• Nenhum resultado encontrado

A (ir)responsabilidade dos juízes

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A (ir)responsabilidade dos juízes"

Copied!
28
0
0

Texto

(1)rto. A (IR)RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES. do. Po. LUÍSA NETO (*). U ni. ve rs. id ad e. “Longtemps l’irresponsabilité de l’État du fait de la justice est apparue comme une sorte de butte témoin dans un paysage que la responsabilité de la puissance publique abati peu à peu investi.” (1). R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. 1. A temática da “(ir)responsabilidade dos juízes” — assim utilizada a expressão (2) no sentido de estar em causa a compatibilização do estatuto político-constitucional da irresponsabilidade funcional, com aqueloutro da responsabilidade civil (extracontratual) que não pode ser afastada num Estado de Direito — envolve uma sensibilidade e complexidade técnico-jurídica que impõe que qualquer iniciativa legislativa seja precedida de uma reflexão cientificamente adequada mas também civicamente fundada. De facto, o apuramento dos remédios jurídicos nesta vertente terá de conciliar o objectivo da justiça e da legitimação externa dos procedimentos estaduais com outros corolários do já referido Estado de Direito. Este equilíbrio de filigrana resultou por exemplo evidente na intervenção do Ministro da Justiça francês Pascal Clément a propósito do desfecho do Caso Outreau. (*) Prof. Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. (1) Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, Direction de Maryse Deguergue, Prefácio de Philippe Ardant, p. 13. (2) A utilização da expressão não pode deixar de encontrar reminiscência no título do artigo “Da irresponsabilidade à responsabilização dos juízes”, Fernão de C. Fernandes Thomaz, ROA, Ano 54, II, 1994, pp. 489 a 503, e João Castro Mendes, A irresponsabilidade dos juízes, JP, Ano 29.º, 64. 36.

(2) 562. Luísa Neto. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. “Quis custodes custodiet? Qui nous protegera contre ceux qui nos protègent?”, perguntava em 1990 Cappelletti Mauro (3). Do outro lado do Atlântico, a mesma inquietação, expressa por J. J. Calmon de Passos: “Direito, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam” (4). E ainda a mesma inquietação escancarada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.03.2004: “Por um lado, não é possível ao intérprete restringir o âmbito dessa responsabilidade, mas, por outro, é a ele que compete definir o seu conteúdo. Para além de ser necessário complementar esse preceito com os princípios gerais da responsabilidade civil. A garantia de independência do poder judicial impõe que ele seja insindicável. E aqui caímos na grande contradição do sistema. Investigar para saber se houve um ilícito susceptível de gerar responsabilidade é já de alguma forma imiscuir-se no processo de decisão e, portanto, por em causa a referida independência. Há, pois, que superar tal ilogismo. Os autores, conscientes do problema, têm tendência a definir o ilícito judicial de forma cuidadosa exigindo a gravidade do acto ou a sua manifesta ilegalidade.” Esgotada a crença na sustentabilidade da irresponsabilidade do Estado — plasmada na tradicional expressão “the king can do no wrong” —, e em especial dos titulares da função jurisdicional (5), relembre-se que a independência dos tribunais, como afirmou, em carta de 1 de Agosto de 1844 dirigida à Rainha D. Maria II o primeiro presidente do Supremo Tribunal de Justiça portuguesa, José da Silva Carvalho, não é um favor concedido aos juízes mas uma garantia dada à sociedade. Aliás, se a independência dos tribunais resulta obviamente da protecção institucional garantida pela previsão enquanto limite material de revisão constitucional na CRP de 1976, na alínea m) do artigo 288.º, da mesma não decorre automática ou indiscriminadamente a ideia de irresponsabilidade: “[A] responsabilidade ou a irresponsabilidade dos juízes (e estes não são mais do que dois meros ângulos de observação ou abordagem do mesmo fenómeno), obrigam a. (3) Em Étude de droit compare sur la responsabilité des autorités judiciaires, in Le Pouvoir des Juges, Presses Universitaires d’ Aix-Marseille, Económica, Coll. “Droit Public positif”, 1990, p. 115-176. (4) Rio de Janeiro, Forense, 1999. Em sentido consonante, cfr. Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, ob. cit., p. 171, sobre a função jurisprudencial “entre autoridade, independência e responsabilidade”. (5) Fala-se aqui essencialmente da magistratura judicial, independente, e não similarmente da magistratura do Ministério Público, autónoma..

(3) 563. A (ir)responsabilidade dos juízes. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. deixar esclarecido, ou lembrar que não podem (não devem) ser tratadas com a atitude preconceituosa de tentar, apenas ou principalmente, carrear argumentos no sentido da consagração de uma concepção burocrática, autoritária, intra-classista e/ou corporativa, o que seria aliás, interessantíssimo estudar ou discutir, mas iria contra a finalidade teleológica de missão ou serviço da Comunidade Jurídica e dos seus membros, que todos os autores modernos lhe assinalam” (6). Aqui há-de relevar a ideia de pacto de regime, isto é, de um acordo institucional — mesmo que não formalizado, mas no sentido de base consensual constitucional — para preservar, promover e desenvolver o sistema de justiça que seja símbolo de maturidade política, já que aquele é por definição uma estrutura civilizacional, que não pode apenas pretender um Estado de segurança de cariz hobbesiano. De facto, as ideias de consenso, e os movimentos de aceitação e tolerância mostram-se necessariamente como pressupostos de organização do Estado, sem que se “artificializem divergências”. Uma sociedade, para existir e subsistir, precisa de satisfazer os “imperativos funcionais do sistema social”, como diz Parsons, apelando uma vez mais ao conceito de consenso. E a complexa telenomia constitucional não está alheia a tal imperiosa necessidade. Gomes Canotilho fala por exemplo na ideia da justiça contratual constitucional — Verfassungsvertragsgerechtigkeit — que equivale à autolimitação do poder constituinte: trata-se da ideia de contrato constitucional permanentemente renovado, envolvendo cidadãos contratantes. Ora, a compreensão material da constituição passa pela “materialização” dos fins e tarefas constitucionais, pela legitimação e mediação legislativa, novamente no centro da agenda problemática hodierna. A Constituição — e a CRP — é norma fundamental, enquanto espelho das opções políticas fundamentais, e conta com preceitos que definem e caracterizam jurídico-constitucionalmente a colectividade política (ou Respublica), e com princípios fundamentais da ordem jurídico constitucional, como padrões de legitimação constitucional, numa dimensão dupla constitutiva e declarativa (7). Neste domínio, o problema especificamente constitucional da responsabilidade dos juízes está hodiernamente na ordem do dia pela dicotomia. (6) Thomaz, ob. cit., p. 491. (7) Veja-se aqui, por todos, R. E. Charlier, La Constitution et le juge de l’administration, in Mélanges en honneur du professeur Michel Stassinopoulos, Paris, LGDJ, 1974..

(4) 564. Luísa Neto. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. entre a preservação ou a alteração de paradigma, inerente ao “projecto” de uma “constituição temporalmente adequada”. A controvertida conciliabilidade da “lógica da constituição” de um Estado de Direito com a “lógica da democracia” e a análise estrutural-material da “densidade” e “abertura” das normas constitucionais implica uma “legitimação-legitimidade” de uma ordem constitucional no duplo sentido de justificação-explicação de uma ordem de domínio (estrutura de domínio) e de fundamentação última da ordem normativa, de “apoio” ou “fundamento específico”, fonte da sua dignidade e garante das suas apreensões (8). A “irresponsabilidade” dos juízes, juntamente com o “auto governo” da magistratura e a inamovibilidade daqueles correspondem ainda, como referia Castro Mendes (9) aos princípios ancilares da independência dos tribunais. Neste mesmo sentido aponta António Goucha Soares quando afirma que “(…) o valor fulcral que se pretende tutelar é o da independência do poder judicial, o qual se considera ameaçado se os particulares puderem accionar directamente os magistrados pelas suas decisões” (10). Mas esta asserção não pode ser encarada como verdadeira na sua máxima extensão. De facto, e como refere Alberto Esteves Remédio (11), “[A]pesar da sua decisiva importância, a independência não é um valor absoluto, mas um valor instrumental, dirigido à imparcialidade e, portanto, à legitimidade da decisão do juiz, e um valor relativo, pois nem o juiz está isolado da sociedade nem o poder judicial está isolado dos demais poderes do Estado. A independência tem, portanto, limites e estes passam também pela responsabilização judicial, que deve deixar de ser contemplada apenas com. R. ev. is. ta. da. Fa. (8) Cfr Guilherme da Fonseca, A responsabilidade do estado pelos actos da função judicial e as crises da justiça, em António Barreto, (org), Justiça em crise? Crises da justiça, Publicações D. Quixote, 2000, p. 194. (9) Em Nótulas sobre o artigo 208.º da Constituição, Independência dos juízes, Estudos sobre a Constituição, 3.º Vol., Lisboa, 1979, pp. 653-660. (10) Cfr. A Transformação do Poder Judicial e os Seus Limites, in Revista do Ministério Público, n.º 82, p. 66. (11) Sobre a responsabilidade civil dos magistrados por actos praticados no exercício das suas funções, in Revista do Ministério Público, ano 22.º, Outubro-Dezembro 2001, n.º 88, pp. 31 a 49, em esp. pp. 33/34. Cfr. também, por todos, Luís Pereira Melo, Responsabilidade civil do juiz, SJ, tomo XVIII, pp. 441 a 446, e Orlando Viegas Martins Afonso, Poder judicial: independência (in)dependência, Coimbra, Almedina, 2004, em especial o Capítulo VII sobre a responsabilidade dos juízes. Também para enquadramento geral, António A. Santos Carvalho, O problema da responsabilidade dos magistrados judiciais, in Revista de Administração e Políticas Públicas, Braga, v. 1, n.º 2, 2000, pp. 159 a 175..

(5) 565. A (ir)responsabilidade dos juízes. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. referencia a abstracções como a independência ou o prestígio do sistema judicial para simplesmente passar a ser vista também numa óptica de serviço público prestado aos utentes do sistema judicial”. Como se lia no Acórdão n.º 449/93 do Tribunal Constitucional — em doutrina depois reiterada no Acórdão n.º 404/94 do mesmo Tribunal e retomando considerações do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20 de Janeiro de 1983 (12) — “na função jurisdicional a resolução do conflito de interesses tem como fim específico a realização do direito e da justiça, destinando-se, consequentemente, a servir o interesse público da própria composição dos conflitos, e o órgão que decide em atenção aos interesses, que lhe cumpre especificamente prosseguir, da pessoa em que se integra ou a que pertence — não é interessado no conflito, estando portanto numa situação de indiferença, como que de neutralidade, perante o mesmo, ao passo que na função administrativa, contrariamente, a resolução do conflito de interesses em causa tem em vista a prossecução de outro qualquer dos interesses públicos que ao Estado — utilizando este termo num sentido amplo — incumbe realizar, representando tal composição, um simples meio ou instrumento para a satisfação desse outro interesse, pelo que o órgão que profere a decisão não se encontra numa situação de indiferença ou de neutralidade perante o conflito, já que nele tem um determinado interesse”.. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. 2. Numa altura em que se discute — com recíprocos argumentos apaixonados, que nem sempre lúcidos — a alteração de regime de responsabilidade dos magistrados (13) nos termos e para efeitos da Proposta para Alteração do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual aprovada em Conselho de Ministros de 20 de Outubro de 2005 — o objectivo das presentes linhas não é mais do que o de lançar um iter lógico de discussão sobre um tema que marca indelevelmente a espinha dorsal do sistema jurídico e judiciário. De facto, a proposta apresentada — que corresponde à anteriormente apresentada Proposta 95/VIII (14) — visa estabelecer pela primeira vez (12) Boletim do Ministério da Justiça, n.º 323, pp. 240 e ss. (13) Para além do que fica dito na nota 6, importa deixar claro que os termos da proposta hão-de estender-se igualmente a funcionários do sistema judicial — v. g. oficiais de justiça. (14) Esta iniciativa foi objecto de votação na generalidade na Assembleia da República a 30.11.2001 — com aprovação por unanimidade — mas caducou em 4.4.2002 em.

(6) 566. Luísa Neto. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. em Portugal, um regime geral de responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional (15). Lê-se no proposto preâmbulo que se avança “no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, fazendo, para o efeito, uma opção arrojada: a de estende ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam directamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave, pelo que não se lhes aplica ao regime de responsabilidade solidária que vale para os titulares de órgãos, funcionários e agentes administrativos, incluindo os que prestam serviço na administração da justiça. No que se refere ao regime do erro judiciário, para além da delimitação genérica do instituto, assente num critério de evidência do erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, entendeu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa acção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” (16). Aliás, e de facto, o exercício do direito de regresso ora previsto pressupõe que seja apresentada uma acção judicial para esse efeito, pelo que cabe exclusivamente aos tribunais verificar se houve actuação dos magistrados com dolo ou culpa grave — diga-se aliás que deve deixar-se claro que a acção de regresso se deveria enxertar na acção principal, em termos de chamamento à demanda — artigo 329.º CPC —, o que faria ganhar em termos de eficiência já que os pressupostos a apreciar serão basicamente. R. ev. is. ta. virtude de demissão do Governo e de início de nova legislatura. Diga-se aliás que esta mesma iniciativa correspondia já ao anterior registo 18/Prop/2003. (15) Saliente-se que o termo “responsabilidade” pode também obviamente implicar, para além da civil, uma vertente política, disciplinar, ou penal. (16) Veja-se neste sentido o Parecer da Comissão de Legislação da Ordem dos Advogados, 2000, 20 004, de 09.05.2002: por haver “que impedir que os tribunais, numa acção de responsabilidade, sejam chamados a pronunciar-se sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, as quais podem aliás ter sido proferidas por tribunais de outras jurisdições, a Comissão entende que, além da exigência de um dano anormal e de um erro manifesto do juiz, o pedido de indemnização deve ser fundamentado em revogação da decisão danosa pela jurisdição competente ou em factos supervenientes que revelem séria probabilidade da existência de erro judiciário”..

(7) 567. A (ir)responsabilidade dos juízes. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. os mesmos, sendo tal unicidade a todos os títulos benéfica, assim como deve ser fixado prazo para a interposição da respectiva acção, bem como fixadas regras de legitimidade. E lembre-se que se hoje já são responsáveis com dolo ou culpa grave, novidade é exigir do Estado que exerça o direito de regresso quando tenha que ressarcir m particular por acto praticado por magistrado com dolo ou negligência grave. Recorde-se por outro lado que desde há muito a persistente necessidade de alteração do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, convoca discussões sobre uma eventual inconstitucionalidade por omissão, para além de ter já sido objecto de censura reiterada e manifesta pelos órgãos de justiça europeia (17). A discussão quanto ao facto de saber se o diploma de 1967 abrangia ou não responsabilidade decorrente do exercício de actos da função jurisdicional foi por exemplo abordada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2003, onde se pode ler: “este diploma [Decreto-Lei n.º 48 051] pretendeu regular a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública e atribuiu nova redacção ao artigo 815.º, § 1.º, alínea b), do Código Administrativo, o qual determinou a inclusão no âmbito do contencioso administrativo ‘os pedidos de indemnização feitos à administração relativamente aos danos decorrentes de actos de gestão pública’. Do confronto desta norma com o artigo 1.º do citado Decreto-Lei resulta claramente ter-se pretendido abranger apenas ‘actos de administração’, com exclusão dos actos da função jurisdicional. No conceito de ‘administração’. R. ev. is. ta. da. (17) É aliás aprovação legislativa que urge acelerar, tendo em conta a condenação de Portugal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 14.10.2004. De facto, esta condenação do Estado Português por Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no Processo n.º C-275/03, em acção por incumprimento que lhe moveu a Comissão por transposição incorrecta da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989 (que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos (JO L 395, p. 33) mereceu um pedido de cooperação jurídica dirigido à Comissão — que se anexa —, explicitando as condições políticas referidas, no sentido de evitar que viesse a Comissão a accionar o processo sancionatório do artigo 228.º do Tratado da UE, e permitindo ainda algum tempo para reanálise da proposta e reinstrução do procedimento legislativo. Por outro lado, e para além do mais, verifica-se uma decorrência directa e exigência material da reforma adjectiva do processo administrativo..

(8) 568. Luísa Neto. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. — acrescenta — não cabe o poder judicial, porque a administração tem como órgão superior o Governo, ao passo que o poder judicial é independente e soberano. Daí que os actos jurisdicionais não suportem a qualificação de ‘actos de gestão pública’, devendo, por isso, concluir-se que a responsabilidade pelos actos dos magistrados no âmbito da sua jurisdição há-de encontrar cobertura legal noutros textos que não os do Decreto-Lei n.º 48 051.” E aí se acrescenta, ainda aderindo às conclusões do Parecer n.º 12/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (18), segundo o qual não faria sentido, por um lado, que, não podendo os juízes, por força do n.º 2 do artigo 218.º da CRP (agora 216.º, n.º 2), ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo nos casos excepcionais de condenação pela prática de crimes de peita, suborno, concussão ou prevaricação, de dolo, de imposição legal expressa de tal responsabilidade ou de denegação de justiça — artigo 1083.º do CPC —, o artigo 22.º da Constituição os responsabilizasse pelos danos decorrentes do exercício da sua actividade profissional em termos de solidariedade com o Estado. Mas posição diversa emana já por exemplo do Acórdão n.º 404/94 do Tribunal Constitucional, em termos que nos parecem merecer concordância: “desta caracterização finalística da função jurisdicional, não se alcança um critério de segura diferenciação ente a função jurisdicional e a função administrativa sendo certo, existirem múltiplos pontos de onde decorre paralelismo e até analogia entre tais funções, uma e outra expressão do imperium emanado da soberania popular”. Em termos muito curiosos assenta ainda o mesmo Acórdão em que o conceito de reserva do juiz (“monopólio de juiz”, “garantia jurídico/constitucional de reserva de juiz”) — nas suas duas dimensões fundamentais de só poder a função jurisdicional, materialmente definida, ser exercida pelos tribunais e de ser ao juiz que cabe não apenas a última como a primeira palavra nas questões submetidas à sua jurisdictio — é diferente daqueloutro instituto que se costuma designar por garantia jurídico-constitucional da via judiciária. No sentido da qualificação como actos de gestão pública geradores da responsabilidade do Estado como único centro de imputação dos seus órgãos, pertencentes estes a qualquer um dos seus poderes, vejam-se também os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Março de 1989, no Recurso n.º 26 525, e de 14 de Maio de 1991, no Recurso n.º 19 273. (18). Pareceres, vol. I, pp. 481 e ss..

(9) 569. A (ir)responsabilidade dos juízes. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. Também nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2003, a “gestão dos processos judiciais e dos serviços judiciais constitui actividade administrativa e integra-se em actos de gestão pública, sendo, pois, de concluir pela aplicação à Responsabilidade Extracontratual do Estado por Actos Ilícitos o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967.” É certo aliás que a consagração da responsabilidade por acto que decorra do exercício da função jurisdicional pode já decorrer do n.º 4 do artigo 20.º da CRP — “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” — e entender-se subliminar na previsão da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas, nos artigos 22.º — já referido — e 271.º da CRP — faces contrapostas e complementares do mesmo princípio de garantia que é corolário desde logo do Estado de Direito Democrático (19) e que desde logo derivariam de igual forma do princípio da cláusula aberta do artigo 16.º da Lei Fundamental (20).. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. (19) Cfr Rui Pinheiro, Democracia, poder judicial e responsabilidade dos juízes, incluído na obra Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado — trabalhos preparatórios da Reforma, Coimbra Editora, pp. 68 e ss., maxime p. 77. (20) O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.10.1998, proferido no Recurso n.º 36811 fundou a obrigação de indemnizar na Constituição e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pronunciando-se ainda acerca dos elementos a considerar na determinação do que deva entender-se por prazo razoável e do objectivo da indemnização. E refere-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 160/95, de 15 de Março de 1995, no Proc. 562/92: “O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no n.º 1 do artigo 225.º, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e distinguindo no n.º 2 os casos em que ela não é ilegal. Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o n.º 5 do artigo 27.º limita-se a prever a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei”, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade”. Maia Gonçalves — Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 11.ª edição, p. 464 —, escreveu em anotação ao artigo 225.º que “o disposto neste capítulo sobre indemnização por privação de liberdade ilegal ou injustificada resulta de Convenções a que Portugal aderiu, designadamente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, que no seu art. 5.º, n.º 5, dá direito de indemnização a qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às que nesse artigo se estabelecem e que a mesma lei perfilhou. Resulta ainda do disposto no art. 2.º, n.º 2, al. 38), da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro”. Em especial sobre o conceito de “prazo razoável”, ver Notas para um processo equitativo, Irineu Barreto, in Documentação e Direito Comparado, n.º 49/50, p. 69, Joaquim Lou-.

(10) 570. Luísa Neto. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. Assim e a este respeito parece assente a doutrina (21) e a jurisprudência (22) que apontavam já para a susceptibilidade de aplicação directa dos artigos 22.º e 271.º da CRP e do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro 1967, ao exercício da função jurisdicional. Nesse mesmo sentido, veja-se por todos Luís Guilherme Catarino (23), esclarecendo que “o princípio da irresponsabilidade pessoal não é conatural à actividade jurisdicional ou às suas características”. Leia-se a propósito o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.02.2004: “Desde logo, a opinião quiçá dominante vai no sentido de que o artigo 22.º, na redacção emergente da 1.ª revisão constitucional (1982), consagra também em termos gerais a responsabilidade civil do Estado pelas denominadas fautes de service praticadas no exercício da função jurisdicional. E tratando-se da previsão de direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, desfruta o artigo 22.º, à sombra do artigo 18.º, n.º 1, de aplicabilidade directa, independente de mediação normativa infraconstitucional. Por isso mesmo carece, a doutrina que assim flui do artigo 22.º, de ser complementada mediante os princípios gerais da responsabilidade civil, envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpa que vão implicadas na específica natureza da função judicial”. Repare-se a que a referência a estas peculiaridades não implica, no entender deste aresto, que se não aplique o regime do artigo 22.º e do artigo 18.º da CRP, mas antes, e apenas, que os mesmos sofram adaptações, inevitáveis e irrecusáveis. Como decorre do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2004, “[A]ssume efectivamente preeminência no exercício desta função o parâ-. R. ev. is. ta. da. reiro, in Scientia Iuridica, Tomo XLV — 1996, p. 85, Caso Martins Moreira contra Portugal, in Documentação e Direito Comparado, n.º 33/34, p. 412, e Caso Lechner e Hess contra Áustria, in Documentação e Direito Comparado, n.º 35/36, p. 63. (21) Cfr. Maria José Rangel de Mesquita, in Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, Coord. Fausto de Quadros, Almedina, 1995, pp. 115-122, João Tiago silveira, A reforma da responsabilidade civil extracontratual do Estado, Revista Jurídica, 26, pp. 79 a 117, e Luís Guilherme Catarino, Contencioso da responsabilidade — uma Hidra de Lerna?, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 41, 2003, pp. 3-13. (22) Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Anotação ao acórdão do STA-1, de 7 de Março de 1989, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 3799, pp. 293 e ss. (23) Veja-se Contributo para uma reforma do sistema geral de responsabilidade civil extracontratual do Estado, Propostas acerca da imputação por facto jurisdicional, Revista do Ministério Público, ano 22.º, Outubro-Dezembro 2001, n.º 88, pp. 51 a 69, intervenção na discussão pública de 8 e 9 de Março de 2001 na Torre do Tombo, p. 54..

(11) 571. A (ir)responsabilidade dos juízes. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. metro da independência dos tribunais e da subordinação do juiz à Constituição, à lei e aos juízos de valor legais que brota do artigo 203.º do diploma fundamental e do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, propiciando compreensivelmente divergências de interpretação e aplicação aos casos da vida. Podendo similares assintonias emergir no exercício da garantia de reapreciação das decisões judiciais, em via de recurso, quando o tribunal hierarquicamente superior sobrepõe um diverso julgamento da questão ao tribunal inferior, não é só por isso que pode legitimar-se um juízo material de verdade a respeito daquele e de erro quanto a este outro pólo da relação de supra-ordenação”. E assim é então que a adaptação resulta inevitável no que tange aos pressupostos da ilicitude e da culpa, que “no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o artigo 22.º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador (…)”. É nestes termos que este título de responsabilidade — último reduto da teoria da irresponsabilidade civil do Estado — exige ser assimilado à dos restantes agentes públicos de qualquer dos poderes da respublica, devendo as distinções ser as estritamente necessárias, sob pena de violação do princípio da igualdade. Aliás, esta ausência de fundamento para a diferença de regime é realçada por exemplo por Maria da Glória Garcia (24). E o tratamento deste tema há-de necessariamente partir da consideração do conceito de jurisdição e verificar se pode ser considerada em si como serviço público — o que releva até para efeitos de aplicação do conceito de faute de service, em que a culpa não é imputada a um ou mais indivíduos, mas antes se traduz num facto anónimo e colectivo de uma administração em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seus verdadeiros autores. A faute de service aqui em causa não pode cingir-se ao funcionamento anormal do serviço. De facto, pode tratar-se de funcionamento normal em relação ao qual, e não obstante, não seja possível encontrar um nexo (24) A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, Conselho Económico e Social, Lisboa, 1997, pp. 41 e 42..

(12) 572. Luísa Neto. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. de causalidade e imputação específico em relação a um determinado agente. Assim, deve ser incluído o funcionamento “normal”, abrangendo mesmo os casos fortuitos mas obviamente excluindo os casos de força maior. Lia-se por outro lado no já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2004 que o “artigo 22.º da Constituição, na redacção emergente da 1.ª Revisão (1982), consagra em termos gerais a responsabilidade civil do Estado pelas denominadas fautes de service praticadas no exercício da função jurisdicional”. E mais se concluía que tratando-se de previsão de direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, “desfruta o artigo 22.º da lei fundamental, à sombra do artigo 18.º, n.º 1, de aplicabilidade directa, independente de mediação normativa infraconstitucional, nesta medida pressupondo, todavia, complementar recurso aos princípios gerais da responsabilidade civil, envolvendo peculiaridades concernentes à ilicitude e à culpa que vão implicadas na específica natureza da função jurisdicional”. No mesmo sentido, desde 1999, é de salientar Luís Guilherme Catarino (25), que escreve que o artigo 22.º da CRP “por regra não carece de mediação ou concretização legislativa, aplicando-se mesmo na ausência de lei, contra a lei e em vez da lei, sendo inválidas as normas que o contrariem”.. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. 3. Enfim: a juris dictio é uma função do Estado, isto é, uma função identificada com a soberania do Estado. Nestes termos, a responsabilidade do Estado por actos jurisdicionais há-de ir necessariamente além da sentença, abrangendo todos os actos praticados no decurso do processo como despachos e decisões interlocutórias. Mais, há-de necessariamente abranger as situações de jurisdição voluntária e contenciosa. Ao invés do que durante algum tempo se deu como adquirido e se sustentou, não faz sentido, como vimos, a pura e simples exclusão da responsabilidade por actos da função jurisdicional por ser esta — à partida, e numa primeira aproximação — uma responsabilidade por actos lícitos que deriva da organização estadual e institucional de repartição de encargos sociais (26). (25) Luís Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, Coimbra, 1999, p. 170, e A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, o Erro Judiciário e o do Estado por facto jurisdicional, separata do II suplemento do Dicionário Jurídico da Administração Pública. (26) Para esclarecimento do enquadramento do respectivo regime, leia-se Maria Rangel de Mesquita, O fio da navalha: (ir)responsabilidade da Administração por facto lícito,.

(13) 573. A (ir)responsabilidade dos juízes. ve rs. id ad e. do. Po. rto. Tenha-se aliás em conta que os prejuízos ou danos que decorrem desta função não têm necessariamente que se repercutir difusamente em toda a comunidade, mas em destacáveis partes, enquanto tal consideradas nos termos da legitimidade processual e do interesse em agir. Se o direito à jurisdição é o direito público subjectivo constitucionalmente assegurado ao cidadão de exigir do Estado a prestação da actividade de jurisdição (27), não deixa por outro lado de constituir-se numa obrigação de organização tal por parte do Estado que elimine ou minimize ou prejuízos ou danos que decorram daquela actividade (28). É também notório hoje que o aumento da exigência quanto à responsabilidade jurisdicional resulta também da inflação legislativa característica do Estado Social de Direito (29). A indesejável — inevitável? —. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 46, 2004, pp. 41-54. A este propósito refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.2004: “O artigo 22.º da Constituição consagra genericamente um direito indemnizatório por lesão de direitos, liberdades e garantias, não se limitando, por isso, a abranger a responsabilidade do Estado por actos ilícitos, sejam eles de natureza legislativa ou jurisdicional”. (27) Como se lia no Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “está aí em causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas: naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou, afinal, o seu ‘direito à liberdade’. Mas que no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, se reconhece já um ‘direito’ dos cidadãos é corroborado ainda pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos fundamentais — isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à definição de ‘posições jurídicas subjectivas’ (à definição das ‘estruturas constitucionais subjectivas’, como também se diz), a qual nessa insuprível ‘dimensão subjectiva’ tem a sua marca característica, e a razão da sua especificidade no quadro global da Constituição”. (29) Já salientada por Thomaz, ob. cit., mas hoje em dia sobejamente tratada por Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998 e Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Almedina, Coimbra, 1992. Em termos mais parcelares, cfr. Maria Lúcia Amaral, “Dever de Legislar e Dever de Indemnizar a propósito do caso Aquaparque do Restelo”, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, n.º 2, 2000, p. 93, citando os Acórdãos do TC n.os 1/97, 330/97 e 517/99, Diogo Freitas do Amaral e Rui Medeiros, Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas — o caso Aquaparque, in RDES, ano XLI, n.os 3 e 4, Agosto-Dezembro 2000, pp. 299-383, Raffaele Bifulco, La responsabilità dello Stato per atti legislativi, Milano, CEDAM, 1999, J.J. Gomes Canotilho, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Maio de 2002, in RLJ, ano 134.º, pp. 202 e segs. Para além do mais, cfr. obviamente o caso Aquaparque, cujo Acórdão se ancora nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.06.94 e de 23.09.99. O Acórdão de 1.6.94 foca o mau exercício da função legislativa, e conclui que os danos patrimoniais sofridos pelos.

(14) 574. Luísa Neto. perda de densidade e determinabilidade das leis, que alcançam a máxima abstracção possível (30), aumentam o espectro de valoração jurisdicional, num equilibrado esquema de checks and balances (31) que salientam precisamente o hodierno papel criativo da interpretação judicial (32).. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. 4. Mas mais se diga: mesmo quando ou para quem se manifestava duvidoso o princípio da responsabilidade do Estado por acto jurisdicional, nunca foi negada a vertente de ressarcibilidade decorrente do n.º 5 do artigo 27.º da CRP — mesmo antes da respectiva concretização no n.º 1 do artigo 225.º do Código de Processo Penal. Isso mesmo é salientado pelo Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da responsabilidade do Estado consignado no artigo 27.º, n.º 5, não pode efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se assina apenas uma tarefa ao legislador (uma ‘incumbência legislativa’); antes simultaneamente se reconhece um ‘direito fundamental’, a cuja efectivação essa incumbência se preordena. Que é assim, resulta logo do teor. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. autores se apresentavam como efeito normal de um acto legislativo, e que a responsabilidade civil do Estado por tais danos entroncava no artigo 22.º CRP, que não exige culpa ou ilicitude, e que impõe sobre o juiz a obrigação de criar uma norma dentro do sistema quando esta não exista, para resolução do caso. O Acórdão de 23.09.99 foca a responsabilidade do Estado por actos legislativos lícitos e conclui que esta deve ser admitida quando haja violação de direitos, liberdades e garantias, ou prejuízos para os cidadãos, que decorram directamente da lei; se por acto ilícito, prescrevia a análise do artigo 483.º do Código Civil. (30) José Gonçalves da Costa, em O poder judicial numa sociedade democrática, 5.º Congresso dos Juízes Portugueses, Viseu, 6 a 9 de Novembro de 1997, refere-se ao “reflexo do progressivo alargamento da intervenção do Estado, da expansão dos seus “ramos políticos”, da consequente expansão, especialmente no século XX, do direito legislativo”. (31) Alessandro Giulani e Nicola Picardi, Professionalità e responsabilità del giudice, in Riv. Di Diritto Proc., ano XLII, 2.ª série, n.º 2, Abr-Junho 19878, pp. 256 ss., e Mauro Cappelletti, Giudici legislatori?, 1984, Giuffrè Edit, Milano, p. 8. (32) Cristina Queiroz, Interpretação Constitucional e Poder Judicial, sobre a epistemologia da construção constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 343, e Marcelo Rebelo de Sousa, Orgânica judicial, responsabilidade dos juízes e tribunal constitucional, AAFDL, Lisboa, 19993, Ias Jornadas Judiciais Luso-Brasileiras, Lisboa, Outubro de 1991..

(15) 575. A (ir)responsabilidade dos juízes. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. do preceito — no qual se impõe ao Estado um ‘dever’ cujo natural correlato será certamente um ‘direito’; e resulta, bem assim, da sua função ou finalidade normativa específica (…)”. Ora, verdadeiramente, se são admitidas manifestações parcelares de responsabilização por acto decorrente do exercício da função jurisdicional não parece haver susceptibilidade de negar in totum a susceptibilidade de tal responsabilização, porquanto o fundamento há-de ser uno. Assim, estafadas as considerações parcelares sobre a susceptibilidade de reparação do erro judiciário, da deficiente aplicação do direito aos factos, ou da demora em tal aplicação, ou do mau funcionamento ou funcionamento defeituoso da justiça, do erro judiciário, da prisão preventiva ilegal ou injusta, das condenações injustas, das injustas detenções provisórias, haverá finalmente — e é nesse sentido que a Proposta a apresentar à Assembleia da República traduz um primeiro passo — que encontrar fio condutor que possa recobrir as situações descritas (33). Assim, o Estado deve aparecer como responsável por situações que talvez conviesse enumerar ao menos exemplificativamente, como o atraso na justiça ou outros casos de funcionamento anormal dos serviços de administração da justiça, o erro judiciário, a denegação de justiça, a violação ou colaboração na violação do segredo de justiça de que resultem prejuízos, sentenças ilegais ou injustas, ou situações decorrentes do n.º 6 do artigo 29.º da CRP quanto a medidas de coacção. Escrevia-se aliás no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.03.2004: “para além dos dois casos específicos mencionados nos artigos 27.º/5 e 29.º/6 — prisão ilegal e condenação penal injusta, o artigo 22.º da Constituição abrange na sua previsão a responsabilidade civil extracontratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional”. Esta necessidade de busca de um fio condutor a que temos aludido, por exemplo acentuada desde 1956 por Philippe Ardant (34), deve em pri-. R. (33) Ensaio de tal fio condutor se encontra em José Maria Reyes Monterreal, La responsabilidad del Estado por error y anormal funcionamiento de la administracion de justicia, 2.ª ed, Madrid, Colex, 1995. (34) La responsabilité de l’État du fait del a fonction juridictionelle, Paris, LGDJ-BDP, t. 3, 1956. Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.06.2003, “Segundo o n.º 4 do artigo 20.º da CRP, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. (…) 4.ª — Se bem que, em princípio, os juízes não possam ser responsabilizados pelas suas decisões — artigo 216.º, n.º 2, da CRP —, nada obsta a que se opere a responsabilização do Estado.

(16) 576. Luísa Neto. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. meiro lugar, em termos teóricos e práticos, ser separada da responsabilidade pessoal e subjectiva do juiz. Mas essa separação teórica não pode, em termos lógicos, ter como consequência a alegada insusceptibilidade de responsabilização daquele último (35). Assim, está aqui em causa a compatibilização entre o binómio responsabilidade e responsabilização (36). É certo que se lê no n.º 2 do artigo 216.º da CRP que “[O]s juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei”. Esta previsão normativa tem reforço na lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais e no estatuto dos magistrados judiciais, mas não pode merecer a interpretação de que não é admissível a responsabilização última dos magistrados, verificadas determinadas condições em que precisamente o exercício das respectivas funções extravasa o âmbito da due diligence exigida. Assim, o que se tem vindo a dizer revela de forma evidente que os seguros esteios de imputação ao Estado ou seus agentes, bem como a inocorrência de causas de exoneração da responsabilidade admitidas em Direito não prescindem da consideração do erro. Como se lia em Álvaro de Sousa Reis Figueira (37), ou em Luis Gui-. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. pelos prejuízos causados aos particulares no exercício da função jurisdicional, nos termos do artigo 22.º do mesmo diploma. 5.ª — Sendo assim, tendo ocorrido a prescrição do procedimento criminal pelo facto de um processo-crime ter estado parado mais de dois anos e meio no Tribunal da Relação, onde aguardava decisão sobre o recurso apresentado por arguida que havia sido condenada, deverá o Estado ser condenado a pagar uma indemnização ao assistente (e filhos) a título de responsabilidade extracontratual.” Veja-se ainda Responsabilidade do Estado pela demora na prestação jurisdicional, Paulo Modesto, coord. Rodolfo Pamplona, Rio de Janeiro, Forense, 2001, pp. 211-233. (35) Cfr. em Justice et responsabilité de l’État, ob. cit., p. 209, capítulo “Da responsabilidade do Estado à responsabilidade pessoal dos magistrados”. (36) Se em França, desde 1979, mesmo em caso de faute lourde professionelle dos juízes, a responsabilidade civil é exercida contra o Estado, que exercerá depois ou não o direito de regresso, em Espanha que desde 1978 é corrente a prática de celebração de contratos de seguros profissionais. Para desenho de direito comparado cfr. Fausto de Quadros, Responsabilidade dos poderes públicos no Direito Comunitário: responsabilidade extracontratual da Comunidade Europeia e responsabilidade dos Estados por incumprimento do Direito Comunitário, separata de La responsabilidad patrimonial de los poderes publicos, III Colóquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Valladolid, 16-18 Octobre de 1997. Ainda para recensão de direito comparado cfr. Thomaz, ob. cit., Remédio, ob. cit., pp. 35 a 37, e Justice et responsabilité de l’État, Paris, PUF, Droit et Justice, 2003, ob. cit., com indicação de bibliografia especifica para Alemanha, Bélgica, Espanha, Itália. (37) Veja-se Estatuto do Juiz, Garantias do Cidadão, da Independência à Responsabilidade, CJ, Ano XVI, T. II, p. 64..

(17) 577. A (ir)responsabilidade dos juízes. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. lherme Catarino (38), “o erro como base de responsabilidade ‘tem de ‘traduzir um desajuste entre a decisão e a realidade fáctica ou normativa’ que seja manifesto, patente, incontestável’, levando por isso a que a decisão seja arbitrária, no sentido de levar a conclusões absurdas ou ilógicas”. Ou seja, e utilizando cum grano salis o exemplo dos médicos: estamos perante uma obrigação de meios e não de resultado, mas há-de haver ainda assim susceptibilidade de responsabilização por violação das leges artis, ou seja, da margem de cuidado certo que comprime a liberdade jurisdicional. Assim, vamos supor por exemplo que um magistrado aplica uma lei revogada. Ou que uma sentença é proferida por magistrado suspenso de funções (39). Fácil se tornará neste caso perceber que ao invés do que se afirmou em decisão de 19.12.91 da Cour de Cassation da Bélgica (40), pode haver algo de mais efectivo do que “La personne du juge ne servant que de vecteur à la mise en oeuvre de cette responsabilité”. Lia-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8.07.97: “Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis”. E lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16.05.95, Proc. n.º 86727 (BMJ 447-157): “A irresponsabilidade dos juízes, assim como a inamovibilidade, consagrados na Constituição e na lei ordinária (art. 3.º da Lei n.º 38/87), são prerrogativas que visam garantir a independência dos juizes e, claro está, a independência dos tribunais, mas tal. R. (38) Cfr. A Responsabilidade Civil do Estado pela Administração da Justiça — O Erro Judiciário e o Anormal Funcionamento, ob. cit., p. 264. Vejam-se ainda Eduardo Cobreros Mendazona, La responsabilidad del Estado derivada del funcionamiento anormal de la Administración de Justicia, Madrid, Civitas, 1998; Enrique Garcia Pons, Responsabilidad del Estado: la justicia y sus limites temporales, Barcelona, Bosch, 1996; Riánsares López Muñoz, Dilaciones indebidas y responsabilidad patrimonial de la Administración de Justicia, Granada, Editorial Comares, 2000; Incola Picardi/Romano Vaccarelle, La responsabilità civile dello Stato giudice, Padova, Cedam, 1990. (39) Nélia Dias, A responsabilidade civil do juiz, Dislivro, Lisboa, 2004. (40) Jurisprudence de Liège, Mons et Bruxelles, 1992, pp. 42 e ss. 37.

(18) 578. Luísa Neto. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. irresponsabilidade não é absoluta. II — Tendo-se a conduta do recorrente processado à margem da sua competência ou jurisdição, tendo agido fora das vestes de juiz de instrução criminal, ao tomar declarações de uma jovem, fazendo-as reduzir a escrito em “auto de instrução preparatória”, fora de qualquer processo pendente e mantidas, a título particular, durante mais de um ano, a censura destes factos não envolve ofensa do princípio da irresponsabilidade dos juízes. III — Da lei que estabelece um prazo de prescrição do procedimento criminal decorre, em princípio, para o juiz o dever de impedir que a prescrição ocorra e o sancionar a falta de cumprimento deste dever não implica violação do princípio da irresponsabilidade do juiz por uma decisão. Mais recentemente, acrescentava o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.02.2004: “No quadro esboçado considera a sentença que a culpa do juiz só poderá ser reconhecida quando a decisão seja ‘de todo desrazoável’, evidenciando ‘um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o iter decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido’. Uma ‘culpa grave’, portanto, uma ‘grave violação da lei’, ‘a afirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluído ou assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se deva a negligência indesculpável do juiz’, é essa a culpa, no entender da sentença, que pode determinar a responsabilidade civil do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional”. E o mesmo Supremo Tribunal, em Acórdão de 31.03.2004, esclarece lapidarmente: “A diligência no exercício da judicatura é o cumprimento, em termos de cidadão médio e em conformidade com as capacidades pessoais, dos deveres da profissão, definidos de acordo com o padrão comum de actuação do corpo judicial”. E ainda: “Se for possível conceptualizar a noção de infracção de funções de forma clara, rigorosa e objectiva, haverá segurança no cumprimento do imperativo constitucional e, ao mesmo tempo, a garantia de que a apreciação da ilicitude situa-se já fora do que deve ser a inatacável independência no exercício das funções judiciais. E tanto assim é, que em hipóteses limite de actuações dolosas, em que a infracção de funções é bem visível, ninguém tem dúvidas de que a reacção do sistema jurídico não contende com a aludida independência. Pelo que o caso se reduz a saber quando é que se pode considerar um magistrado judicial negligente”. Quanto aos critérios para aferição da diligência do juiz é ainda o mesmo acórdão a identificar três: um padrão médio geral; um padrão pro-.

(19) 579. A (ir)responsabilidade dos juízes. ve rs. id ad e. do. Po. rto. fissional; um modelo pessoal de trabalho. De facto, um “juiz, apesar da especificidade e importância da sua actividade, não deixa de ser um trabalhador como qualquer outro, a quem não será de pedir uma actuação superior à que seria de exigir de outro cidadão comum — o bom pai de família — colocado na situação concreta em que se encontra o magistrado. Portanto, o cuidado e o esforço postos no exercício de funções pelo juiz não devem ser diferentes daqueles que fazem com que se considere que uma pessoa noutro qualquer ramo de actividade é diligente”, e sintetizando: “Deste modo, definiremos a diligência no exercício da judicatura como o cumprimento, em termos de cidadão médio e em conformidade com as capacidades pessoais, dos deveres da profissão, definidos de acordo com o padrão comum de actuação do corpo judicial”. Deve buscar-se uma tipificação — que poderia ser melhor conseguida — da violação dos deveres de zelo/fiscalização e culpa in vigilando.. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. 5. A responsabilidade do Estado por acto da função jurisdicional pode derivar tanto de acção e omissão, sendo que em termos de responsabilidade objectiva não é o Estado o autor do dano, e sendo que a omissão ou deficiência é condição do dano mas não causa. Ou seja, e desde logo, há que caracterizar o dano objecto de possível ressarcimento (41), situação de antijuridicidade objectiva a que não corresponda um dever de suportar o dano por parte do lesado. Tem-se entendido que a simples violação objectiva de uma norma ou princípio jurídico é suficiente para se considerar existente um comportamento ilícito gerador de responsabilidade civil, para se considerar preenchido o pressuposto “ilicitude” (42). Nesta mesma direcção parece seguir o Supremo Tribunal Administrativo, quando, no seu Acórdão de 07.03.1989 (RLJ, ano 123.º, pp. 293 e ss.), aceita a existência da responsabilidade do Estado “dispensando a imputação” dos factos ilícitos culposos a um “comportamento individual” (culpa funcional dos serviços). Este acórdão é claro na afirmação da existência do facto ilícito, não pelo incumprimento do prazo legal para a prolação de sentença (pelo facto de tais prazos constituírem meras normas disciplinadoras da actividade processual), mas sim pela não prolação da mesma em “prazo razoável”.. (41) Revista Diálogo Jurídico, Ano 1, Vol. 1, n.º 1 Abril de 2001, Bahia, Brasil. (42) João Aveiro Pereira, in A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra Editora, 2001, p. 120..

(20) 580. Luísa Neto. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. Por outro lado, há-de ser um dano objectivável, real, efectivo, avaliável em termos patrimoniais, nos termos desde logo abrangidos pela previsão do artigo 20.º, n.º 4, da CRP. Ora, segundo o artigo 562.º do Código Civil, “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” — artigo 563.º do mesmo diploma. “O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” — artigo 564.º, n.º 1, do referido Código. Mas mais: há-de necessariamente, tendo em conta a natureza da actividade em causa, exigir-se prova de prejuízo especial, individualizado, de sacrifício desigual, singular, com particular incidência danosa sobre a esfera jurídica do lesado. Escrevia certeiramente Mário Torres na sua declaração para efeitos do Acórdão n.º 13/05 do Tribunal Constitucional: “O argumento, por vezes usado para justificar estas restrições do direito à indemnização, da existência de um dever de cidadania, a cargo de todos os cidadãos, que os levaria a ter de suportar privações da sua liberdade e só em casos muito excepcionais teriam direito a ser ressarcidos, ‘para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com o consequente enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das respectivas decisões judiciais’, foi proficientemente rebatido por João Aveiro Pereira (A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, Coimbra, 2001, pp. 215 a 219), que justamente salientou a iniquidade de “fazer suportar a um indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido, geradora de danos graves — mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º, n.º 2, do CPP —, ainda que em benefício da realização do interesse público geral de eficácia da instrução criminal”, rematando: “[O] princípio da repartição dos encargos públicos com a administração da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente refere Maia Gonçalves, ‘os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a alguma margem de erro’. Porém, desde.

(21) 581. A (ir)responsabilidade dos juízes. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. que para tal desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine), afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as consequências gravosas de actuações erróneas alheias. O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito”. No mesmo sentido, de distinção entre risco inerente inevitável ao exercício de uma actividade como a jurisdicional, e o de dano especificamente suportado por determinado cidadão (43) — e como tal susceptível de reparação — veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.03.2004: “Uma coisa é uma culposa administração da Justiça, outra o risco inerente a toda a aplicação da Justiça, a qual se exerce em condições que todos sabem que não são as ideais. Se fossemos penalizar os juízes por todos ‘os erros de contas’, desacompanhados de quaisquer outros elementos, estava-se a instilar o receio e o temor de decidir. E quando isto acontece é já a independência judicial que é posta em crise. A recorrente poderá, no caso e eventualmente, demandar o Estado a título de responsabilidade por manter um sistema de Justiça deficiente, ou leis de processo disfuncionais, mas não por negligência judicial”. Estas considerações remetem-nos necessariamente para uma valoração do nexo de causalidade adequada, a que expressamente se refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.02.2000: “A obrigação de indemnizar por parte do Estado, relacionada com os atrasos injustificados na administração da Justiça, só o poderá ser no respeitante aos danos que tenham com esse ilícito, consubstanciado na morosidade do processo, uma relação de causalidade adequada”.. (43) Conclui-se no Parecer n.º 12/92, de 3 de Março de 1992 da PGR (in Pareceres vol. I, p. 48) — ainda com referência à redacção inicial do n.º 2 do artigo 225.º do Código do Processo Penal — que “os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva ilegal que se venha a revelar supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou negligência, têm direito a indemnização do Estado se da privação da liberdade lhes advierem prejuízos anómalos e de particular gravidade”..

(22) 582. Luísa Neto. R. ev. is. ta. da. Fa. cu. ld. ad. e. de. D. ire. ito. da. U ni. ve rs. id ad e. do. Po. rto. Ou seja, a responsabilidade civil do Estado pela administração da Justiça, nunca poderá colocar a hipótese da regra de responsabilidade no que toca à interpretação de normas de direito, à integração de lacunas ou à valoração dos factos e da prova, sob pena de se expor a quotidiana actividade jurisdicional a uma reacção persecutória que a limite fatalmente. Como se lia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.3.2004: “a autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito juridico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes”, “os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis”, e o “erro de direito praticado pelo juiz só poderá constitui fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguarda a essência da função jurisdicional (…) seja grosseiro, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas”. O mesmo Supremo Tribunal de Justiça afirmava em aresto de 19.10.2004: “É certo que não está em causa a sindicância da convicção do juiz na valoração da prova que se lhe apresenta, antes a existência de uma desconformidade entre a realidade processual e a realidade decorrente da apreciação do resultado da prova, o que não pode deixar de ter em vista a conduta que se espera de quem decide, o que vale por dizer que o comum padrão a considerar será o correspondente ao perfil da autoridade a quem está confiada essa espinhosa missão”. Por outro lado, “a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso, não significa, em caso de revogação da decisão recorrida, que estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso”, como resulta do Acórdão n.º 774 da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.07.97, já referido. Ora, inerente à possibilidade de reapreciação estrutura-se o dever de fundamentação das decisões judiciais, decorrente do n.º 1 do artigo 208.º da CRP após a Revisão de 1982, e que pretende de alguma forma sustentar na lei e na legitimidade da comunidade o poder último da judicatura. A fundamentação das decisões judicias, a sua publicidade e a sua sujeição à livre crítica constituem factores de consubstanciação dessa legitimidade. Como se recorda no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.03.2004, “o juiz deve ser cuidadoso no exercício da sua profissão,.

Referências

Documentos relacionados

Cabe inferir, sobre a ação governamental na área de desenvolvimento econômico, que em 2005 inicia um novo período no processo econômico no município de Passo Fundo, com a criação

There a case in Brazil, in an appeal judged by the 36ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (São Paulo’s Civil Tribunal, 36th Chamber), recognized

It answers the research question: How do multicultural life experiences, measured in various stages of foreign experience (extensive travel, past experience, current

As análises serão aplicadas em chapas de aços de alta resistência (22MnB5) de 1 mm de espessura e não esperados são a realização de um mapeamento do processo

No primeiro livro, o público infantojuvenil é rapidamente cativado pela história de um jovem brux- inho que teve seus pais terrivelmente executados pelo personagem antagonista,

A través de esta encuesta fue posible comprender el desconocimiento que existe sobre este tema y lo necesario que es adquirir información para poder aplicarla y conseguir

Os instrutores tiveram oportunidade de interagir com os vídeos, e a apreciação que recolhemos foi sobretudo sobre a percepção da utilidade que estes atribuem aos vídeos, bem como

Os principais resultados obtidos pelo modelo numérico foram que a implementação da metodologia baseada no risco (Cenário C) resultou numa descida média por disjuntor, de 38% no