , cada uma das quais se pode enunci ar mais facilmente sob uma forma negativa.Os ritos não são meramente expressivos. É verdade que são atos com mais deexpressivo do que de instrumental no sentido em que ou não são dirigidos para um fimespecífico, ou, se o são, como no caso dos ritos de fertilidade, não conseguem alcançar os e u o b j e t i v o e s t r a t é g i c o . M a s o s r i t o s s ó s ã o a t o s e x p r e s s i v o s e m v i r t u d e d a s u a regularidade notória, são atos formalizados e tendem a ser estilizados, estereotipados erepetitivos . Dad o serem deliberadamente estilizad os, não estão sujeito s à variação espontânea, ou, pelo menos, só são suscetíveis de variação dentro de estritos limites.Não se realizam sob uma compulsão interior momentânea, mas são deliberadamente celebrados para simbolizar sentimentos. Libertam, na verdade, sentimentos expressivos,mas este não é o seu objetivo central.Os ritos não são meramente algo de formal. Ex p rimimos vul garmente a nos sa percepção do seu formalismo falando de tais atos como "meramente" rituais, ou comoformas "vazias", e pomo -los freqüentemente em contraste com atos e declarações àsquais nos referimos como "sinceras" ou "autênticas". Mas isto é enganador, pois aquelesque celebram os ritos sentem que estes são obrigatórios, mesmo que nãoincondicionalmente, sendo a interferência com atos dotados de valor ritual sempre sentidacomo uma injúria intolerável infligida por uma pessoa, ou grupo, a outro. Podemos achar que as crenças que outra pessoa qualquer considera sagradas são puramentefantásticas, mas nunca pode pedir-se de ânimo leve que a sua expressão efetiva sejaviolada. E, in ver sament e, as pe ss oas re sistem à obri gação de fazer

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lou vore s a um conjunto de ritos alheios, incompatíveis com a sua própria visão da "verdade", porqueencenar um rito é sempre, num certo sentido, estar de acordo com o seu significado.

Obri gar o s patriota s a insu ltare m a sua bandeira, ou f orçar o s pagã os a receber o batismo, é violentá-los.O efei to dos rito s não está limitado à cerimônia ritual. E verdade q ue os rituais tendem a realizar-se em lugares especiais, em datas estabelecidas. E é um fato que muitos rit os a s sinalam momento s de início e termo tanto em cerimônias na s alt uras críticas da vida dos indivíduos — por exemplo, o nascimento, a puberdade, o casamentoe a morte —, como também nas cerimônias recorrentes do calendário, mas o que quer que os ritos demo nstrem , i mpre gna também o comportamento e a ment alidade não rituais. Embora delimitados no tempo e no espaço, os ritos são também, por assim dizer,porosos. Considera-se que fazem sentido, porque têm significado relativamente a um conjunto de outras ações não rituais, para toda a vida de uma comunidade. Os ritos têm acapacidade de conferir valor e sentido à 'vida daqueles que os executam.Todos os rito s são repetiti vo s e a repetição subenten de automaticamente, a continuidade com o passado, mas existe uma classe distintiva de ritos que têm um carater calendarizado explicitamente virado para o passado. Os festivais nacional -socialistaspertencem a este tipo e é fácil pensar em mais exemplos. Assim, em muitas culturas, osfestivais são realizados como a comemoração de mitos que lhes estão associados ecomo a recordação de um acontecimento que se pensa ter ocorrido numa data históricadeterminada, ou num qualquer passad o mítico; existem cerimôniai s recor r entes no calendário, como o Dia de Ano Novo e os aniversários; as festas dos santos cristãoscomemoram-se em certos dias do ano; no cenotáfio, celebram-se cerimônias derecordação; as bandeiras são colocadas a meia-haste; põem-se flores nas sepulturas; eexistem atualmente mais de uma centena de embaixadas, em todas as capitais mundiaismais importantes, cada uma com, pelo menos, uma celebração nacional para a qual osfuncionários devem ser convidados, todos os anos. Algumas destas comemorações sãocelebradas de bom grado, outras são um fardo e outras não provocam mais do que um bocejo moderadamente emocionado. Contudo, a característica que todas têm em comum,e q u e a s a f a s t a d a c a t e g o r i a m a i s g e r a l d o s r i t o s , é q u e n ã o i m p l i c a m a p e n a s a continuidade com o passado, mas reivindicam explicitamente essa mesma continuidade.E muitas delas, nas quais desejo agora fixar a atenção, fazem-no através da reencenaçãoritual de uma narrativa de

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acontecimentos que se jul ga terem decorrido num tempo passado, de modo suficientemente elaborado para incluírem a performance deseqüências mais ou menos invariáveis de atos e declarações formais.Em nenhum outro domínio é esta pretensão, de comemorar uma série anterior deacontecimentos fundadores sob a forma de um rito, mais amplamente expressa do que nas grandes religiões mundiais. Uma tal pretensão está nelas constantemente presente.

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[...] A primeira linha de argumentação, a que chamarei a posição psicanalítica,consiste na perspectiva de que o comportamento ritual se compreende melhor como umaforma de representação simbólica. Afirma-se que os ritos são o enunciadosistematicamente indireto, codificado no simbolismo do rito, de conflitos que esse ritodisfarça e, nessa me dida, ne ga. O proces so p rimário, que se considera e xplicar o processo secundário da representação simbólica, está localizado na história de vida doindivíduo, embora as interpretações psicanalíticas particulares do ritual possam variar, conforme a fase edipiana ou pré -e di piana da infância, ou outr o q ualquer proces so conflitual, seja, ou não, tomada como a gênese de tais representações. Aquilo que todasessas interpretações têm em comum é descodificarem o texto ritual como tendo uma c a r g a d e c o n f l i t o e e s t a n d o , p o r i s s o , d e c e r t o m o d o , c a r r e g a d o d e e s t r a t é g i a s d e negação.É possível interpretar os rituais psicanaliticamente como representaçõessimbólicas, explicando essas representações em termos da história de vida do indivíduo.

Referências

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