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EPISTEMOLOGIA E DIALÉTICA

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(1)

ARTIC'oS

.EPISTEMOI.]OGIA E

DIALETICA

*

MARCOS L.

MÜLLER

Ilniversidtde E stadual de Campirus

"Não é o triunfo da ciência o que distingue o nosso #culo

XIX"

-

e'

poderíamos acrescentar

'

o

nosso século XX.

-

"tnas o triunfo do

metodo científico sobre a ciência'" (Nietzsche)'

* Este artigo é uma versão ligeiramente ampliada 9g^

-t

conferêrcia, de .idéntico título, apresen'

t-"d"

"o-í1;c.nt¡o

¿e gìi'tóîia-ã-Fnoìi,ñi

ø

ciência, ¡ealizado na Unicamp em

dezemb¡o de

1978.

I Nietzsche, Aus dem N¿chloss det Achtztgetiohre, ed. Ka¡l Schlechta, Hanse¡, Munique, 1966,

vol.

lII.p.

814.

2M.

Horkheimer, "Traditionelle und kritische Theorie", em KritischeTheorle âer Gesellschaft,

ed. Ma¡xismus-Kollektiv, F¡ankfurt, 1968, vol.

Il'

(2)

6

Marcos L.

Mülle¡

turas de

consciência,

que pretende

s€r

uma

"reconstrução

do

materialismo

histó-rico"

3 ,

conforme

o tftr¡lo

de

um

dos

¡fltimos

trabalhos de Habeimæ, por um lado,

e

de

uma teoria

do

agir

comunicativo,

que

æ

desdobra

e

busca

o

seu fundamento numa pragmática universal, por

outro

4

Se

æ

atendesse

com

mais detalhe ao leque dos temæ que

constitufram

a preocu-pação teórica da Escola de

Frankfurt

e de Habermæ, em particular, notar.se.ia que os

conceitos Epistemologia

e

Dialética indicam

menos temas

expllcitos

e

delimitados, abordáveis

frontalmente,

do

que dimensões de acesso a diversos problemæ, especial-mente a

um

dos temas centrais, que desde

o inlcio

polarizou o

pen$mento

da Escola de

Frankfurt:

como repensar a questäo da unidade entre teoria e prática face ao poder

histórico de

transformação e legitimaçã'o que as ciéncias modernas deæmpenharam e

deæmpenham na expansão e consolidaçã'o mundiais da relação capitalista? Como en-tender a irresistível afìrmação

histórica

dæ ciências enquanto formæ de saber e como questionar a sua auto{ompreensão positivista e o seu poder de

legitimaçlo,

sem

recor-rer

a conteúdos mitológicos

ou

teoremas metaflsicos oriundos dæ imagens de mundo que as ciências e a racionalidade capitalista sc encarregaram de dissolver?

Epistemologia e Dialética designarão, para Habermas, exatamente, duas dimensões de pensamento, encobertas e escamoteadas pela identificação

(expllcita)

do

conheci-mento com

o

conhecimento

cientlfìco e

pcla

identifìcação

(implfcita) do

conheci.

mento com

o

poder,

dimensões essas

gue

se

trata

de reconquistar

e

revalidar, para devolver às ciéncias

a

possibilidade de arito-reflexão

e a

capacidade de pensar a sua

inærção na prática social. Uma das tarefas mais importantes da Teoria

Crltica,

senffo a

mais

importante,

seria redescobrir aquelas duas dimensões designadas pelos conceitos de Epistemologia e Dialética, a

fìm

de romper a identifìcação do conhecimento com o conhi:cimento

cientlfìco

e as conseqúências prático-polfticas dela decorrentes, restabe. lecendo-se assim as condições

e o próprio

âmbito

para repensar-se as relagões entre teoria e prática, no seu sentidg mais.amplo. Trata-se, antes de

tudo,

de destruir

"aapa-rência ontológica da teoria

pura"

5

,

atuante na compreensâ'o positivista das ciências como uma

última

herança metaffsica e que atravanca

o

acesso à questão do papel dæ ciências

no

processo de reprodução social.

Nese

sentido, Epistemologia

e

Dialética aparecem, primeiramente, como instrumentos teóricos de

crftica

ao positivismo e aos seus compromissos

ideológicos.

0

A

realização pragmática. dessa ta¡efa pode ser formulada em duæ teses, que

reve-lam,icom relativa

exatidÍo

e

amplitude

adequada,

a

intenção teóric¿

principal

de

3I. Hub"r.".,

Zur Rekonstruktion des Historíschen Materìolismus, Suhrkamp, Frankfurt, 1976.

4I.

Hub"r*"r,

'$âi'lheisst

U:rivers¡lpragmatik?"em:,sprachpragmatik und philosophie, ed. por . Karl0tto' Apel, Suh¡kamp,. Frankfurtt 19 76.'

5

l

ttgb-"tma¡. "Erkenntnis und Interesse",em:Technikuttdl4tíssewchafrals;Ideologie,suhrkamp, Frankfurt, 1968, p. 154.

6

(3)

Epístemologb e

Dìalâtu

7

Habermæ:

l.

Teoria

do

Conhecimento enquanto

crftic¿ radical

do

conhecimento só é possfvel

como Teoria

da Sociedade e da Evolução, entendida esta como uma reconstrução

lógica

do

desenvolvimento

do

gênero humano em suas dimensões principais, a do agir instrumental e estratégico e a do agir

comunicativo.

7

2.

LIma Teoria da Sociedade e da Bvolução, que se pretenda dialética, só é possfvel a

partir

da reconsideração dos fiurdamentos epistemológicos e normativos

do

Mate-rialismo

Histórico.

8

Esta

reconsideração

postula a reintrodução

da

Teoria

do Conhecimento e da Filosofìa Prática na teoria ma¡xista.

A

primeira

tese é formr¡lada

no contexto

de uma investigação da gênese do positi-vismo,

em que

se pretende

mostrar

a

reduç[o

progressiva,

no

pensamento do século

)flX,

do conhecimento ao conhecimento

cientffico,

e, correspondentemente, da Teoria

do

Conhecimento à

Teoria

da Ciência

e

à Metodologia.

A

intenção que preside esta análiæ, desenvolvida, principalmente, na obra "Conhecimento e Interesse", é

restabe-lecer

a

diferença

entre

conhecimento

e

conhecimento

cientffico,

revalidando

a

di-menslo

da Teoria

do

Conhecimento enquanto análise da constituiçã'o

do

objeto

cien-tlfico.

É

a

partir

desta dimensão que é possfvel contestar a compreenslo cientificista

das ciências e repensá-las no seu entrelaçamento com o prooesso

social.

c

A

ægunda tese é formulada

no contexto

de uma

crftica

à redução (tendencial) na teoria ma¡xista do conceito de ação social (praxis) ao conceito de trabalho como ativi-dade produtiva, e ao conseqüente obscurecimento do

cmÍter

crítico

da teoria

marxis-ta,

em beneflcio

de

uma

compreensâ'o

cientificista e/ou metaflsica,

que pervadiu o marxismo, principalmente na fìgura do Materialismo Dialético. O objetivo desta inves-tigação, que atravessa

o

pensamento

de toda

a

Escola de

Frankfurt

de maneiras va-riadas, é devolver ao ma¡xismo a sua intenção de teoria

crítica (no

sentido originário de

Kant)

da Sociedade e da História. Tal

'devolução'exigiria

atematização dos funda-mentoû epistemológicos e normativos do marxismo através da reintrodução da Teoria do Conhecimento e da Filosofìa Prática em seu quadro

teórico.

to

As duæ teses estão em relação de implicação recfproca e completam-æ mutuamente. Talvez se estranhe que, de

infcio,

se utiliz¿sse o termo Epistemologia, contrapondo--a à Dialética, e, agora, na formulação das teæs, o termo Teoria do Conhecimento,

st¡-gerindo haver uma identidade,

ou,

pelo menos, uma equivalência entre ambos. Teoria

ou Crltica do

Conhecimento

e

Epistemologia são

a

mesma coisa?

A

simples

consta-7 ¡.

H.b"r."r,

E¡kenntníc urrit

Intercsse (El), Suhr*amp, Frankfu¡t, f 9d8, pp. 9, 85+6. r

J.

H.b.rln.r,

2u¡

Relconstruktíon des Hlttottschcn tlalc¡bllomts (RHM), Suhrkamp, Frankfurt,

19?6, pgs.

lGl2,59

s¡. 9

J. Hrb"rm"r, El, p, 14.

fo

¡.

H.b"r."s,

El,

pp. 5987i Thcute

da

GèæIltclufi

dc¡

Sozbltechaatas¡c

-

lltas leístet díe

(4)

8

Marcos L.

Míiller

tação de que não existe, em llngua alemã, a expressfo 'epistemologia', sugere uma dife-rença entre ambas.

O te¡mo

alemão mais

próximo

para

caractet'tzt

a reflexão episte-mológica sobre as ciências é

'Teoria

da Ciência'(lVissenschaftstheorie), que é,

no

en-tanto,

para Habermas, uma designação

comprometida com a tradição positivista, na medida em que ela conota a redução da Teoria do Conhecimento à teoria do conheci-mento

cientffico, portanto,

à Teoria da Ciéncia e à

Metodologia. A

Teoria da Ciência

torna

as questões da constituição

do

objeto cientffico,

da génese dæ operações

for-mais

e

da validade do conhecimento sem sentido, pois

o

conhecimento está para ela

definido implicitamento

pelo desempenho das ci€ncias.

A

existência das ciênciæ mo-dernas

é a resposta à pergunta pelo sentido do conhecimento, e a Teoria da Ciência,

como

mera metodologia da prática de pesquisa vigente

e

ger,eralização das operações

de

alguma ciência paradigmática, assume

a

tarefa

proibitiva

de

imunizar a

pesquisa 'contra uma reflexÍfo 'epistemológica' sobre o sentido do conhecimento. Neste sentido,

a Teoria

da Ciência, para Habermæ, deixa de ser apenas uma análise epistemológica dos

princfpios dos

diversos saberes

ou

uma

análise metodológica

do

sistema de pro-posições

e

dos procedimentos

cientffìcos,

para se

tornar

uma posiçdo

filosófica,

que pretende ser

Teoria

do

Conhecimento enquanto Teoria e Metodologia, instalando-se

no

objetivismo da teoria pura e lançando uma suspeita de

princfpio

sobre

todo

saber que não passe pela codificação positivista. Em nome do conhecintento

estrito

e

obje-tivo,

o sentido do conhecimento toma-se

irracional.

tl

Este comprometimento fìlosófìco da Teoria da Ciência não permite estabelecer uma equivalência entre Epistemologia e Teoria da Ciência, que seria a expressão equivalen-te. Mas esta impossibilidade também nílo permite tornar a Episternologia perfeitamente congruente com

o

que se propõe Habermæ com a Teoria do Conhecimento. De

fato,

Episternologia

e

Teoria

do Conhecimento aporrtam para duas atitudes de pensamento diferentes

na

maneira de

ver

a relaçäo entre ciéncia e reflexão sobre a ciência.

A

se-gunda,

mais

vinculada

à

razão

fìlosófica

clássica, reivindica

a

revalidação da Teoria

do

Conhecimento e dæ perguntas pela constituição

do objeto

e pela gênese das ope-rações

formais, para

questionar

a

compreensão

cientifìcista

das ciências, codifìcada na tradição positivista, e a pnmeira, a Epistemologia, mais ligada à própria prática das

ciências, está predominantement€ìpreocupada em colnpreendê-las como saberes autô-nomos, emancipados

rla

pretensÍfo legislante da razão fìlosófica, e interessada em

de-tectar

os

princlpios

e o

sistema de operações próprios de cada saber. Essas duæ

ati-tudes

possfveis

diante

do fato

das ciências correspondem aproximadamente

ao

que

G.

Iæbrun chamou de estilo racionalista e estilo epistemológico, o

primeiro

de origem cartesiana, o segundo, de origem

aristotélica.

tz

rl

¡. H"b..-us, EI, pp. 88-91,

12 G.

L"b-n,

"L'idée

d'

Epistémologie", e¡n: Manuscrito, Revista db Filosofia

do Cent¡o de

Lógtca, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp, yol. I, no.

l,

outubro d,e 1977, p.12.

(5)

Epßtemologia e

Dfulétíca

9

Não seria de todo exato subsumir a reivindicação feita por Habermas de uma Teoria

do

Conhecimento enquanto dimenslÍo de

crftica

ao positivismo no que G, læbrun des'

creve

como estilo

racionalista.

E

suficiente atender às

crfticas

de Habermæ a Hegel

rs

,

a Husserl 14 e

à

idéia ambfgua de

Marx

a

propósito

da unifìcação

utópica

da Ciência da Natureza e da Ciência da

História ¡s

.

A

Teoria do Conhecimento de Ha-bermas não visa

reconduzir æ

ciências a

uma forma

qualquer de razão homogênea, da qual æriam emanações mais ou menot legitimidas, mas, sim, destruir o objetivismo da teoria pura, preænte na compreens,äo positivista das ciências, a qual, de resto, não é, para Habermas,

uma

implicação necessária da

lógica da

pesquisa

cientffìca.

Por conseguinte, embora Teoria do Conhecimento e Epistemologia se vinculem a atitudes diferentes face ao

fato

dæ ciências, elas

partilham

de desfgnios teóricos semelhantes quanto a uma reflexão sobre as ciências, separandoæ, posteriormente, na medida em

que a Teoria

do

Conhecimento em Habermæ conduz à questão dialética da unidade entre teoria e praxis.

O

tema Epistemologia e Dialética, emHabermas, deve,

portanto,

mais exatamente, formular-æ Teoria do Conhecimento e Dialética. Assim, utilizar-se-á, daqui para

frente,

a expressão

'þoseológico"

em vez de epistemológico, para afastar possfveis malentendidos decorrentes da não congruência entre Epistemologia e Teoria do Conhecimento.

Após

este excurso convém

retornar

às duæ teses formuladas de

infcio,

cuja expli-citação ca¡acleriza a proposta teórica de Habermas. Najustifìcação das duas teses pro-gramáticas Habermæ procede de ma¡reira indireta, reconstrutivamente, refazendo, pre-cisamente,

o

caminho que levou ao afastamento crescente e à ruptura das relações

en-tre

Filosofia

e

Ciência, após

Kant,

a

fim

de retofnar aquelas questões deixadas à ma¡-gem

do

caminho

triunfante do

progresso

cientlfico.

É

desse afætamento entre

Filo-sofìa e as ciências que resultou,

primeiro,

o

desaparecimento do

âmbito

da Teoria do Conhecimento,

âmbito em que

a

relaçlo entre

Filosofìa e as ciéncias podia ser fren-sada, e, segundo, a sua redução progressiva à Teoria da Ciência, com o conseqüente en-cætelamento da

Filosofia,

seja

num

saber absoluto, monárquico, æja

num

saber exis-tencial, pretensa e pretenciosamente

humilde,

que deixava

o

conhecimento

cientlfìco

entregue

a

si

mesmo para mais tranqüilamente oferecer substitutos cosmovisionais ä margem das ciências.

A

tarefa dessæ versões monárquica e resignativa do saber

fìlosó-Jico

era dissolver as bæreiræ demasiado estreitæ do conhecimento

cientffico,

sem

ex-13

J.

H"b"r-u",

EI, pp.

17-35;

"Arbeit

und Inte¡aktion", em: Technlk und l4issenschoft als

Ideologie (TWI); pp, 3847. 14

J. Hub"r-"s, Erkenntnis und Interesse, Em: Technik und Wissenschaft als Ideologie'

rs

J. Hub"r-"s, EI, pp. 63-64,84,87.

16

V"¡"-r.

a propósito a

qíticr

de Habermas a Ma¡cuse em: "Tecnik und Wissenschaft als

ldeolo-gie-" no

liiro

que leva o mesmo título. Também em Os Pensadores, vol.

XLUil,

Ab¡il, Sâo

(6)

lO

Mørcos L.

MüIler

por-se a uma disputa com os saberes que se emancipavam da razão filosófìca. Em am' bos os casos, tanto na redução da Teoria do Conhecimento å Teoria da Ciência, quanto na reduçío da própria Filosofia ao saber absoluto ou existencial, desaparecem a dimen' sõo da Teoria do Conhecimento e a questão das condições de validade do conhecimen'

to cientflico.

Coln isso esvai-se a tenslfo existente entre conhecimento e conhecimento

cientffico,

a qual impedia a sua identificação a

limine A

ciência eraumø

fornu

de co' nhecimento.

Daí

a afìrmação de Habermas, de que, após

Kant,

a ciência não

foi

mais senamente compreendida pela

Filosofia'

tr

Hoje, não mais podemos retomar, sem mediações, a esta dimenslfo

te

obstrulda

pelo

positivismo, mas deslocada

!þr

um outro

tipo

de

cias na sociedade.

A

Epistemologia retoma,

hoje,

em outra perspect

histórico

do positivismo e da emancipaçíio das ciências, uma Preoc.uPação análoga à da

Teoria

do

Conhecimento de Habermæ. Retornos imediatos são nostálgicos. Por isso

¡efaznt rastros

to

com elaçame

formulação

da

Teoria

do

Conhecimento como mera metodologia da pesquisa

cientf'

fìca.

lE

A justificação

dæ duas teses

-

Teoria do Conhecimento como Teoria da Sociedade e Teoria dialética da Sociedade gaças à reintrodução da Teoria

do

Conhecimento no Materialismo

Histórico

-

deverá passaf,

portanto,

pela reconstrução da gênese do posi-tivismo e de suas etapas e esquecimentos.

A

exposição se conc€ntrará nas tres primeiras etapas, que correspondem,

gosso

modo, à

crftica

de Heggl a

Kant,

å

crftica

de Mam a

Hegel

e

ao que Habermæ chamaria de

crftica

de Hegel a Marx.

A

escolha dessas lres etapas e a

limitaçlo

a elas poderia pareoer arbitrária fac¿ ao vasto painel da reconsti'

tuição

da génese

do

positivismo,

traçado por

positivismo clássico, do pragmatismo, do

histori

Mas ela æ

justifìca

não só pela irnpossibilidade

gêneæ, mas

tamffm

pelo

fato

de a disputa com Kant, Hegel e Marx indica¡ as coorde' nadas principais das duas teses,

com

que se pfetende, aqni, caracteriTÃt

'

tema Episte-mologia (Teoria do Conhecimento) e Dialética em Habermæ.

I.

A

crltica

de Hegel à Teoria

do

Conhecimento de

Kant

está desde

o

infcio

per' passada

pof

uma intençdo

ambfgua: ela pretende, de

um

lado,

radicalizar a Teoria

do

Conhecimento de

Kant,

mostrando os pressupostos

inefletidos

em que

o

projeto de uma

crftica

da faculdade de conhecer æ apóia, e, de outro, tomá-la supérflua,

inva-lidando

a próprih idéia de wna

Clítica

do

Conhecimento, ao

atribuir

â sua concepção

¡ ? J.

H"b"t

"s, Et, p. 12

(7)

nhecê-la, nem poder

justificá-la.

er

daquele saber. 22

2. Aieoia

do Conhecimento pressupõe um conceito normativo do zujeito, isto é, ela parte de

um

zujeito de conhecimento

plenamente desenvolvido,

pronto

em suas

EPtstemologla e

Díølétíu

ll

19

'..

.

denn nicht berührt, ist das

ner, Hamburgo,

dade nos atinge,

20 Hegel, Geschlchte de¡ Phílosophie, citado por J' Habermas' EI' p' 15 ' 2

I

J. H"b"ttn"s, EI, p.23 '

(8)

12 Møcos

L. Mtlller

funções cognitivæ. De

fato, o

tribunal

que

Kant

quer instaurar para

julgar

a Meta-ffscia, como

fruto

dos desvios do uso transcendente da razÃo, surge, imediatamente, com a identidade vazia

do'eu

penso'e da apercepção transcendental. O conceito de experiência fenomenológica de Hegel vai mostrar que o seu objeto e a própria cons-ciéncia

crltica

estão implicados

e

se alteram

no

processo da experiéncia,

e

que a consci€ncia

crftica (o

ponto

de vista

do

fenomenólogo) só existe, no

infcio

do pro-cesso,

por

antecipação, devendo primeiramente, graças à reflexão fenomenológica, æ apropriar do æu passado e se despojar de suas contingências, para poder assumir realmente aquele

ponto

de vista a

partir

do qual compreende, retrospectivamente, a

dialética de sua gênese.

zl

3.

A

Teoria

do

Conhecimento parte da

dìstinSo

abstmta entre razûo teórlca e røzäo prdtíca, sendo a

crftica do

conhecimento,

por

conseguinte, desconectada da

crftica

do

agir' Mas na medida em que a consciéncia

crftica

é encarada como o resultado da reflexão sobre a sua gênese, a

noya'visão'('E¡nsicht)

dela emergente, enquanto ela corresponde a uma nova etapa reflexiva, que é

fruto

de uma experiência negativa da etapa anterior, não é mais apenas um conhecimento,mas simultaneamente urna nova

atitude,

urna nova

forma

de vida.

A reflexfo

sobre uma falsa visão das coisas é,

no

processo de formação da consciência, ao mesmo tempo, ruptura de uma atitude ou

forma

de vida dogmática anterior. Por isso, a Tnversão da conæiéncia', que

caracte-riz¡

u¡rtnovo

limia¡

de

reflexÍo,

nfo

é uma pura negaçlo, r¡us uma negação determi-nada,

rcultodo da

æperiêncio negøtfua

da forma de

consciência

anterior,

que é,

portanto,

conservada naquilo que ela tinha de

verdadeiro.

ã

A

crftica

deses tres pressupostoß

por

Hegel tadiealiza a Teoria

do

Conhecirnento,

no

ænüdo de

mostrai

que o sujeito desæ saber

crftico

deve ser concebido em seu

pro-cesso de formação, se se quiser legitimar a

crftica

e o !¡eu ponio de vista,,descortinando, assim,

a

dimensão de

uma

experiéncia

em qu€

a

prépria reflexifo

está implicada. É nesta dimensõo, denominada

por

Hegel de dimensão fenomenológica, que ele desen-volve a idéia de

lm

ptocesso de

lortrução

da consciência, que, até hoje, continua sendo para Habermas a idéia inspiradora da sua Teoria da Evolução e dé sua crltica dæ ciên-cias.

A

relação entre as formas sucessivæ de consciência

nlo

é uma relação lógica ou causal, mas uma relação de lembrança e interiorização

(,Er-innerung),

de apropriação

do

pæsado,

em

que saber e agir estão unidos.

E

na medida em que esta sucessão de

'ftguras'

da consciência

não

é

meramente acidental, mæ está unifìcada pela reflexão fenomenológica,

ela

representa

um

processo de formação, em que nenhuma

'fìgrra'

é simplesmente eliminada ou reprimida, mas reassumida em sua verdade anterior. Deste modo a sua negaçflo, que ocorre através da experiência negativa da

'figura'anterior,

im-plica necessariamente conhecimento e ação. Porisso, toda confìguração de consciência,

23

J. Hub"r-"s, pp. 25-27,

(9)

Epßtemologìa e

Díßlétíca

'13

outros contextos:

l.

a

unidade

entre

conhecimento e açäo em cada etapa reflexiva, na medida em que ela resulta da experiência negativa da

forma

de consciência anterior, Neste sentido,

a

experiência fenomenológica ocorre

no

âmbito

da unidade entre razão teórica e prática;

2.

ã incluseo da própria reflexão e do

critério

ou medida da sua

crftica

no processo de

2s J.

H"b"r-"s,

p. 29.

2 6

I.

Habermas, p. 3l .

27

(10)

14 Marcos L.

MüIler

habita, parte da ciência, "ciência da

uperiêncía

da

consciêncb"

ß

Para Habermæ

o

saber absoluto é uma incoerência na intenção t'enomenológica de Hegel:

ou

a experiência fenomenológica rcfaz a gênese do

ponto

de vista

crftico

que a

consciéncia

pôde

æsumir,

não

podendo haver

'ciéncia'no

sentido de saber absoluto

e

de

reconciliação,

total, ou

então a gênese da consciência

crltica

enquanto saber

absoluto

é

apenas aparente,

a

ciência

existia

desde

o infcio e o

movimento

da consciência ocorria

na dimenslfo do saber absoluto.

A

experiência fenomenológica

pode

levar

a

consciência ao saber absoluto, se ela está perpassada Por uma

neces-sidade

interna,

gu€,

entretanto,

só existe fetfospectivamente,

do ponto

de vista da-quele saber. Mas então ela perde a sua especificidade fenomenológica, a saber, que a

consciência

crftica (o

observador fenomenológico) näo pode estar, simultâneamente,

envolvido

no

processo

de

formação

e

considerar este processo

do

ponto

de vista

da

'ciéncia'. Se a necessidade da seqüência das figuras postula que

'o

caminho pafa a

ciência

é

ciência'

ze

,

então a radicalização da Teoria

do

Conhecimento está

com-prometida pelos

supostos

identitários

do

saber absoluto,

que

acaba postulando um conhecer

cientlfìco

antes

do

conhecer, para que este possa chegar necessariamente

àquele.

so

Por

um

lado,

uma legitimação fenomenológica do conceito de 'ciência' só é

neces-Mria, enquanto hão

houver

certezz sobre as condições de

um

possfvel saber absoluto. Nesta medida, a Fenomenologia de Hegel radicaliza a intenção da

crítica do

conheci-mento.

Mas,

por outro,

se

o objetivo

é a consecuç!Ío

do

saber absoluto, a ser atingido necessariamente, a Fenomenologia se

toma

a si mesma supérflua, e termina

por

sola'

par a

sua

intenção

de

crftica do

conhecimento, que

eta

o

que a

legitimava. 31 A

Fenomenologia torna-se, assim, uma escada, que conduz ao

ponto

de vista da 'Ciéncia dal-óg¡ca', e que s€ põe fora, uma vez af chegados.

Esta ambigüidade

da

Fenomenologia

-

legitimaçâ'o

do ponto

de vista da 'ciência'

e

sua pressuposição

como

condição

da

reflexã'o fenomenológica

-

compromete a

idéia central

da

:,adicalização da

Teoria

do

Conhecimento

por

Hegel:

que

a medida

da

crltica

deve

brotar

da

experiência

da reflexifo.

Se esta reflexão

representa, de

antemão,

o ponto

de vista da ciência, e se seu

critériojd

está acertado, a

crftica

torna-:s€,

no fundo,

supérflua, e o processo de formaçã'o da consciência reduz-se ao aparecer'

2A

ä"

sc¡: êncio." 2e Hegel, ibid. 30 J. Hubrrrn.s, EI, p. 32.

3l

J. H"b.t-us, EI, p. 33.

(11)

Epistemologia e

D¡alétíe

15

na esfera da consclência, dO enCadeamento doS conceitos puros, que constituem o con'

versal.

32

Fatal

tornou-se o

mal

entendido, porque

o

positivismo não se cansará em desmæca¡ar

o

caráter

fìctfcio

desta pretensão, apelando para o

fato

do progresso cien'

tífico,

e tornando-o a única instância para pensar as relações entre ciência e Filosofìa

e

constituindo-o como a

resposta

à

questão

do æntido do

conhecimento' Marx vai

representar,

fePensar as

reiações

ent

entre teoria

e

praxis,

rct

Postos

iden-titários. r¡

II. A

metacrítica de

Marx

a Hegel parte

do

conceito de trabalho, entondido não só

dida

'pratico-criticamente', e não apenas de maneira contemplativa e passiva, como o materialismo até então a conceþia, revela a amplitude

inicial

que o conceito de

traba-contém uma duPla dimensão d que partilham

com

a natureza a objetividade

constituída.

ss

3t

J.

H.b"r*"s,

EI, p. 35. 33 J. H"b"r*ns, Et, p. 35.

34

Mrr*,

ökonomíschephilosophische Manysþipte, em Marx, Frü,he Schriften, ed. pot H.J' Lie-'

ber eÞ. Furth, Stuttgàrt,I962,vol. I, p.644.

(12)

16

Marcos L.

Müller

o

trabalho torna-se, na interpretação de Habermas, nÍio só uma catçgoria antropológica

fundamental,

mæ,

também, uma

categorìa epistemológica,

ou,

mais corretamente,

gnoseológiø, para

respeitar

a

terminologia

de

Habermas.

O trabalho

engendra as

condições fáticas de reprodução e as condições transcendentais de

constituiçÍo

de uma natureza objetiva,

em

que a realidade se manifesta dentro de esquemas de apreensão determinados pelo grau de desenvolvimento da capacidade de transformação da natu-reza.

Com a introdução

dos conceitos

'constituição'e

'transcendental', para

caracte-rizzr

a

dimensfo

gnoseológica presente

no

conceito de trâbalho, Habermæ não quer comprometer-se com uma leitura fenomenológica-antropológica de Marx, em nenhuma das va¡iantes que ela assumiu no

jovem

Marcuse, em Sartre, Kosik e Petrovic. Ele pre-tende redescobrir

e

revalorizar

o

cardter de slntese presente nesta atividade objetiva,

cuja

capacidade

de transformaçlo

determina os esquemas de apreenslfo da realidade.

A

explicitação de um conceito de síntese e¡n sentido rruteriølista representará, assim, para Habermas,

o fìo

condutor

para

a formulação

de uma Teoria

do

Conhecimento materialista, que prolongaria a

crftic¿

de Hegel a Kant sem os pressupostos idealistas e identitários que a

comprometem.

36

O

conceito de sfntese

tem

uma longa e complicada história na fìlosofìa idealista de

Kant

a Hegel, e é provável que

Marx

o

tivesse recusado, por

julgd-lo

demasiadamente comprometido com esta tradição. Mas é a própria recomendação de Marx, na primeira tese

contra

Feuerbach, de apreender

do

Idealismo a pensar

o

lado

ativo

da 'sensibili-dade', que

legitima

esta revalidação materialista

do

conceito.

O

que

diferencia

fun-damentalmente

a

sfntese materialista, efetuada

pelo trabalho,

da sfntese em sentido idealista, é que ela não opera mais exclusivamente na dimensão do pensamento, tendo

por

paradigma a unidade de sujeito e predicado no

jufzo,

mas na dimensão da praxis, sedimentando-se

no

sistema

do

trabalho social,

isto

é, nos seus instrumentos de trans-formaçiÍo e nos esquemæ de apreensão da realidade

al

contidos.

A

sfntese em sentido materialista atua como uma efetuação simultaneamente emplrica e transcendental de

um

sujeito

social que se engendra historicamente. Seu resr¡ltado não é uma conexão lógica, mas, através da produção e da apropriação, um novo nexo de mediação entre a natureza

objetiva

e

subjetiva.

Por

isso, observa Habermas,

o

papel

que

a crftica

da

Lógica Formal

desempenhava para

o

idealismo, será desempenhado, agora, pela

Crl-tica da Economia

Polftica.

3z

Graças à sfntese entre o homem e

r

natvre?a, operada pelo trabalho social, a natu-reza

objetiva

só existe

no

quadro

de

um

determinado grau de desenvolvimento das

forças produtivas, enquanto correlato de um sistema social de trabalho, da mesma

ma-neira como a

natureza subjetiva

do

homem

só existe

num

quadro

institutional,

en-36

J. H^betm"s, EI, p. 43

37

(13)

Epistemologln e

Dinlética

17

quanto natureza de um

indivfduo

socializado. Isso não impede que a natureza mante' nha a sua independência e a sua prioridade face ao mundo histórico, mesmo que ela já

sempre exista

no

sistema

do

trabalho

social,

cindida nos dois

momentos da slntese (a natureza objetiva e a natureza subjetiva), que constitui o que Marx chama de "meta' bolismo

social".

A

natureza enquanto em si é uma abstração gnoseológica, pois ela só exjste numa dimensão social e histórica, mas é uma abstração necessdria, cuja função é afìrmar a prioridade da natureza face ao mundo histórico, cuja base material ela per' mandce, bem como a sua

irredutfvel

facticidade, face â tendência idealista em dissdl-vê-la na mera exterioridade do

espírito'

3a

Habermas acentua esse momento kantiano na concepção da natureza em Marx, em contraposição

a

outros

autores vinculados de diferentes maneiras à tradição marxista

como

Benjamin, Bloch,

Adorno

e Marcuse, que' nos rastros do

jovem Marx,

mantêm a perspectiva

utópica

de uma ressurreiç{Ío materialista da

natureza.

¡c

A

valorização do aspecto kantiano em

Marx

leva Habermas a pôr em primeiro plano o caráter instru-mentalistá

do

conceito de síntese pelo

trabalho,catáter

este, aliás,

presente

nacrl'

tica do

cqnhecimento kaótiano, concebendo as regras de sfntese como regras técnicas de sfntese, materializadas nos instrumentos e nas forças produtivas do trabalho social, as quais,

por

sua vez,

modifìcam

os esquemas de apreensão da realidade. Mas, à

dife'

rença de

Kant,

as regraS

de

slntese São empiricamsnte mediatizadas, assim

como

a

unidade da

natureza

não æ forma na

consciéncia transcendental, mas

no

cfrculo

funcional do

agir instrumental. Este

torna-se,

então, para

Habermas,

o

invariante básicO da relação

do

gênero humano

à

natureza, invariante que,

contudo, tem

uma gênese na

história natural

do

homem enquanto'processo de hominização. As condi-ções deste

agir instrumental,

do

trabalho,

ainda que igualmente

de

origem contin-gente, desempenham uma

função

transcendental,

ligando

o

conhecimento da

natu'

rezÃ

ao

interesse

de uma

poss{vel disposição técnica sobre

elo.

A

objetividade da experiência

e do

conhecimento

da

natureza se constituirã'o, assim, dentro de um es' quema de apreensão, determinado pelas condições e estruturas

do

agir instrumental. enrafzadas antropologicamente,

e

que é igualmente válido para todos os sujeitos que se feproduzem

pelo

trabalho.

ao

O

interesse

de

disposição técnica,

em

suas bases

antropológicas,

funcionará como

esquema transcendental

diretivo da

apreensão da natureza

e

como

fundamento

da

validade universal das proposições

cientfficas,

É neste

contexto

que Habermas

introduz o

conceito

de

"interesse

diretivo

de

conhe-cimento". É

preciso assinalar

aqui que

o

conhecimento

cientffico'técnico,

obtido

e

3E

J. H"b.rmus, EI, pp. 464? 39

I.

H"b"r.us, EI, p. 45. 4o

(14)

18 Marcos L.

Müller

comprovado

em

processos

de

pesquisa,

é

visto no

prolongamento

direto do

saber pragmático,

obtido

na

vida cotidiana, pelo processo de tentativa e erro, e

no

quadro clo

agir instrumental controlado pelo

sucesso. Habermas

explicita aqui

um conceito transcendental-pragmitico das ciências naturais, que representam uma

forma

de saber

acumulado

e

metodìcamente comprovado,

que

faz

paúe

do

sistema

do

trabalho

sociai. As

esparsas indicações de

Marx

neste sentido, nos comentários marginais ao

Curso

de

Economia

Política

de

A.

Wagner, são repensadas

por

Habermas, inspirado

por

Peirce,

na

clireção

de

um

pragmatismo transcendental. Neste sentido,

e no

que

tange

à justificação

gnoseológica

das

ciências

naturais,

Marx

estaria

ao lado

de

Kant

contra

Hegel, defendendo,

como

Kant, um critério

de cientificidade pelo pro-gresso metodicamente assegurado

do

saber. Este

critério

é a capacidade de sua valo-rìzação técnica,

isto

é, a medida

dc

sua integração posswel

no

processo de produçÍio. Este

o

momento kantiono

na síntese materialista, que revela a

preocupaçÍio

gno

seológica de

Marx com

o

sentido e com a validade

do

conhecimento

científico. A

ele corresponde

um outro

momento,

não kantiano, igualmente

importante,

que revelará

a

verdadeira dimensão

em que

o

aspecto transcendental,

em Marx,

deverá ser con-cebido.

Se as estruturas antropológicas

do

agir instrumental (resultantes da história natural do genero) e

o

interesse de conhecimento técnico constituem um quadro

transcenden-tal

invariante para todos os sujeitos que se reproduzem pelo lrabalho,

nlo

se pode

es-quecer que a srntese pelo trabalho assume formas históricamente variáveis, pois mesmo como esquema transcendental de apreeensão da realidade, ela é mediatizada empirica-mente pelo saber objetivado e acumulado sob forma de forças produtivas.

A

identidade e as determinações do sujeito da slntese pelo trabalho nãoestão jrí sempre dadas, como na apercepção transcendental e no inventário

fixo

das categorias do entendimenlo, em

Kant,

mas elas são resultado da própria slntese, mediada pelo grau de desenvolvimento das

forças produtivas.

Trata-se

de uma

identidade

'trabalhada'

e

de

determinações constiturdas.

"formadas".

4t

Este aspecto

Marx

concebe Como a autoproduçõo do

gênero", isto

é,

autoconstituição do

sujeito histórico-social em seu

confronto

básico

com

a

natureza. Este aspecto

da

srntese

retoma,

mas agora ao

nível

de uma smtese concebida material¡stamente, a idéia hegeliana de

um

processo de formaçã'o, não mais da consciéncia, mas do género humano em seu

confronto

com a natureza.

A

idéia de

autoprodução

do

gênero

pelo

trabalho, conforme

o

grau

de

desenvolvimento das

forças produtivas, corresponde ao momento nõo-kantiano

no

conceito de slntese 'relo

trabalho

social. Habermas visualiza

a primeira

formulaça-o deste momento na

crltica

de

Fichte

à unidade sintétìca originária da apercepção em

Kant c2

e tenta explicitá--lo, mais claramente, recorrendo ao apoio da argumentação de:Fichte.

4

t

J. H"b"r,nus, EI, p. 55

42

(15)

Epistemologla e

Díalétìm

19

O

argumento

oe

rcnte contra

Kant

é, numa palavra,

o

de que a autoconsciência, para ser origindria,

näo pode

ser uma

última

representação,

o

'eu

penso',

que

deve poder acompanhar todæ as outras representações, pressupondo, assim, como em

Kant,

unra faculdade

de

sfnteæ näo mais

reflexfvel

43 , mas, sim, uma açõo que de

infcio

transcende

o

pensamento, e que na reflexão sobre si mesma torna-se transparente 't4

É

preciso recuar aquém da representação da auto-conssiência e

partir

do ato pelo qual

o

eu originário põe

o

eu enquanto oposto ao não-eu, sendo o eu origínário nada mais do que esta ação enquanto retorna a si nresn¡a. '15

Habermas se apóia na estrutura do eu absoluto de Fichte para, resguardadas as dife-renças,

dar

mais relevo

à

idéia de "autoproduçlio do

gênero",

interpretandoa

como autoconstituição do sujeito social pela sfntese do trabalho. Desta rnaneira, assim como

o

eu absoluto de Fichte se põe comd eu originário pela oposição ao nãc.eu, assim ta¡n-bém

o

sujeito da slntese põe-æ como sujeito

históricosocial

pelo

confronto

corn a lta-tureza,

confronto

não

mais

abstrato, mas ao

nfvel histórico do

desenvolvimento das

forças produtivas.

E,

em segundo iugar, assirn como o eu originário narJa mais é do que

o retorno do ato

de oposição (ao nã'oeu) a si mesmo, æsim também o sujeito atual da sfntese está numa relação de

interioridade

para com os processos de trabalho e corn a

totalidade

dos sujeitos passados, cuja síntese ele

prolonga.

le

A

autoconsci€ncia do

sujeito

social consiste

em

saber-se

no

prolongamento da autoconstituição

do

gênero pelo

trabalho. a7

Nesta transmutação materialista de Fichte o eu absoluto é

lirnitado

ao gênero humano contingente, a ação originiíria, à slntese pelo trabalho no ¿îmbito da

história, nÍÍo

se devendo esquecer que essÍr slntese autoprodutora ao

nfvel

social tem

como

pressuposto a natureza em sua cisão em natureza objetiva e subjetiva,

isto

é, a

evoluçã<r da natureza até a etapa da hominização.

Por

um

lado,

a idéia de autoprodução do g€nero

sigrifica

o

prolongamento mate-rialista da

crítica

de Hegel aos pressupostos

irrefletidos

da Teoria do Corúrecirnento de

Kant, no

sentido

de

mostrar que

as deteuninações transcendentais

do

sujeito

têm

a

sua gênese na

história

natural e social do gênero humano. Assim, o conceito de síntese materialista significa pa¡a a autoconstituição do gênero

o

que a reflexão fenomenoló-gica signifìca para

o

processo de formação da consciência na Fenomenoiogia do

Espí-rito

de

Hepl.

Mas,

por

outro lado,'a

base materialista dessa retomada da intenção de Hegel revela-se insufìciente pam compreender a especificidade da reflexão

fenomeno

43. Kant,

K¡itik

derreinen Vernunlt, 916. 44 J.

H"b".."s,

EI, pp. 52-53. 45 J. Hob"rrn"s, EI, p.54. a6

No trabalho..o sujeito atual se concebe como auproduzido pela produçâo dos sujeitos passàdos, *pelo trabalho rie toda a

histé¡ia universal décorrida ¿tê

noþ".

M'¿¡rx, Mariûngeis ll¡erke,

Dietz, Berlim, 1969,

Iil,

pp. 45 ss.

(16)

20

Marcos L.

Müller

lógica,

na medida em que Marx tende a reduzir a autoconstituição do gênero ao

traba-tho, isto

é,

nas categorias de Habermas, ao agir instrumental e estratégico e ao saber técnico, que se sedimentam em forças produtivas, tendendo, em conseqüência, a

esque-cer a especifidade da

outra

dimensão da síntese, defìnida pelas relações de produção, e que não se reduz à dimensão do agir instrumental e estratégico.

+e

Habermæ

desen-volverá a sua

crftica

a esta tendência reducionista, que comprometeria Marx, em certos mornentos, com o positivismo, a

partir

da distinção enfática entre as duas dimensões da síntese, a do fazer e a do agir, distinção essa que elajulga interpretar mais adequada-mente,

hoje,

em termos da distinção entre trabalho ou agir instrumental e estratégico, de um

lado,

e interação

ou

agir comunicativo, de outro. Para caracterizar a autonomia

e

a

especifìcidade do agir comunicativo enquanto dimensão da

refleiäo

fenomenoló-gica e do saber prático, isto é, enquanto dimensão da interação mediada

simbolicamen-te,

e, como

tal, irredutfvel

ao trabalho, Habermas recorre à dialética do

reconhecimen-to

e da relaçã'o ética, explicitada pelo

jovem

Hegel na Filosofìa Real de Jena. É neste sentido que se fala de uma

uítica

de Hegel a

Marx.

ae

trII.

A

dimensã'o das relações de produção, que definem

o

quadro

institucional

de

uma

sociedade, e que Habermas pretende conceber, mais adequadamente, em termos de agir comunicativo, através de uma teoria da comunicação social,

foi,

seguramente,

nÍio

só considerada como também explicitada em sua especificidade e autonomia

rela-tiva

pela

pnitíca

teóríca de

Marx.

Onde ela tende a ser esquecida em sua autonomia e estreitada pela sua integraçâ'o na dinâmica das forças produtivas do trabalho social é nas formulações teóricas e metodológicas do

próprio

Marx. 50

O sigrro mais claro des-se desequilíbrio entre a

pnÍtica

de pesquisa e a autocompreensão

filosólica

de

Marx

é

o

caráter global e, muitas 'iezes, ambíguo em sua abrangência que os conceitos de

tra-balho

e de produção adquirem em

Marx.

Isso ocorre, principalmente, à medida que o

prûjeto

global de

crftica

ideológica do

jovem Marx

cede lugar à

Crftica

da Economia

Folltica.

Caráter global

tem

o

conceito de trabalho nos Manuscritos

EconômicoFilo-sóficos, onde ele

funciona

como equivalente do conceito de 'atividade

crftico-prática'

ou

de 'praxis revolucionária'na primeira tese contra Feuerbach

st

, englobando todas as exteriorizações

e

objetivações da essência humana. Mas essa abrangência torna-se ambfgua desde

que

o

conceito de trabalho

designa também, especifìcamente, a

pro

dução material, pretendendo manter, enquanto tal, na sua especifìcação, a antiga equi-valência semántica ao

conceito

de

praxis

e de atividade

crftico-prática,

como ocorre

48

J. H"b"rrnas, EI, p. 58.

ae Cf. o artigo

de Habe¡mas "Arbeit und Interaktion",em:TechnikundWissenschaftalsldeologie. 5o J. Hob.rmus, EI, p. 59.

s

l

(17)

Epistemologia e

Díalétìú

2l

em

certos

contextos

da

Crftica

à

Economia

Polftica. Então a praxis é vista

apenas como urn aspecto

do

trabalho no sentido de produção material, isto é, para Habermas, apenas

como

um

aspecto do agir instrumental e estratégico.

A

praxis tende, assim, a

ser reduzida ao

trabalho,

a síntese materialista tende a tomar-se u¡údimensional e as

relações de produção a tomarem-se

um

momento do

próprio

conceito globalizante de produção material, como nas formulações hegelianas de hrtrodução à

Crltica

da

Eco-nomia

Polltica.

s2

Af

a produçÍÍo enqrranto

distinta

e oposta à distribuição é vista,

juntamente com

esta

última,

e na melhor tradição hegeliana, como

um

momento do conceito englobante de produção,

o

que Habermas

interpreta

como uma reduçõo das

relações de produção e distribuição, defìnidoras

do

qrradro

institucional

da sociedade, à dimensíÍo da produção material enquanto agir instrumental e estratégico.

Para

opor-æ a

essa tendência redutiva da praxis ao trabalho enquanto agir

instru-mental,

e

ao usô

inflacionado

do

conceito de praxis

por

parte de autores marxistas, inclusive

por

representantes tâ'o pouco ortodoxos como Horkheimer e Marcuse, Haber' mas

reintroduz,

em

toda

a sua

eìfæe,

a distinção aristotélica entre fazer e agir, com a

intenção de romper corn o caráter holista dos conceitos de praxis e de trabalho. Assim,

o

f3øu

é interpretado como um agir instrumental e estratégico, um agir

racional-teleo-lógico,

que visa

a

disposição e

o controle

de processos naturais e sociais; e

o

agir no sentido da praxis é considerado primeiramente como um agir comunicativo, que define o

âmbito

da interação social segundo normas e visa, por meio da dissoluçã'o das formas de falsa consciência, estabelecer relações sociais sem

dominação.

sr

De resto, não é

por

acaso que

o

conceito de trabalho, no sentido estrito de

produ'

ção

material,

tendeu a tornar-se o paradigma

do

conceito de praxis, pois ele oferecia a base, inequivocamente materialista, para pensar b'processo de formação da consciên-cia da Fenomenologja

do Espírito

em termos de sfntese materialista e

de

autoconsti'

tuição do

gênero humano. O paradoxo desta reformulação 'desmistiflrcadora'da

Feno

menologia

é

que a relaçÍio entre objetivação e reflexão, como tomada de consciência do objetivado, é

muito

diferente, segunda ela se processa no

âmbito

da consciência ou

no

âmbito

d<¡

trabalho.

Para Hegel

toda

exteriorização

implicava divisão

consigo mesmo e alienação, de

modo

que a apropriaçÍio

tlo

objetivado pela reflexão era, tam' bém, irnediatamente,

a

supressão da exteriorização, e, assim,

reconciliação sa .

Ou,

t'

"Di"

Produktion abgesehen von dieser in ihr eingeschlossene Distribution betrachten, ist

offen-ba¡ leere Abstraktion, wahrend umgekehrt die Distribution der Produkte von selbst gegeben ist mit diese¡ ursprünglich ein Moment der Produktion bildenden Dist¡ibution." Marx,Grundrisse

l 7-1 8.

prescindindo desta tlistribuigão que está -nela envolvida é uma

abstra-ao inve¡so, a distribuiçâo dos produtosjá está naturalmente dada com

stitui originariamente de uri momento rla produção."

53 J. H"b"r*us, Technik

und

WissensclaJl als ldeologie, pp.62-65; EI, pp. 58,60,'11-8'l. ,235-238; "Arbeit und Interaktion" em:T\¡fl, pp. 3247;RHM, pp. 3l-33, 145-146, 163.

s a

(18)

22

Marcos L.

Müller

na

formulação hegeliana dos Manuscritos, a autoprodução é compreendida como um processo em que objetivação era simultaneamente desobjetivação, e exteriorlzaçÍo, su. presslfo da

exteriorizaÇÍo.

ss

Mas desde que a equiparagão idealista da relagÃo

sujeito--objeto à

relação sujeito-sujeito é questionada, e que,

portanto, o produto

da

objeti-vaçÍo,

entendida como trabalho, é levado a sério em sua materialidade, a

reflexlo

nlfo

pode

ser mais

pura

e

simplesmente

uma

desobjetivação, uma supressÍo da

exteriori.

dade, reconciliação, tomando-se

aproprìaçlo

dæ forçæ hurnanas exteriorizadæ. Assim, ao pensar a autoconstituição do gênero humano

pelo

trabalho, Marx estava

implicita.

mente reduzindo a reflexão ao

plano

do agir instrumental e estratégico, à apropriaçEo

das forças humanæ por meio da apropriagão dos produtos do trabalho. Estranha

ironia,

constata Habermæ, pois Marx é

vftima,

precisamente, do

ponto

de vista que lhe pormi.

tiu

critícar

Hegel e reafirmar a validade da dimensão gnoseológica, e que o levou a re. conhecer a diversidade e a autonomia das ciéncias naturais face à Filosofia e ä sua con-tribuiçâ'o para a transformação do

mundo. Foi

a

interpretaçÍo

da sfntese somo traba.

lho

que teóricas, dade e a

priação.

análises, apelando para a

os exemplos clássicos do

'O Capital'.

Isso se explic

crftica

da

Filosofia

foi

o

e

o

paradigma desta emancþagão.eram as ciências naturais, que confìrmam a sua ver-dade e

o

seu poder na prática da pesquisa e da transformaçfo da realidade. Não admira que, pela insistência nesta analogia, Marx termine por nõo

explicitar

sufìcientemente a diferença entre o saber

cientffico

e o saber

crltico,

o saber que visa o

domlnio

dos pro.

cessos naturais e sociais, e o saber prático que, pela reflexão, vísa dissolver as formas de

falsa consciência,

isto

é, as estruturas coisifìcadas da comunicação social. Assirn, a per. gunta

pelo sentido

desse saber

crftico,

diferente

do

saber

cientffico,

postulado pela

crltica

idealista,

ficou

encoberta

pelo

postulado de uma

futura

unidade entre ciéncias da natureza e as ciências do

homem

, postulado, de resto, não totalmente dpscom.

prometido de

ambigüidades positivistas. Com isso desapareceu a necessidade de uma

justifìcaçõo

gnoseológica da Teoria da

sociedade

52

,

ou, como Habermas formula¡á posteriormente de maneira mais clara, a necessidade de esclarecer,

por meio

de uma Teoria da Comunicação Social, o

domfnio teórico

dos conceitos fundamentais do Ma.

ss

M..*,

ökonomlschephllosophlsche Monuskrlpte, Ibtd.,

p,

644,

5 6

M.r*,' ökonomische-phtlosophísche Manuskrlpte, tbtd,,

p.

604, s? J, Habetmas, EI, p.

(19)

Epístemologia e

Díolétíca

23

terialismo Histórico

e

os seus fundamentos

normativos

se . Afiás, o papel da Teoria

do

Conhecimento para

o

aclaramento dos fundamentos das ciências sociais e de uma

teoria crftica

da sociedade ærá progressivamente æsumida, em Habermæ,

por

uma teoria da comunicação social, isto é, por uma teoria do agir

comunicativo.

se

Tanto

a análise da dialética entre forças produtivas e relações dd produção, na

pri-meira

parte da Ideologia Alemã, quanto a caracterização dæ leis da

produçlo

capita-lista como 'leis naturais', que operam com 'férrea necessidade'

ó0

estÍÍo sob o impacto

da

redução das categorias

do

conhecimento e da açäo às coordenadas

do

agir

instru-rnental e estratégico.

Tal

reduçâ'o tornará possfvel, mais tarde, no pensamento

marxis-ta,

a concepção mecanicista das relações entre forças

produtivæ

e relações de produ-ção, para a

qual

as etapæ do processo de formação do sujeito

históricosocial

se suce-dem

num

encadeamento causal unilinear, comandado unilateralmente

pelo

deænvol-vimento

dæ forçæ produtivas. Contra o mecanicismo e o objetivismo lústórico,

impli-cados

na

redução da

praxis

ao

trabalho, quer dizer,

para Habermas,

na

redução do agir comunicativo ao agir instrumental e estratégico, ele vai vindicar e

expiicitar,

a

par-tir

do

jovem

Hegel, a especifìcidade

do domlnio do

agir comunicativo, tornando

por

paradigma a dialética da

luta

pelo reconhecimento. ór

Mas isso

não

signitìca que em

Marx

só atue essa tendência reducionista detectada

por

Haberma.s.

Tantor

nos escritos econômicos,

como

principalmente nos

polfticos,

há uma consciência

muito

clara da autonomia e da especificidade das relações de

pro-duçâb

face ao

desenvolvimento das

forças produtivas.

Duas passagens exemplares

dos

'Grundrisse'podem mostrar a presença disso que Habermas chama de tendênciæ reducionista e

níoreducionista.

Se a sfntese pelo trabalho é o

único

quadro para a interpretação do conhecimento em sua gênese e função, então

tanto

o conhecimento da natureza (de sua forrna coti-diana

e

pragmática até as modernas ciências naturais) quanto

o

conhecimento da

so

ciedade (da autocompreensÍÍo pragmática dos grupos sociais até as teorias sociais) serão constituídas

num horizonte

ileterminado

pelo

agir instrumental e estratégico, e pelo seu interesse diretivo de conhecimento: a disposição técnica. O conhecimento da socie-dade e do homem aparecem,

portanto,

sob as categorias do saber técnico e estratégico,

isto é, de um

saber que visa

o contrtle e

a manipulação dos processos sociais, da mesma maneira como a ciência

natural

capacita o home¡n a controlar os prooessos na-turais. Esta conseqüência

foi

tirada clararnente por Marx numa passagem dos

G¡undris-s8

J.

H"brr."s,

RI{M, pp. 10-12.

se

I.

Hrb"rnl"s,

ngu,

pp.9-10, oo

¡4*¡,

Das Kapital, erster Band, Marx-Engles We¡fte, Dietz, Be¡lim, 1968,

vol

23,pp.12, 16,25-2't.

ó 1 J.

(20)

24

Marcos L.

Müller

se:

"O

desenvolvimento

do capital

fixo

indica

até que

ponto

o

saber social universal, knowledge, tornou-se força produtiva imediata, e

portanto,

até que

ponto

as condições

do

processo de

vida

social

foram

submetidas

ao controle do

general

intellect."

62

O

sentido da

história do

gênero humano é aqui

definido

pelo aumento da disposiçã'o cientlfico-técnica sobre

a

natureza e a sociedade e pelo aumento da produtividade do trabalho,

isto

é, pela transferência crescente de todas as funções do agir instrumental

aos instrumentos de trabalho, à maquinaria, numa palavra, hoje, à autornação.

"A

reali-zação efetiva desta tendência, diz Marx, é a transformação do instrumento de trabalho em

maquinaria." 63 A

maquinaria e a automação nada mais são

do

que a lógica do capital

fìxo

levado às suas últimas conseqüênciæ. O

ponto

de chegada desta realização prometeica da lógica

do

capital e do seu

tipo

de racionalidade, definido por um poder quase

total

de manipulação técnica, seria a autesupressão da

lei

do valor e a emanci-pação do

sujeito

social de qualquer trabalho necessário, tornando-se a presença do tra-balhador

no

processo de produçâ'o uma presença puramente acessória, quase

contem-plativa,

'ao

lado'de

uma produção plenamente

automatizada.

o¡a

É

o

capital reali-zando

o

sonho

do

"teorein"

metafísico, ou como

diz

Habermas, estamos aqui diante de

uma

Wissenschaftslehre saintsimoniana eq . Esta perspectiva

trouxe

em seu

bojo

a

mística do

desenvolvimento das forças produtivas característica dos socialismos buro-cráticos

e

dos modelos estalinistas

de

acumulação, onde quer que eles atuem. Nesta perspectiva também não é posslvel mais distinguir røcionalizaçõo

no

sentido de

mani-puløçíio

tecnológica

e

racíonalizaçdo

no

sentido

de

emancipaçdo e democratizøçiío,

æsim

como

ela nâ-o

permite

analisar a funçâ'o de legitimaçã'o ideológica que,

hoje,

a

ciência e a técnica desempenham no processo de reprodução das sociedades industriais. O

único

saber social

viílido,

nesta

linha do

desenvolvimento cumulativo do saber

cien-tffìco-técnico,

é

um

prolongamento compulsivo da racionalidade técnica na autocons-ciência dos grupos sociais, visando um

maior

controle dos processos sociais no quadro

institucional

vigente. Esta tendência pode ser vislumbrada nas implicações decorrentes da

crftica

de

Marx

a

Hegel, enquanto ela se apóia

no

trabalho e na redução da ação social à lógica do agir instrumental e estratégico,mas elanão determina, exclusivamente,

a ampla apropriação positiva de Hegel por Marx em sua teoria da sociedade. 6s

Mæ há, igualmente nos Grundrisse, outras passagens, que apontam para a r:specifi-cidade do saber

crltico-prático,

ao mostrar que a transformação da ciência em maqui-naria

e

automação

não

significa, automaticamente,

a

emancipação

do rujeito

social.

6'

Mu*, Grundrisse, ed. cit., p.594.

t3 M-*,

Grundrisse, ed. cit., p. 585. 63a Ma¡x,

Grund¡isse, ed. cit.,p,593 ó4 J.

H"b.r^*,

EI, p. 66.

(21)

Epistemologia e

Dialétícø

25

Com

efeito, num

processo de

produçlo

automático, determinado exclusivamente pelo

critério do

rendimento máximo,

os trabalhadores aPafecem mais

como

'combinados' do que 'combinantes', "subordinados à unidade objetiva da maquinaria, que está fora deles,

ao capital

fixo,

que,

como monstro

animado, objetivou

o

pensamento

cientf'

fico

e é, de

fato, o

elemento conglobante", e

do

qual

o

trabalhador vivo é apenas um acessório. 66 .

O

progresso

cientlfico-técnico

não garante,

por

si só,

o

controle cons-ciente

do

pfocesso de produção pelos produtores, e

muito

menos, a transformaçfo do quadro

institucional

e

das relações de

poder,

que

não

é,

portanto,

uma decorr€ncia imediata do processo de trabalho e de uma nova etapa do

controle

da natureza.

"Por

um

lado,"

diz

Marx,

"o

capital

traz

à vida todas æ potências da ciência e da natureza, assim como as da combinaç1Ío e do intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empregado. Por

outro

lado,

o

capital guer

medir

estas gigantescas forças sociais, assim criadas, pelo tempo de

tra'

balho, e, canazilá-las

dentro

dos limites exigidos para mariter e conservar como valor o valor

já criado." e?

Estas e outras descrições da contradição imanente do capital mos'

tram

que æ relações sociais de produção e

o

quadro

institucional

em que se realiza a

integação

social, não são, para Marx, meras especifìcações

ou

efeitos do processo de

trabalho. Da

mesma maneira,

a

racionalização

no

sentido de ampliaçâ-o do poder de manipulação técnica

nÍio

garante,

por

si só, a racionalizaçÍio

no

sentido de ampliaçã'o da comunicação

livre

de dominação.

ee

A

tendência

nÍo-reducionista

exige que a

sfntese materialista seja considerada em suas duas dimensões e na sua respectiva auto-nomia.

Na

primeira

dimensão, a do agir instrument4l e estratégico, constitui-se, de acordo com o interesse

diretivo

de conhecimento que visa a disposição técnica, a

história

do gênero humano,

o

desenvolvimento das forças produtivas e a socializaçlo da natr¡¡eza externa, na segunda dimensão, a do agir comunicativo, constitui'se,

-

de acordo com o interesse

diretivo

de conheci¡nento que visa

a ampliaçlo da

comunicação social e a

emancipação,

-

o

quadro

institucional

e a organizaçlio normativa do intercâmbio so-cial,

no

qual se dá a

luta

pela apropriação dos produtos e pela distribuição dos bene'

flcios

e encargos sociais.

E

neste

âmbito

que se determina e legitima ideologicamente

o

grau de represslo

institucional,

em termos de dependência social e poder

polftico.

6e

O

quadro

institucional

absorve

e interpreta

normativamente

a

coação exercida

pela

natureza

externa,

-

coação exercida através

do

grau

insuficiente

de

domfnio

sobre

a

natureza, através

do

tempo

de

trabalho

necessário

e

da

desproporção entre

66 Mrr*, Grundriße, ed. cit., p.

37 4. 6 ? Mrr*, Grundrisse, ed. cit., p. 593.

68 J, Habetmæ, Technik und Mssonschaft als ldeologie, em: TWI, p. 64. 69

J.H"b"t

æ,RHM, pp.

32,t46.

(22)

26

Marcos L.

Müller

necessidades socialmente desenvolvidas

e

compensações sociais disponíveis,

-

tradu'

zindo

esta coação externa

em

repressão dos impulsos e desejos da natureza intema,

por

rneio da coação exercida pelas normas sociais e pelas instâncias ideológicas e

psf.

quicas.

to

O

gau

de

repressão

institucional indica,

para Habermas,

a

relativa des'

truição da

comunicação social

e

da

relação

ética.

A

medida desta destruição é dada pela diferença entre

o

grau historicamente necessário de repressÍIo face ao

desenvolvi-mento

das forças produtivas

e ao domfnio

alcançado sobre

a

natureza, e

o

Srau de

repressão de

fato

exigido institucionalmente (portanto, historicamente supérfluo) pelo

tipo

de integração social existente,

isto

é, pela medida de dependáncia social e poder

político

necesyários para garantir o intercâmbio social ao

nlvel

das estruturas norma-tivæ vigentes.

?1

Se, portanto, a emancipação da coação da natureza externa depende

do

trabalho e

do

saber técnico ('transformação das ciências naturais em maquinaria'

como

diz

Marx),

ela não

provoca,

de maneira automática, a emancipação da coaçåo da natureza interna, que

tem

a sua especificidade

e

autonomia relativa definidas pelas

estruturas normativas

e pelo

saber

prático-.crítico

disponfvel

no

quadro

institucional

e

por

ele tolerado. Esta emancipação não é decorrdncia direta e exclusiva do processo

de

traballro e da transformação da nat:ureza, mas ocorre na medida da mudança e da substituição

da

organtzaçlo

normativa

do intercâmbio social através da atividade

'prá-tico-crftica', isto

é, da

crítica

ideológica,

obtida

pela auto-reflexã-o

crftica

dæ ciências

e

pela

luta

de classes. Analogamente, as etapas do processo de formaçâ'o

histórica

do gônero humano nâ'o se

definem

pelas etapas de inovação tecnológica, decorrente do progresso

científico-técnico.

EIas se caracterizam como etapas da reflexão crftica, que dissolvem a dogmática das formas de dominaçâ'o superadas, estabelecem novos meca-nismos de resotuçâ'o de

conflitos

e novos padrões de formação da identidade, possibi'

litando

novas

formæ

de integração social, que

iiberam

o

agir comunicativo enquanto

comunicativo.

Racionalização

sigrifica, aqui,

eliminação da violência

estrutural

pre-sente na comunicaçâ'o social. Eliminação da violência que impede a resolução consen-sual de

conflitos

e

o confronto

consciente com eles através de barreiras intrapslquicas

e

intersubjetivas que

bloqueiam a comunicação.

72

O

desenvolvimento

cientffìco-técnico e

o

desenvolvimento do saber

prático

e da reflexão nâ'o convergem,

portanto,

necessariamente, embora sejam interdependentes.

É

essa interdependência que Marx concebeu

como

uma dialética entre forças

produtivæ

e relações sociais de produção,

dialética

que

foi,

entretanto,

solapada

em

sua

própria

possbilidade pela redução da síntese materialista ao trabalho.

Em

termos de Teoria

do

Conhecimento a distinção entre as duas di¡nensões é

igual-mente importante¡ pois

elas

funcionarão,

para Habermas, como horizontes

transcen-7o J.

Hub".-r",

EI, pp. 79-80.

71 J. Hub.r-us, EI, pp. 80. 72 J. Hub".rnus, RHM, p. 34.

Referências

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