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A concepção dialética do estado e o primado republicano

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Faculdade de Direito

Gustavo Felipe Melo da Silva

A CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO ESTADO E O PRIMADO

REPUBLICANO

Belo Horizonte 2017

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A CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO ESTADO E O PRIMADO

REPUBLICANO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho Salgado

Belo Horizonte 2017

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Tese defendida e aprovada em __/__/2017 pela banca examinadora constituída pelos professores:

____________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Henrique Carvalho Salgado (Orientador)

____________________________________________________ Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado

____________________________________________________ Prof. Dr. Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho

____________________________________________________ Prof. Dr. Renato César Cardoso

____________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Vasconcelos Novaes

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RESUMO

Para se compreender o Estado há de se lançar os elementos povo, território e governo estruturados em torno do direito; que por sua vez resulta da estruturação de fato, valor e norma em torno da pessoa, tudo isso dentro da dinâmica histórica do tempo. O Estado é o resultado do movimento, da interação dialética dos elementos simultaneamente. O Estado deve ser visto como um todo. Isso implica que somente a partir da concepção de que indivíduo, sociedade e Estado consistem em uma unidade total, torna-se possível compreender o Estado, e por conseguinte, seus princípios jurídicos estruturantes. Dessa forma o que se pretende é utilizar, na prática, a lógica e pensamento dialéticos para ampla e efetiva compreensão do Estado. Trata-se de compreender o Estado como Conceito. Tem-se em mente a premissa de que o Estado deve-se nortear pela preservação e efetivação do bem comum, e que a noção de bem comum, de bem-estar geral, encontra seu correlato jurídico na terminologia interesse público. Neste giro, o que pretende é demonstrar que interesse público é o interesse do Estado, na sua concepção Estado como conceito, sob o prisma da Concepção Dialética do Estado. A chave interpretativa que rege o postulado republicano é justamente o interesse público, e traz em si tanto o momento do Poder Político e da Sociedade Civil dialeticamente estruturados. Com efeito, para se iniciar a possibilidade da realização concreta do balizamento proposto sob a perspectiva jus-político-filosófica que, buscar-se-á elucidar o conteúdo do primado democrático-republicano.

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ABSTRACT

To understand the Concept of State, we must manage its elements such as people, territory and Government structured over the law, all within the historic dynamics of the time. The State is the product of the dialectical developmental process of the interaction of those elements, simultaneously. The State must be seen as a whole. This implies that only if we conceive that individual, society and State are the same thing, because they consist total unit, is possible to understand the State, and therefore, their structural legal principles. In this way the intention is to use, practically, the logic and dialectical thinking to effectively achieve the comprehension of the State. It is to understand the State as a Concept. We have in mind the premise that the State must be guided by preservation and completion of the common good, and that the notion of common good, general welfare finds its correlate in the legal terminology as the public interest. Hence, we want to demonstrate that the public interest is the interest of the State, in its design State as a Concept, within the The Dialetic Conception of the State. The interpretative key governing Republican's postulate is the public interest, which brings both the moment of Political Power and Civil Society within itself, dialectically structured. Indeed, for the possibility of the concrete realization of what is being proposed, under the jus-political-philosophical perspective, we will seek to elucidate the content of Democratic-Republican Principle. It is, therefore, of the port that enables, at least initially, the concrete realization of the conception of the State as a Concept .

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SUMÁRIO

Introdução ... 07

1-Concepção Dialética de Estado... 10

1.1- Do Pensamento Dialético em Hegel... 15

1.1.1 - O Estado como Conceito ... 25

1.2 - Do Pensamento Dialético em Gadamer ... 34

2 - Da Aplicação aa Concepção Dialética do Estado ... 40

3 - Considerações Sobre o Princípio Democrático no Brasil... 47

3.1 - Modelos de Democracia ... 52

4 - O Primado Republicano no Brasil ... 65

4.1 - Direito e Estado como Estruturas e Sistemas... 74

4.2 - Considerações Sobre a Eficácia do Postulado Republicano... 78

5 - Considerações Finais... 84

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo central viabilizar soluções para realização e eficácia do primado republicano previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se, em última instância, na construção de maneiras jus-filosóficas de resgatar da noção de interesse público sob o prisma do primado republicano no Estado Brasileiro.

Isso porque, na atual realidade brasileira, se verifica que apesar das instituições tipicamente republicanas estarem perfeitamente delineadas no texto constitucional, o que se observa é a progressiva apropriação do poder público para proveito particular. Sob uma análise filosófica do Estado brasileiro, verifica-se um deslocamento institucionalizado do poder estatal para a seara de certos segmentos da sociedade em detrimento do interesse público. Pode-se questionar se a própria etimologia da expressão República perdeu seu significado: Res publica - coisa pública – passou a ser res nullius – coisa sem dono. Para agravar o problema, verifica-se que a Constituição da República do Brasil possui um dos mais evoluídos sistemas de normatização de direitos fundamentais, além de prescrever a forma republicana dotada de todo o aparato institucional para sua plena efetivação. Contudo, o que se observa é o aprofundamento mais drástico na divisão entre Poder Político e Sociedade Civil.

Noutro giro, pode-se verificar que o postulado republicano, sob o prisma jurídico, ainda é visto como mero conjunto de idéias sem conteúdo ou efetividade normativa. Aliás, para uma grande parcela dos doutrinadores, regime político e forma de governo são expressões sinônimas, sendo que os termos República e Democracia são usados, por muitos, indistintamente, como termos quase que intercambiáveis.

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A inter-relação entre as temáticas republicana e democrática na modernidade é inevitável, mas a simples utilização indiscriminada dos termos esvazia o conteúdo de ambas. Cada esfera é bem delineada e a sua devida qualificação é crucial para o entendimento e aplicação do direito.

Para atingir o objetivo proposto procurar-se-á desenvolver um pensamento jus filosófico que permita acessar a amplitude da complexidade do fenômeno estatal; um pensamento que, ao mesmo tempo, possa conceber todos os elementos do Estado em movimento de forma simultânea, sem que esse pensamento se encerre em si mesmo. Isso porque todo pensamento aplicável ao Estado deve permitir uma abertura às possibilidades de inovação e reestruturação, inerente às particularidades técnicas, culturais e históricas de todos os diferentes aspectos de estudo do Estado. Assim, será proposto uma concepção de pensamento dialético aplicável ao Estado que una a lógica hegeliana e a dilalética gadameriana, de forma que compreenda tanto a totalidade - marca que caracteriza o Estado, quanto a abertura - característica necessária para o estudo das diversas acepções de Estado. É o que denominaremos de Concepção Dialética do Estado.

A partir de então, lançar-se-á as bases do estudo do primado republicano sob essa proposição de Concepção Dialética do Estado, no fincas a possibilitar o reconhecimento da força normativa do postulado republicano e viabilizar que ele seja efetivamente exigível perante o Estado e demais integrantes do governo, instrumentando o judiciário para receber as provocações da sociedade. O principal ponto a ser atacado é a concepção de interesse público e a execração da apropriação da coisa pública pelo particular. A República, entendida para além de simples ideal, mas como efetiva norma jurídica fundante do Estado brasileiro, é uma chave de conexão para edificação do Estado Ético Racional.

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No primeiro capítulo, procurar-se-á demonstrar a indispensabilidade de uma concepção dialética no estudo que tenha o Estado como objeto ou elemento conexo (seja sob o prisma econômico, social, político ou jurídico), para em seguida procurar desenvolver um pensamento dialético que seja apropriado e aplicável para esses estudos, principalmente para temática republicana, objeto deste trabalho. A partir de então, procurar-se-á demonstrar a aplicabilidade da proposição da Concepção Dialética do Estado no entendimento do bem comum e interesse público que perfazem a chave interpretativa que rege o postulado republicano.

Em seguida far-se-á uma explanação da temática democrática no Estado Brasileiro a fim de delinear as diferentes acepções dos princípios de democracia e da república. Feito isso se abordará o postulado republicano como preconizado na Constituição da República do Brasil, a fim de identificar suas características essenciais procurando explorar a idéia de interesse público, utilizando a proposição da Concepção Dialética do Estado. Tendo essa idéia devidamente caracterizada, passamos a analisar o conteúdo jurídico do princípio republicano iniciando pela exploração das suas características principais de efetividade, periodicidade e da responsabilidade. Posteriormente desenvolve-se a idéia de participação política republicana identificando seus principais mecanismos. Aliado a essa metodologia, será aplicada, também a teroia desenvolvida pelo prof. Aloízio Gonzaga de Andrade Araújo, ―Direito e do Estado como estruturas e sistemas", o que auxiliará no fornecimento das bases metodológicas para enfrentar os problemas atinentes a configuração do princípio Republicano.

À giza de conclusão, será demonstrado que sob a proposição da Concepção Dialética do Estado, a constituição, os indivíduos, o corpo social, tudo isso suprassumido na unidade do Estado, está devidamente munido de instrumentos que podem viabilizar a plena realização do primado republicano.

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1 - CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO ESTADO

Neste capítulo, procurar-se-á demonstrar a indispensabilidade de uma concepção dialética no estudo que tenha o Estado como objeto ou elemento conexo (seja sob o prisma econômico, social, político ou jurídico), para em seguida procurar desenvolver um pensamento dialético que seja apropriado e aplicável para esses estudos, principalmente para a temática republica, objeto deste trabalho.

Conforme os ensinamentos de Hermann Heller, o Estado deve ser visto como ―uma unidade de dominação, independentemente no exterior e interior que atuará de modo contínuo com meios de poder próprios, e claramente delimitada pessoal e territorialmente"1.

A doutrina, quase que de forma uníssona, segue essa linha de raciocínio, conceituando o Estado como uma formação social e política resultante da combinatória de um povo estabelecido em um determinado território submetido a um governo.

Na verdade, toda formação sócio-política, por exemplo tribos, clãs, etc, são dotados, em alguma medida, desses elementos (povo, território, governo). O Estado, contudo, diferencia-se uma vez que sua formação resulta da combinação desses elementos estruturados em torno da soberania consubstanciada no direito. O direito viabiliza a personalidade jurídica do Estado, de forma que este passa a ser sujeito de direitos e deveres.

A par do exposto, o estudo do Estado é, inexoravelmente, um estudo do poder nele inerente, nas diferentes implicações na construção, distribuição e implementação do poder político. Mais ainda, no moderno estudo do Estado, faz-se

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necessário reconhecer para qual finalidade serve o poder político do Estado e os fundamentos de legitimidade do poder, ou seja, qual o sentido do Estado.

Ocorre que, como vem sendo concebida pela doutrina, tanto política como jurídica, pode-se ver que todos os elementos que compõem o Estado são vistos como partes de um todo que, uma vez combinados, compõem a unidade estatal.

Contudo, a leitura meramente analítica da proposição acima colocada não permite compreender a real envergadura do Estado. O Estado não pode ser entendido com mera soma/constatação de suas partes/elementos. Para se compreender o Estado há de se lançar os elementos povo, território, poder e governo estruturados em torno do direito; que por sua vez resulta da estruturação de fato, valor e norma em torno da pessoa, tudo isso dentro da dinâmica histórica do tempo.

O Estado é o resultado do movimento da interação de seus elementos estruturantes e sistêmicos, e deve ser visto como um todo, tanto na seara política quanto jurídica. Importante verificar ainda que as partes/elementos não possuem uma hierarquia entre si (um não é necessariamente mais importante do que outro). Mais ainda, forçoso reconhecer que os vários elementos que compõem o bojo estatal encontram-se em constante choque.

Mesmo que os diversos aspectos do Estado apresentem características particulares e inconfundíveis, a compreensão da real amplitude do fenômeno Estado só pode ser alcançada se a concepção do Estado tiver como base sua totalidade e unicidade. SALGADO alerta de que ―somente no plano filosófico é possível a superação da diferença entre direito e poder‖ já que na realidade concreta ―direito (ordenamento jurídico) é inseparável do poder (Estado) e vice-versa; formam um todo, mas esse todo é estudado em aspectos diferentes, inconfundíveis‖2

2

SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr.-jun. 1998. p 01

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Por se tratar o Estado de estrutura/sistema altamente complexa, e em constante movimento, a adequada compreensão da real amplitude do fenômeno Estado deve ser feita pelo pensamento dialético.

O sentido do movimento está presente em todas as dialéticas, da platônica á marxiana. e não escapa, ainda que sutilmente, ao silogismo dialético de Aristóteles e à lógica das aparências de Kant. A dialética entende que o estado de parado ou estático é mera abstração e que a realidade das coisas é o movimento ou dinamicidade, o qual ocorre em várias dimensões: há uma dinamicidade espacial que se manifesta no movimento da matéria no espaço; uma dinamicidade temporal que se expressa no desenvolvimento do ser no tempo; há dinamicidade lógica na atitude do espírito que relaciona conceitos, formando juízos e raciocínios; e há dinamicidade ôntica no desenvolvimento das coisas em obediência ás forças que lhe são imanentes. Essas quatro dimensões do movimento, espacial, temporal, lógica e ontológica, estão presentes, respectivamente, na natureza, na história, no pensamento e no ser em geral, isto é. nos fenômenos, constituindo o fundamento de uma dialética da natureza, uma dialética da história, uma lógica dialética e uma dialética fenomenológica.3

Dizer que a concepção do Estado deve ser dialética, implica dizer que qualquer estudo que tenha o Estado como objeto ou elemento conexo (seja sob o prisma econômico, social, político ou jurídico) deve levar em consideração que esse fenômeno é mais do que um conjunto de elementos, mas uma unidade total fruto da construção histórica. Mais ainda, que essa unidade traz em si os alicerces para sua compreensão e permite o estabelecimento de seu sentido, bem como a abertura de suas possibilidades.

Importante salientar, neste momento, que não se está defendendo um novo conceito ou modelo de Estado. O que se defende é que, independente do modelo adotado, a construção da idéia de Estado deve ser feita dialeticamente.

Dado o exposto, cabe agora formular as instâncias dialéticas e assim arquitetar o pensamento a ser aplicado ao estudo do Estado. Há de se ressaltar que esse pensamento deve, ao mesmo tempo, conceber todos os elementos em movimento de forma simultânea, sem se encerrar em si. Isso porque todo pensamento aplicável ao

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Estado deve permitir uma abertura às possibilidades de inovação e reestruturação, inerente às particularidades técnicas, culturais e históricas de todos os diferentes aspectos de estudo do Estado.

Para efeitos deste trabalho, procurar-se-á desenvolver um pensamento dialético para o Estado que nos auxilie no desenvolvimento da temática republicana dentro da seara jurídica, notadamente, na República do Brasil.

Nesse sentido, num primeiro momento, utilizar-se-á o raciocínio lógico hegeliano4 para que se possa acessar esse complexo. Aliado a esse, utilizar-se-á a dialética da pergunta e da resposta concebida por Gadamer que possibilita o modelo de estrutura aberta para construir seu pensamento dialético. "Gadamer coloca a dialética da pergunta e da resposta como ―método‖ para uma hermenêutica; e mais: põe [a] conversação como um modo de realizar a compreensão."5

Assim será possível idealizar um pensamento dialético para o Estado que o conceba como ente e compreensão; como conceito e sentido.6

O que se propõe é um concepção de pensamento dialético aplicável ao Estado que una a lógica hegeliana e a dilalética gadameriana. Esse pensamento compreenderia tanto a totalidade - marca que caracteriza o Estado, como foi demonstrado - quanto a abertura - característica necessária para o estudo das diversas acepções de Estado.

É certo que Gadamer tece diversas críticas ao pensamento hegeliano, principalmente no sentido de que este se encerra em si, no desdobrar do espírito até o absoluto. Ricardo SALGADO pontua bem a diferença entre os dois filósofos:

4 Não se está utilizando a concepção de Estado como momento conceitual dentro do complexo lógico

hegeliano, mas sim o raciocínio de Hegel via ―dialética especulativa‖ também simplesmente como ―método‖.

5 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A Fundamentação da Ciência Hermenêutica em Kant. Belo

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Entre Gadamer e Hegel, entretanto, há um aprofunda diferença, pois o real é interpretado no plano finito e não mostra como absoluto. A finitude do homem, da qual decorre uma história contingente, faz Gadamer, entendo, recusar a dialética que termina no absoluto para Hegel e buscar em Platão o modelo de dialética aberta.7

Noutro giro, o próprio GADAMER reconhece que a grande tese de Hegel é a Ciência da lógica: ―Pormo-nos de acordo quanto à ideia hegeliana da ciência lógica, portanto, pode prepara uma confrontação adequada ao nosso interesse filosófico atual‖8 E completa

Entre a tautologia e a autossuspensão na determinação infinita de seu sentido, a ―proposição especulativa‖ se mantém no ponto médio, e aqui reside a mais elevada atualidade de Hegel. A proposição especulativa não é tanto enunciado, mas muito mais linguagem. Nela, não se coloca apenas a tarefa objetificante da explicação dialética, mas nela o movimento dialético ao mesmo tempo toma pé.9

Ao nosso ver, se no plano dos respectivos sistemas filosóficos (Hegel e Gadamer) aparentam-se incompatíveis, na dinâmica jus-politica elas podem ser complementares. É o que se passará a demonstrar.

Para tanto, far-se-á um breve exposição do pensamento especulativo de Hegel culminando na idéia de Estado como conceito. Em seguida far-se-á uma breve exposição do pensamento gadameriano, que culminará na construção de que o Estado como conceito servirá de chave interpretativa para atingir a fusão de horizontes, e assim fornecer uma concepção dialética de Estado que no desenvolvimento da temática republicana dentro da seara jurídica, notadamente, na República do Brasil.

7

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. Hermenêutica filosófica e aplicação do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p 57

8 GADAMER, Hans-Georg. Hegel – Husserl – Heidegger. Tradução Marco Antonio Casanova.

Petrópolis: Vozes, 2012. p 94.

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1.1 - Do Pensamento Dialético em Hegel

Conforme ensina Michael INWOOD, a palavra dialética deriva do grego dialektiké\ que por sua vez é uma derivação de dialegesthai (conversar), significando, pois, em sua origem ‗arte de conversação‘.10 À palavra ―dialética‖ foram atribuídas ―acepções tão diversas que só pode ser empregada com fecundidade quando se indica precisamente o em que sentido é tomada‖11

. Traz-se para este trabalho a idéia de dialética como método o forma de pensamento. Sem adentrar na vasta história da dialética, utiliza-se a explanação apresentada por BOBBIO que, com maestria, mostra com simplicidade e objetividade a dialética como um esquema triádico12,

O esquema triádico, só pelo fato de colocar à nossa disposição três termos e não dois, é mais flexível e permite um maior número de combinações. Podemos distinguir três: 1. Consideram-se os dois termos que se excluem não como contraditórios mas como contrários, ou seja, como dois termos que embora se excluam reciprocamente não excluem um terceiro termo entre eles (entre branco e não-branco, que são contraditórios, não existe nenhuma cor intermediária, mas entre branco e preto, que são contrários, existem todas as outras cores). Deriva daí não já a necessidade de escolher um ou outro, mas a possibilidade de não escolher nem um nem outro. Um exemplo atualíssimo desse modo de pensar é o dos fautores da terceira via entendida como terceira meta: nem o socialismo dos regimes do Leste, nem o capitalismo, incluindo o corrigido em regime de Estado assistencial das democracias ocidentais. 2. Os dois termos a mediar através de um terceiro termo não são considerados nem contraditórios nem contrários, mas completamentares, de tal maneira que é possível uma combinação ou composição entre eles ou até uma mistura com um terceiro termo que tem algo de um e de outro: entre o branco e o preto estão todas as outras cores, mas com o branco e o preto se faz o cinzento. O liberalsocialismo e o socialismo liberal acima mencionados são um exemplo luminoso de tal operação. 3. Juntando a dimensão do tempo, os três termos podem ser compostos como três momentos sucessivos: o primeiro como afirmação ou tese, o segundo como negação ou antítese e o terceiro como negação da negação, ou seja, uma afirmação num plano mais alto, que é a síntese. Esse esquema e a vulgarização da dialética hegeliana e marxista, num dos seus muitos significados.Aqui o terceiro gênero não é o que está no meio entre dois extremos,nem a combinação de dois

10INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 99. 11 LALANDE, André apud FOULQUIÉ, Paul. A dialéctica. Trad. Luís A. Caeiro. Lisboa: Publicações

Europa-América, 1966, p. 7.

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complementares, mas a superação de dois opostos que ao mesmo tempo se elidem e se integram.

Assim, parte-se da convicção de que a dialética, com base no grego que significa diálogo, vai sempre pressupor um confronto entre opostos ou entre visões diferentes e vai associar-se a uma idéia de movimento, em busca de sínteses que se estabelecem a partir do contraste e da discussão entre as diferenças. A dialética, em última instância, é a "ferramenta" que viabilizará aquilo que SALGADO13 concebe como o terceiro eixo central da filosofia. Os três eixos centrais são: a) a Metafísica do Objeto, que compreende as culturas clássicas - greco-romana, e a cristã, que as assume - gestada desde Thales de Mileto a Santo Tomás de Aquino; b) a Metafísica do Sujeito, representada pela Filosofia Moderna, de Descartes a Kant; e c) a Metafísica Especulativa, que se vê de Hegel em diante, em que a dicotomia sujeito-objeto desaparece através do movimento de ascensão da consciência rumo à consciência de si e à Razão, como se vislumbra na Fenomenologia do Espírito. Hegel, assim, supera a dicotomia sujeito- objeto, que se verificava na Filosofia a ele anterior, considerando-os como momentos.

Gadamer e sua Hermenêutica Filosófica, desenvolvida a partir da fenomenologia do Dasein de Heidegger encontra-se igualmente inserido na perspectiva de superação do esquema sujeito-objeto, tanto por conta do pertencer à tradição14, tanto pela função da linguagem, elemento que garante a intersubjetividade:

Outro aspecto importante a ressaltar na teoria de Gadamer é que o autor procura (assim como Heidegger) a superação total da dicotomia sujeito- objeto. Isso fica claramente descrito quando vemos, por exemplo, que, ao

13 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo. Fundamentação e

Aplicação do Direito como Maximum Ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 01-02.

14 A tradição não é uma autoridade pessoal, mas uma ―pluralidade de vozes nas quais o passado ressoa‖;

ela é a transmissão do ontem que hoje herdamos; a tradição é o fio condutor da temporalidade que nos põe em chão firme pela possibilidade que nela temos de convalidar nossos juízos. (...) A tradição é o ser que nos determina ―mudamente‖; apenas no silêncio ontológico da tradição podemos escutar a voz do ser que queremos compreender (ALMEIDA, Custódio Luis S. Hermenêutica e Dialética. Dos Estudos Gregos ao Encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p 266)

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tratar do modo como se dá a fala do texto, o autor vai se referir ao texto como parte, ou seja, como ―sujeito‖. ―Nisso os dois tomam parte‖. Os dois a que se refere a passagem [de Gadamer, extraída de Verdade e Método, entre aspas na citação] são: o texto e o intérprete. Clara também nos é essa superação entre o sujeito e objeto quando pensamos que em sua teoria, Gadamer coloca a dialética da pergunta e da resposta como ―método‖ para uma hermenêutica; e mais: põe [a] conversação como um modo de realizar a compreensão. Assim, o texto em sua doutrina também é tratado como sujeito, ocorrendo, portanto, mesmo sem ser mencionada pelo autor, uma intersubjetividade em sua teoria hermenêutica. Como o próprio autor menciona, ―quem pensa a linguagem, já sempre se movimenta em um para além da subjetividade‖ 15.

Hegel apresenta um sistema filosófico altamente complexo, notadamente por ser um sistema em constante movimento, cujo "método" de acesso é chamado por Hegel de dialética especulativa. Ocorre que o esse método é também o próprio movimento do sistema. Ele não diferente de seu objeto e conteúdo, pois ele é o conteúdo em si próprio. Conforme assevera HEIDEGGER:

Hegel designa ―dialética especulativa‖ também simplesmente como ―o método‖ Com esta expressão ele não se refere a um instrumento da representação, nem apenas a uma particular maneira de a filosofia proceder. ―O método‖. é o mais intimo movimento da subjetividade, ―a alma do ser‖, o processo de produção através do qual a tessitura da totalidade da realidade do absoluto é efetivada. O método, quer dizer, a dialética especulativa, é para Hegel o rasgo essencial de toda realidade.‖16

Ao refletir sobre a filosofia de seu tempo, Hegel se depara com um sistema de dualismos enraizado no pensamento filosófico. Conforme nos ensina Salgado17, essa situação enraizada pode ser assim resumida:

a metafísica tradicional sabia da pensabilidade do absoluto, mas o pensar girava em torno do seu objeto. Descartes concebeu a identidade do ser e pensar do absoluto, dando ao pensar a posição de privilégio. Kant por sua vez, na nova perspectiva aberta por Descartes, ao girar para o sujeito o pólo do conhecimento filosófico, cinde a unidade originária do cogito postulada

15

SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. A Fundamentação da Ciência Hermenêutica em Kant. Belo Horizonte: Decálogo, 2008. p. 66-67.

16 HEIDEGGER, M. Hegel e os gregos. Tradução de Ernildo Stein. In: Sartre - Heidegger. São Paulo:

Abril Cultural, 1973, p. 405 (Coleção os Pensadores, vol. XLV)

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por Descartes e instaura o dualismo no pensar filosófico entre ser e pensar. Cuida-se de pensar o pensar como instrumento do conhecer.

A radicalização desses dualismos implica buscar termos que necessariamente tem de ser postos como subsistententes por si mesmos: sujeito-objeto, noumenon-fenomenon; forma-matéria, entendimento-razão. A manutenção dessa independência, cada termo valendo por si mesmo, acarreta conseqüentemente na absolutização unilateral de cada um. Contudo, se um desses termos é o fundamento do outro, como pode subsistir essa independência unilateralmente absoluta? Conforme bem assevera Salgado

O resultado dessa absolutização de finitos é que a razão é afirmada como a faculdade do finito, uma vez que, só podendo conhecer o finito, toma o próprio finito absoluto. Como pode a razão definir-se como limitada, senão conhecendo também para além dos seus limites? Como saber o que é limitado senão pelo ilimitado? Hegel procura mostrar que o problema não é introduzir o infinito no finito, procurar como "surge o infinito na razão", mas "como se dá o finito na razão", toda vez que o que "lhe é próprio é o infinito". A razão é exatamente esse poder de pensar o infinito. O problema é como surgem, na indeterminação do infinito, as determinações, o finito18

A solução analítica é pressupor e postular outro universo externo a esse dois universos externa independentemente pressupostos, na tentativa de ligá-los. Todavia, os absolutos unilaterais são rigorosamente mantidos. O pensar e o pensável, portanto, permanecem distintos já que a coisa em si (o ser em sua essência) fica fora do pensar; matéria e a forma do conhecimento estão somente no sujeito; trata-se ainda da captação do infinito por meio de instrumentos finitos. ―O saber absoluto no criticismo acaba sendo o saber limitado e não do absoluto.‖19.

Hegel por sua vez, afirma que pensar é conhecer, pois só o pensamento capta o significado das coisas, porque só ele significa as coisas: ―as determinações do

18

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 53

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pensar são as mesmas do ser. É neste sentido que a dialética hegeliana é saber do absoluto, isto é, da totalidade do real, da identidade universal de ser e pensar‖20

Assim, superar os dualismos é buscar a identidade do pensar com ser (na totalidade), incluindo todas as suas diferenças, nem separadas entre si, nem da própria determinação do pensar, da razão.

Hegel afirma que a Filosofia não pode ser mera reflexão exterior sobre a coisa, como a de Kant, na qual o sujeito com suas categorias a priori representa externamente e abstratamente o ser (o objeto), distinguindo-se dele. Esta representação do pensamento constitui, pois, pura forma, incapaz de atingir a interioridade concreta, o conteúdo do ser. É contra esta perspectiva que Hegel se insurge. Afinal, pensar algo como puro pensamento não é pensar. Pensar o ser é pensar a identidade do ser e do pensamento.21

Dessa forma, da razão não é forma exterior, mas a própria expressão ontológica do ser.

A lógica dialética (...) começa por eliminar o sujeito. Não se trata mais de buscar as condições subjetivas de pensar o objeto, mas as determinações do próprio pensar e do próprio objeto que se dá no pensar. O pensar (não o sujeito) e o pensável (não a experiência sensível) é que, identificados, produzem suas próprias determinações.22

Nas palavras de Hegel

Um conteúdo especulativo não pode ser expresso em uma proposição unilateral. Se dizemos, por exemplo, que o absoluto é a unidade do subjetivo e do objetivo, é sem dúvida correto; contudo é unilateral, na medida em que somente a unidade está expressa aqui, e o acerto está posto nela; quando, de fato, o subjetivo e o objetivo não são somente idênticos, mas também diferentes. 23

Para Hegel, a não dissociação entre pensar e ser, entre entendimento e razão, é o saber do absoluto. Para o homem, nada existe fora do pensar, logo, tudo que existe

20 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 41 21

RAMOS, Marcelo Maciel. A Dialética Hegeliana. In: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (orgs). Hegel, Liberdade e Estado. Belo Horizonte: Forum, 2010, p 24

22 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 44 23

HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio {1830}. A Ciência da Lógica,v. I. Trad Paulo Meneses. Edições Loyola, 1995. P 168

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é pensável. ―O pensável é o real ou em que o real é pensável e o verdadeiro é o pensável, é o princípio supremo do idealismo, segundo Hegel, e mesmo de toda filosofia, na medida em que é saber no plano infinito do pensar.‖24

[…] A razão, pois, é o germe da realidade. O real é racional e o racional é real, porque não há posição real que não tenha sua justificação racional, como não há também posição racional que não esteja, ou haja estado, ou haja de estar no futuro realizada.

Por conseguinte, dessa razão que é o absoluto, mediante um estudo de seus trâmites internos – que Hegel chama lógica, dando à palavra um sentido até então não habitual – mediante o estudo da lógica, ou seja, dos trâmites que a razão requer ao desenvolver-se, ao explicitar-se ela mesma, a razão vai realizando suas razões vai realizando suas teses, logo as antíteses, logo outra tese superior, e manifestando nas formas materiais, nas formas matemáticas, que são o mais elementar da razão; nas formas causais, que são o mais elementar da física; nas formas finais, que são as formas dos seres viventes, e logo nas formas intelectuais, psicológicas, no homem, na história.

Assim, tudo quanto é, tudo quanto foi, tudo quanto será, não é senão a fenomenalização, a realização sucessiva e progressiva dos germes racionais, que estão todos na razão absoluta.25

Para Hegel, ―no momento da razão é que se chega ao saber absoluto, no qual a diferença entre certeza do sujeito e verdade do objeto se superam no conceito de pensamento objetivo ou idéia.‖26

Mais ainda, ―O absoluto mostra-se na filosofia, no pensar de si mesmo. A Filosofia é o conhecimento desse absoluto, portanto da totalidade.‖27

Hegel ao superar os dualismos, concebe uma lógica do saber absoluto subscrito em um constante movimento dialético. A própria ―estrutura da razão é dialética, não o seu mero exercício; [...] essa estrutura é a estrutura do ser nela pensado ou que a estrutura do ser é também movimento, dialética‖28. Concebe um sistema da razão onde nada é pressuposto, mas ao contrário tudo é posto pela razão, que como ―Saber Absoluto‖, não comporta qualquer outro fundamento senão a si própria. O

24 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 118 25

MORENTE, Manuel García. Fundamentos de filosofia: lições preliminares. Tradução e prólogo de Guillermo de la Cruz Coronado. 3. ed. em português. São Paulo:Mestre Jou, 1967., p.269.

26 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 64 27

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 65

(21)

sistema lógico/dialético implica no desdobramento da totalidade e do espírito e o resultado não é uma a reprodução de conhecimento, mas a produção da própria razão, no movimento de compreensão de si enquanto ―saber absoluto‖

O sistema, portanto, é o absoluto29, que na sua totalidade carrega o idêntico e o diferente. A força motriz do sistema (que como já foi dito se confunde com o próprio sistema) é a dialética, ―a alma do conteúdo, seu interior que se desenvolve. ―É o princípio que movimenta o conceito" enquanto "dissolve e ao mesmo tempo produz as particularizações" ou determinações do universal.30

A filosofia, ao dever ser ciência, não pode, para este efeito, como eu recordei noutro lugar [Fenomenologia do Espírito], pedir emprestado o seu método a uma ciência subordinada, como é a matemática, como tão pouco dar-se por satisfeita, com asseverações categóricas da intuição interior,nem servir-se de um raciocínio argüente fundado na reflexão exterior. Pelo contrário, só pode sê-lo a natureza do conteúdo, a qual se move no conhecer científico, sendo ao mesmo tempo esta reflexão mesma do conteúdo, que somente põe e produz a sua determinação mesma.31

A dialética especulativa é o instrumento hábil para perquirir a verdade, pois concebe toda a totalidade em sua positividade e negatividade. A contradição não é inserida, como um elemento externo, pois ela está nas coisas, o não está no positivo, ao contrário do que era concebido em outros processos dialéticos

―De fato, o Absoluto de Fichte suprime o não; o Absoluto de Schelling o ignora. E por isso mesmo os dois permanecem ab-solus, separados, transcendentes ao ser, à razão. Permanecem imóveis e inconscientes. E Hegel imagina que é preciso ir adiante, mais alto. Colocar o não no sim; mostrar o múltiplo no uno, mostrar no próprio infinito, o finito; no eterno, tempo, o movimento, a inquietude que para ele é a própria essência do real.‖32

29 O que Hegel chamará de absoluto nada mais é do que a auto-apresentação e a auto-reprodução da razão

graças ao conhecimento especulativo que ela adquire de si mesma no ―pensamento livre‖, i. e.y no processo pelo qual o puro pensamento se determina a si mesmo. O absoluto é, assim, o processo do auto-esclarecimento exaustivo e da autolegitimação radical da razão através desse pensamento que se desenvolve em direção à sua determinação completa enquanto idéia. (MÜLLER, Marcos Lutz. O Idealismo Especulativo de Hegel e a Modernidade Filosófica: Crítica ou Radicalização dessa Modernidade? Revista Eletrônica de Estudos Hegelianos, ano 2, dezembro de 2005.

30

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 182

31 HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Logica – tomo I. 2 vol. 6ª ed. Tradução de Augusta e Rodolfo

Modolfo. Buenos Aires: Librarie Hachette, 1993. P 38.

32

KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico. Trad: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p123

(22)

Hegel entende que ―o reino do puro pensamento é a verdade, tal como é em si e por si, sem qualquer véu. Só pode ser exprimido afirmando-se que ele é a exposição do Espírito, tal como ele é na sua eterna essência, antes da criação da natureza e de um espírito finito‖33

. Assim, a dialética hegeliana pode ser apresentada em três momentos34, que consistem na passagem do ser-em-si (sein) para o ser-aí (dasein); seguida da passagem do ser-aí para o ser- para-si (fürsichseiri); culminando na suprassunção (aufhebung) desses momentos que é o ser-em-si-para-si.35Essa dinâmica dialética se torna mais acessível ao se analisar a primeira tríade Ser-nada-devir.

Necessário conceber que o Ser é o fundamento da ciência, pois não existe nada antes dele. Como a primeira manifestação do pensamento, o ser lançado no universo como algo imediato, uma pura indeterminação. Como é pura indeterminação, é completamente vazio de conteúdo, ou seja, é o nada. Assim, na operação do intelecto, verifica-se que o Ser é igual ao Nada, conforme explica Hegel36:

Ser puro Ser - sem nenhum outra determinação. Na sua imediatez indeterminada é igual só a si mesmo, e tão pouco é desigual frente a outro; não tem nenhuma diferença, nem no seu interior nem no seu exterior [...] Nada, o puro nada, é simples igualdade consigo mesma, o vazio perfeito, a ausência de determinação e de conteúdo; a indistinção em si mesma.[...] O puro Ser e o puro nada são, portanto, a mesma coisa. O que constitui a verdade não é nem ser nem nada, senão o que não traspassa, mas o que atravessou, vale dizer o ser [atravessado] para o nada e o nada [transferidos para o ser. Mas, ao mesmo tempo, verdade em sua indistinção, enquanto a verdade não é a falta de distinção, mas eles não são o mesmos, mas são bastante diferentes, mas eles são inseparáveis, e cada um desaparece imediatamente em seu oposto

33 HEGEL . Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio {1830}. Cit . P 32

34 Ensina Michael Inwood, ―quando Hegel sublinha a concatenação e inseparabilidade reci-

proca das partes de um todo ou totalidade, chama-lhes frequentemente Moment(e) (‗momento(s), aspecto(s), elementos)‘). Moment foi tomado no século XVII ao latim momentum, que deriva de movere (‗mover‘) e significa ‗FORÇA movente, ímpeto, impulso‘. Passou depois a significar: 1. ‗Instante, momento (de tempo)‘. I..J 2. ‗Força motivadora, fator decisivo, circunstância essencial‘. I...] O uso de Moment por Hegel deriva deste‖. Cf INWOOD. Dicionário Hegel, cit., p. 309.

35

RAMOS. A Dialética Hegeliana. Cit., p 28/29

(23)

Tanto o ―Ser‖, que se afirma como aquele ―que é‖ (pura afirmação), quanto o Nada que se afirma como aquele que ―não é‖ (pura negação), são puras indeterminações imediatas.

―O início não é o puro nada, mais um nada que deve sair qualquer coisa. Por isso no próprio início está já contido o Ser. O início tem, portanto, um e outro, o Ser e o nada; é a unidade do ser com o nada‖

Ser e Nada se identificam, pois ambos não possuem conteúdo. Ao se negarem mutuamente, suas diferenças são suprassumidas,. Ser e Nada são iguais, contudo diferentes, e se tornam uma unidade inseparável. O que antes era indeterminado passa a ser determinado pelos limites da negatividade.

eles são unidos e inseparáveis, e cada um deles desaparece imediatamente no seu oposto. A verdade deles é pois esse movimento de desaparecimento imediato de um no outro: o devir. Movimento no qual eles estão ambos bem separados, mas por uma diferença que é imediatamente anulada. 37

Tornam-se uma realidade submetida ao conflito dos opostos, e só se pode entender a realidade como uma unidade formada por estes opostos, como permanência e devir

O verdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstrato, isto é, que apenas o ser é. Dizemos, no lugar da expressão de Heráclito: o absoluto é a unidade do ser e do não ser‖38.

Tornam-se uma realidade submetida ao conflito dos opostos, e só se pode entender a realidade como uma unidade formada por estes opostos, como permanência e devir

Ou seja, no primeiro momento, a doutrina do ser, algo se coloca de forma indeterminada, imediata e universal; no segundo momento, na doutrina da essência, o algo encontra seu limite pela mediação da sua negatividade, tornando-se particularizado

37

CHÂTELET, F. Hegel. Tradução de Alda Porto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.58

(24)

e determinado, passando a se compreender; no terceiro momento, a doutrina do conceito, as diferenças são suprassumidas e o que antes era ―algo‖ e ―não algo‖ são agora uma unidade total singular que se auto determina, pois agora tem certeza da sua consciência de si.

Em que pese o pensamento dialético hegeliano ser formado em tríades lógicas (Ser, Essência, Conceito) cabe alertar que a dialética especulativa não pode ser pobremente reduzida a ―tese, antítese e síntese‖. O movimento não cessa num primeiro conjunto de opostos, tese e antítese. Utilizando essa mesma terminologia, a síntese suprassumida é encaminhada para uma nova tese, e assim por diante. Conforme leciona Jose Luiz Horta

[...] a verdadeira natureza da dialética se expressa de várias formas, mas em todas elas o momento de chegada é novo, ou renovado, pelo momento que lhe antecede. Assim, o momento do universal abstrato, confrontado pela particularidade, eleva-se ao plano do universal concreto — e universal concreto e universal abstrato definitivamente não constituem o mesmo fenômeno. A unidade, confrontada pela diferença, ressurge como unidade da unidade e da diferença, e não apenas como unidade da unidade não diferente. A identidade, confrontada pela diversidade, cede lugar à identidade da identidade e da diversidade39.

Da mesma forma, o elemento crucial do pensamento hegeliado é a contradição que perfaz ―a raiz de todo movimento e vitalidade; pois só na medida em que tem algo em si mesmo uma contradição se move, tem impulso [Trieb] e atividade‖. Com a devida vênia, as diversas tentativas de implicar que o que Hegel queria dizer seria na verdade ―contrariedade‖ ao invés de ―contradição‖ é uma adulteração do sistema, ―uma leitura kantiana de Hegel‖40

O conceito não representa apenas um terceiro momento, nem a soma dos momentos anteriores. O conceito implica em todo processo no qual os elementos da

39 HORTA, José Luiz Borges. ENTRE O HEGEL RACIONAL E O HEGEL REAL BAVARESCO,

Agemir; MORAES, Alfredo (Orgs.) Paixão e Astúcia da Razão [recurso eletrônico] / Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes (Orgs.).—Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2013. p 132.

(25)

tríade surgem sempre de uma forma helicoidal, reforçando ainda mais o entrelaçamento entre cada um dos momentos ―superando-conservando-guardando‖.41

Como afirma Hegel na Enciclopédia (§ 79):

a lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato ou do entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especulativo ou positivamente-racional. Esse três lados não constituem três partes da Lógica, mas são momentos de todo [e qualquer] lógico-real, isto é, de todo conceito ou de todo verdadeiro em geral.42

Na a valiosa lição de Salgado, ―na Filosofia do Direito trata-se de captar o Espírito no momento da sua objetividade e da sua organização institucionalizada, o Estado, expressando-o no seu conceito, e não de estabelecer princípios de como ele deve ser.43

1.1.1 - O Estado como Conceito

A Filosofia de Hegel é um constante movimento no qual o Espírito busca seu auto-conhecimento de si na totalidade do Absoluto. Considerando que o pensar é fruto da atividade livre, a reflexão do texto de Hegel conjugado com o conjunto da sua obra mostra-nos que a idéia da sua filosofia do direito, como de resto de toda a sua obra, é a liberdade.44 A realização da liberdade, momento da sua objetivação e o processo pelo qual ela se instaura ou se efetiva, portanto, é o movimento que impulsiona o sistema hegeliano. Mais que uma preocupação política, a liberdade no seu processo de formação conceitual passa a ser o próprio sentido da realidade

41 WEBER, Thadeu. Hegel, liberdade, Estado e história. Petrópolis: Vozes, 1993 p.41. 42 HEGEL . Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio {1830}. Cit . P 168 43

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel. Cit., p 398

(26)

A liberdade, contudo, há de ser vista dentro de sua totalidade universal. Assim, o sujeito não pode ser livre isoladamente, pois somente enquanto é reconhecido como livre e reconhece o outro como livre atingi-se a realção dialética do ser-em-si-para-si ou do ser-consigo-mesmo-no-outro45. Nesse sentido, ―A verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade como seu fim, [um] conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim [um] conteúdo universal‖46

E ainda:

―A mediação da liberdade através do reconhecimento implica que a liberdade, na ótica hegeliana, não é adequadamente concebida nem como individualismo liberal nem como comunitarismo. Enquanto ele sustenta a autonomia contra uma visão coletivista que não reconhece a liberdade subjetiva individual, Hegel ataca o individualismo como abstração desprovida de espírito, sintoma de desintegração social‖47

A liberdade, portanto, é própria do desdobrar do Espírito, cujo desenvolvimento é explicado por Hegel em três momentos, Espírito Subjetivo ( o Espírito na relação consigo mesmo); o Espírito Objetivo (o Espírito se reconhece como realidade no mundo), e o Espírito Absoluto (unidade da idealidade de seu primeiro momento e da objetividade do segundo):

1º) O espírito é na forma da relação a si mesmo: no interior dele lhe advém a totalidade ideal da ideia. Isto é: o que seu conceito é, vem-a-ser para ele; para ele, o seu ser é isto: ser junto de si, quer dizer, livre. [É o] espírito subjetivo. 2º) [O espírito é] na forma da realidade como [na forma] de um mundo a produzir e produzido por ele, no qual a liberdade é como necessidade presente. [É o] espírito objetivo.

3º) [O espírito é] na unidade – essente em si e para si e produzindo-se eternamente – da objetividade do espírito e de sua idealidade, ou de seu conceito: o espírito em sua verdade absoluta. [É] o espírito absoluto.48 O Estado é o desdobramento lógico do Espírito Objetivo articula dentro de si os momentos dialéticos fundamentais do Espírito objetivo (Direito abstrato,

45 ―ser-consigo-mesmo-no-outro não é somente a privilegiada caracterização hegeliana da liberdade; ela é

também, não acidentalmente, a estrutura e o movimento do pensamento e do conceito (der Begriff) e do self [...]. (BAYNES, Kenneth. Freedom and Recognition in Hegel and Habermas. Philosophy Social Criticism. 28, 1; 2002., p. 2, nota)

46 HEGEL . Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio {1830}. Cit . p. 293, §469

47 WILLIANS, Robert. Beyond Liberalism and Communitarianism: studies in Hegel‟s philosophy of

right. New York: State University of New York Press, 2001. P01

(27)

Moralidade, Eticidade) que supera, suprassume, os momentos das formas comunitárias da Eticidade, ou seja, a Família, a Sociedade civil.

Há de se constatar que, assim como todo movimento dialético, para o ―desdobrar-se‖ do Espírito, faz-se necessário que o contradição se instale. Se a liberdade subjetiva não é permeada pela mediação da negatividade, o Espírito fica recolhido em sua consciência imediata, sem desdobrar-se. Nesse sentido é que que se pode afirmar que nenhuma forma de vida política anterior, ou fora do Ocidente, conseguiu organizar-se na forma harmoniosa do conceito. Afirma Hegel que, ao fazer Filosofia da História:

Devemos começar pelo Oriente. Esse mundo tem por fundamento a consciência imediata, a espiritualidade substancial, à qual a vontade subjetiva se relaciona primordialmente como fé, confiança, obediência. Na vida do Estado, encontramos a liberdade racional realizada, que se desenvolve sem progredir até a liberdade subjetiva. É a infância da história.49

Completando:

É com o império chinês que a história deve começar, pois ele é o mais antigo dos que ela da notícia; isso porque o seu princípio é de tal substancialidade que é, ao mesmo tempo, o mais antigo e o mais novo. Desde cedo, vemos a China atingir o estagio em que se encontra até hoje; já que lhe falta a oposição entre a existência objetiva e a liberdade subjetiva, fica excluída qualquer mutabilidade, e o estático que sempre ressurge substitui aquilo que chamaríamos de histórico. China e índia estão como que fora da história universal como pressupostos dos momentos cuja integração se tomará o seu progresso vital. A unidade de substancialidade e de liberdade subjetiva não comporta nem diferença nem oposição de ambos os lados, e por isso a substância não pode alcançar a reflexão sobre si mesma, a subjetividade.50

Assim, conforme leciona Salgado, somente a partir do mundo greco-romano é que se pode falar numa continuidade histórica dentro das diferenças que ela produz e de uma unidade do Espírito. Toda a vida da cultura ocidental é, para Hegel, a vida do Espírito51, ressaltando que eticidade nada mais é do que a ―concreção da liberdade‖.

49 HEGEL, G.W.F. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. ed. Brasília: UnB,

1999. p. 94.

50

HEGEL. Filosofia da História, cit., p. 105.

(28)

Ao a formação conceitual do Estado no decorrer da história segundo o pensamento hegeliano, Salgado mostra os seguintes momentos:

No primeiro momento (período greco-romano até a Idade-Média), no Estado grego, ―a ordem objetiva e a liberdade subjetiva estavam de tal modo integrados que a ação do cidadão tinha como finalidade a ordem ética da pólis e esta se voltava para a realização dos interesses do indivíduo.‖52

Esse Estado não considerava a subjetividade como um momento importante na realização da vida política, já que ―não havia distinção entre a vida pública e a privada e, embora não existisse a liberdade subjetiva, existia a liberdade entendida como autonomia‖

No Estado Romano, tem-se a inserção da idéia de pessoa jurídica, mas sem perder a característica ética. Entretanto:

o ethos grego, que configurava todo um comportamento da comunidade por regras e princípios, assume uma característica específica. O Estado não tem apenas de formar o indivíduo para a felicidade, mas para a comunidade, para servi-la. A dimensão ética do Estado concentra-se em função de uma técnica específica: o Estado garante aos indivíduos o justo, e o justo é o direito de cada um. Garantir o direito de cada um, essa era a tarefa do Estado ou sua finalidade mais importante com relação ao indivíduo.53

O Estado no primeiro momento, ao não levar em consideração a vontade subjetiva, permanece no plano do Estado do intelecto (carente, pois privado da "liberdade subjetiva"), que deve ser dirigido por quem tem o seu conceito54.

O segundo momento é marcado pela ruptura da a substância ética quando definitivamente a subjetividade é consolidada de forma que o indivíduo passa a ser um fim em si mesmo. O Estado passa a ser um mero detalhe, um meio para a realização dos interesses individuais.

52 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, Cit., p. 392 53

SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Cit. P 4.

(29)

Esse momento caracteriza-se pela separação da sociedade civil e do Estado. Não mais o cidadão se integra no Estado como seu fim, tal como ocorreu com o Estado antigo, mas têm no outro indivíduo componente da sociedade meio para alcançar seus fins. O princípio da subjetividade, embora constitua a essência do Estado, uma vez separado da substância ética, introduz a total demolição no interior do próprio Estado.55

O terceiro momento se dá após a revolução francesa, com a reconciliação da eticidade com o princípio da subjetividade de forma que a sociedade civil, antes cindida, é superada. O Estado organiza-se como realização da liberdade, fim supremo de cada um. Desse modo, não pode ser compreendido como organização destinada a garantir a "propriedade e a liberdade pessoal", mas a liberdade na racionalidade, na íntima unidade do universal e do particular.56

O Estado é o caminhar do Espírito que, segundo Salgado:

é o revelar-se do Espírito como resultado de um processo histórico (Gang) pelo qual o Espírito se mostra como absoluto, como razão ou liberdade que a representação religiosa denomina Deus (Gott) e que encontra seu momento de plena

realização na sociedade humana ou no mundo. O Estado realiza assim o absoluto, o Espírito na sua totalidade como instituição necessária e não como criação particular contingente. Como todo orgânico é resultado do processo de formação, interno a ele mesmo, cujos indivíduos não são partes anexas umas às outras ou justapostas por vínculo externo, mas momentos do todo, de modo que ―cada parte é o todo e o todo é cada parte‖. À guisa do que ocorre com o ser vivo (Lima Vaz), o todo é impensável sem a parte (tem sua essência na parte) e a parte é impensável sem o todo (tem sua essência ou fundamento no todo). Trata-se de deixar claro que na

Filosofia do Direito se expõe o Estado na sua idéia, não se referindo a um Estado

em particular na realidade histórica.57

Nesse contexto, verifica-se que o Estado é uma realidade efetiva, resultado de uma mediação feita entre o pensamento e o mundo, o que não pode ser confundido como uma realidade em geral que pressupõe os seus objetos como dados.

O Estado como o racional em si e para si, como conceito, não implica que os Estados empiricamente existentes, pelo simples fato de estarem presentes na realidade, sejam racionais.

55 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, Cit., p. 394 56

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, Cit., p. 399

(30)

Nesse sentido, uma das mais relevantes distinções que aparecem na Ciência

da Lógica, fundamental para compreender a teoria da eticidade na Filosofia do Direito (na qual se apresentam as instâncias da família, da sociedade

civil-burguesa e do Estado) é aquela entre os planos do que é real e daquilo que é efetivo.

[...]

Na Filosofia do Direito, o Estado é tratado ao nível de sua realidade efetiva, e não de sua realidade imediata

[...]

A realidade efetiva, ao contrário, ―é‖ algo que ―veio a ser‖, ou seja, trata-se da dimensão daquilo que existe na imediatidade do mundo, mas tendo passado pela mediação do pensamento, o que a torna um produto da reflexão. A realidade efetiva unifica o ser que existe e a essência que dá sentido à essa existência58

Noutro giro, da mesma forma que o Estado não é uma realidade empírica, tão pouco é um ideal de projeto que ―a partir de uma realidade empírica não condizente (por sua exterioridade) com o racional ou com o que se possa pensar como o racional, se concebe como um dever ser, existente tão-só na mente subjetiva como projeção ideal no futuro.‖59

O Estado racional como realidade efetiva é o Estado apreendido no seu tempo, já que a o pensamento não está além do seu tempo. ―A grande novidade de Hegel é, assim, a reflexão sobre o processo da história universal, cujas estações são diferentes degraus da realização do ―saber da liberdade" como razão na história‖60

Compreender o Estado como Conceito é compreender, por mais que pareça paradoxal, que indivíduo, sociedade e Estado são a mesma coisa, pois consistem uma unidade total. ―O Estado é o fim último do indivíduo e o indivíduo fim último do Estado.‖61

. Ainda sobre a posição entre homem e Estado em Hegel

O Estado desempenha um importante papel como corporificação do universo da vida humana. Na formação do individuo como um veiculo da razão universal, o Estado tem um papel indispensável. Na medida em que pertence a ele, o indivíduo já esta vivendo alem de si mesmo em alguma vida mais ampla e, uma vez que o Estado tem a sua verdade como uma expressão da

58

PERTILLE, José Pinheiro. O ESTADO RACIONAL HEGELIANO. RevistaVeritas, v. 56, n. 3, set./dez. 2011, p. 9

59 SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 405 60

SALGADO. A Idéia de Justiça em Hegel, cit., p. 414

(31)

razão universal na forma da lei, conduz o indivíduo consigo rumo a sua vocação ultima.62

O que se propõe é que o a estrutura do pensamento hegeliano pode (e deve) ser aplicada à realidade empírica dos Estados, ao menos como uma ferramenta necessária para se compreender o Estado em sua amplitude. Como já foi dito, o Estado é o resultado do movimento, da interação dialética dos elementos simultaneamente. O Estado deve ser visto como um todo.

Aliás, conforme já foi demonstrado por Joaquim Carlos Salgado no clássico "O Estado Ético e o Estado Poiético"63, o pensamento hegeliano é totalmente aplicável na realidade empírica, no intuito de buscar os fundamentos de legitimidade do poder. No texto verifica-se que na atual idéia de Estado de Direito, a finalidade primordial do poder estatal é a garantia dos direitos fundamentais, sejam individuais, coletivos e difusos.

O Estado de Direito ou Estado Ético Mediato, segundo Joaquim Carlos Salgado é legitimado pela sua origem não transcendente do próprio homem (vontade do povo), sua técnica (normas e procedimentos pré-estabelecidos) e sua finalidade, essencialmente ética (declaração e realização de direitos fundamentais). Nesse sentido, o poder Estado de Direito alcança sua legitimidade na legalidade e na justiça, garantindo a realização da liberdade dos indivíduos na esfera pública e privada.

A legitimidade do poder no Estado de Direito está, então, na construção, exercício e finalidade do poder que visam à garantia da liberdade objetiva e subjetiva, centrado na figura do povo como elemento estruturante do Estado. O povo não pode ser compreendido como mera soma de interesses e necessidade individuais, mas um ethos

62 TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p.70 63

(32)

público; um complexo social, político e cultural, cuja individualidade e singularidade dos membros são preservadas nos direitos fundamentais.

Em face da crescente complexidade das relações pessoais e de produção, constata-se igualmente a crescente reificação do homem e do próprio Estado. O Estado passa a ser mero instrumento de realização de interesses de uma pequena parcela em detrimento do todo. Sob o suposto prisma de cientificidade e juridicidade, a finalidade do poder do Estado passa a ser garantir as determinações de uma minoria que se apresenta como legitimo interesse do povo64. O Estado se afasta de seu compromisso ético para assumir um compromisso tecnocrata. É o que Joaquim Carlos Salgado chama de Estado Poiético65. Nesse modelo, verifica-se uma cisão do Estado, uma divisão entre Poder Político e Sociedade Civil, que implica na gradativa negação da justificação da finalidade do poder no Estado de Direito consubstanciada na garantia da liberdade objetiva e subjetiva, centrada na figura do povo como elemento estruturante do Estado.

No Estado Poiético, procura-se manter o manto de Estado de Direito pleno através de manobras jurídico/legislativas que visam maleabilizar a gama dos direitos fundamentais, ―se muda a Constituição simplesmente porque o administrador se depara com dificuldades ou problemas que deve enfrentar ou resolver. Trata-se de um vício que o Poder Executivo contraiu: diante de qualquer problema, muda-se a Constituição‖66. É interessante verificar que esse movimento se dá dentro uma aparência democrática.

Noutro giro, a crescente complexidade das relações pessoais e de produção, demanda que o Estado contemporâneo se adapte e se especialize cada vez mais na seara

64 ―Cria-se, então, no Estado, um corpo burotecnocrata que passa a exercer a soberania, com total sujeição

do político e do jurídico em nome do corpus econômico da sociedade civil.‖ SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr.-jun. 1998

65

SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Cit. p 6

(33)

técnica, contudo, sem abdicar de seu compromisso ético. É o que Joaquim Carlos Salgado chama de Estado Ético Racional,

o Estado que não abandonou o elemento técnico, mas que recupera o ético como essência, não já na forma imediata do Estado Ético antigo, mas na forma mediatizada do Estado Contemporâneo, emergente do passo trágico da Revolução, o Estado de Direito: o Estado que declara e realiza os direitos fundamentais, individuais, políticos e sociais, como seu fim essencial.67

Na presente proposta, pretende-se utilizar a construção lógica hegeliana de chegada "ao conceito" ou pelo menos na idéia do "Estado como conceito", sem que isso implique na adoção do modelo hegeliano de estado que se encerra no absoluto. É demonstrar que somente a partir da concepção de que indivíduo, sociedade e Estado consistem uma unidade total, é que possível compreender o Estado, e por conseguinte, seus princípios jurídicos estruturantes.

Nessa esteira de raciocínio, a título de exemplo, é possível formular que o que se chama de Estado Liberal não pode ser concebido como Estado como conceito, pois parte da análise de que indivíduo é diferente de Estado, e que este é mera ferramenta que serve apenas para servir aos anseios do indivíduo. Da mesma forma, um Estado absolutista não pode ser concebido como Estado como conceito, pois parte da análise de que o Estado é um dissociado do indivíduo e que este é mera peça que o integra e que existe para servir seus anseios. Um Estado totalitário muito menos, pois tem como premissa a subjugação do indivíduo, com a destruição da oposição. O Estado ético racional (ou mesmo o poiético) é efetivamente a concepção do Estado como conceito, pois resgata dialeticamente o indivíduo, sociedade e Estado.

(34)

1.2 - Do Pensamento Dialético em Gadamer

Como já dito anteriormente, Gadamer também procurou (assim como HEGEL) a superação total da dicotomia sujeito- objeto. Todavia, sua filosofia procura justamente superar "a perfeição especulativa do idealismo na dialética absoluta de Hegel."68

Segundo Gadamer, Hegel concebe a história como o caminho do desdobramento do espírito que em ultima instância é a busca do saber absoluto, ou seja é "uma autoconsciência do espírito na forma do saber absoluto"69. Assim, a história em Hegel teria uma produção finita de efeitos, já que o homem possuiria apenas um único caminho a ser trilhado. Nesse sentido, dentro da visão hegeliana, existiria uma clara supressão da experiência.

Gadamer, por sua vez, eleva o papel da experiência e entende que a história é uma produção infinita de efeitos

A verdade da experiência contém sempre a referência a novas experiências. Nesse sentido a pessoa a que chamamos experimentada não é somente alguém que se fez o que é através das experiências, mas também alguém que está aberto a experiências. A consumação de sua experiência, o ser pleno daquele a quem chamamos experimentado, não consiste em ser alguém que já conhece tudo, e que de tudo sabe mais que ninguém. Pelo contrário, o homem experimentado é sempre o mais radicalmente não dogmático, que, precisamente por ter feito tantas experiências e aprendido graças a tanta experiência, está particularmente capacitado para voltar a fazer experiências e delas aprender. A dialética da experiência tem sua própria consumação não num saber concludente, mas nessa abertura à experiência que é posta em funcionamento pela própria experiência. 70

68

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Vol I. 3ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p 495

69 SALGADO, Ricardo Henrique Carvalho. Hermenêutica filosófica e aplicação do direito. Cit .p.89 70

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Vol I. Cit p 515.

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