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O QUE BEOWULF TEM A VER COM CRISTO? REFLEXÕES SOBRE ABORDAGEM E PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA

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O QUE BEOWULF TEM A VER COM CRISTO? REFLEXÕES

SOBRE ABORDAGEM E PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA

*

WHAT HAS BEOWULF TO DO WITH CHRIST?

REFLECTIONS ON APPROACH AND METHODOLOGICAL PROBLEMS

Elton Oliveira Souza de Medeiros

Centro Universitário Sumaré

Resumo: Desde o início dos estudos sobre

a literatura do período da Inglaterra anglo-saxônica, o poema Beowulf sempre despertou interesse, principalmente em relação às suas origens e autoria. Neste artigo, abordaremos criticamente uma metodologia tradicional de análise do texto baseada em uma dicotomia que pode ser resumida na ideia da existência de uma versão pagã supostamente original da narrativa versus a adição de interpolações cristãs posteriores, e demonstraremos os problemas decorrentes desse método. Ao mesmo tempo, apresentaremos uma nova proposta metodológica para a análise de Beowulf que rompe com essa abordagem tradicional, na qual o poema não é mais apenas uma relíquia cristianizada dos tempos pagãos, mas é visto como uma obra em um processo contínuo de composição de um mito de etnogênese da sociedade anglo-saxônica.

Palavras-chave: Beowulf, Inglaterra

anglo-saxônica, Sociedade, Cultura.

Abstract: Since the beginning of the

studies on the literature of the Anglo-Saxon England period, the poem Beowulf has always aroused interest, especially regarding its origins and authorship. In this article we will critically address a traditional methodology of analysis of the text that is based on a dichotomy that can be summarized in the idea of the existence of a supposedly original pagan version of it versus the addition of later Christian interpolations, and we will demonstrate the problems of this method. At the same time, we will present a new methodological proposal for the analysis of Beowulf that breaks with this traditional approach, in which the poem is no longer just a Christianized relic of pagan times but is seen as a work in a continuous process of composition of a myth of ethnogenesis of Anglo-Saxon society.

Keywords: Beowulf, Anglo-Saxon England, Society, Culture

Desde o final do século XX e início do XXI podemos identificar uma crescente tendência entre os historiadores, principalmente entre os medievalistas, por uma postura investigativa, ou uma metodologia de desconstrução do passado. Melhor dizendo, a desconstrução de interpretações a respeito desse passado,

* Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na conferência de encerramento do VI

Simpósio Nacional e V Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, realizado na Universidade

Federal do Amapá (UNIFAP), durante o mês de novembro de 2014. Quando não explicitado, todas as traduções do inglês antigo e do latim para o português são de nossa autoria.

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muitas vezes já consolidadas pela tradição historiográfica.

Um simples exemplo que podemos citar é o tratamento dado por historiadores como Alain Guerreau,1 que já nos anos setenta criticava a tradição de

estudos a respeito do tema “feudalismo”. Tendência que se perpetuou por outros como Susan Reynolds2 e seu levantamento de novas fontes e novas interpretações

das mesmas nos anos noventa, corroborando com as críticas de Guerreau.

Mais recentemente, temos o artigo de Régine Le Jan, intitulado “O Historiador e suas Fontes: Construção, Desconstrução, Reconstrução”, que reforça essa postura por parte dos pesquisadores do medievo sobre as interpretações e reinterpretações que tais fontes podem receber em momentos diferentes e mesmo em curtos espaços de tempo. Ela conclui a respeito da relação do pesquisador, as evidências históricas e a construção do passado que devemos tomar consciência de que só apreendemos os fatos e as realidades medievais através de prismas deformantes: da memória e do esquecimento, das construções mentais e das representações que os antigos impuseram. E que também temos consciência, na atualidade, que estamos construindo um passado medieval a partir de nossas próprias interrogações, dos nossos próprios modelos explicativos, parcial, muitas vezes tendencioso e sem dúvida distante da realidade medieval.3

Interpretações, reinterpretações ou apropriações que, extrapolando o âmbito acadêmico e se aliando a contextos políticos, devem ganhar uma atenção mais especial por parte do pesquisador. Especialmente quando envolvem processos de legitimação ideológica ou da moral vigente. Criando mitos modernos que merecem, senão a desconstrução, ao menos uma vivissecção.

A respeito dessa (re)construção de uma realidade ou memória histórica, no presente artigo, podemos inicialmente remontar ao ano de 797, quando Alcuíno de York, que já era uma figura de destaque na corte de Carlos Magno, escreveu uma

1 GUERREAU, Alain. O Feudalismo – um horizonte teórico. Lisboa: Edições 70, 1980.

2 REYNOLDS, Susan. Fiefs and Vassals – the medieval evidence reinterpreted. Oxford: Oxford

University Press, 1994.

3LE JAN, Régine. “O Historiador e suas Fontes: Construção, Desconstrução, Reconstrução”, Revista

Signum, v. 17, n. 1, 2016. p. 26 Disponível em

<http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/221/180>. Acesso em: 10 fev. 2019.

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carta cheia de críticas ao seu conterrâneo, o bispo Hygebald de Lindisfarne (c. 781 – 802). Entre as diversas condutas do bispo que recebem a reprovação de Alcuíno, estava a prática em permitir que “canções pagãs” (carmina gentilium) fossem cantadas durante as refeições dos monges ao invés da leitura de textos sagrados (sermones patrum) o que, em sua opinião, seria muito mais adequado à ocasião. E é então que surge na carta a frase célebre que representa toda sua indignação para com a atitude dos clérigos de Lindisfarne:

Quid enim Hinieldus cum Christo? [“O que Ingeld tem a ver com Cristo?”]

Alcuíno estava claramente parafraseando as palavras de Tertuliano (c. 160 – 220), “O que tem Atenas a ver com Jerusalém?”, mas tendo o cenário cultural germânico no lugar do aprendizado da cultura clássica pagã.4 Alcuíno explica que a

“casa de Deus era muito estreita” para abrigar os dois e que apenas um deles poderia permanecer nela (isto é, obviamente, Cristo). Criando então uma dicotomia entre o antigo mundo pagão e a fé cristã.

“Ingeld” em questão seria um entre vários outros heróis lendários do passado germânico e – pelo o que podemos supor pelo conteúdo da carta de 797 – ele era suficientemente conhecido na época a ponto de ser reverenciado em canções mesmo dentro dos círculos eclesiásticos. Fato esse que irá gerar então a insatisfação de Alcuíno.

Infelizmente, o que sabemos na atualidade sobre Ingeld certamente é apenas uma pequena fração de sua lenda. Na Inglaterra da Alta Idade Média, o pouco que sabemos da personagem sobreviveu em duas obras.

No poema Widsith (vv. 45 – 49):

Hroþwulf ond Hroðgar heoldon lengest sibbe ætsomne suhtorfædran,

siþþan hy forwræcon wicinga cynn ond Ingeldes ord forbigdan,

forheowan æt Heorote Heaðobeardna þrym

[Hrothwulf e Hrothgar mantiveram juntos por um longo tempo a 4ABELS, Richard. “What has Weland to do with Christ?: the Franks Casket and the Acculturation of

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paz entre sobrinho e tio, quando eles expulsaram a raça dos vikings e arrasaram com o exército de Ingeld, destruindo a hoste dos Hedobardos em Heorot]

E no poema Beowulf (vv. 2063 – 2069):

Þonne bioð gebrocene on ba healfe aðsweorð eorla syððan Ingelde weallað wælniðas ond him wiflufan æfter cearwælmum colran weorðað. Þy ic Heaðo-Beardna hyldo ne telge dryhtsibbe dæl Denum unfæcne freondscipe fæstne

[Então, estão quebrados de ambos os lados os juramentos dos nobres; desta forma em Ingeld surgirá o ódio da matança e o amor por sua esposa irá esfriar com o surgimento destas preocupações. Por isso eu não conto com a lealdade dos Headobardos, com sua parte da nobre aliança aos Dinamarqueses sem falsidade, ou sua firme amizade].

Pela demonstração de desconforto de Alcuíno e pelos exemplos encontrados na literatura do período da Inglaterra anglo-saxônica, Ingeld – assim como tantos outros –faziam parte do universo mítico pré-cristão germânico de seus ancestrais, supostamente se opondo ao presente de uma Inglaterra cristã de finais do século VIII e posterior. Entretanto, podemos dizer que a própria existência da carta enviada ao bispo de Lindisfarne – e a necessidade de Alcuíno chamar a atenção para esse problema – se torna um indício de que, na prática, essa separação e enfrentamento entre o âmbito pagão e cristão não era assim tão rígida ou tão clara.

No presente trabalho, para melhor compreender essa relação de elaboração de uma memória ou passado histórico e desse embate entre o mundo pagão e o cristão – não apenas durante o período medieval, mas também entre os pesquisadores que já abordaram tal temática – ao invés de uma única personagem, iremos utilizar algo mais abrangente e uma das obras mais famosas do período da Inglaterra anglo-saxônica: o poema Beowulf. Sendo assim, talvez fosse mais interessante lançarmos uma nova pergunta, mais pertinente com nossa proposta. Portanto, parafraseando Alcuíno de York, perguntamos: o que Beowulf teria a ver com Cristo?

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Beowulf, além de ser um dos maiores poemas dos tempos da Inglaterra medieval, é também um dos maiores enigmas para o campo de estudos históricos e literários da área ao rememorar um passado mítico-histórico no qual encontramos grandes reis e guerreiros, monstros, tesouros que remontam tanto ao passado mitológico germânico como bíblico, guerras entre tribos lendárias; tudo isso envolto por um ar de melancolia e ao mesmo tempo de heroísmo.

Desde o início dos estudos modernos sobre o poema – na virada do século XVIII para o XIX – que ele levanta diversas questões e promove debates que até os dias de hoje se mantém em aberto.

Dentre alguns dos pontos mais polêmicos a respeito de Beowulf se encontra a questão sobre sua origem. Especula-se muito a respeito de quando ele teria sido composto, por quem e com que propósito; o que gerou até então as mais diversas hipóteses e abordagens. Ainda assim, há um questionamento que é comum a todas essas indagações mais gerais sobre o poema e que até a atualidade parece assombrar o campo de estudos sobre a obra: a) Beowulf seria um poema pagão, reminiscente do passado pré-cristão dos anglos e saxões, que sofreu deturpações e enxertos cristãos ou b) talvez uma composição cristã que apenas se utilizou de uma temática do passado germânico?

A proposta deste artigo é debater até que ponto os elementos de tal afirmação são válidos e demonstrar como não mais se sustentam à luz das pesquisas atuais sobre o poema, numa tentativa de deixar claro que a clássica dicotomia entre “pagão x cristão” não apenas não cabe mais ser utilizada na análise de obras dessa natureza como ela está extremamente ultrapassada. Desta forma, também, expormos que a insistência por parte de alguns pesquisadores e estudiosos sobre o tema em utilizar tal ideia como premissa de seus trabalhos é extremamente contraproducente.5

Desta maneira, pretendemos demonstrar uma nova possibilidade de se encarar a problemática a respeito das origens do poema e os elementos pagãos e

5 Ainda é comum, por exemplo, que, após uma leitura superficial da obra, nos deixemos levar pela

possibilidade de considerar Beowulf como uma obra pagã que simplesmente recebeu um verniz de cristianização para se adequar à nova fé dos anglo-saxões, que ganhava força a partir do século VI VII.

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cristãos do texto, buscando se desvincular de antigos preconceitos metodológicos; visando uma nova instrumentalização ao se lidar com Beowulf e fontes similares do mesmo período.

Contudo, antes, seria interessante termos uma ideia geral dos estudos sobre o poema para melhor compreendermos a problematização existente sobre Beowulf desde o século XVIII, para então nos aprofundarmos na análise da obra em si.

1. Estudos sobre Beowulf.

Os estudos sobre Beowulf se confundem com a própria tradição de estudos sobre a Inglaterra anglo-saxônica e com a própria história do norte europeu do século XIX. E, curiosamente, diferente do que se pode pensar, as origens da tradição de estudos anglo-saxônicos, e principalmente sobre o poema, não estariam exclusivamente na Inglaterra, mas na Escandinávia.

Na Escandinávia oitocentista, assim como em outras nações europeias da época, ocorre um movimento de glorificação da pátria, da nação, manifestado através de novas constituições e na produção literária local. Em tal produção havia o desejo de se recuperar um suposto passado comum que legitimasse a sociedade e a cultura da época.6

No que diz respeito ao campo da literatura e sua apropriação pelo presente da época, teremos na Finlândia o desejo por uma origem e uma literatura nacional que resultou em 1835 na Kalevala, organizada por Elias Lönnrot; a maior compilação poética a partir da tradição oral sobre as narrativas tradicionais do país. Na Dinamarca, escritores como N. F. S. Grundtvig buscaram inspiração nas imagens dos tempos da Era Viking e nos ataques sofridos por seu país durante as

6 Uma discussão mais detalhada a respeito das (re)apropriações e elaborações que a

contemporaneidade fará em relação ao passado Antigo e Medieval entre os séculos XVIII e XX, infelizmente, extrapola os propósitos do atual artigo. Contudo, para um debate mais amplo sobre as elaborações do nacionalismo europeu do período indicamos: HOBSBAWN, Eric. Nações e

nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. São Paulo: Paz e Terra, 2012; e no que se

refere de forma mais específica às relações entre passado e presente do medievo e seu uso pelo século XIX indicamos: GEARY, Patrick. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005; e de forma complementar: MEDEIROS, Elton O. S. “Mito e História no Campo de Batalha: Apropriação e Interpretação do Passado pelo Medievo e como História Nacional”, Revista

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guerras napoleônicas pela Inglaterra; como no poema “Drapa om Villemoes”7 de

1808, no qual temos a cena dos portões do mítico Valhalla se abrindo para receber o valente oficial Peter Villemoes, morto em combate contra a marinha britânica. Na Suécia, na mesma época, temos Esaias Tegnér e seu poema, “Svea: Pro patria”, que retrata os “antepassados vikings” que se erguem de suas sepulturas para aplaudir os soldados suecos após supostamente reconquistarem a Finlândia. Na Noruega o ímpeto nacionalista se faz presente com a apropriação e utilização da Heimskringla de Snorri Sturluson (c. 1179-1241), como símbolo da glória do passado do país e de seus antigos reis.8

Por meio deste mesmo ideal nacional os escandinavos, de modo geral, viam a Inglaterra medieval do período anglo-saxão como detentora de elementos que pertenciam à história de seus antepassados e de seus países. E para eles o melhor exemplo desse passado comum estava representado pelo poema Beowulf.

Um das primeiras obras em que podemos observar esse tipo de comportamento, que aproxima a Escandinávia dos estudos anglo-saxônicos, é de Grímur Jónsson Thorkelin, De Danorum rebus gestis seculi III & IV: Poëma Danicum dialecto Anglo-Saxonica.9 Entre 1785 e 1791 Thorkelin havia ido à Inglaterra com o

propósito de, segundo ele, levar para a Dinamarca tantos “documentos escandinavos” quanto pudesse encontrar. Dentre o material que ele obteve estavam duas cópias do poema Beowulf, o qual ele pretendia publicar em 1807. Contudo, isso só foi possível em 1815, devido aos ataques britânicos ao seu país durante as guerras napoleônicas. Também na Dinamarca, o estudioso N. F. S. Grundtvig publicou uma tradução completa de Beowulf em 1820 sob o título Bjovulfs Drape: Et Gothisk Helte-Digt fra forrige Aartusinde af Angelsaxisk paa Danske Rim;10 e mais tarde, em 1841, ele alterou o título para Bjovulfs Drape eller

7“O Poema Heroico de Villemoes”

8BJORK, Robert. “Nineteenth-Century Scandinavia”. in: FRANTZEN, Allen & NILES, John D. (Orgs.).

Anglo-Saxonism and the Construction of Social Identity. 6ª ed. Gainesville: University Press of

Florida, 1997, p. 144.

9“Os feitos dos daneses do século III e IV: poema dinamarquês em idioma anglo-saxônico”.

10“O Poema de Beowulf: Um Poema Heroico Gótico do Milênio Passado traduzido do Anglo-Saxão para

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det Oldnordiske Heltedigt,11 reafirmando assim suas convicções sobre as supostas

“verdadeiras origens” do poema. Como podemos ver, tanto para Thorkelin quanto para Grundtvig não havia dúvidas de que Beowulf era uma obra pertencente e original do mundo escandinavo que a posteriori foi levado para a Inglaterra. Ao mesmo tempo, na Alemanha, Heinrich Leo (1799-1878) afirmava que o texto era na verdade alemão, como se pode ver no título de sua tradução de 1839: Bëówulf, dasz älteste Deutsche, in angelsächsicher Mundart erhaltene, Heldengedicht.12 Isso

era algo que incomodava Grundtvig profundamente, pois, segundo ele, Beowulf era um patrimônio dos povos escandinavos e, principalmente, da Dinamarca. E para ele os alemães nada mais faziam do que se apropriar de textos, poemas, das línguas escandinavas e tudo mais dizendo ser alemão. Este caráter nacional dos estudos escandinavos em relação a Beowulf também se manifestava no estudo do idioma em que o poema havia sido composto: o inglês antigo. Thorkelin, por exemplo, afirmava – de forma completamente equivocada – que o inglês antigo era na verdade o antigo dinamarquês; um idioma que havia se mantido puro através do islandês, mas que no passado era o mesmo idioma utilizado pelos ingleses e pelos escandinavos durante a Idade Média. De qualquer maneira, para os escandinavos, o estudo do idioma anglo-saxônico se fazia necessário e obrigatório por ser, segundo a concepção do período, o idioma ancestral a todos eles. Principalmente os estudos voltados à língua e aos textos poéticos, como forma de recuperar uma cultura nacional e seus passados nacionais gloriosos. Além de se impor como um tipo de barreira intelectual contra as apropriações realizadas pelos alemães; que consideravam o inglês antigo na verdade como o idioma alemão, levado por seus antepassados saxões para a Inglaterra na Alta Idade Média.13

A partir dos estudos desenvolvidos pelos pesquisadores escandinavos, especialmente os dinamarqueses, aliado ao interesse dos antiquários e às manifestações artísticas de temáticas históricas nacionais que surgiam desde finais

11“O Poema de Beowulf ou o Antigo Poema Heroico Nórdico”.

12“Beowulf, o mais antigo poema heroico alemão, composto no dialeto anglo-saxão”.

13 BJORK, Robert. Nineteenth-Century Scandinavia. In: FRANTZEN, Allen; NILES, John D. (Orgs.).

Anglo-Saxonism and the Construction of Social Identity. 6ª ed. Gainesville: University Press of

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do século XVIII, teremos o florescimento dos estudos anglo-saxônicos na Inglaterra aliado às idealizações vitorianas do período. O ímpeto nacionalista que havia surgido na Escandinávia (e Alemanha) – entre o final do século XVIII e começo do XIX – chegava com força à Inglaterra dos anos de 1830. Entretanto, ao mesmo tempo em que o resultado dos trabalhos escandinavos chegava aos pesquisadores ingleses, eles eram calados ou assimilados e suas origens esquecidas. A razão para isso seria, a princípio, devido ao fato de que poucos pesquisadores britânicos sabiam ler ou se davam ao trabalho de compreender os idiomas escandinavos modernos e, em segundo lugar, o caráter nacionalista no qual os estudos sobre o período anglo-saxão também se desenvolviam, sobretudo em solo inglês. Dentre outros, um dos principais nomes desse período que podemos citar na Grã-Bretanha é o de John Mitchell Kemble, por seus trabalhos nas décadas de 1830 e 1840, referentes às traduções e estudos do corpo poético anglo-saxão. Nós podemos destacar entre seus trabalhos The Anglo-Saxon Poems of Beowulf e The Traveler Song and The Battle of Finnesburh, ambos de 1833; A Translation of the Anglo-Saxon Poem of Beowulf, with a Copious Glossary, Preface, and Philological Notes, de 1837; Solomon and Saturn, de 1848; e The Saxons in England de 1849.14 A

partir de então, os estudos sobre o período anglo-saxônico ganharam oficialmente um caráter mais acadêmico e científico, tentando cada vez mais se afastar da influência dos tipos de obras que – ironicamente – ajudaram a desenvolver o interesse por este campo de pesquisa na Inglaterra: as coleções históricas ilustradas, as esculturas, pinturas, poemas, peças teatrais e demais produções, muitas delas, contendo o ímpeto nacionalista típico do século XIX.15

Do ponto de vista acadêmico, um dos primeiros trabalhos mais conhecidos sobre Beowulf seguindo esse perfil mais científico é o de F. A. Blackburn, The Christian Coloring in the Beowulf ”, de 1897. Juntamente com ele, também podemos

14 KEYNES, Simon. “KEMBLE, J. M.”. In: LAPIDGE, Michael (Org.). The Blackwell Encyclopaedia of

Anglo-Saxon England. 4ª ed. Oxford: Blackwell, 2004. p. 269.

15 MEDEIROS, Elton O. S. Mito e História no Campo de Batalha: Apropriação e Interpretação do

Passado pelo Medievo e como História Nacional, Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, 2014, p. 29-59.

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citar o de H. Munro Chadwick, The Heroic Age, an Excerpt”, de 1917.16 Ambos

representam os primeiros ensaios críticos a se preocupar mais com as origens do poema, diferentemente das típicas especulações historiográficas ou literárias do século XIX, que buscavam identificar personagens e locais históricos reais que estariam ocultos no texto. Esses dois trabalhos concordam numa origem pagã do poema, e também que ele teria passado por mudanças nas mãos de algum poeta cristão em algum monastério para adequar a obra à nova fé da época. Segundo os autores, o poeta, no entanto, teria exagerado, demonstrando até mesmo certa artificialidade ao introduzir as imagens cristãs no poema, na tentativa de encobrir sinais pagãos, o que acabou trazendo inconsistências à narrativa. Em sua concepção, o poeta teria pouca habilidade com a temática cristã, indicando talvez um recém-converso.

Foi justamente essa a ideia que mais se arraigou no mundo acadêmico e mesmo no imaginário popular sobre o Beowulf. Basta vermos filmes, livros, quadrinhos, algumas traduções do poema e outras formas de mídia até a atualidade: há sempre um impulso de caracterizar Beowulf como uma narrativa pagã que foi superficialmente adaptada ao cristianismo. E, não raro os casos, os elementos ditos “cristãos” acabam sendo eliminados pelos idealizadores dessas novas leituras do poema de forma completamente aleatória e subjetiva. O principal problema, especialmente do ponto de vista acadêmico, é que mais de cem anos depois dos trabalhos de Blackburn e Chadwick muitos pesquisadores ainda insistem em nortear seus trabalhos a partir desse pressuposto: de que existiria uma versão pré-cristã original e completa do poema, numa tentativa de separar o que seria “original” e o que seria adaptação ou “interpolação cristã”; o que, consequentemente, acaba por reforçar a artificialidade da dicotomia “pagão x cristão” na análise do poema e de outras obras do mesmo período histórico.

Durante as décadas de 1920 e 1930 do século XX, pesquisadores como Levin L. Schücking, com seu artigo “The Ideal of Kingship in Beowulf”, e – nos anos de

16 NICHOLSON, Lewis E. (Org.). An Anthology of Beowulf Criticism, 3ª ed. Indiana: Notre Dame

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1940 – Marie Padgett Hamilton, com “The Religious Principle in Beowulf”17 não

enxergarão a autoria de Beowulf como um mero editor cristão de obras pagãs e sem muita habilidade. Ao contrário de seus antecessores, Schücking e Hamilton verão no poema todo um antigo código moral de conduta, remanescente dos tempos germânicos pré-cristãos, e um autor que teria trabalhado de forma consciente na adequação desta velha tradição dentro da teologia cristã. Schücking, por exemplo, identifica que a noção de realeza presente no poema é a imagem definida pela literatura cristã e seus paralelos da cultura greco-latina; com elementos germânicos sob a influência da hermenêutica cristã agostiniana.

Tendo outro enfoque sobre Beowulf, temos em 1936 o famoso ensaio de J. R. R. Tolkien, The Monsters and the Critics.18 Este é reconhecidamente um marco nos

estudos sobre Beowulf ao interpretar o poema como um todo, principalmente em relação a seu significado e valor. Tolkien destaca a condição humana e a relaciona com elementos artísticos como equilíbrio entre início e fim, o contraste entre juventude e velhice, com os monstros personificando as forças do mal e do caos e colocados como elementos centrais da narrativa. Com esse seu trabalho, Tolkien trouxe uma nova luz sobre o poema, salvando-o da tradição de literatos e historiadores que ainda apenas dissecavam-no; ao analisar a obra como partes, como uma mera fantasia folclórica ou relato pseudo-histórico, ao invés de enxergar a importância de Beowulf – segundo Tolkien – por sua verdadeira natureza: uma obra artística poética. A influência deste ensaio será mais tarde reforçada na década de 1980, principalmente no campo da história literária e semiótica, ao analisar Beowulf já não mais como causa, mas como efeito: o poema como representação artística e social do período no qual surgiu e não mera alegoria histórica.

Outros trabalhos subsequentes terão certa similaridade com Tolkien, focados em aspectos semânticos, nas imagens e valores encontrados em Beowulf. De maneira geral todos eles tratam a forma como os antigos ideais desta sociedade

17 NICHOLSON, Lewis E. (Org.). An Anthology of Beowulf Criticism, 3ª ed. Indiana: Notre Dame

University Press, 1966, p. 35–50; 105–136.

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de fundo germânico se apresentam no poema dentro da tradição cristã, juntamente com a valorização da imagem heroica e de nobreza. Dentre eles, talvez os mais importantes após Tolkien sejam os trabalhos de Dorothy Whitelock e R. E. Kaske.

A partir do instrumental de análise voltado à literatura de origem latina apresentado por Robert Curtius em Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter de 1948,19 R. E. Kaske – em seu artigo “Sapientia et Fortitudo as the

Controlling Theme of Beowulf”, de 1958 –, trabalha com o argumento de que o tema central do poema, em especial no que se refere às representações das personagens, seria de que toda a narrativa da obra é construída tendo por guia o binômio “sabedoria e força” (sapientia et fortitudo), apresentado através de comportamentos que servem de exemplos modelares de moral e conduta e estabelecendo no poema um elo de ligação entre os modelos da tradição do mundo cristão e do paganismo germânico.20

Por sua vez, o trabalho de Dorothy Whitelock, The Audience of Beowulf,21 influenciou em muito a metodologia dos estudos sobre Beowulf a respeito das pesquisas sobre as origens do poema. Whitelock argumentava contra os ditos “críticos” – como Tolkien os chamava –, e deu margem para novas abordagens que escapassem das antigas formas de pesquisas remanescentes desde os tempos de Thorkelin. O trabalho de Whitelock se revelou de grande influência principalmente no final do século XX (nas décadas de 1980 e 1990) entre pesquisadores que não apenas deram continuidade às ideias propostas por ela, se aprofundando, como também realizaram uma releitura de Tolkien e seu artigo. Um desses pontos fundamentais do trabalho de Whitelock para os estudos sobre Beowulf é o que se dirige a um aspecto do poema que acabará por ser extremamente importante e utilizado em pesquisas até os dias de hoje22 a acerca do público da obra: a quem se

direcionava o poema Beowulf?

A pergunta vai diretamente ao encontro de nosso debate a respeito da

19 CURTIUS, Ernst. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Hucitec, 1996.

20 NICHOLSON, Lewis E. (Org.). An Anthology of Beowulf Criticism, 3ª ed. Indiana: Notre Dame

University Press, 1966. p. 269 – 310.

21 WHITELOCK, Dorothy. The Audience of Beowulf, 3ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1964.

22 PAGE, R. I. The Audience of Beowulf and the Vikings. In: CHASE, Colin. The Dating of Beowulf. 1ª

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natureza do texto. Se o poema foi composto como uma obra pagã ou cristã, ela foi composta visando um público alvo. E eis uma das grandes contribuições de Whitelock para os pesquisadores da segunda metade do século XX: ao invés de abordar o texto apenas do ponto de vista de seus elementos literários ou históricos – a partir do texto para se chegar a fatores externos a ele – Whitelock sugere um caminho inverso. Desta maneira, esse público do poema se torna de suma importância para tentarmos elucidar e compreender certos aspectos de Beowulf.

2. Heroísmo Pagão ou Interpolação Cristã? A Problemática Metodológica.

A pergunta de Dorothy Whitelock, “a quem se direcionava Beowulf ?”, como já dissemos, lançou novas possibilidades teóricas e abordagens para os estudos sobre o poema. O que resultou no surgimento de muito mais perguntas do que respostas. Dentre as perguntas que vieram a surgir sobre Beowulf na última virada de século, destacamos algumas como: a) o que ele significa?; b) O quanto um poema pode importar?; c) qual o tipo de função que uma narrativa deste tipo desempenha?; d) quais são as questões culturais para as quais uma narrativa desse tipo representa uma resposta? E talvez a mais importante: e) por que alguém – ou um grupo de pessoas – decide se dar ao trabalho e dispender tempo e comprometer material com a escrita do que claramente parece ser, a princípio, um poema inútil como Beowulf ?23

Durante o século XIX era absolutamente comum abordagens que buscavam – de forma absolutamente subjetiva, na maioria dos casos – tentar distinguir o que se acreditava ser as partes ditas “originais” do poema e o que seriam enxertos feitos a posteriori, quando da compilação do manuscrito como ele se encontra. Isto é, o que seriam as partes pagãs/pré-cristãs (“originais”) e as partes cristãs (“adaptadas”). A busca por uma versão “original” não se restringiu a Beowulf, e ainda é presente em estudos que envolvem praticamente todos os textos medievais norte-europeus que, de alguma forma, estejam ligados ao passado da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média da região. Metodologicamente isso

23 NILES, John D. Homo Narrans – the poetics and anthropology of oral literature. Pennsylvania:

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sempre se revelou algo extremamente problemático e conduzindo em não raras ocasiões a erros interpretativos. No decorrer do século XX, a discussão vai se ampliar ao envolver também aspectos a respeito da relevância da oralidade e da tradição escrita, além dos conceitos de historicidade versus mito. Apesar disso, como já mencionamos, ainda é comum tal debate persistir no confronto entre a concepção de uma originalidade pagã versus a ideia de uma adaptação cristã.

Um belo exemplo são as traduções de Beowulf para idiomas modernos. Durante o século XIX, o consenso a respeito de Beowulf por boa parte dos estudiosos era encará-lo como uma obra artística primitiva do medievo ou como um documento histórico da antiguidade do norte europeu. Além disso, desde a edição de Thorkelin em 1815 que Beowulf era considerado um “épico” e comparado com obras da antiguidade clássica como a Odisséia e a Eneida (por exemplo, em 1857, John Earle publicou uma versão de Beowulf intitulada “A Primitive Old Epic”, na revista Household Words de Charles Dickens).

Decorrente dessa visão surgiu a iniciativa de traduções que legitimassem Beowulf como um épico da cultura germânica desvinculado da tradição mediterrânea e cristã. Para tanto, entre outros casos, vamos ter o alemão Ludwig Ettmüller que realizou uma tradução de Beowulf intitulada Beowulf: Heldengedicht des achten Jahrhunderts,24 em 1840. Para sua edição, Ettmüller tentou realizar a

tarefa de separar as supostas “camadas” do poema: uma camada mais antiga (“original”) e uma mais tardia (“cristã”). E em 1875 ele publicou uma nova edição omitindo as passagens que ele acreditava que fossem interpolações de um autor cristão. Como outros estudiosos, Ettmüller buscava pelo “texto verdadeiro” e para isso ele realizou uma tradução que fosse o que acreditava ser o mais fiel possível ao hipotético texto original, e com versos que tentavam imitar a métrica aliterativa anglo-saxônica.

Outro exemplo digno de nota, que demonstra como essa busca por uma suposta narrativa original de Beowulf persistiu mesmo depois do século XIX é a tradução de 1958 do arqueólogo Sune Lindqvist para o sueco: Beowulf Dissectus: Snitt ur fornkädet jämte svensk tydning. Neste trabalho, o autor, de forma similar a

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Ettmüller, identificou o que considerava as partes originais e excluiu todas as passagens que considerou de caráter cristão, publicando o restante na forma semelhante a uma crônica.25

É necessário fazermos aqui uma observação importante sobre dois grandes equívocos cometidos por pesquisadores e estudiosos sobre o assunto e as obras do período anglo-saxônico como um todo. Em primeiro lugar, a suposição de que a escassez de elementos cristãos em um dado texto signifique que este não seja cristão. Em segundo lugar, se as suas origens, de alguma forma, distorcem o cristianismo mais tradicional ou se representam uma tradição mais antiga, que isso indicaria, obrigatoriamente, que tal fonte é pagã.

A partir disso, não há razões concretas para lermos Beowulf como uma obra sobrevivente dos tempos pagãos que acabou sendo meramente editada por monges e enchendo-a de interpolações cristãs, como muitos ainda insistem em afirmar, baseado em indícios tão superficiais. Afirmar, categoricamente, que Beowulf, como nós o conhecemos, é uma narrativa pagã com um verniz de cristianismo é o mesmo que dizer que o Novo Testamento é apenas um livro grego de fundo judaico; não é uma afirmação totalmente errada, mas está longe de ser a correta.

3. Beowulf como discurso ritualizado

Infelizmente, como podemos deduzir pelo o que já foi exposto, pode-se dizer que – citando novamente Dorothy Whitelock – muitos dos problemas e discussões em torno de Beowulf são, na verdade, criações dos próprios estudiosos, que procuram por certa característica ou analogia pré-concebida por eles mesmos e culpam o texto e sua autoria por obscurecê-las se falham ao encontra-las.26

Ao iniciar um estudo sobre Beowulf, há quatro elementos aos quais devemos atentar: origem, público, datação e autoria; e um quinto elemento que estaria atrelado aos demais: o gênero narrativo. Dentre eles, a autoria – como é de se supor – é a de discussão mais complexa, uma vez que não há como saber com

25 SHIPPEY, Thomas. Structure and Unity. In: BJORK Robert E. & NILES, John D. A Beowulf Handbook.

Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.

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certeza quem foi o responsável pela obra e até o presente não há elementos suficientes que sustentem qualquer tipo de teoria – ainda que esse seja um dos pontos principais que iremos abordar mais à frente. A princípio existiriam as mais diversas opiniões: de que o autor seria um poeta cristão com grande conhecimento das lendas germânicas, ou um pagão recém-cristianizado, um clérigo ou ainda que não tivesse sido apenas um, mas diversos autores.

Uma vez mais devemos retomar a ideia sobre Beowulf como fruto de uma tradição germânica pré-cristã que teria passado por uma adaptação, recebendo assim uma máscara de cristianismo. Um dos principais argumentos para isso seria o fato de que, ao longo da narrativa, a presença da fé cristã seria muito sutil. Não é citada a figura de Cristo e, a princípio, não haveria maiores evidências de qualquer outro elemento cristão no texto, a não ser a menção a Deus propriamente dito. Contudo, numa observação mais cautelosa, pode-se perceber que Beowulf é muito mais que simplesmente uma narrativa pagã reaproveitada pelo cristianismo, pois a presença desses elementos cristãos é uma parte fundamental do poema.

A busca por uma versão pagã – e sua autoria – anterior ao poema atual se demonstra infrutífera, pois não há provas que assegurem sua existência. A não ser por indícios que podem remeter à tradição oral, o que temos é apenas o manuscrito do Cotton Vittelius A. XV – também conhecido como o manuscrito de Beowulf –, datado de por volta de finais do século X, e nele os elementos cristãos permeiam o texto de uma forma intrínseca, provavelmente fruto de uma autoria consciente no que trabalhava.27 A partir disso, podemos supor então que o público

de Beowulf era cristão, pois os termos e as referências bíblicas no texto são breves e seriam pouco esclarecedoras para aqueles que não tivessem um conhecimento mínimo da doutrina cristã. Passagens do poema sobre a Criação e o Dilúvio, por exemplo, ficariam sem sentido na obra. E a existência de outras passagens que também remetem à tradição cristã reforça essa ideia.

27 Ideia defendida por J. R. R. Tolkien (TOLKIEN, J. R. R. The Monsters and the Critics. 9ª ed. Londres:

Harper Collins, 1997. p. 23) e Dorothy Whitelock (WHITELOCK, Dorothy. The Audience of Beowulf, 3ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1964. p. 3-4), além de outros pesquisadores mais recentes (BJORK, Robert E. & OBERMEIER, Anita. Date, Provenance, Author, Audiences. In: BJORK Robert E.; NILES, John D. A Beowulf Handbook. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. p. 31-33).

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(...) þær wæs hearpan sweg

swutol sang scopes. Sægde se þe cuþe frumsceaft fira feorran reccan

cwæð þæt se ælmihtiga eorðan worhte wlitebeorhtne wang swa wæter bebugeð gesette sigehreþig sunnan ond monan leoman to leohte landbuendum ond gefrætwade foldan sceatas leomum ond leafum lif eac gesceop cynna gehwylcum þara ðe cwice hwyrfaþ.

[Lá havia o som da harpa, o canto claro do poeta. Ele falou a quem pudesse da origem dos homens de há muito tempo atrás, contou como o Todo-Poderoso criou o mundo, esta resplandecente planície cercada pelas águas, e em Seu vitorioso esplendor fez do Sol e da Lua luzes brilhantes para os que habitam a terra, e adornou os cantões da terra com galhos e folhas; também criou a vida em cada um dos seres que se movem] Beowulf, vv. 89 – 98. Hroðgar maðelode hylt sceawode

ealde lafe on ðæm wæs or writen fyrngewinnes syðþan flod ofsloh gifen geotende giganta cyn

frecne geferdon þæt wæs fremde þeod ecean dryhtne him þæs endelean

[Hrothgar falou, examinou a empunhadura do antigo legado, e nele estava escrita a origem do antigo conflito, quando o Dilúvio destruiu a raça dos gigantes com os oceanos em fúria. Eles sofreram terrivelmente. Aquele era um povo estranho para o Senhor eterno]. Beowulf, vv. 1687 – 1692.

Nos tempos anglo-saxônicos, uma plateia que tivesse conhecimento do Velho Testamento podia ser considerada conhecedora da fé cristã como um todo.28

Durante a cristianização, inicialmente seria ensinado sobre os Evangelhos, a redenção do mundo através da Paixão de Cristo, a Sagrada Trindade e só mais tarde sobre o Velho Testamento. O uso de elementos do Velho Testamento é um indicativo de que o público de Beowulf já teria conhecimento, mesmo que superficial, de toda a doutrina cristã ou ao menos do que fosse essencial. Assim, ao relatar a linhagem amaldiçoada de Grendel como fruto do pecado de Caim ficaria clara sua referência e sua importância para o público ouvinte/leitor.

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wæs se grimma gæst Grendel haten mære mearcstapa se þe moras heold fen ond fæsten fifelcynnes eard wonsæli wer weardode hwile

siþðan him scyppend forscrifen hæfde in Caines cynne þone cwealm gewræc ece drihten þæs þe he Abel slog

ne gefeah he þære fæhðe ac he hine feor forwræc, metod for þy mane mancynne fram.

Þanon untydras ealle onwocon eotenas ond ylfe ond orcneas

swylce gigantas þa wið gode wunnon lange þrage he him ðæs lean forgeald.

[Este espírito detestável se chamava Grendel, conhecido andarilho dos ermos. Ele guardava os pântanos, alagadiços e charcos. Em terra de raça monstruosa viveu por tempos, o ser infeliz, uma vez que o Criador o tinha condenado a ser da raça de Caim – desde quando o Senhor Eterno vingou o assassinato que matou Abel29;

ele30 não teve nenhuma alegria com tal hostilidade, pois foi banido

para longe, por Deus, da presença de outros homens por este crime. Dele se originou toda uma prole maligna: gigantes e elfos e espíritos maléficos, e também os gigantes que lutaram contra Deus há muito tempo; Ele lhes deu o que era merecido] Beowulf, vv. 102 – 114.

Mesmo passagens que a princípio poderiam estar relacionadas claramente ao imaginário germânico podem, na verdade, ocultar um significado muito mais complexo. Por exemplo, o combate final entre o herói Beowulf e Wiglaf contra o dragão – fonte inspiradora de Tolkien para o seu dragão em seu livro O Hobbit – por muitas vezes já foi comparado ao combate do herói Sigurd contra Fafnir na Volsunga saga. Um paralelo compreensível, uma vez que o episódio é narrado em Beowulf (apenas com a diferença de que no poema o matador do dragão é Sigemund, pai de Sigurd):

(…) Sigemunde gesprong æfter deaðdæge dom unlytel

syþðan wiges heard wyrm acwealde hordes hyrde he under harne stan æþelinges bearn ana geneðde frecne dæde ne wæs him Fitela mid

hwæþre him gesælde ðæt þæt swurd þurhwod 29 A história bíblica de Caim e Abel em Gênesis 4:1-16.

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wrætlicne wyrm þæt hit on wealle ætstod dryhtlic iren draca morðre swealt.

[Sigemund ergueu não menor glória após o dia de sua morte, quando o forte guerreiro matou a serpente guardiã do tesouro. Sob a pedra cinzenta ele, filho de um príncipe, sozinho se aventurou num feito audacioso. Fitela não estava com ele; todavia teve a sorte de que a espada atravessasse a estupenda serpente, de forma que o nobre ferro se fixou no muro. O dragão pereceu assassinado. ] Beowulf vv. 884 – 892.

A princípio não haveria dúvidas quanto ao paralelo. Entretanto, o dragão de Beowulf possui uma característica muito peculiar para ser mero acaso:

Ða se gæst ongan gledum spiwan beorht hofu bærnan bryneleoma stod eldum on andan no ðær aht cwices lað lyftfloga læfan wolde.

Wæs þæs wyrmes wig wide gesyne nearofages nið nean ond feorran, hu se guðsceaða Geata leode hatode ond hynde. Hord eft gesceat dryhtsele dyrnne ær dæges hwile. Hæfde landwara lige befangen bæle ond bronde beorges getruwode wiges ond wealles.

[O visitante então começou a cuspir fogo, a queimar os luminosos salões. O brilho das chamas despertava o terror nos homens; nada vivo seria lá deixado pelo terrível ser voador. A destruição do dragão era vista por toda parte — sua maligna hostilidade — nas proximidades e à distância em como o povo dos Geatas o guerreiro destruidor odiava e afligia! Retornou para o tesouro, para o grandioso salão secreto, antes do raiar do dia. Tinha envolvido os moradores da região em chamas, fogo e incêndio; ele confiava em sua morada, em seu valor guerreiro e em suas paredes] Beowulf vv. 2312 – 2323.

Ele – o “terrível ser voador” (lað lyftfloga) – é o único dragão capaz de voar dentre as fontes norte-europeias da Alta Idade Média. E este tipo de imagem é um dos modelos típicos de representação do Demônio na tradição cristã, inspirado em passagens como no Livro do Apocalipse:

Et factum est proelium in caelo, Michael et angeli eius, ut proeliarentur cum dracone. Et draco pugnavit et angeli eius, et non valuit, neque locus inventus est eorum amplius in caelo. Et proiectus est draco ille magnus, serpens antiquus, qui vocatur Diabolus et

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Satanas, qui seducit universum orbem; proiectus est in terram, et angeli eius cum illo proiecti sunt.31

[“Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, com seus anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. Foi expulso o grande o Dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo e Satanás, sedutor de toda a terra habitada; foi expulso para a terra, e seus anjos foram expulsos”] Apocalipse 12, 7 – 9.

Nós podemos apenas imaginar como uma população culturalmente de origem germânica, como anglos e os saxões, reagiria ao entrar em contato com tais palavras e imaginar de fato um dragão, um monstro antigo, habitante de um covil subterrâneo – cercado por paredes e muralhas –, como é o caso do dragão voador de Beowulf.

Além do aspecto cristão, outro fator é o de que, claramente, Beowulf se trata de uma obra de cunho aristocrático, com personagens de uma aristocracia guerreira de ideais heroicos e que seria direcionada para uma plateia do mesmo âmbito social. Nós temos uma mescla de temas bíblicos ao cotidiano e à sociedade desses povos retratados, integrando eles e seu passado a uma História da Cristandade. Fenômeno presente em outras obras do mesmo período inglês e que, obviamente, não é exclusivo da Inglaterra anglo-saxônica.

Com uma ideia mais clara do perfil de seu público alvo, é possível dizer que a composição de uma obra como Beowulf poderia estar desempenhando um papel mais importante dentro de uma sociedade cristã como era a da Inglaterra anglo-saxônica; além do simples entretenimento. Contudo, qual seria esse papel desempenhado pelo poema?

Graças a estudos diretamente ligados a uma corrente “pós-Tolkien”, atualmente já se tornou costumeiro pensar em Beowulf como um dos grandes expoentes artísticos do período anglo-saxônico. Abordagens filológicas, estruturalistas, a análise de elementos oriundos da patrística e padrões oriundos da composição oral, sem sombra de dúvida expandiram significativamente as

31 O texto da Vulgata em latim está disponível em

<http://www.vatican.va/archive/bible/nova_vulgata/documents/nova-vulgata_nt_apocalypsis-ioannis_lt.html#12>. Acesso em: 10 fev. 2019.

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fronteiras de nosso conhecimento sobre o poema. Entretanto, paradoxalmente, o sucesso dessas mesmas abordagens ao longo dos anos acabou por limitar nossa compreensão de Beowulf como algo além dessas delimitações – por exemplo, como uma ação poética modelada por um ambiente social. Isso não significa que tais abordagens não devam fazer parte de nossa compreensão da obra. Elas devem, mas não podemos nos limitar apenas a elas. Não devemos analisar o poema partindo exclusivamente do pressuposto dele ser uma obra de arte, mas devemos buscar uma nova abordagem que trate Beowulf de forma mais ontológica do que estética. Isso significa lidar com o poema como um ato literário com antecedentes e consequências culturais, que não está limitado à sua forma escrita. Nesse ponto nos deparamos com outro problema metodológico ao lidarmos com Beowulf: valorizarmos excessivamente a palavra escrita em relação a sua oralidade. Pois, se tentarmos compreender um texto como Beowulf apenas pelo viés do documento escrito, estaremos comprometendo nosso entendimento, digamos, holístico da obra, como um conjunto de símbolos e sentimentos atuantes dentro de uma sociedade; e, consequentemente, a função da obra dentro dessa mesma sociedade.32

Função essa que, seguindo a definição de John D. Niles, poderíamos chamar como “discurso ritualizado”. Ao falarmos em “discurso” devemos entender uma associação de significados ao lidar com determinado tema que permite abordagens sobre ele enquanto se estabelece um conjunto de relações entre um corpo de informações e um conjunto de normas comportamentais e práticas institucionais. E por “ritualizado”, aplicado a mitos, poemas heroicos e obras semelhantes, estaríamos falando em um estilo elevado de linguagem voltado principalmente para apresentações em público dentro de um ambiente e/ou ocasião especial que se associa à estética, ética e ideologia do rito e também ao status e poder daqueles que tomam parte do ato. Assim, o “discurso ritualizado” pode ser entendido como um tipo de gênero de narrativa oral mais cerimonial, com um linguajar característico que claramente difere do coloquial. Nesse sentido, a forma de

32 NILES, John D. Homo Narrans – the poetics and anthropology of oral literature. Pennsylvania:

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expressão oral do mito e da poesia heroica – da mesma forma que ocorre com orações religiosas e em fórmulas de práticas mágicas populares do mesmo período – é linguisticamente singular, de ritmo específico, com formulações ou dicção “arcaica”, com uso de paralelismo retórico, antíteses, pleonasmos, redundâncias, digressões e uma impostação de voz especial. Tais narrativas orais desempenhariam uma forma de interação social que combinaria o prazer da reunião de pessoas do público ouvinte com a articulação de crenças, valores e memórias coletivas que seriam de suma importância para o grupo. O intuito seria de evocar elementos de um passado que seja detentor de estruturas mentais e sentimentos que estejam articulados com o presente do grupo social, visando reforçar uma continuidade com esse passado e a legitimação da identidade do grupo.33

Desta forma, ao retornarmos à pergunta “qual seria o papel desempenhado pelo poema Beowulf ?”, podemos dizer qual não seria seu papel. Diferentemente de concepções anteriores, Beowulf não seria o reflexo político e/ou ideológico de um grupo em particular localizado em um local e momento específico da Inglaterra anglo-saxônica, ou uma “janela para o passado” que nos permitiria vislumbrar o que seria a realidade das instituições sociais germânicas, ou um relato pseudo-histórico, ou simplesmente uma lenda heroica pagã reabilitada pelo cristianismo.

Ao invés disso, Beowulf, como nós o conhecemos, poderia ser visto como um “discurso ritualizado”. Parte de um longo processo de construção identitária que teria atingido seu clímax durante a formação do reino inglês no século X, suprindo e refletindo grandes necessidades coletivas de uma sociedade complexa que vinha passando por mudanças e culminando em um momento de grandes transformações. Como exemplo mais claro disso temos o próprio manuscrito de Beowulf. Em sua forma escrita, o texto data de por volta do ano mil, sendo este uma cópia de uma versão prévia que certamente não é anterior ao início do século X. Nesse período, os anglo-saxões já haviam sido cristianizados há quase quatrocentos anos, sendo, inclusive, uma cultura cristã desenvolvida o bastante

33 NILES, John D. Homo Narrans – the poetics and anthropology of oral literature. Pennsylvania:

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para produzir nomes como Beda o Venerável, Alcuíno de York, Ælfric de Eynsham, e responsável por missões no Continente e a criação de centros religiosos e, atrelado a isso, uma cultura literária escrita e vernácula também já existia por praticamente quase o mesmo período de tempo.

Contudo, é importante frisar, a existência de uma cultura letrada de forma alguma cessou a existência de uma cultura oral. Durante o período da composição física/material de Beowulf o uso da palavra escrita e da oralidade coexistiam inclusive nos círculos aristocráticos e da realeza anglo-saxônica. Como instrumentos para expressar uma ideologia capaz de persuadir as pessoas a serem governadas e líderes a governar bem através do que pesquisadores como David Pratt chamam de “o teatro da corte”.34 Prática na qual textos legislativos,

normativos e outros que fossem ligados à figura régia se enquadrariam, com as devidas ressalvas, como exemplos de “discursos ritualizados” visando à manifestação e legitimação da autoridade do governante. Além, claro, do uso da poesia em inglês antigo como veículo para a doutrina cristã e para reinventar seu passado germânico. Logo, devemos entender a Inglaterra anglo-saxônica como detentora de uma cultura letrada e ao mesmo tempo oral. Dentro desse contexto Beowulf não seria apenas uma obra escrita, mas seria também uma obra escrita.

Sendo assim, interpretar Beowulf como um “discurso ritualizado”, voltado principalmente a uma aristocracia de origem germânica, e uma obra parte de um processo amplo de construção de uma identidade social, nos auxilia a uma melhor análise das possibilidades de sua origem e datação.

Uma hipótese a respeito da origem da narrativa, por mais incerta que ela ainda aparente, poderia apontar para os séculos VI e VII, durante o período de surgimento e consolidação dos primeiros reinos anglo-saxônicos. Com a formação de tais reinos e de uma aristocracia guerreira viria também o impulso por origens que justificassem seu presente, suas ideologias, estruturas de poder e costumes. E a matéria-prima perfeita para isso seriam as histórias relacionadas ao período de seus ancestrais, durante o período migratório para a ilha da Bretanha durante os

34 PRATT, David. The Political Thought of King Alfred the Great. Cambridge: Cambridge University

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séculos V e VI. Histórias e lendas que na Inglaterra poderiam ser “re-imaginadas”, recriadas, atendendo seus propósitos como um contraponto legitimador de sua própria época. Como parte, realmente, de um processo de etnogenese.35 E uma das

melhores maneiras de propagar isso seria através de uma poesia heroica, que poderia ser facilmente acessível não apenas ao círculo aristocrático.

Outro fator que reforça esse ímpeto por um passado legitimador se deve a cristianização. O processo de cristianização na Inglaterra, podemos dizer, foi sui generis se compararmos, por exemplo, com o que ocorreu com os saxões continentais. Diferentemente de seus “primos” do Continente, a cristianização dos anglo-saxões se deu de maneira geral de forma pacífica e relativamente rápida.36 A

adoção pela fé cristã se deu inicialmente pelos líderes dos anglos e saxões e ocorreu de forma sistemática, e não como mais um culto a se juntar às suas demais crenças. Uma das razões mais claras para isso recai na influência política que isso poderia lhes proporcionar e, além disso, ao fazer parte da Cristandade, os fazia ingressar numa estrutura mais abrangente de poder e passado histórico. Muito mais abrangente do que os mitos de seus ancestrais poderiam lhes fornecer, ao reinterpretar e tornar seu passado não mais restrito ao mundo germânico, mas parte de algo maior que envolvesse o advento do império romano, o mundo do Velho Testamento e os demais povos do mundo cristão, dentro de uma mesma narrativa de “história sagrada”; e dessa forma atrelada a uma “História de Salvação”.37

A ideia de construção de um passado que mescla o passado germânico, romano e bíblico pode ser encontrado em uma das obras mais importantes da Inglaterra anglo-saxônica: Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum de Beda o

35 A respeito de outros exemplos do fenômeno de apropriação do passado dentro da própria Idade

Média com o propósito de elaboração de mitos fundadores e de etnogenese – e o debate a respeito do uso do termo “nação” para períodos anteriores a Era Moderna – indicamos: DAVIES, Rees. Nations and National Identities in the Medieval World: An Apologia, Revue belge d’Histoire

contemporaine/Belgisch Tijdschrift voor Nieuwste Geschiedenis, XXXIV, n. 4, 2004, p. 567-568.

36 CHANEY, William A. The Cult of Kingship in Anglo-Saxon England, Manchester: Manchester

University Press, 1999. p. 55–77.

37MEDEIROS, Elton O. S. “Alfred o Grande e a Linhagem Sagrada de Wessex: a construção de um

mito de origem na Inglaterra anglo-saxônica”, Mirabilia, n. 13, 2011, p. 150 – 155. Disponível em: <https://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2011_02_07.pdf.> Acesso em: 10 fev. 2019.

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Venerável, no século VII – VIII, e mais tarde, de forma ideológica e politicamente articulada, nos textos frutos das reformas sociopolíticas do rei Alfred o Grande, nos séculos IX e X.38 Um exemplo disso é a genealogia elaborada para o próprio rei

Alfred e seu pai, o rei Æthelwuf, presente na Crônica Anglo-Saxônica:

E Æthelwulf era o filho de Egbert, o filho de Ealhmund, o filho de Eafa, o filho de Eoppa, o filho de Ingild. Ingild era irmão de Ine, rei dos Saxões do Oeste, que manteve o reino por 37 anos e que mais tarde foi para junto de São Pedro e findou sua vida lá. E eles eram filhos de Cenred. Cenred era o filho de Ceowold, o filho de Cutha, o filho de Cuthwine, o filho de Ceawlin, o filho de Cynric, o filho de Creoda, o filho de Cerdic. Cerdic era o filho de Elesa, o filho de Esla, o filho de Gewis, o filho de Wig, o filho de Freawine, o filho de Freothogar, o filho de Brand, o filho de Bældæg, o filho de

Woden, o filho de Frealaf, o filho de Finn, o filho de Godwulf, o

filho de Geat, o filho de Tætwa, o filho de Beaw, o filho de

Sceldwa, o filho de Heremod, o filho de Itermon, o filho de

Hathra, o filho de Hwala, o filho de Bedwig, o filho de Sceaf, i.e. o filho de Noé. Ele nasceu na arca de Noé. Lamech, Methuselah, Enoch, Jared, Mahalaleel, Cainan, Enos, Seth, Adão o primeiro homem e nosso pai, i.e. Cristo.39

Destacamos aqui incialmente os nomes de Æthelwulf (pai do rei Alfred) e Cerdic (lendário fundador da linhagem da Casa Real de Wessex); então nós temos Bældæg e Woden (que são respectivamente os nomes anglo-saxônicos equivalentes na Escandinávia aos dos deuses Balder e Odin); e por fim temos esse interessante conjunto de nomes: Beaw, Sceldwa, Heremod e Sceaf. Interessantes porque são os mesmos nomes que aparecem no poema Beowulf, como parte da linhagem dos Scyldings, a Casa real dos Dinamarqueses a qual pertence o rei Hrothgar que recebe a ajuda de Beowulf para se livrar do monstro Grendel. Vemos aqui então essa mescla do presente dos anglo-saxões, com um passado lendário próximo e o passado mítico do Continente, unidos, por fim, aos patriarcas bíblicos e ao próprio Cristo e a Deus.40

Em outros poemas anglo-saxônicos o mesmo processo de sincretismo

38 Ibidem. p. 156–164.

39 WHITELOCK, Dorothy. The Anglo-Saxon Chronicle, London, 1961. p. 44 (grifo nosso).

40 MEDEIROS, Elton O. S. A Linhagem Perdida de Sceaf: genealogias mítico-históricas na Inglaterra e

Escandinávia & a tradução do prólogo da Edda de Snorri Sturluson, Revista Signum, v. 16, n. 3, 2015. Disponível em <http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/191/168>. Acesso em: 10 fev. 2019.

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ocorre. Por exemplo, no poema chamado Êxodo – inspirado pelo livro bíblico de mesmo nome – temos a descrição de Moisés exatamente como um herói germânico como o herói Beowulf:

Hwæt! We feor and neah gefrigen habað ofer middangeard Moyses domas, wræclico wordriht, wera cneorissum, in uprodor eadigra gehwam

æfter bealusiðe bote lifes,

lifigendra gehwam langsumne ræd,-- hæleðum secgan. Gehyre se ðe wille! þone on westenne weroda drihten, soðfæst cyning, mid his sylfes miht gewyrðode, and him wundra fela, ece alwalda, in æht forgeaf. He wæs leof gode, leoda aldor, horsc and hreðergleaw, herges wisa, freom folctoga.

[“Ouçam! Longe e amplamente por toda a terra nós ouvimos falar de como as leis de Moisés, um maravilhoso códice, proclama aos homens a recompensa da vida celeste para todos os abençoados após a morte, e o último ganho para cada alma vivente. Ouça aquele que puder! A ele o Senhor dos Exércitos, o Vitorioso Rei, mostrou honra em terras ermas, e o Senhor Eterno lhe concedeu poder para realizar grandes maravilhas. Ele era amado por Deus, um senhor de homens, um sábio e intrépido líder de exércitos, um valente líder do povo”.] Êxodo, vv. 1 – 14.

Sendo assim, uma possibilidade seria de que, da mesma forma como a construção da linhagem mítica dos reis de Wessex, Beowulf seria, então, fruto de uma elaboração que remontaria aos primeiros reis anglo-saxões dos séculos VII e VIII e que se estenderia até o presente dos séculos IX e X, quando toma a forma como o conhecemos e é registrado de forma escrita. Logo, falarmos de uma origem de sua composição ou sua datação aos moldes do que os antigos pesquisadores de Beowulf pensavam – obcecados por um local e momento específico de concepção do poema “original” – não faz muito sentido dentro desses novos parâmetros de abordagem. Uma vez que sua narrativa estaria em processo constante de composição. Por outro lado, pensarmos em uma origem e datação a partir da evidência material existente no manuscrito do Cotton Vitelius A. XV pode ser muito mais frutífero. Pois a Inglaterra dos séculos IX e X passava por um grande processo

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de amalgama cultural após as ondas invasoras escandinavas.

A partir disso, Beowulf poderia ser analisado como uma evidência dessa mescla entre anglo-saxões e escandinavos – e seus descendentes – que se tornaram os alicerces para o novo reino inglês que surgia na primeira metade do século X. Um reino composto por uma aristocracia, chamemos, “anglo-dinamarquesa” que compreenderia a história da linhagem dos Scyldings em Beowulf e reconheceria a mesma na genealogia de seu rei, sendo algo significativo o bastante para servir como um mito de origens tanto em um poema quanto na genealogia da Casa de Wessex. Assim, o texto que se encontra no manuscrito de Beowulf serviria aos propósitos dessa nova sociedade como uma fonte de um passado comum a todos os seus habitantes.

4. Considerações finais

Na tentativa de responder a pergunta lançada no título e no início desse artigo, parafraseando Alcuíno de York – “O que Beowulf tem a ver com Cristo?” –, a resposta seria de que isso, para os dias de hoje, é irrelevante. Em primeiro lugar porque essa abordagem a respeito do poema está completamente ultrapassada e atrelada a um tipo de pensamento típico do positivismo do século XIX, que se estendeu até a primeira metade do século XX, em sua ânsia característica de catalogar, medir, estratificar e classificar tudo em categorias e definições que refletiam muito mais os anseios e tendências do pesquisador do que aquilo que a evidência histórica realmente apresentava. Em segundo lugar, os elementos pré-cristãos e pré-cristãos em Beowulf estão tão intrinsecamente ligados que qualquer tentativa de os separar será absolutamente subjetiva, além de comprometer a integridade semântica da narrativa. Sendo assim, Beowulf seria uma obra “não-euclidiana”; não é cristão ou pagão, mas os dois. Da mesma forma que ele se insere no campo da palavra escrita e da oralidade ao mesmo tempo.

Isso pode nos levar ao questionamento já abordado, a respeito de qual seria a função de Beowulf para o contexto sociocultural da época. Podemos interpretar o poema – deixando de lado a típica abordagem “pagão versus cristão” – como uma reelaboração mítico-histórica de um passado de fundo germânico/escandinavo por

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parte de um autor e uma plateia que estariam tão distantes dele quanto um escritor atual está dos tempos de Camões e Shakespeare. Uma vez que o poema estaria ligado a este passado através do desenvolvimento de uma tradição oral e não ancorado totalmente na história escrita. Dessa maneira, poderíamos olhar para a elaboração de Beowulf como um grande ato de (re)imaginação histórica. E por meio de atos como esse a população da Inglaterra anglo-saxônica recriava sua própria identidade espiritual; como se refletida em um espelho distante.41

Processo esse que, como pode ser observado através da própria história dos estudos sobre o poema e da Inglaterra anglo-saxônica, estaria longe de ter um final:

“The future of Beowulf studies, I suspect, will not belong to those who just read the text, in the narrow sense of interpreting it. It will lie with those who also use and take pleasure in it, adapting it to their own purposes in the world in which they live, as the poet’s own listeners and readers surely did”.42

Artigo recebido em 27.03.2020 Artigo aceito em 15.06.2020

41 NILES, John D. Homo Narrans – the poetics and anthropology of oral literature. Pennsylvania:

University of Pennsylvania Press, 1999, p. 137.

42“O futuro dos estudos de Beowulf, eu suspeito, não pertencerá àqueles que apenas leem o texto,

no sentido estrito de interpretá-lo. Ele estará com aqueles que também o usam e tem prazer com ele, adaptando-o a seus próprios propósitos no mundo em que vivem, assim como os próprios ouvintes e leitores do poeta certamente fizeram”. NILES, John D. “Beowulf, Truth, and Meaning” in: BJORK Robert E. & NILES, John D. A Beowulf Handbook. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997, p. 11.

Referências

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