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Ideologia e propriedade: Uma questão de interpretação jurídica / Ideology and property: A matter of legal interpretation

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 7, p. 48769-48791 jul. 2020. ISSN 2525-8761

Ideologia e propriedade: Uma questão de interpretação jurídica

Ideology and property: A matter of legal interpretation

DOI:10.34117/ bjdv6n7-502

Recebimento dos originais: 20/06/2020 Aceitação para publicação: 20/07/2020

Eber Zoehler Santa Helena

Tabelião de Notas e Protesto de Títulos de Águas Lindas de Goiás, Consultor aposentado de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, Mestre em Direito pelo Centro

Universitário de Brasilia – UNICEUB e doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB

E-mail: zoehler@gmail.com

Breno de Andrade Zoehler Santa Helena

Tabelião de Notas e Protesto de Títulos de Planaltina – DF. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasilia – UNICEUB e doutorando em Direito pelo Centro Universitário de

Brasília – UNICEUB E-mail: brenoz@gmail.com

RESUMO

O artigo explora o instituto da propriedade em face da intepretação jurídica ideologizada. Primeiramente o artigo aborda os múltiplos conceitos de ideologia, para então analisar a correlação entre a ideologia e o direito de propriedade, no intuito de se destacar o viés ideológico da propriedade. Conclui-se mostrando que a propriedade no formato atual não é um conceito atemporal, mas sim fruto de um processo histórico vinculado a uma ideologia correspondente à época.

Palavras-chave: propriedade, Ideologia, interpretação jurídica. ABSTRACT

The article explores the property institute in the face of ideologized legal interpretation. Firstly, the article addresses the multiple concepts of ideology, and then analyzes the correlation between ideology and property rights, in order to highlight the ideological bias of property. It concludes by showing that property in its current form is not a timeless concept, but the result of a historical process linked to an ideology corresponding to the time.

Keywords: property, Ideology, legal interpretation.

SUMÁRIO

1- Introdução; 2- O conceito de ideologia; 2.1- Evolução do termo ideologia; 2.2- Conceitos gnosiológico e sociológico de ideologia; 2.3- O fenômeno ideológico e sua dialética; 2.4- Ideologia na sociologia do conhecimento; 3- Propriedade e sua interpretação ideologizada; 3.1- O desenvolvimento da propriedade Liberal; 3.2- A propriedade liberal no Brasil; 4- Conclusões

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SUMMARY

1-Introduction; 2- The concept of ideology; 2.1- Evolution of the term ideology; 2.2- Gnosiological and sociological concepts of ideology; 2.3- The ideological phenomenon and its dialectic; 2.4- Ideology in the sociology of knowledge; 3- Property and its ideological interpretation; 3.1- The development of Liberal property; 3.2- Liberal ownership in Brazil; 4- Conclusions

1 INTRODUÇÃO

Se perguntarmos a qualquer pessoa se ela sabe o que é ser proprietário, leiga ou instruída, prontamente ela afirmará que sim. A ideia de ser proprietário ou, mais amplamente, de ser dono, parece ser ínsita ao ser humano. Desde tenra idade sabemos, ou aprendemos, o que é o “meu” e o “seu”. Contudo, esse saber acerca do pertencimento não é inerente como se pode pensar em um primeiro momento. Não se pensarmos a propriedade como algo mais específico, como um instituto jurídico que implica em inúmeras características, poderes, limitações e até mesmo obrigações. Sobre essa característica espaço-temporal do sentido do “meu” proprietário é que se debruça o presente artigo, sob o prisma de sua visão ideologizada.

Tanto o termo “ideologia” como o “propriedade” podem desencadear inúmeras acepções, não por menos, sua conjugação merece maior reflexão e aprofundamento. Motivo pelo qual visa o presente artigo abordar, não exaustivamente, a ideologização do instituto jurídico da propriedade e sua interpretação.

A fim de ilustrar a relevância e complexidade do tema, já no século XIX, Pierre-Joseph PROUDHON (1975, 11), 1809-1865, um dos primeiros anarquistas, analisava a propriedade, sua origem e ideologias, ab initio, questionava com enorme atualidade:

“O que é a propriedade? Não posso responder simplesmente: é o roubo, ficando com a certeza que me entendem embora esta segunda proposição não seja mais que a primeira (escravatura), transformada?

Proponho-me discutir a própria base do nosso governo e instituições; a propriedade; estou no meu direito: posso enganar-me na conclusão a tirar das minhas buscas; estou no meu direito: apetece-me pôr o pensamento final do meu livro; estou sempre no meu direito. Certo autor ensina que a propriedade é um direito civil, nascido da ocupação e sancionado pela lei; um outro sustenta que é um direito natural, tendo a sua origem no trabalho: e estas doutrinas; ainda que pareçam opostas, são encorajadas e aplaudidas. Eu pretendo que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei, podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem causa: é repreensível pensar assim?”

Como veremos, o instituto da propriedade mostra-se como um dos mais examinados e identificados com as visões ideologizadas, ou seja, conforme os interesses sócio-econômicos dominantes à época. Todavia, para sua interpretação jurídica, o instituto deve ser analisado pela hermenêutica como uma relação dialética entre a experiência de pertença e o distanciamento alienante. Assim, depois de elaborado o texto, esse adquire autonomia e o distanciamento no ato de

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leitura do texto permite sua interpretação. É essa a riqueza da hermenêutica, e aqui se dá a identificação da presença da crítica no interior da interpretação, com o distanciamento pertencendo à própria mediação dos interesses expressos no texto.

2 O CONCEITO DE IDEOLOGIA

2.1 EVOLUÇÃO DO TERMO IDEOLOGIA

O termo ideologia foi pela primeira vez utilizado por Antoine-Louis-Claude Destutt, o conde de Tracy (Paris, 1754-1836), filósofo, político, soldado francês e líder da escola filosófica dos Ideólogos. Criou o termo idéologie (1801) no tempo da Revolução Francesa, com o significado de ciência das ideias, tomando-se ideias no sentido bem amplo de estados de consciência.1

Destutt, militar, aderiu à Revolução Francesa, destacando-se como deputado, fazendo parte dos sensualistas, com orientação nos pensamentos de Condorcet, todavia, seus pensamentos republicanos entraram em conflito com os partidários de Napoleão Bonaparte, que os acusaram de

idéologues.

Passada uma década da queda da Bastilha, exilado em Bruxelas, começou a publicar Eléments D'Ideologie, desde 1801 a 1815, em 4 volumes, postulando a fundação de um original campo de estudos destinado a formar a base de todas as ciências: a ciência das ideias, tratando-as como fenômenos naturais que expressariam a relação entre o homem, organismo vivo e sensível e o seu meio natural de vida.

Assim, para ele, o que o estudo da ideologia possibilitava era o conhecimento da verdadeira natureza humana ao perguntar de onde provinham nossas ideias e como se desenvolviam.

Entretanto, com o tempo, o termo ideologia adquiriu uma conotação eminentemente pejorativa, a ponto do ensino da disciplina Ciência Moral e Política, ser proibida no Institut de France (1812) por Napoleão Bonaparte, que acusou seu autor e outros professores da citada disciplina, de pregarem oposição ao seu governo.

Como Destutt defendia a distribuição de poderes, a liberdade política, considerando que esta não pode florescer sem liberdade individual e sem liberdade de imprensa, o regime déspota napoleônico não aceitou. Por consequência, desde Napoleão, o termo ideologia tornou-se inseparável da implicação pejorativa de que ideias são usadas para obscurecer a verdade e manipular pessoas.

1 Destutt de Tracy. In Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Destutt_de_Tracy. Acesso em 09.04.2018

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Marx e Engels deram sua conotação atual ao conceberem ideologia como a consciência falsa determinada pelas relações sociais. Os seguidores de Marx mostraram mais interesse pelo conceito de ideologia do que ele próprio. Assim, a chamada teoria marxista, que inclui Marx e seus seguidores socialistas/materialistas, tem utilizado amplamente o conceito de ideologia, embora nem sempre com o mesmo sentido dado por Marx, como enseja Luis VILLORO (1985, 15), a partir dela, ideologia também pode significar um conjunto de crenças ligadas a uma classe social que as considera como sendo verdadeiras.

Terry EAGLETON (1997, 70) aduz ao fato de Karl Marx descrever Destutt de Tracy como uma luz entre os economistas vulgares, embora o tenha atacado tanto em “A ideologia alemã” como em “O capital”, classificando-o, nesse último, de “burguês doutrinário e insensível”, sem dúvida uma visão ideologizada do criador do termo.

2.2 CONCEITOS GNOSIOLÓGICO E SOCIOLÓGICO DE IDEOLOGIA

Luis VILLORO (1985, 16) faz uma releitura do conceito de ideologia a partir de alguns textos de Marx e de seus seguidores. Seu objetivo é averiguar em que consiste um pensamento ideológico para poder reconhecê-lo e descobrir sua função. Villoro esclarece que o termo "ideologia" não se aplica a enunciados ou crenças isolados, mas a conjuntos desses, que podem estar mais ou menos sistematizados ou teorizados ou ser compartilhados por um ou mais grupos de indivíduos.

Ideologia pode ser apreendida por seus conceitos gnosiológico ou sociológico. O primeiro relaciona ideologia a enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos, já o conceito sociológico se refere à verificação das causas e efeitos sociais dos enunciados. Assim, buscam responder às perguntas:

1. Em que consiste a falsidade, ou insuficiente justificação, dos enunciados ideológicos? 2. Como se explica que certos indivíduos tenham crenças que podem expressar-se em enunciados ideológicos no sentido anterior?

Portanto, a ideologia consistiria em uma forma de ocultamento de interesses e preferências de um grupo social que passam por valores universais e que são aceitos por todos.

O conceito gnosiológico (teoria geral do conhecimento humano) vincula a análise à questão da falsidade, quando enunciados ideológicos se expressam como um conhecimento, conforme a teoria do conhecimento, mas são na realidade uma forma de erro, forma de ocultamento de interesses e preferências de um grupo social que se passam por valores universais e que são aceitos por todos. Nesse sentido, coforme Villoro (1985, 17 a 21), temos os seguintes conceitos gnosiológicos para o termo ideologia:

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Conceito 1: apresentam os produtos de um trabalho como coisas ou qualidades de coisas independentes desse trabalho, tendo esse sentido quando se fala em “deformação ideológica”, quando por exemplo, se tenta explicar uma atuação política pelas ideias que declaram possuir seus atores e não pela função que realmente exercem. Para Villoro, assim que Marx e Engels explicam a questão da religião e da filosofia idealista alemã.

Conceito 2: apresentam interesses particulares, de classe, como gerais; enunciados de valor (preferência pessoal) que se apresentam como enunciados de fatos; e/ou enunciados que expressam desejos e emoções pessoais subjetivas e se apresentam com descritivos de qualidades objetivas. Já o conceito sociológico identifica enunciados ideológicos com sua função social determinada, ambos encontrados na teoria marxista.

Conceito 3: um conjunto de enunciados que expressam crenças condicionadas pelas relações sociais de produção; assim poderia se falar de uma “ideologia do capitalismo”, da “ ideologia da classe média”, ou da “ideologia do proletariado”; e

Conceito 4: um conjunto de enunciados que expressam crenças que cumprem uma função social de coesão entre os membros do grupo (Althusser), e de dominação de um grupo ou classe sobre outros (Marx e todos os autores marxistas).

Villoro formula duas outras definições de ideologia, baseadas na teoria marxista, que se aproximam do que ele chama de uma visão sociológica de ideologia, isto é, os enunciados ideológicos não se identificam necessariamente com a questão da falsidade e sua relação com o conhecimento, mas se relacionam com causas e consequências sociais.

Assim, a ideologia seria resultado de todo um conjunto de crenças que manipulam os indivíduos para impulsioná-los à realização de ações que promovam o poder político de um grupo ou de uma classe.

Villoro acredita que sozinhas as abordagens gnosiológica ou sociológica de ideologia são insuficientes para identificar enunciados que expressam uma ideologia. Assim, para se determinar se uma crença é ideológica deve-se demonstrar que se trata de uma crença não suficientemente justificada e que essa mesma crença cumpre uma função social determinada.

Villoro (1985, 110) propõe um quinto conceito de ideologia que relaciona as duas concepções do termo, que abrange tanto a função de dominação como a função social de promover o poder político de um grupo. Para ele, nem todas as crenças compartilhadas por um grupo social podem ser consideradas ideológicas. Somente podem ser consideradas ideológicas crenças compartilhadas por um grupo social:

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1) que não estão suficientemente justificadas, ou seja, que cumprem uma função de dominação, distorcendo a realidade (função mistificadora); e

2) que cumprem a função social de promover o poder político desse grupo, ou seja, se a aceitação dos enunciados pelos quais se expressam essas crenças favorece o êxito ou a conservação do poder por esse grupo.

A partir desse conceito de ideologia se abriria um novo campo de investigação: o dos usos sociais da linguagem como procedimento de mistificação, assim se poderia verificar onde reside a ideologia de um discurso, de forma a desmistifica-lo identificando em seus enunciados sua função de dominação “mistificadora” e sua função social.

2.3 O FENÔMENO IDEOLÓGICO E SUA DIALÉTICA

Conforme Paul RICOEUR (1988, 21), à clássica oposição entre ciência e ideologia deve impor-se uma relação dialética: não há um lugar não-ideológico de onde possa falar o cientista social, porque falar de um lugar axiologicamente neutro não passa de um engodo.

Conforme Ricoeur (1988, 64) no tratamento do tema ideologia verificam-se duas armadilhas iniciais que comprometem a definição do fenômeno:

A primeira corresponde em aceitarmos como evidente uma análise em termos de classes sociais. Afinal, isso parece natural, tão forte é a marca do marxismo sobre a questão da ideologia.

Para Ricoeur: “aceitar a análise, no ponto de partida, em termos de classes sociais, é fechar-se ao mesmo tempo numa polêmica estéril pró ou contra o marxismo” fechar-sendo necessário um pensamento que tenha a audácia de cruzar Marx sem segui-lo ou com ele entrar em conflito.

A segunda armadilha consiste em definir a ideologia vinculada à existência de uma classe dominante, baseada no aspecto da dominação, ampliando o foco para o problema da integração social, visto que a dominação constitui mero detalhe e não condição única e autônoma das relações sociais, pressupondo-se que ideologia seria um fenômeno essencialmente negativo.

Assim, para Ricoeur (1988, 65 a 84), a ideologia, no aspecto negativo, seria inerente ao adversário, aquele de quem se discorda, uma representação falsa cuja função é dissimular a pertença dos indivíduos, professada por um indivíduo ou grupo, de que esses não têm interesse em reconhecer o fato.

O fenômeno ideológico vincula-se à necessidade do grupo social de identificar-se com uma imagem de si mesmo, representar-se perante outros. Assim, ideologia revela-se com base na

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distância que separa a memória social de um acontecimento fundador do grupo social, propagando as convicções iniciais para além do intuito dos “pais fundadores”, convertendo-se em credo de todo o grupo, perpetuando a energia inicial para além do período pós-revolução, além da efervescência.

Ricoeur entende que a ideologia é por excelência o reino dos ismos: liberalismo, socialismo, etc. Seria sempre mais que um reflexo, na medida em que também é justificação e projeto. Tais atributos são possíveis em razão de sua característica esquemática e simplificadora. Este caráter "gerativo" da ideologia exprime-se no poder fundador de segundo grau que ela exerce com referência a empreendimentos, a instituições, que dela recebem a crença no caráter justo e necessário da ação instituída.

Como afirma Ricouer (1988, 117) “não dispomos atualmente de uma noção não-ideológica da gênese da ideologia”, dificultando, quando não impossibilitando, sua análise científica, pois a hermenêutica pretende cobrir o mesmo domínio que a investigação científica, mas fundando-a numa experiência do mundo que precede e engloba tanto o saber quanto o poder da ciência.

Para Ricoeur o momento de encontro entre as teorias seria a autoridade já que ela teria dado gênese à ideologia, propagou a dissimulação inicial da realidade pois não revela um fenômeno natural, mas humano. A autoridade não se prende ao conceito mais contido da ampla polissemia dessa expressão, mas naquele de quem deu início à ideia propagada como origem e justificação de sua própria ideia, fazendo-a ser propalada por um grupo que ganha espaços sociais exponenciais, seja, ou não, a ideia inicial admitida.

Ricoeur identifica como traços principais do conceito de ideologia: impacto da violência no discurso, dissimulação cuja chave escapa à consciência, necessidade do desvio para a explicação das causas. Assim, o fenômeno ideológico constitui uma experiência limite para a hermenêutica.

Conforme Ricoeur (1988, 134), a crítica da ideia torna-se rarefeita ao longo de sua propagação, tornando-se opinião, tornando-se parte inerente ao grupo social que sobre ela não mais reflete, passando, nesse momento a ser uma ideologia, histórica, como Gadamer a entendeu, e como instrumento de dominação, para Habermas. Sob esse aspecto, importante delimitar aquilo que Ricoeur entende ser a correlação entre hermenêutica e ideologia, ponto de síntese entre as teses de Gadamer e Habermas. A alternativa seria a possibilidade de considerar a relação dialética entre a consciência histórica e a crítica como matriz fundante da hermenêutica, justificando como lugar inicial da questão hermenêutica a relação dialética entre a experiência de pertença e o distanciamento alienante. Assim, depois de elaborado o texto, esse adquire autonomia e o distanciamento no ato de leitura do texto permite sua interpretação. É essa a riqueza da hermenêutica,

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e aqui se dá a identificação da presença da crítica no interior da interpretação, com o distanciamento pertencendo à própria mediação.

Ricoeur difere a hermenêutica das tradições da crítica das ideologias afirmando que a hermenêutica se baseia no consenso presente na história da linguagem humana, no "diálogo que somos nós"; e, a crítica das ideologias, projeta um vir a ser: o ideal da ação comunicativa, através da emancipação da linguagem. Porém, quando Habermas fala da emancipação ele a relaciona com a autorreflexão e essa só pode ter lugar na tradição de Gadamer, modo pelo qual as teorias se complementam.

Nada mais enganador do que a pretensa antinomia entre uma ontologia do entendimento prévio e uma escatologia da libertação, não sendo necessário escolher entre reminiscência e a esperança, entre Gadamer e Habermas, porquanto as teses se complementam. Caso contrário, separadas radicalmente a hermenêutica e a crítica ficarão reduzidas a meras ideologias.

Ao fim, Ricoeur (1988, 167) assinala que analisou ideologia como:

....uma esquematízação imposta pela força aos fatos, seja para minimizar, seja para impor o conflito, mas sobretudo como uma concepção-anteparo que nos impede de reconhecermos a realidade.

2.4 IDEOLOGIA NA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Sob o prisma da sociologia do conhecimento, sobretudo no pensamento de Karl MANNHEIM (1968, 30), ideologia significa qualquer conjunto de conhecimentos e crenças, verdadeiras ou falsas, condicionadas socialmente, assim existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais.

Um indivíduo isolado não pensa, estatui Karl Mannheim (1968, 31 a 38), o mais correto é dizer que ele participa no pensar acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes dele. De acordo com o contexto particular da atividade coletiva do grupo que participam, os homens tendem sempre a ver diferentemente o mundo que os circunda. Assim, quem pensa não são os homens em geral, nem tampouco indivíduos isolados, mas os homens em certos grupos que tenham desenvolvido um estilo de pensamento particular em uma interminável série de respostas a certas situações típicas.

Quando a mobilidade horizontal vê-se acompanhada de intensa vertical é que a crença de alguém na validade geral e eterna das próprias formas de pensamento é abalada, a exemplo dos sofistas no iluminismo grego em oposição à mitologia.

Em cada sociedade, existiam grupos sociais cuja tarefa específica consistia em dotar aquela sociedade de uma interpretação escolástica do mundo, intelliegentsia, como mágicos, brâmanes ou

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o clero medieval, que foram substituídos pela academia e sua liberdade de pensamento, epistemológico, psicológico ou sociológico, sob o impacto do individualismo burguês.

Para Karl Mannheim, o conceito de "ideologia" reflete uma das descobertas emergentes do conflito político nas democracias modernas, que é a de que os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesse a uma situação que simplesmente não são mais capazes de ver fatos que iriam solapar seu senso de dominação, assim, em certas situações, o inconsciente coletivo obscurece a condição real da sociedade.

Para Roland BARTHES (1997, 72), o termo “ideologia dominante” é incongruente pois ideologia expressa a ideia enquanto domina, para ele a ideologia só pode ser dominante, sendo correto falar de “ideologia da classe dominante”, visto que existe efetivamente uma classe dominada, assim não há de se falar em “ideologia dominante” pois não há ideologia dominada, os “dominados” não teriam nada, nenhuma ideologia, senão precisamente - e é o último grau da alienação - a ideologia a que eles são obrigados a observar para viver. Assim, para Barthes: “A luta social não pode ser reduzida à luta de duas ideologias rivais: é a subversão de qualquer ideologia que está em causa".

A utopia seria formulada pela classe ascendente, visando o futuro, enfrentando a realidade e a fazendo explodir (implodir); a ideologia seria concebida pela classe dirigente, olhando para o passado, justificando-o e dissimulando-o, embora ambas se situem em fundo comum de não congruência com a realidade.

Insuportável na vida individual, viver com o inconsciente à mostra, é o pré-requisito histórico da autoconsciência crítica científica. Nesse sentido, afirma Karl Mannheim (1968, 74):

As pessoas que mais falam de liberdade humana são as que, na realidade, se encontram mais cegamente sujeitas a determinação social, na medida em que, na maioria dos casos, não suspeitam do profundo grau em que sua conduta é determinada por seus interesses. Ao contrário, é de se notar que exatamente as que insistem na influência inconsciente dos determinantes sociais sôbre a conduta é que lutam por superar êstes determinantes tanto quanto possível. Elas revelam as motivações inconscientes a fim de fazer daqueles fôrças que anteriormente as dominavam cada vez mais objetos de decisão racional consciente.

A Sociologia do Conhecimento procura analisar a relação entre conhecimento e existência; enquanto pesquisa histórico-sociológica busca traçar as formas tomadas por esta relação com o desenvolvimento intelectual da humanidade e resolver o problema do condicionamento social do pensamento.

Mannheim (1968, 288) afirma que no domínio da Sociologia do Conhecimento busca-se evitar o uso do termo "ideologia", devido à sua conotação moral, e, ao invés dele, falar da "perspectiva"

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de um pensador, ou seja, o modo global de o sujeito conceber as coisas, tal como determinado por seu contexto histórico e social.

Para Karl POPPER (1974, 220) a sociologia do conhecimento considera que o pensamento científico, em especial sobre questões sociais e políticas, não opera no vácuo, mas numa atmosfera socialmente condicionada, influenciado por elementos inconscientes ou subconscientes, formando seu habitat social, determinando todo um sistema de opiniões e teorias do pensador.

A sociologia do conhecimento pode ser considerada como uma versão hegeliana da teoria do conhecimento de Kant em sua critica à teoria “passivista” do conhecimento, que defende dever seu interprete permanecer inerte perante o texto para evitar o erro (teoria do balde mental). Coexistem ideologias totais dentro de uma nação conforme a classe, estrato social ou habitat social dos que as sustentam, o que Popper vincula como dogmatismo reforçado.

Assim, Popper discorda dos sociólogos do conhecimento que indicam que só quem foi sócio-analisado ou se sócio-analisou, libertando-se de seu habitat social, pode alcançar a mais alta síntese do conhecimento objetivo, pois tornar sua mente mais objetiva não basta para alcançar a objetividade científica, atingível pela intersubjetividade do método científico, de caráter público, ou seja, pela possibilidade da repetição da experiência por outro ser, como nas ciências naturais, possibilitando a todos a critica.

Para Popper a imparcialidade do cientista individual não é a fonte, mas antes o resultado desta objetividade da ciência socialmente ou institucionalmente organizada, atingível pela aplicação prática do descobrimento e não pela tentativa de separar conhecimento de vontade. Não há como livrar-nos de nossos próprios preconceitos e ideologias, devemos sim estar abertos à critica.

Conclui Popper (1974, 231) em sua critica à sociologia do conhecimento:

A auto-análise não substitui aquelas ações práticas que são necessárias para estabelecer as instituições democráticas; e só estas podem garantir a liberdade do pensamento crítico e o progresso da ciência.

Luis Prieto SANCHIS (1993, 25), ao analisar a questão da ideologia e da interpretação jurídica, destaca que a legislação é, ao mesmo tempo, uma ciência e um princípio de mudança, como ciência um direito racional, como política consiste em um simples processo de dedução que deve restaurar na sociedade os princípios da natureza humana. Assim as leis, as verdadeiras leis, seriam aquelas em harmonia com os princípios universais da moral, comuns a todas as nações e adaptadas a todos os climas.

O Direito se apresenta como um fenômeno social, histórico, “cambiante”, e, sobretudo, representa a manifestação de uma voluntariedade e não uma cristalização de uma razão abstrata e

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atemporal, porquanto o mito da lei racional pura não poderia se perpetuar ante a realidade plural e ideológica.

Inocêncio M. COELHO (2015, 100, 124 e 128), traz relevantes considerações sobre o tema ideologia, ipsis litteris:

As ideologias retratam conflitos

256. A experiência histórica, entretanto, não avaliza essa ideia, até porque "vivemos espiritualmente numa situação polêmica de visões do mundo em conflito, que são, umas para as outras, ideologias. Deparamo-nos com um processo de designação mútua: uma ideologia é sempre a ideologia do outro".

Visão de mundo e ideologia

329. Toda visão do mundo - Weltanschauung - reflete determinada ideologia, ou seja, um modo de ver as coisas distorcido e engendrado pela constelação de fatores que constituem o nosso modo de ser e de estar no mundo ( = ângulo existencial), em um mundo que nos precede e nos sucederá, e que nós, seres finitos e confinados, só podemos - quando muito-, descrever e, ainda assim, nos estreitos limites da nossa linguagem, de cujo círculo não conseguimos sair.

Nenhuma linguagem é neutra ou inocente

334. A linguagem encrática (aquela que se produz e se difunde sob a proteção do poder) é por estatuto uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o desporto, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, muitas vezes as mesmas palavras - o estereótipo é um fato político, a figura maior da ideologia. Tampouco a linguagem jurídica é neutra ou inocente; ela carrega consigo todo um sistema de pensamento, uma articulação de conceitos e de princípios, uma carga afetiva ou passional de valores.

3 DA PROPRIEDADE E SUA INTERPRETAÇÃO IDEOLOGIZADA

A propriedade de bens materiais e imateriais, individual ou coletiva, pública ou privada, como instituto jurídico primevo apresenta-se como um dos mais tensos e voláteis conceitos jurídicos em termos ideológicos por expressar as relações socioeconômicas existentes nas sociedades desde sua sedentarização.

Conforme Washington de Barros MONTEIRO (2003, 83), constitui o direito de propriedade o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência, o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas. Não por menos, Carol ROSE (1996) se debruçou sobre a análise das teorias acerca do direito de propriedade como verdadeira “pedra fundamental” das ordens jurídicas, identificando ao menos sete teorias ou argumentos em tal sentido: 1 o argumento da prioridade - a propriedade é o elemento central sobre todos os outros direitos porque ele é anterior à política, e então a base na qual todos os direitos civis se assentam; 2 - o argumento da difusão do poder - propriedade é o mais importante dos direitos porque a propriedade difunde poder; 3 – o argumento da independência – propriedade é a pedra fundamental dos direitos porque ela faz os indivíduos independentes e assim capazes de se auto-governarem; 4 – o argumento simbólico – propriedade é a pedra fundamental dos direitos porque ela simboliza todos os outros direitos; 5 – o argumento civilizatório – propriedade é a pedra fundamental dos direitos porque sua

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aquisição e administração incutem o comportamento moral e cívico aos quais os demais direitos são dependentes; 6 – o argumento distrativo – propriedade protege todos os demais direitos porque a busca da propriedade faz a política parecer entediante; 7 – o argumento do bem-de-luxo – propriedade protege todos os outros direitos precisamente por satisfazer sua função econômica e fazer a sociedade mais rica.

Diante de tal importância e entrelaçamento visceral ao ordenamento jurídico em que se situa, a propriedade influencia e é influenciada pelo sistema jurídico no qual se insere. Carlos Roberto GONÇALVES (2011, 229) pondera que a organização jurídica da propriedade varia de país a país, conforme o regime político adotado, evoluindo desde a Antiguidade aos tempos modernos e considera:

Indubitavelmente, a configuração do instituto da propriedade recebe direta e profundamente influência dos regimes políticos em cujos sistemas jurídicos é concebida. Em consequência, não existe, na história do direito, um conceito único do aludido instituto. Nessa consonância, o conceito de propriedade, embora não aberto, há de ser necessariamente dinâmico. Deve-se reconhecer, nesse passo, que a garantia constitucional da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização, sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária.

Como acentua Caio Mário da Silva PEREIRA (2004, 89), difícil e árdua se mostra a tarefa de conceituar a propriedade, que “mais se sente do que se define”, visto que a ideia de “meu e teu” na noção do assenhoreamento de bens corpóreos e incorpóreos independe do grau de conhecimento ou do desenvolvimento intelectual.

Nos dizeres de Maria Helena DINIZ (2002, 105), a própria origem do vocábulo é obscura, entendendo alguns que vem do latim proprietas, derivado de proprius, designando o que pertence a uma pessoa. Assim, a propriedade indicaria toda relação jurídica de apropriação de um certo bem corpóreo ou incorpóreo.

3.1 O DESENVOLVIMENTO DA PROPRIEDADE LIBERAL

A regulamentação da propriedade e sua transmissão não é de hoje. No direito romano, a propriedade tinha caráter individualista e clânico/familiar, a exemplo da considerada primeira constituição romana, a denominada Lei das XII Tábuas, de 450 a.C., onde já se encontrava dispositivo regulando a propriedade e sua transmissão:

“V - É de justiça que um pai deixe suas propriedades e escravos em herança a quem quiser. se alguém morre sem deixar testamento, e se apresenta sem herdeiros, ao parente mais próximo caberá toda a herança. se não comparecer parente próximo, a herança passará para os membros da gens.

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A presente lei exclui o demente da administração de seus próprios bens, e prescreve que estes sejam colocados sob os cuidados de seus parentes ou membros de sua gens.”

Na Idade Média, a propriedade passou por uma fase peculiar, com dualidade de sujeitos (o dono e o que explorava economicamente o imóvel, pagando ao primeiro peio seu uso). Havia todo um sistema hereditário para garantir que o domínio permanecesse numa dada família de tal forma que esta não perdesse o seu poder no contexto do sistema político. A propriedade medieval consistia na relação complexa de vários sujeitos em relação ao bem. As relações sociais, como suserania e vassalagem, se imiscuíam nas relações jurídicas em relação ao bem. O vassalo era vinculado a propriedade como o também era o seu suserano. Eroulths CORTIANO Junior (2002, 89) descreve o distinto foco da propriedade imobiliária:

A Idade Média caracteriza-se por levar em consideração os efetivos apossamento e utilização dos bens como ponto de partida para sua jurisdicização. O desmembramento da propriedade em domínio útil e domínio eminente é a comprovação dessa visão proprietária, que parte da coisa e não do sujeito, para definir-se como titularidade. Pode-se dizer, com Paolo Grossi, que a regulação da propriedade medieval é um estatuto da coisa – e não do sujeito -, o que vai explicar com maior clareza a legitimidade de mais de um proprietário sobre uma coisa, ao contrário das civilizações individualísticas, que partem do sujeito para construir o jurídico.

Após a Revolução Francesa, a propriedade assumiu feição marcadamente individualista. Pierre-Joseph PROUDHON (1975, 49) nos traz a visão ideológica da propriedade de seu contemporâneo e autor do próprio conceito de ideologia ao afirmar que “Segundo Destutt de Tracy a propriedade é uma necessidade da nossa natureza.”

Ainda em sua visão ideologizada da propriedade Proudhon (1975, 246) conclui sua conhecida e referenciada obra “O que é a propriedade?” com as seguintes proposições:

Com efeito que sofismas, que obstinação de preconceitos se sustentariam perante a simplicidade dessas proposições.

I. A posse individual (1) é a condição da vida social; cinco mil anos de propriedade o demonstram: a propriedade é o suicídio da sociedade. A posse está no direito; a propriedade é contra o direito. Suprimam a propriedade conservando a posse; e apenas por essa modificação no principio modificareis tudo nas leis, no governo, na economia, nas instituições: expulsareis o mal da terra.

II. Sendo igual para todos o direito de ocupar, a posse varia com o número de possuidores; a propriedade não pode formar-se.

III. Sendo o efeito do trabalho também o mesmo para to-dos a propriedade perde-se pela exploração estranha e pelo arrendamento. •

IV. Resultando necessariamente todo o trabalho humano de uma força colectiva toda a propriedade se torna, pela mesma razão, colectiva e indivisível: em termos mais precisos, o trabalho ·destrói a propriedade.

V. Sendo toda a capacidade trabalhadora assim como todo o instrumento de trabalho um capital acumulado, é injustiça e roubo uma propriedade colectiva, a desigualdade de tratamento e de riqueza, sob pretexto de desigualdade de capacidades.

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A visão ideologizada acima, exposta na primeira metade do século XIX e que inclusive veio a influenciar Karl Marx e outros filósofos materialistas daquele tempo, expressa a importância da ideologia para a conformação do mais relevante instituto jurídico da sociedade moderna: a propriedade individual. Desde tempos remotos da fixação do homem em seu habitat pela prática do cultivo agrícola e pastoril que a posse da terra reconhecida por todos mostrou-se útil e necessária ao desenvolvimento econômico.

A propriedade, historicamente refúgio do indivíduo e sua personalidade, assim como do ente familiar ou empresarial, facilmente visualizável no brocardo “My home, my Castle”, classifica-se dentre os primórdios dos direitos fundamentais contrapostos ao estado liberal e berço da democracia moderna, como nos assegura Cristiano Farias e Nelson ROSENVALD (2012, 257):

A relação entre propriedade e liberdade coincide com o surgimento do Estado, que protege a propriedade como um direito, da mesma forma que tutela o indivíduo contra o arbítrio do Estado. Sempre que o Estado reivindica para si recursos produtivos, os indivíduos ou famílias não afirmam a sua liberdade, pois se tomam completamente dependentes do poder soberano. (...)

Diferencia-se a propriedade privada dos privilégios - modo típico de propriedade do antigo regime. Enquanto os privilégios ·traduziam um estamento, dirigindo-se a um determinado grupo social por expressar uma sociedade de castas, naturalmente excludente, a propriedade em seu sentido moderno representava o homem livre, "capaz de entrar em possessão de si mesmo. (...)

Defere-se ao homem razão e liberdade, sendo concebida uma sociedade composta por indivíduos isolados, portadores de direitos subjetivos invioláveis pelo Estado. Todos poderiam perseguir seus interesses e realizar seus ideais em um espaço de liberdade e igualdade formal, na qual os sujeitos abstratos não mais seriam qualificados por privilégios ou títulos nobiliárquicos, a par de suas diferenças sociais.

A propriedade legislada como direito individual indevassável remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789, que em seu art. 17 dispõe:

Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização.

O direito à propriedade mostrou-se como um dos alicerces das sociedades liberais modernas ao fixar-se como direito individual absoluto na mesma esfera do direito à vida e à liberdade, como mencionado por William Blackstone em seus Comentários às Leis da Inglaterra e remetido por Mary Ann GLENDON (1991, 20) :

O terceiro direito absoluto, [depois da vida e da liberdade] inerente a todos os ingleses, é o da propriedade: que consiste na utilização gratuita, fruição e disposição de todas as suas aquisições, sem nenhum controle ou diminuição, salvo apenas pelas leis do país .... Tão

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grande, além disso, é o respeito à lei da propriedade privada que não se autoriza a menor violação dessa; não, nem mesmo para o bem geral de toda a comunidade.2

Glendon (1991, 22), em sua análise dos enfoques doutrinários acerca da origem da propriedade, destaca John Locke e William Blackstone. John Locke, em sua obra “Segundo Tratado”, considera a propriedade como “estado da natureza”, resultado da ação humana, a exemplo da apropriação da terra ao plantá-la ou cultivá-la.

Tal posição jusnaturalista de Locke, examina Glendon, justifica-se por ser esse apoiador do regime parlamentar defendido pela burguesia afluente, assim o direito divino dos reis seria fragilizado se pudesse estabelecer convincentemente que existem direitos naturais que existem antes e independente do estado soberano monárquico.

Na sociedade agrária britânica do século XVII, a propriedade era o candidato mais atraente para esse direito natural. A escolha inspirada de Locke, a propriedade como o direito natural protótipo, serviu simultaneamente para deslegitimar a monarquia como então existia, e para reforçar o poder político, tanto da aristocracia rural como da crescente classe comerciante. O instituto da propriedade foi o pivô nas suas origens para um governo com base no consentimento.

Uma vez que o objetivo da supremacia parlamentar foi estabelecida na Inglaterra, a história da propriedade de Locke como direito natural desapareceu e direitos de propriedade continuaram a ser sujeitos a uma limitação significativa pelo costume e direito positivo. Esse também foi o caso no Canadá e em outros países cujos sistemas políticos eram modelados no padrão anglo-saxônico. Nos Estados Unidos, a teoria de Locke acerca do jusnaturalismo da propriedade foi recepcionada de forma mais radical do que provavelmente ele próprio imaginaria. William Blackstone, britânico cuja obra foi mais lida e consultada pelos norte-americanos do que em sua terra natal, exacerba ainda mais os conceitos de Locke, como ressalta Glendon (1991, 23):

Blackstone, ao contrário de Locke, estava interessado na propriedade para seu próprio bem. Na verdade, interessado é uma palavra demasiado branda para o sentimento de Blackstone sobre propriedade. Ele agitou sua alma de advogado. "Não há nada que tão geralmente atinge a imaginação e se engaja as afeições da humanidade", ele escreveu ", como o direito de propriedade; ou que o único e despótico domínio que um homem reivindica e exercita sobre as coisas externas do mundo, em total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo no universo. " Neste apóstrofo à propriedade, não encontramos se, e ou mas. Um proprietário de imóveis, Blackstone nos diz regras sobre o que ele possui, não apenas como

2 “The third absolute right, [after life and liberty] inherent in every Englishman, is that of property: which consists in the free use, enjoyment and disposal of all his acquisitions, without any control or diminution, save only by the laws of the land…. So great moreover is the regard of the law for private property that it will not authorize the least violation of it; no, not even for the general good of the whole community (William Blackstone, Commentaries on the Laws of England)”

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um rei, mas como um déspota. Os direitos de propriedade são absolutos, individuais e exclusivos 3

Glendon aduz à necessidade sentida pelos constituintes norte-americanos em 1787 ao se reunirem em Filadélfia de reafirmarem os direitos individuais, dentre os quais os da propriedade, decorrente da experiência vivida pela sociedade norte-americana nas décadas de 1770 e 1780 de um poder público fragmentado em estados autônomos com legislativos estaduais aliviando devedores e a emissão de papel-moeda que resultou em desvalorização de dívidas pendentes. Para coibir legislação desse talante, os redatores da Constituição escolheram proteger as transações da depredação legislativa construindo no âmbito do governo o sistema de freios e contrapesos, ao invés de enumerar direitos, constituindo-o na principal proteção aos direitos individuais ou minoritárias contra a tirania da maioria e a própria estrutura do governo foi desenvolvida em torno do problema de proteger a propriedade privada. Tal desígnio ficou expresso no texto constitucional

norte-americano a exemplo de seus arts. 5º e 14.4

Mesmo nos dias atuais a propriedade ainda é vista como uma mistificação justificante da apropriação da riqueza do trabalho alheio. Ainda que os estados socialistas tenham reconhecidamente fracassado em sua revolução socialista da concentração da propriedade no estado e hoje se restrinjam a pouco e periféricos exemplares como a República Democrática da Coréia ou a República Socialista de Cuba, na doutrina filosófica jurídica e econômica, remanescem visões estigmatizadoras da propriedade.

Como nos afirma Edjar Dias VASCONCELOS (2104), a burguesia precisava, naturalmente, de uma ideologia forte, que garantisse a propriedade privada, como direito natural. De igual modo afirmava-se direito divino era em benefício da nobreza, a garantia perpétua a transferência da herança do poder político. O entendimento axiológico à realidade prática do direito divino à propriedade privada apresenta-se como uma manipulação ideológica, do mesmo modo que o direito do poder político que a nobreza fundamentava para o absolutismo, na defesa divina de uma classe social protegida por Deus.

3 “Blackstone, unlike Locke, was interested in property for its own sake. In fact, interested is too bland a word for the way Blackstone felt about property. It stirred his lawyerly soul. “There is nothing which so generally strikes the imagination and engages the affections of mankind,” he wrote, “as the right of property; or that sole and despotic dominion which one man claims and exercises over the external things of the world, in total exclusion of the right of any other individual in the universe.”11 In this apostrophe to property, we find no ifs, ands, or buts. A property owner, Blackstone tells us, rules over what he owns, not merely as a king, but as a despot. Property rights are absolute, individual, and exclusive.”

4 Art. 5º ... ninguém ..., nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido procedimento legal; nenhuma propriedade privada será tomada para um uso público sem uma justa compensação.

Art. 14... nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, da liberdade ou da propriedade, sem o devido procedimento legal, nem negará a qualquer pessoa dentro da sua jurisdição a proteção equitativa das leis.(tradução livre)

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Assim, afirma Edjar Vasconcelos, fundado em Karl Marx, a propriedade moderna apresenta-se como expressão última da riqueza sob a forma de capital acumulado, processo esapresenta-se para os marxistas resultante do trabalho, em especial dos pobres, justificando-se pela teoria da mais valia, ou seja, do trabalho não pago à classe operária. Portanto, afirmam os marxistas, o acúmulo das mais valias possibilita à classe burguesa detentora do modo de produção adquirir a propriedade. Motivo pelo qual todas as formas de riquezas se fundam em mistificações. Conclui que a expropriação da força do trabalho não pode ser direito natural, em verdade, é sim um roubo, um engodo epistemológico, uma falácia.

Como visto, o conceito de propriedade como direito absoluto vingou nas nações capitalistas ao longo dos séculos XVIII e XIX, com sua atenuação a partir da transição para o século XX em função da crescente supremacia do estado social. Tal adequação do instituto da propriedade a nova realidade é analisado por Isabel VAZ (1993, 3) nos seguintes termos:

A idéia de democracia política, tão brilhantemente desenvolvida no final do século XVIII, e durante o século XIX, começou a revelar-se insuficiente, com o advento da Revolução Industriais das doutrinas marxista e católica, As duas grandes guerras constituíram fatores decisivos para a reformulação das doutrinas politicas e filosóficas, com inquestionáveis repercussões no Direito. Inicialmente, as nações envolvidas nos conflitos passaram a reformular suas constituições com o intuito de complementar a idéia de democracia política com a noção de democracia econômica e social. Novos direitos foram reconhecidos ao indivíduo, ampliando-se o âmbito da atuação de Estado, Para tornar substanciais os direitos formalmente reconhecidos pelas “Declarações” do Século XVIII, uma das primeiras e talvez a mais importante instituição a sofrer um redimensionamento foi a propriedade. Dada a íntima correlação entre a propriedade e a ideologia, a concepção desta, segundo as constituições do 2 pós-guerra não pode desvincular-se da idéia de “democracia econômica e social’.

Como instrumento de transformação social, a propriedade recebeu um tratamento jurídico pelos países do Leste Europeu, no sentido de suprimir as principais formas de apropriação privada. E os países da Europa Ocidental imprimiram-lhe um regime mais flexível, com o intuito de democratizar-lhe o acesso,

A relação entre a propriedade e os acontecimentos políticos é inegável, Quase todas as mudanças políticas acarretam modificações no regime da propriedade.

Desde a Revolução Russa de 1917, os poderes públicos, através das constituições que promulgam, fazem experiências com o regime das propriedades, como se o sucesso ou o fracasso da organização social adotada dependesse delas. Acreditamos que, em grande parte, isso é verdade.(...)

Os modelos econômicos socialistas que determinaram a abolição da propriedade privada sobre os bens de produção não conseguiram realizar, na prática, as promessas das revoluções cuja idéia-força fora a sua supressão. Alguns modelos capitalistas, por outro lado, ao permitirem uma concentração exacerbada de rendas, chegaram, através de um regime dominial distinto, a resultados semelhantes de supressão do direito à propriedade.

Desta forma, no século XX, o viés absoluto da propriedade liberal foi atenuado com o reforço do seu caráter social, contribuindo para essa situação as encíclicas Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, e Quadragésimo Ano, de Pio XI. O sopro da socialização acabou, com efeito, impregnando a

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concepção da propriedade com suas condicionantes sociais, expressão ideológica como tantas outras, inclusive a que burguesa de sua individualização extrema.

Como enfatiza Carlos Roberto Gonçalves (2011, 247), o fundamento jurídico da propriedade tem sido objeto de larga controvérsia entre juristas, filósofos e sociólogos, divergindo-se, em todos os tempos, sobre a origem e legitimidade. Sistematizando, dentre as várias teorias que foram sendo formuladas ao longo dos milênios desde sua origem, destacam-se:

Teoria da ocupação: funda-se a propriedade na ocupação das coisas, quando não pertenciam a ninguém (res nullius). É a mais antiga, remontando aos romanos. (Digesto, Livro XLI, Título I, p. 3), sendo aceita por muitos autores modernos, constituindo-se no fundamento da usucapião, instituto profundamente disseminado em nosso ordenamento e vida social, ainda que muitos entendam ser somente modo de aquisição e não de justificação da propriedade.

Teoria da especificação: apoia-se no trabalho, pensamento de viés marxista. Somente o trabalho humano, transformando a natureza e a matéria bruta, justificaria e negaria ao mesmo tempo o direito de propriedade, pois, se aceita, justificaria a apropriação pelo empregado da propriedade do empregador, e assim sucessivamente pelos novos empregados contratados pelo ex-empregado, agora empregador. Contrapõe-se a essa doutrina que o trabalho deve ter por recompensa o salário e não a própria coisa por ele produzida. Ademais, se o trabalho fosse o fundamento único ou principal da propriedade, a criança, o velho, o inválido, não podendo trabalhar, não deveriam ter propriedade alguma, e toda a riqueza deveria pertencer só aos homens aptos ao trabalho. Ademais, o trabalho é somente um dos meios de produção e acumulação das riquezas.

Teoria da lei: sustentada por Montesquieu, em seu Do Espírito das Leis, e por Jeremy Bentham, no Arte da Legislação, assenta-se na concepção de que a propriedade é instituição do direito positivo: existe porque a lei a criou e a garante. A crítica contrapõe que a propriedade não se funda somente na vontade humana, porque o legislador poderia ser levado a suprimi-la, tendo apenas poder de regular-lhe o exercício, visto que a propriedade sempre existiu, mesmo antes de ser regulamentada peia lei.

Teoria da natureza humana: a mais aceita pela doutrina ainda que se apresente com viés ideológico burguês/capitalista, na visão marxista. A propriedade seria inerente à natureza humana, uma dádiva divina, para que possam prover às suas necessidades e às da família. A propriedade individual é condição da existência e da liberdade do homem. Efetivamente, mesmo nas comunidades primitivas verifica-se a noção de domínio, não individual, mas familiar ou clânico. Com o desenvolvimento dos processos produtivos da sociedade humana migrou-se gradualmente para a propriedade privada individual. Mesmo nos países socialistas/marxistas a propriedade privada não houve a abolição total dessa. Como a família ou o casamento, a propriedade corresponde a uma força social, que se desenvolve em meio de perenes vicissitudes e dissonâncias ideológicas.

Portanto, falar de propriedade exige pensa-la dentro de seu contexto. A propriedade não subsiste, não em todas suas faces, de forma atemporal, mas somente dentro de determinado ordenamento jurídico delimitado em determinado momento. Havendo “inúmeras” formatações de propriedade, resta saber qual seria a atual propriedade. Arriscamos afirmar que a “propriedade liberal” seria a mais adequada a nosso atual ordenamento jurídico. Ainda que ela sofra constantemente críticas e interferência de outras concepções de propriedade, por exemplo, com a constante discussão de sua função social.

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Antony M. HONORÉ (1993, 370) talvez seja quem melhor defina o que seria a dita “propriedade liberal” como aquela que exige a coexistência de um conjunto de características, que apesar de não serem necessárias individualmente, precisam o ser de uma forma geral. Ele enumera tais características em: direito de possuir, direito de administrar, direito de receber frutos e rendas, direito de capital, direito de segurança, direito de transmitir e perpetuar-se, proibição de uso prejudicial e responsabilidade para execução..

Tal visão liberal de nossa propriedade hodierna é fruto de um processo histórico que, desde sua origem constitucional, se fundamenta em forte viés liberal. Nossa propriedade liberal se consolidou ideologicamente até os tempos de hoje, ainda que, nas últimas décadas, tenha se abrandado em razão das pretensões de sua funcionalização social.

3.2 A PROPRIEDADE LIBERAL NO BRASIL

Nosso direito constitucional inaugural, expresso na Constituição Imperial de 1824, dispunha em seu art. 179 como direito garantido pela Lei Maior a propriedade, equiparando-a à liberdade e à segurança individual como fundamento dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, ressalvado seu uso por exigência do bem público.

Mantendo a linha conceitual da anterior, a Constituição Republicana de 1891 tratou do tema em seu art. 72, § 17, em termos muito assemelhados aos da Carta Magna Imperial, facultando sua desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. A Constituição de 1934, influenciada pelas constituições mexicana de 1917 e alemã de Weimar (1919), incorporou a supremacia do interesse social ou coletivo em relação à propriedade, remetendo sua regulação à lei. Já a Constituição democrática de 1946, pós Estado Novo, art. 147, manteve as condicionantes de 1934 e incluiu a promoção da justa distribuição da propriedade com a devida indenização.

A Constituição de 1967 e sua Emenda 1/1969, editadas sob o regime militar pós 64, pouco alteraram quanto ao tratamento anterior do direito fundamental à propriedade, exceto a inserção da indenização da expropriação por título de dívida pública, “com cláusula de exata correção monetária”, permitindo a emissão de títulos da dívida agrária e restringindo a aquisição de terras por estrangeiros.

A Lex Legum cidadã de 1988, a exemplo de suas antecessoras, assegura o direito de propriedade dentre aqueles por ela considerados fundamentais (art. 5º, XXII), ainda que relativizado por sua função social (art. 5º, XXIII), consagrando o direito de todo e qualquer cidadão a seus bens, não podendo ser destituído desses sem o devido processo legal (art. 5º, LIV). O texto magno inova inserindo a propriedade como princípio da ordem econômica, assim como sua função social (art.

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170) e sua indisponibilidade como pena por improbidade administrativa (art. 37, § 4º), mas vedando seu confisco para satisfação tributária (art. 150, IV).

Na esfera infraconstitucional, também se apresenta a primazia da propriedade liberal. No Código Civil de 1916, temos a definição da propriedade no seu art. 524 como o direito do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua.

Esta definição cristaliza legalmente os elementos da propriedade liberal, como elencados por Honoré. Definição está que foi integralmente adotada pelo atual Código Civil, de 2002, que assim disciplinou o tema no seu art. 1.228, replicando o texto de 1.916. Apesar da igualdade dos dispositivos, o de 2002, assim como a propriedade na esfera constitucional, atenuou-se como norma, ao vincular-se a sua função social, disposta em seu §1º, sem contudo excluir-se da formatação liberal do instituto:

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

4 CONCLUSÕES

Como visto, Antoine-Louis-Claude Destutt, o conde de Tracy, ao criar o conceito de idéologie buscou desenvolver uma ciência das ideias, do fenômeno natural da consciência humana livre, expressando o liberalismo republicano, que logo foi contestado e reprimido pelo regime autocrático napoleônico, no que foi seguido pelo pensamento marxista ao vincular ideologia à falsa consciência determinada pelas relações sociais.

Do debate epistemológico acerca do conceito e abrangência do termo ideologia depreendem-se variações ontológicas que dizem respeito a aspectos axiológicos de depreendem-seus autores, expressando o condicionamento social do pensamento, como analisado pela sociologia do conhecimento. Portanto, nenhuma linguagem é neutra ou inocente, as ideologias retratam conflitos por inexistir ideologia dominante, mas ideologia da classe dominante.

Toda visão do mundo reflete determinada ideologia, sendo essa um modo de interpretar os fatos de forma distorcida e engendrada pela constelação de fatores que constituem nosso modo de ser e de estar no mundo. Como nos afirma Karl Popper, o intérprete não consegue libertar-se de seu habitat social, pois tornar sua mente mais objetiva não basta para alcançar a objetividade científica, atingível pela intersubjetividade do método científico, de caráter público, ou seja, pela possibilidade

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da repetição da experiência por outro ser, como nas ciências naturais, possibilitando a todos a critica, mantida a dialética como parâmetro procedimental.

Tampouco se apresenta a linguagem jurídica neutra ou inocente, carregando consigo todo um sistema de pensamento, uma articulação de conceitos e de princípios, uma carga afetiva ou passional de valores, como pode ser verificado no contexto da evolução do instituto da propriedade.

O instituto da propriedade, seja ela material ou imaterial, individual ou coletiva, privada ou pública, expressa interesses socioeconômicos vinculados ao modo de produção de bens essenciais à sobrevivência humana, estando sujeito a interpretações profundamente ideologizadas. Impossível excluir a ideologia no conceito do que é “meu, teu ou nosso”.

A propriedade privada, seja direito natural, sob a ótica liberal individualista capitalista, seja produto da exploração e apropriação classista do trabalho humano, na visão marxista, apresenta-se na atualidade, ainda que relativizada por sua função social e ambiental, como esteio da democracia econômica e social, óbvio que burguesa, como diria Karl Marx.

A ideologização da propriedade se mostra na atualidade, por meio do sério risco da atual legislação civilista (Código de 2002) já ter nascido anacrônica, haja vista todas as rápidas modificações pelas quais passam nossa sociedade. A propriedade do Código Civil de 1916, cuja texto parametrizou a legislação de 2002, respondia a problemas de sua época e que, desde então, se modificaram sobremaneira. Basta citarmos as alterações sócio-econômico-tecnológicas entre o início do século passado e os dias atuais, como: o processo de globalização, desenvolvimento do sistema financeiro, descoberta de introdução de novas tecnologias (computação, telecomunicação, big data, blockchain, inteligência artificial, etc...).

As mudanças sociais pelas quais passaremos, sem sombra de dúvidas, imporão aos juristas e ao legislador as adequações cabíveis ao direito de propriedade. E tais “adequações” serão feitas seguramente sob o manto da ideologia que se apresente vinculante na oportunidade.

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