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As musas na obra pessoana como resultado do encontro entre Chronos e Mnemosyne

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V O L U M E I N Ú M E R O I V Janeiro - Março 2003

A R T I G O I I

As musas na obra pessoana como resultado do encontro entre Chronos e Mnemosyne Prof. M. A. Daniel Soares Filho

UNIGRANRIO

As coisas não têm significação: têm significado. Alberto Caeiro

1- Introdução

Sopra o vento e a areia da ampulheta escorre impassível. Está protegida pelo invólucro de vidro e inexorável segue seu curso. Assim começamos nossa pesquisa. E deixamos claro que não se trata aqui de apresentar uma nova teoria da poética. Nossas linhas, muito mais representam um pensar em voz alta a possibilidade de querer ver o instante da poesia como algo impar. A consagração do fazer poético se dá todas as vezes que nos deparamos com cada verso. E justamente, neste momento, é que se gira a ampulheta na renovação do tempo que corre. É inevitável a associação deste Chronos a uma

companhia intrínseca de sua irmã Mnemosyne.

Desta forma, veremos como estes dois mitos podem estar presentes nos versos do poeta e de que maneira eles se tornam inseparáveis. As existências estão atreladas na medida em que reconhecemos no fenômeno literário uma possibilidade de realização.

Nosso foco deve centrar-se evidentemente nos poemas que compõem o livro de Fernando Pessoa, O eu profundo e os outro eus. Onde iremos levantar as referências do poeta no que diz respeito à preocupação e ao tratamento do tempo (Chronos) e à voz das Musas (filhas de Mnemosyne) na composição poética.

Este diálogo tenta descortinar a latência de cada descoberta, através do contato na leitura dos versos pessoanos. Desta maneira, poderemos fundamentar o que cremos amparar a existência, e melhor dito, a perpetuação do instante único poético que é prova cabal pre-sença1 no mundo.

Não podemos falar de reconhecimento e estabelecimento de sentido (interpretação) sem deixar de abordar a questão da pre-sença. Para tal, teremos que lançar mão de um sustentáculo teórico, ainda que ligeiro, da visão heideggeriana que nos explica como o real surge no mundo. Conceito este que é de fundamental importância para que consigamos entender como se dá a percepção do instante poético no processo mundo/versos/existência de significação.

Assim, esta pesquisa estará estruturada com uma primeira parte mais abrangente da discussão do conceito de real, segundo Martin Heidegger; e uma segunda parte onde entraremos mais

especificamente na elaboração de uma tentativa de reconhecimento do tempo e da inspiração (Musas) nos poemas de Pessoa.

2- O reconhecimento do Real

Para que a interpretação se estabeleça como elo entre o leitor e cada um dos versos do poeta, há que se redefinir os processos de interação entre os agentes da leitura. O que é que se interpreta? Como se dá esta interpretação? E em que local ocorre? Estas são perguntas que nos remetem à busca do espaço interior de cada um. Ao crescer, o homem sempre reconecta suas sensações de lembranças ao

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meio que idealizou como ponto de partida. Não seria verdade, se, em nossos tempos, cientistas, psicanalistas e psicólogos não estivessem preocupados com o estudo do comportamento humano numa visão mais ampla dos acontecimentos concretos. Vê-se o ser humano como um complexo de elementos que extrapolam o visível. Inúmeros estudos do inconsciente – desde sua descoberta – têm-nos feito crer que para entrar na seara da existência é preciso mergulhar num profundo desconhecido que é a consciência humana. Ouçamos o próprio poeta que ao reconhecer a profundidade do homem, revela-nos que “a alma humana é um abismo/ eu é que sei.”(PESSOA, 1985. p. 119)2.

A fim de conduzir esta pesquisa sob os pilares da função da interpretação (hermenêutica) na criação poética, aclaramos o conceito da própria existência, segundo a visão de Martin Heidegger (1889-1976). Seus estudos filosóficos sobre a existência nos dão as noções exatas do processo atual do homem e seu papel no mundo. Para isto, é necessário desenvolver o próprio conceito de mundo e como ele se manifesta para o homem.

A existência humana se faz a partir do reconhecimento dos fatos pelo próprio homem e o quanto ele lhe atribui a categoria de existência. Ou seja, o que está ao redor do homem só passa existir quando seus sentidos dão valor a tais “objetos”. É o que Heidegger denomina como constituição ontológica do “ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 1988, p. 90). A forma originária do porvir, para o filósofo, se localiza na existência histórico-temporal. De onde decorre nossa localização da memória como elemento

fundamental para a manutenção da existência do homem. Entretanto, há que se entender que existir não se resume aos fatos aparentes, que se explicam tão somente dentro do saber metafísico e científico. O que configura a presença no mundo está contido em um processo mais abrangente da fenomenologia. Desta forma, o homem – ser ontológico – está ligado ao desenvolvimento das

descobertas e posteriores associações que ele faz com o que o circunda. Eis o lugar de destaque da lembrança.

O filósofo alemão categoricamente nos revela por tais circunstâncias que este ente não é apresentado como algo concluído e sim em busca constante de conclusão. O real não é só o que se vê como

realidade expressa pelos objetos externos, é também a possibilidade de manifestação, ou seja; o poder ser.

Ainda em seu texto O ser-no-mundo em geral como constituição fundamental da pre-sença, a função desempenhada por este ente se enquadra em nossa afirmação do lugar da interpretação no homem como agente importante de em se conhecendo conhecer o mundo. Pois ao definir o mundo, Heidegger diz que

Nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de...” Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está em um outro, como a água está no copo, a roupa no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca do ser de dois entes extensos dentro do espaço tocante ao seu lugar neste mesmo espaço. (HEIDEGGER, 1988, p. 91)

A partir desta definição, e da atenção despertada para saber localizar no espaço as relações entre os entes, Martin Heidegger ainda conclui sua teoria descrevendo a forma como estas se dão “dentro” do espaço:

Esta relação de ser pode-se ampliar, por exemplo: o banco na sala de aula, a sala na universidade, a universidade na cidade e assim por diante até: o banco “dentro do espaço cósmico”. (HEIDEGGER, 1988, p. 92)

Localizado o homem nesta condição de presença num universo o mais geral possível – segundo seus referenciais – podemos reconhecer no ambiente da poesia a construção de uma relação interpretativa, onde nascem os significados segundo o encontro do leitor e os versos. Fernando Pessoa sabe-se facilitador deste instante que se cria no momento da leitura. Ao definir em seus poemas sua própria função, Pessoa descortina para nós sua ligação com a gênesis da consagração poética. Diz o escritor português que “Há um poeta em mim que Deus me disse...”( p.86)

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A voz do poeta, em harmonia, corrobora com as palavras do filósofo alemão. A poesia passa a existir para aquele que está em contato com a realidade dos versos, ou melhor, para aquele que estabelece esta relação. Ao reconhecer que a ação do homem gera a existência, o poeta afirma que o que vive é a presença do ser enquanto peça fundamental do sentido do mundo. Encontrar o texto poético é reviver a sensação que busca encontrar o fio que o conduz, indubitavelmente, à raiz de sua própria vida.

Com o painel elaborado do conceito de mundo e a realização das possibilidades latentes de interpretação, passamos então ao universo de todos nós, de todos os Fernandos e todos os heterônimos, entramos em O eu profundo no intento de descobrirmos tantos outros “eus”.

3- O eu profundo e os outros eus

3.1- A voz das Musas.

Para que possamos ter uma noção mais apropriada do conceito que utilizamos aqui de Musas, é mister um breve quadro da função do mito na interpretação da obra poética. O mito enquanto história não nos serve como referencial, o que o torna atualizado é a própria dinâmica da poesia que se renova a cada encontro com o leitor. Neste ponto, reconhece-se a eclosão do real como representação da viva voz dos mitos.

A manutenção destes valores constrói a verdade de cada um na sua interpretação. E para tal, segundo é o nosso objetivo neste trabalho, é necessário recuperar sempre a questão do tempo (Chronos) e da memória (Mnemosyne – através de suas filhas as Musas).

Nosso referencial teórico a este respeito encontra respaldo no texto do professor Manuel Antônio de Castro, intitulado Poética e Poiesis: a questão da interpretação, que foi a base de sua prova para o Concurso para Titular de Poética da Faculdade de Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1998.

Em seu texto, Manuel Antônio de Castro apresenta um claro e esclarecedor panorama sobre a função do mito (mythos) no fazer poético. Ao colocar em discussão o processo da interpretação, o professor Manuel conduz seu trabalho em sua função primordial: texto/ textura/ fio que se tece; e assim elabora um discurso objetivo que revela a tarefa do intérprete diante do texto em um conceito mais abrangente de dia-logo.

Usaremos sempre das palavras do professor Manuel para nos referirmos ao tempo e a “voz” da memória que o poeta português deixa-nos entrever em sua produção poética.

3.2- Dos prefácios

Antes mesmo de sinalizarmos os versos que compõem o livro, parece-nos pertinente abrir espaço para as notas introdutórias do próprio Fernando Pessoa, na edição que nos serve de referência.

A nota preliminar que abre o primeiro livro3 – Mensagem – revela-nos a consciência do autor no que se refere ao perfeito conhecimento do quanto a interpretação é fundamental na leitura de seus poemas. O jogo claro entre os símbolos e os rituais de interpretação estão analisados pelo poeta a partir de cinco qualidades necessárias “sem as quais os símbolos serão para ele [intérprete] mortos, e ele um morto para eles.” (p.43)

Ao descrever cada uma destas qualidades, teremos a construção de um quadro de atributos internos imprescindíveis, segundo Pessoa, é claro, para entender a sua mensagem. Ao resgatar sentimentos como a “simpatia”(primeira qualidade), a “intuição” (segunda), a “inteligência”, a “compreensão”, e finalmente a última que é a “graça”, o escritor nos possibilita sustentar nossa hipótese de que seu fazer

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poético se fundamenta nas bases conscientes de que a voz das Musas sopra em seus ouvidos. Pela perspicácia de Pessoa e seu jogo retórico bem elaborado, estará na Quinta qualidade o resumo de todas as outras e atreladas, certamente, ao som desta voz. Assim fala o poeta:

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é Conhecimento e Conversação do Santo Anjo de Guarda entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.(p. 44)

Neste apartado de Fernando Pessoa, notamos sua resposta às nossas indagações. No labor da escritura há um componente que esclarece a ação literária. Ao designar a graça como elemento

importante (ainda que pouco necessitando de definições), Pessoa mostra sua crença nesta “voz” que se escuta e que ele afirma pairar sobre aqueles que usam a palavra. Não cabe dúvidas, aqui, que a graça (que é também o Superior Incógnito ou o Santo Anjo da Guarda) fala àquele que escreve; está o verbo dialogar expresso na palavra “conversação”.

E será justamente acreditando neste princípio que os versos pessoanos estarão calcados. E em posterior análise observaremos as várias referências ao som que o poeta ouve para que a composição literária ganhe vida.

Outra nota introdutória bastante relevante inicia o Cancioneiro, pertencente ao segundo livro da obra. Ao falar da percepção, mais uma vez o poeta descreve o fenômeno da criação poética, onde a relação mundo interior/ mundo exterior será a responsável por ver materializar o que vai na alma. Afirmando existir uma paisagem interior que está refletida em outra exterior, “de maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através de uma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior.” (p. 74)

E ainda cabe-nos destacar outra observação de Fernando Pessoa em nota introdutória aos poemas de seus heterônimos. Magistralmente explicado o fenômeno que toma conta das mãos do poeta para registrar os versos de seus “personagens”, Pessoa nos leva a crer que para escrever é tomado das sensações independentes de sua vontade, mas que as cumpre por dever de ofício. E como se não bastasse, o poeta ainda mostra ao leitor como deve encarar tais poemas.

Não há que buscar em quaisquer deles [os heterônimos] idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás o que deve ser. (p. 131)

As demais notas estão atribuídas aos vários “poetas” pessoanos. Poderíamos, obviamente, seguir sob o mesmo viés à analise dos textos que se apresentam no início de cada livro. Entretanto, julgamos já suficiente os comentários apresentados. Cremos que nos possibilitam um elo direto com os versos do poeta. Podemos então, sinalizar em algumas das linhas da composição poética o que é objetivo deste trabalho, ou seja, dialogar com a voz que sussurra nos ouvidos de Pessoa dando-lhe a forma de manifestação da própria busca do eu.

3.3- Dos poemas

Não tomaremos todos os poemas do livro que estamos interpretamos. Seria uma tarefa imensa e quase sem fim. Talvez estaremos lançando um caminho a ser seguido. Propomo-nos sim, recolher alguns versos significativos que demonstram a manutenção do mito no fazer poético.

Selecionamos alguns destes poemas e veremos como expressa Fernando Pessoa seu processo de encontro com sua própria alma. E de que forma sua revelação serve aos que o lêem como indicativo de descobertas pessoais.

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O reconhecimento de algo que o guia muito antes e independente de sua vontade está claramente definido nos primeiros versos de O Conde D. Henrique. Ao dizer “Todo começo é involuntário/ Deus é o agente” o homem se conscientiza de que há uma força maior e mais abrangente, que faz com que “O herói a si assiste, vario/ E inconsciente.” (p. 47).

Ainda seguindo a mesma orientação, O Infante anuncia a consagração do encontro entre a voz que fala e o construtor do que se materializa como fruto deste diálogo: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”(p. 53).

Se não se pudesse aceitar , nos dois exemplos acima descritos, a concepção do mito tão somente porque o poeta o nomeou Deus, podemos aprofundar a visão do processo com outros versos que claramente revelam a presença das Musas no instante poético.

Em As ilhas afortunadas, ninguém mais está ali se não as filhas de Mnemosyne: Que voz vem no som das ondas

Que não é a voz do mar? É a voz de alguém que nos fala. Mas que, se escutarmos, cala, Por ter havido escutado (p.61)

Sustentando a influência das Musas, o poeta as invoca em seu som primordial em tão representativo instrumento do arquétipo dos poetas – a harpa. Seu chamamento diz:

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!, E, beijando-o, descesse p’los desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse. (p.87)

Ao reconhecer que sua mão executa o que surge do encontro com a voz das Musas, o poeta manifesta sua condição de simples representante da eclosão da poesia. Seu significado surge como quem se sabe instrumento que reflete uma realidade mais ampla que seus próprios olhos podem captar, mas seu ser pode perceber.

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la E o princípio floresceu em Fim. (p.90)

Também são as veste que as Musas trazem consigo elementos de sua inspiração. O tempo, de fundamental importância para que a poesia possa existir, descortina-se e ilumina através da lua o caminho trilhado pelos pés delicados daquelas que lhe falam ao ouvido:

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Arrastam vestes de seda, Vestes de seda sonhada Pela alameda alongada Sob o azular do luar... E ouve-se no ar a expirar – A expirar mas nunca expira – Uma flauta que delira,

Que é mais a idéia de ouvi-la Que ouvi-la quase tranqüila Pelo ar a ondear e a ir... Silêncio a tremeluzir...(p. 95)

Para concluirmos com mais versos do poeta, ressaltamos o poema O último sortilégio, onde aparece clara noção do escritor em contato com o mito. Talvez mais que isto, fique patente o quanto Fernando Pessoa dimensiona sua interação/integração com a força do mito enquanto possibilidade de realização do poético na vida. Tudo que circunda o homem é potencial na concretização de novos significados. Ganha a vida outras cores quando o ser humano reconhece a magia que o circunda. E com uma das estrofes deste poemas acreditamos que podemos resumir o que até aqui tentamos demonstrar: Outrora meu condão fadava as sarças

E a minha evocação do solo erguia

Presenças concentradas das que esparsas Dormem nas formas naturais das coisas. Outrora a minha voz acontecia.

Fadas e elfos, se eu chamasse, via,

E as folhas da floresta eram lustrosas. (p. 102)

3.4- O tempo

Para que a poesia aconteça é necessário estarmos inseridos num referencial de tempo que pode ser linear e cronológico, bem como pode também manifestar-se sob um outro prisma diferente do campo metafísico. Seja como for, o importante é o acontecimento do que chamamos eclosão poética. A realidade assume esta forma de significado quando o homem encontra respaldo na ação temporal. E Fernando Pessoa (a voz do poeta) reconhece tal construção e demonstra em seus versos a tensão entre o tempo e a manifestação da poesia. Seus referenciais temporais estão expressos nos diversos sentidos que sua alma pode captar. Pois muitas das perguntas que seu ser se povoa estão envolvidas pelo tempo, seu fluir e os resultados de sua existência, numa ansiedade consciente do seu papel de escritor. Diz Pessoa:

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Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Queóps...

De repento paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... (p. 82)

O eu lírico manifesta sua certeza de que “O homem e a hora são uma só” (p. 48). E assim a angústia de ter que dominar o medo da falta de tempo para a consecução de todos os objetivos que constrói a própria existência invadem o poeta como “um mudo grito que de ânsia põe garras na Hora!” (p.75). Notamos a importância do tempo na composição poética pessoana através de um pequeno (mas significativo) detalhe: a palavra “hora” em muitos de seus texto vem escrita com letra maiúscula. Este dado confirma a convivência que deve haver entre o próprio fazer literário e a integração com Chronos, sem o qual não poderia haver manifestação da poesia.

Para que possamos reunir os dois pilares deste trabalho (Chronos e Musas), valemo-nos, uma vez mais, das páginas de O eu profundo. Vejamos de que modo o Tempo e a Interpretação conjugam suas formas no instante poético. Ao definir a existência como o reconhecimento do mito em si mesmo, a vida passa a ser vida plenamente. Será Alberto Caeiro o responsável por nos colocar diante deste encontro: A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas

Age como um deus doente, mas como um deus. Porque embora afirme que existe o que não existe Sabe que existir existe e não se explica,

Sabe que não há razão nenhuma para nada existir, Sabe que ser é estar em um ponto

Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer. (p. 179)

Logo pois, fica a pergunta: o que existe? O questionamento de que o real pode não ser tão somente o visível mundo metafísico também encontrará a resposta em outra parte do Poemas inconjuntos, com a que queremos terminar este capítulo:

O Único mistério do Universo é o mais e não o menos. Percebemos demais as cousas – eis o erro, a dúvida. O que existe transcende para mim o que julgo que existe. A realidade é apenas real e não pensada. (p. 178)

Conclusão

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acontecimento da poesia no instante em que o leitor entra em contato com a obra literária. Para isto, lançamos mão de alguns conceitos fundamentais. A existência e concepção de mundo segundo Martin Heidegger, bem como a vivência do mythos no fazer poético para que a interpretação se manifeste. A leitura que fizemos do livro do poeta português Fernando Pessoa estabeleceu-se a partir de determinada eleição de versos significativos que pudessem depreender a noção da voz das Musas como elo entre poeta e composição poética. E ainda sob o mesmo plano de atenção, referimo-nos também à questão do tempo como elemento necessário para que a simbiose poeta/ Musas possa ocorrer.

Desta forma, o tempo (o rio que corre) reúne em si a busca do homem. Ao se deparar com a vida, ele tem que dar-lhe sentido e fazê-la existir. Somos todos os homens neste percurso, neste mesmo rio que Heráclito pisou, e que o poeta português soube muito bem traduzir em palavras. Sem fecharmos as muitas possibilidades de se revelar a consagração da poesia, encerramos esta pesquisa com versos significativos da travessia que é de Pessoa, que é de todos os seres que no mundo vivem em busca de dar expressão a existência:

Um momento afluente Dum rio sempre a ir Esquece-se de ser, Espaço misterioso Entre espaços desertos Cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada. E assim a hora passa Metafisicamente. (p.94)

Notas

1 Esta referência sobre pre-sença encontramos em Ser e tempo. Heidegger.

2 As referências aos versos do livro O Eu profundo e os outros eus, estarão doravante somente com a indicação da página de onde se retirou o fragmento.

3 Chamaremos de livro a cada uma das partes em que está dividido toda a edição da que estamos tomando como referência.

Referência Bilbiográfica CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético. A história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982.

_______. Poética e poiesis: a questão da interpretação. Rio de Janeiro: mimeo, 1998. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.

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PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros eus. Seleção poética; seleção e nota editorial Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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