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Desigualdade social, democracia e direitos humanos: uma leitura da realidade brasileira

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO Curso de Mestrado em Direitos Humanos

GIANCARLO MONTAGNER COPELLI

DESIGUALDADE SOCIAL, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS: UMA LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA

IJUÍ – RS 2014

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GIANCARLO MONTAGNER COPELLI

DESIGUALDADE SOCIAL, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS: UMA LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA

Dissertação final do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Área de Concentração: Direitos Humanos. Linha de Pesquisa: Direitos Humanos, relações internacionais e equidade.

Orientador: Dr. Gilmar Antonio Bedin

Ijuí (RS) 2014

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C782d Copelli, Giancarlo Montagner.

Desigualdade social, democracia e direitos humanos: uma leitura da realidade brasileira / Giancarlo Montagner Copelli. – Ijuí, 2014. –

130 f. ; 29 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.

“Orientador: Gilmar Antônio Bedin”.

1. Desigualdade. 2. Capital econômico. 3. Capital cultural. 4. Redistribuição. 5. Reconhecimento. I. Bedin, Gilmar Antônio. II. Título. III. Título: Uma leitura da realidade brasileira.

CDU: 341.231.14 364

Catalogação na Publicação

Aline Morales dos Santos Theobald CRB10/1879

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UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Direito

Curso de Mestrado em Direitos Humanos

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

DESIGUALDADE SOCIAL, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS: UMA LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA

elaborada por

GIANCARLO MONTAGNER COPELLI

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ___________________________________

Prof. Dr. Guilherme Camargo Massaú (UFPEL): _______________________________

Profª. Drª. Vera Lucia Spacil Raddatz (UNIJUÍ): _______________________________

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AGRADECIMENTOS

Certa vez li, nos Agradecimentos de uma tese de doutorado, que o ato de agradecer é, também, uma forma de se expor. Concluí que nada poderia ser mais verdadeiro. Afinal, agradecer implica pôr às claras, revelar o papel daqueles que nos são caros e que, durante uma determinada trajetória, nos ajudaram de uma maneira ou de outra. Agradecer, portanto, significa reconhecer que os caminhos, sejam eles quais forem, não são trilhados sozinhos. Os ideais, quando compartilhados, dão sentido à vida, promovendo a mágica passagem do ideal ao real.

Por isso, agradeço a Clara Montagner, pela coragem de mais um empreendimento. Certos passos revelam a força do amor, inabalável.

Agradeço a Carlos Copelli, por estar sempre à minha frente. As significações da origem revelam, de certa forma, o futuro.

Agradeço a Margarida Fusco, pela presença constante em minha vida. O amor, teimoso, desconhece os limites que a vida impõe.

Agradeço a Milene Sampaio, pela compreensão e amor devotados. Nada pode ser mais cúmplice que a rotina daqueles que compartilham ideais.

Agradeço a Olga Copelli, pela alegria diária. O amor, quando verdadeiro, supera as significações de mundo, próprias de cada ser.

Agradeço a Renoir e Sônia Sampaio, por confiar a mim o que lhes é mais caro. Cotidianos sinceros mudam vidas.

Agradeço a Marcelo Jaques, pela amizade verdadeira. Parcerias dignas encurtam distâncias.

Agradeço a Alvori Rodrigues, por compartilhar, silenciosamente, este ideal. Na solidão do mundo, a vida se encarrega de um irmão.

Agradeço a Gilmar Bedin, pela orientação em todos os sentidos. O conhecimento, quando maduro, é calmo.

Agradeço a Fabiana Spengler, pelos desafios e estímulos intelectuais ao longo deste caminho. Certas lições dão novos tons ao futuro.

Agradeço a Vera Raddatz, por mostrar a função do conhecimento. Distante da prática, a teoria perde o sentido.

Agradeço a Daniel Cenci, por compartilhar sua sala de aula. O dia-a-dia ensina lições que os livros desconhecem.

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Agradeço a todos os professores do Mestrado em Direitos Humanos, por apontar o norte da pesquisa acadêmica. Replicar o conhecimento é crer na possibilidade de um mundo melhor.

Agradeço a todos os funcionários do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais, em especial a Janete Guterres, por dividir rotinas. Compartilhar espaços, ainda que silenciosamente, é uma forma de comprometimento e solidariedade.

Por fim, agradeço a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, pela bolsa de estudos. Certos lugares tornam-se casas.

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Entregar-se ao pensamento demanda até mesmo audácia quando tudo se opõe, e, em primeiro lugar, com muita frequência, a própria pessoa! Engajar-se no pensamento reclama algum exercício, como esquecer os adjetivos que o apresentam como austero, árduo, repugnante, inerte, elitista, paralisante e de um tédio sem limites. Frustrar as artimanhas que fazem crer na separação entre o intelectual e o visceral, entre o pensamento e a emoção. Quando se consegue isso, é como se fosse a eterna salvação! E isso pode permitir a cada um tornar-se, para o bem ou para o mal, um habitante de pleno direito, autônomo, seja qual for seu estatuto. Não é de surpreender que isso seja tão pouco encorajado.

Porque não há nada mais mobilizador que o pensamento. Longe de representar uma sombria demissão, ele é o ato de sua própria quintessência. Não existe atividade mais subversiva do que ele. Mais temida. Mais difamada também; e não é por acaso, não é inocente: o pensamento é político. E não é só o pensamento político. Nem de longe! Só o fato de pensar já é político. Daí a luta insidiosa, cada vez mais eficaz, hoje mais do que nunca, contra o pensamento. Contra a capacidade de pensar.

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RESUMO

A presente dissertação procurar analisar a desigualdade social no Brasil, projetando, a partir dos mecanismos de legitimação deste fenômeno, alternativas possíveis em busca de uma sociedade mais justa e igualitária, refletindo, portanto, um dos princípios que fundam o Estado Democrático de Direito. Para tal, este estudo está dividido em três capítulos. O primeiro, voltado à formação do Brasil enquanto Estado Moderno, analisa, a partir de contextos históricos, os elementos de legitimação da desigualdade no país em três momentos distintos: o Brasil Colônia; o Império e os primeiros passos da República; e o Brasil Moderno, ou seja, a partir da intensificação do processo de industrialização do país até a redemocratização, nos Anos 1980. Já o segundo capítulo, voltado ao presente, também se divide em três momentos. O primeiro observa o fenômeno da desigualdade social, relacionando-o ao novo ciclo de crescimento econômico brasileiro, principiado a partir da estabilidade monetária, com o Plano Real. Em seguida, as análises convergem para a consolidação do acesso diferencial às ferramentas que possibilitam o mérito como instrumento de manutenção e legitimação da desigualdade, acenando para uma releitura do conceito de luta de classes no Brasil. Ainda neste capítulo, observa-se a violência no Brasil como consequência dos níveis de desigualdade verificados até então, mas propondo novas possibilidades de aproximação entre esses dois fenômenos, além da disparidade econômica. Por fim, no terceiro capítulo, este estudo reflete, a partir dos planos político e social, sobre a possibilidade de construção de uma sociedade de iguais.

Palavras-chave: Desigualdade. Capital Econômico. Capital Cultural. Redistribuição. Reconhecimento.

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ABSTRACT

The present dissertation search analyze social inequality in Brazil, projecting from the mechanisms of legitimation of this phenomenon, possible alternatives in search of a more just and egalitarian society, reflecting, therefore, one of the founding principles of the democratic State of law. To this end, this study is divided into three chapters. The first, aimed at formation of Brazil while the modern State, analyzes, from historical contexts, the elements of legitimation of inequality in the country in three different moments: the Brazil Colony; the Empire and the first steps of the Republic; and the Modern Brazil, from the intensification of the process of industrialization of the country until the democratization in the years 1980. The second chapter, come back to the present, also is divided in three moments. The first observed the phenomenon of social inequality, relating to the new round of Brazilian economic growth, had begun from the monetary stability, with the Real Plan. Then the analyses converge on the consolidation of differential access to tools that enable merit as an instrument of legitimization of inequality and maintenance, waving to a reinterpretation of the concept of class struggle in Brazil. Also in this chapter, it is observed that the violence in Brazil as a consequence of inequality levels checked so far, but proposing new possibilities for rapprochement between these two phenomena, apart from economic disparity. Finally, in the third chapter, this study reflects, from the political and social plans, about the possibility of building a society of equals.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 A FORMAÇÃO DO BRASIL E A HERANÇA IBÉRICA ... 15

1.1 O Brasil Colônia ... 15

1.2 O Império e os primeiros passos da República ... 30

1.3 O Brasil Moderno e a permanência da herança ibérica ... 41

2 O BRASIL ATUAL E A DESIGUALDADE SOCIAL ... 52

2.1 O novo ciclo de crescimento econômico e a desigualdade social ... 52

2.2 A desigualdade social e a disputa de classes ... 67

2.3 A desigualdade social, a violência e a seletividade do sistema penal ... 77

3 A DESIGUALDADE SOCIAL E O FUTURO DO BRASIL ... 86

3.1 A desigualdade social e a democracia ... 86

3.2 A desigualdade social e a permanência do populismo ... 98

3.3 As alternativas possíveis: em busca de uma sociedade de iguais ... 110

CONCLUSÃO ... 117

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INTRODUÇÃO

Conforme Douzinas (2009), os seres humanos são construídos por Direitos Humanos. A partir desta premissa inicial, é possível entender que a qualidade de existir enquanto humano está ligada ao reconhecimento do outro, o que, em termos institucionais, significa que o status de ser, de existir enquanto humano, está relacionado ao reconhecimento daquele que detém direitos que o qualifique enquanto humano. Em outras palavras, humano é aquele que detém Direitos Humanos.

Entretanto, muito embora a dignidade humana seja uma característica inerente, é possível, em uma abordagem histórica, perceber que tais direitos – e, por consequência, o reconhecimento da própria dignidade humana – não foram idealizados a um só momento, mas, sim, ao longo do percurso humano através do tempo (BOBBIO, 2004). A escravidão, nesse sentido, é um bom exemplo, como podemos observar, ainda na esteira de Douzinas(2009), já que a abolição desta prática, segundo este filósofo, é o resultado da reinterpretação dos conceitos de homem livre e escravo, contra as tradição aristotélica, nas sociedades que, um dia, foram escravocratas. Ou seja, nem sempre todos foram livres; a liberdade é, nesses termos, uma conquista, mas, acima de tudo, uma conquista ao longo do tempo.

Através desse exemplo, contudo, podemos deduzir que o desenvolvimento e as mutações sofridas pela humanidade, ocasionando, gradualmente, transformações no elenco dos chamados Direitos do Homem, continuam, por certo, a se modificar. Isso significa que as conquistas referentes aos Direitos Humanos não se tornaram estanques ao chegar à contemporaneidade. Ao contrário. Conforme Morais e Spengler (2012), os Direitos Humanos são, por isso, produtos históricos que exigem tanto o reconhecimento de situações novas, como, também, novos instrumentos de resguardo e efetivação.

Nesse caminho histórico, que, em certo sentido, moldou – e ainda molda – o conceito sempre aberto de dignidade humana, é possível assinalar dois grandes indicadores rumo ao reconhecimento de novas situações, através de instrumentos de resguardo e efetivação: a Declaração de Direitos da Virgínia, em 1776, e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Conforme Bedin (2002), é a partir destes documentos que se inaugura uma nova sociedade, substituindo o modelo organicista pelo individualista.

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No plano internacional, afirma-se como instrumento contemporâneo de reconhecimento a esses direitos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Já internamente, ou seja, dentro dos Estados, os instrumentos voltados ao reconhecimento e proteção da dignidade humana são as constituições nacionais. É bem verdade que, desta maneira, ao passo que tal reconhecimento ganha em efetividade, perde, por outro lado, em universalidade, como adverte Bobbio (2004): os direitos não são mais do Homem, mas do cidadão ou, de outra forma, do Homem enquanto cidadão deste ou daquele Estado, em particular.

É possível destacar, desta maneira, a importância dos textos constitucionais na construção – através do reconhecimento e da positivação – de um conjunto mínimo de valores – um ethos mínimo, como projeta Bielefeldt (2000) – relacionados aos cidadãos de determinado Estado.

Entretanto, o reconhecimento político-social através da Constituição não basta, como evidenciam Morais e Spengler (2012). Afinal, é preciso dar aos Direitos Humanos não apenas eficácia jurídica, mas, também, torná-los efetivamente práticos. Por isso, os problemas que envolvem a efetivação dos Direitos Humanos não são nem filosóficos, nem jurídicos – como adverte Bobbio (2004, p. 44) –, mas, sim, voltados à própria sociedade.

A observação deste autor, assim, desloca o eixo da discussão, sobretudo em relação às questões que envolvem a igualdade. Afinal, os caminhos históricos que levaram à fundamentação da igualdade, invertendo a tradição aristotélica, já foram percorridos. De igual modo, o reconhecimento a esse direito também já está estampado na nossa Constituição Federal, fundamentando, junto a outros pilares, o Estado Democrático de Direito. Contudo, mesmo assim, o país apresenta-se ao mundo como uma das sociedades mais desiguais do globo. Ou seja, há reconhecimento, mas não há a efetividade prática.

Importa ressaltar, entretanto, que o texto constitucional refere-se à igualdade sob um ponto de vista formal. Por outro lado, é inegável que, eficaz fosse o formalismo da Constituição, a igualdade – em sentido pleno – seria substancializada, de modo que a compreensão deste fenômeno passa, inevitavelmente, pela formação do próprio tecido social brasileiro.

Nesse sentido, o primeiro capítulo deste estudo volta-se ao passado, buscando na formação social do Brasil a gênese da desigualdade social. Essa espécie de retorno às origens justifica-se, inicialmente, por dois fatores:

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1) As sociedades, seja a brasileira ou qualquer outra, formam-se a partir de sucessões de acontecimentos. Estes, por sua vez, têm causas. E estas, por seu turno, geram consequências. Ocorre que, do ponto de vista histórico, as consequências observadas no passado tornam-se causas no presente, sucessivamente, ao longo do tempo;

2) Embora a desigualdade seja, inegavelmente, fruto da ação humana, tal agir-no-mundo não pode ser desvinculado dos contextos históricos. Afinal, conceitos como justo e injusto, por exemplo, são temporalmente variáveis. Ou seja, as diferentes formas de perceber a vida – tão típicas do humano – são influenciadas pelos contextos de uma determinada época, legitimando padrões e impondo modos e comportamentos.

Isso explica, em tese, como admitimos, até 1888, a escravidão – para ficar no exemplo de Douzinas (2009). De outro modo, que mecanismos, no passado, naturalizaram a escravidão? Esta questão, que necessariamente refere-se a uma brutal forma de desigualdade ou, ainda, de reconhecimento diferenciado – não somos todos iguais; uns nasceram para servir e, outros, para gozar privilégios – revela a existência de fatores intimamente relacionados às especificidades de cada tempo que, associados à ação humana, legitimam práticas sociais dentro de um determinado grupo. Além da própria escravidão, a homossexualidade e as questões de raça e gênero, nesse sentido, também são excelentes exemplos destas variações temporais.

Assim, o primeiro capítulo deste estudo, analisando a formação do Brasil enquanto Estado-nação, do período colonial aos primeiros passos enquanto República, passando, evidentemente, pelo Império, busca compreender que mecanismos legitimaram, dentro dos contextos próprios de cada tempo, a desigualdade social, bem como as heranças deixadas ao presente.

Já o segundo capítulo, voltado justamente à atualidade deste fenômeno no país, busca compreender, de igual modo, quais os mecanismos que permitem a manutenção da desigualdade social no Brasil. Afinal, em que pesem os inegáveis avanços na construção da cidadania, o país, como afirmado recentemente, mostra-se ao mundo, ainda, como uma das nações mais desiguais do planeta. Sucintamente, a questão que norteia esta fase do texto, portanto, volta-se, através da análise do ciclo econômico projetado a partir dos Anos 1990 e dos mecanismos que facultam o acesso diferencial ao empoderamento – acenando, desta forma, para uma nova conceituação para luta de classes no presente –, a consequências que vão além da própria pobreza, como a

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violência associada à base da pirâmide social brasileira – ainda longe de ser um losango, como querem alguns ideólogos do poder.

De outro modo, a questão passa a ser, assim como no primeiro capítulo, voltada à análise dos mecanismos que legitimam a desigualdade social no Brasil. Ou seja, identificar, em contextos históricos diferenciados, onde e como alguns cidadãos são impelidos ao sucesso e, outros, ao fracasso, permitindo não apenas a manutenção de altos índices de disparidade social, mas, também, impondo consequências – como um sistema penal seletivo – inconciliáveis com a igualdade projetada no texto constitucional.

Por fim, se o primeiro e o segundo capítulos são voltados ao passado e ao presente, a terceira e última parte deste estudo volta-se ao futuro, ensaiando, através dos mecanismos de legitimação da desigualdade social no Brasil, anteriormente identificados, alternativas possíveis em busca de uma sociedade de iguais. Nesta empreitada, observa-se, antes, o político diante da desigualdade social – através de um ideal democrático, um dever ser que, por si, já espelha a paridade social, frente a uma democracia real, um ser – delimitada por contradições, paradoxos e deformações – que não apenas permite, como também se alimenta da desigualdade.

Evidentemente, tais predicativos do político no Brasil não fazem parte do futuro, mas, sim, dos contornos do passado e do presente. Entretanto, como bem evidencia Bobbio (2000), o regime que se assenta sob o ponto de vista do direito – e não do poder – é a democracia, de modo que pensar alternativas possíveis na construção de uma sociedade de iguais implica, necessariamente, pensar a partir desta forma política. Ou seja, ensaiar uma sociedade mais justa, através de contextos tão determinados pelo tempo quanto os do passado, lança o plano político ao futuro, mas não através do dever ser, o ideal, mas do ser, o real, com todas as suas contradições. Afinal, é a partir do político que, ou apertamos o passo, ou encurtamos a estrada – como diria Bobbio (2004) – no longo e histórico caminho rumo à efetivação dos Direitos Humanos.

Para esta pesquisa foi utilizado o método hipotético-dedutivo. Já a técnica utilizada foi a de pesquisa bibliográfica.

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1. A FORMAÇÃO DO BRASIL E A HERANÇA IBÉRICA

Debruçar-se às questões da desigualdade social no Brasil, bem como a seus reflexos, implica, necessariamente, observar os desdobramentos históricos que, ao longo dos séculos, deram forma ao país que conhecemos hoje. Afinal, não é possível conceber o fenômeno da desigualdade como mera contingência da contemporaneidade, uma página isolada, desprovida de contextos, mas, sim, como o produto moldado pela linearidade do tempo de nossa própria História.

Nesse sentido, observaremos, neste capítulo, três fases distintas na História do Brasil: o período conhecido como Brasil Colônia, situado entre os anos de 1500 e 1822; o Império e os primeiros passos da República, ou seja, a lacuna temporal entre 1822 e 1930 e, por fim, a fase delimitada, aqui, como Brasil Moderno, entre 1930 e 1985. Em todas as fases, procuraremos correlacionar os períodos analisados aos elementos constitutivos da desigualdade social, admitindo, dessa forma, a presença de uma espécie de herança, formada a partir de uma sequência de fatores, na gênese desse fenômeno no país.

1.1 O Brasil Colônia

O período conhecido como Brasil Colônia1 figura como o momento inicial não da História do Brasil – que, por evidente, habitada por diversas nações indígenas, já havia – mas como o primeiro degrau da construção do país enquanto Estado Moderno que, por sua vez, é o pano de fundo para a ocorrência de uma variada gama de fenômenos sociais, entre esses, o da própria desigualdade.

Tal período, no entanto, também não deve ser analisado como o desdobramento do acaso, como a sequência de reflexos sucedidos a um fortuito descobrimento de terras, mas como o resultado produzido a partir das particularidades e necessidades da

1 A periodização da história do Brasil varia entre os historiadores. Alguns consideram o início do período

colonial a partir de 1530, quando efetivamente as terras brasileiras começam a ser ocupadas pelos portugueses. Outros, por seu turno, entendem que o ano de 1500 é o referencial de início desta etapa da História do Brasil. De igual modo, a data que encerra esse período também é controversa. Para alguns, o ano de 1808, data em que a Coroa deixa a metrópole para fixar-se na colônia, põe fim ao período. Para outros, o Brasil transita da condição de colônia a partir de 1822, data da Independência em relação a Portugal. Para efeito deste estudo, compreendemos tal período entre 1500 e 1822.

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metrópole portuguesa, evidentemente, mergulhada no contexto europeu, como ensina Prado Júnior (1963). Desse modo, é possível dizer que os contornos que moldaram o Brasil Colônia foram esboçados, ainda, no Velho Continente, sobretudo no período de transição do Medievo para a Idade Moderna2.

Assim, cumpre, antes, analisar, ainda que brevemente, esse período de transição na Europa3 que, por seu turno, caracterizou-se, conforme Bedin (2008, p. 50-51- colchetes nossos), por já apontar sinais de esgotamento frente ao modelo de então, essencialmente agrícola e de poder descentralizado:

No nível econômico, a produção agrícola expandira-se, o comércio e a vida urbana renasceram e a população aumentara [... Entretanto,] o aumento das forças produtivas, sob os aspectos nos quais a sociedade feudal as havia captado, alcança então seus limites.

Diante dos limites destacados por este autor, a Europa transitou a uma nova forma de integração econômica e social, ajustada às novas necessidades, sobretudo diante do aumento populacional e da já insuficiente produção agrícola. De acordo com Teixeira e Dantas (1979, p. 22-23 – grifo nosso):

A primeira mudança notável é o reaparecimento do comércio, como atividade mais frequente e estável, organizando-se como novo setor econômico importante frente à velha economia agrícola feudal. A massa crescente dos marginais dos feudos encontra no comércio a solução adequada aos seus problemas econômicos imediatos. [...] As profundas transformações acabam por desintegrar o antigo sistema feudal. O comércio, como atividade econômica capitalista, a burguesia urbana, a monarquia nacional, são os novos personagens do novo sistema. Sua expressão teórica e prática, a partir dos séculos XV e XVI, será o Estado Moderno: politicamente centralizado, a ponto de tornar-se absoluto, e economicamente apoiado no mercantilismo, política econômica oficial voltada para a expansão máxima do lucro nacional, através da máxima expansão do comércio.

2 Conforme o cientista político Gabriel Cohn, ao prefaciar a obra Os donos do poder: formação do

patronato político brasileiro, de Raymundo Faoro (2012, p. 02), “o entendimento do Brasil contemporâneo [...] só é possível se atentarmos para uma matriz histórica, localizada em Portugal um século e meio antes de suas naves aportarem nesta terra”. Florestan Fernandes (1968, p. 22) salienta, de igual modo, “que a colonização do Brasil coincidiu com as etapas finais da crise do mundo medieval na Europa”.

3 Esse retorno histórico justifica-se porque, conforme Teixeira e Dantas (1979, p. 43 – grifo nosso), “entre

os séculos XI e XV a Europa viveu importantes transformações, destacando-se dentre elas a passagem do modo de vida feudal para o modo de vida capitalista. Isso foi possível porque, não conseguindo superar as suas próprias contradições, a Europa passou a viver um intenso processo de mudanças que terminou por levá-la à condição de Estado Moderno capitalista mercantil. Foi ainda nessa mesma Europa, agora começando a ser burguesa, que teve início e se consolidou o grande movimento de expansão marítimo-comercial, do qual resultaram os descobrimentos marítimos e, particularmente, o descobrimento do Brasil pelos portugueses”.

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Evidentemente inserido nesse quadro macro que se desenhava na Europa, Portugal interagiu decisivamente nos movimentos de expansão comercial, ou seja, no modelo que, gradativamente, transitou da produção agrícola para a atividade mercantil4.

Lisboa, nesse contexto, ganhou destaque enquanto um entreposto comercial importante no Velho Continente, já que, conforme Frota (1983), a capital portuguesa constituía-se em um dos destinos das especiarias chegadas do Oriente através de genoveses e venezianos5, que atravessavam as mercadorias pelo Mediterrâneo, após recebê-las por terra.

A importância portuguesa, no que toca à expansão mercantil desse período da Europa, aumentou ainda mais com a circunavegação da África, favorecendo o surgimento de uma nova rota entre os principais polos mercantis da época, exclusivamente por via marítima, configurando-se, conforme Prado Júnior (1963), como decisiva para o desenvolvimento comercial europeu. Para Villar (1975), a nova rota possibilitou a expansão de um mercado mundial, afetando todo o sistema produtivo do Velho Mundo. E, desse modo, Portugal assumiu posição de destaque. Afinal, foi este...

[...] pequeno país ibérico, com privilegiada posição em frente ao Oceano Atlântico, que tomou a dianteira nas navegações. Barrado em suas pretensões a este [leste] pelo crescente poderio de Castela [sul da Espanha], o mar apresentava-se como destino natural [...] Lançaram-se, então, os portugueses (e todos os estrangeiros que em Portugal oferecessem os seus serviços) na descoberta do caminho para as Índias, costeando o desconhecido litoral africano (FROTA, 1983, p. 11 – colchetes nossos; parênteses do autor).

Assim, a empreitada relacionada às grandes navegações, encabeçadas por Portugal, proporcionou uma nova era “para o capital mercantil, mais fecunda que a das repúblicas mediterrâneas da Idade Média, porque desta vez constituía-se em um mercado mundial, e seu impulso afetava todo o sistema produtivo europeu” (TEIXEIRA e DANTAS, 1979, p. 41 – grifo do autor). Nesse sentido, a colonização da América, consequência da

4 Como exemplo da transição da atividade agrícola para a comercial, cabe a observação de Villar (1975),

ao destacar que, na Inglaterra e na Espanha, extensões de terra até então utilizadas para a agricultura passaram, nesse período, à criação de carneiros para, com a lã, abastecerem uma incipiente indústria têxtil. Tal condição, nessas regiões, provocou uma espécie de êxodo, com vantagem para as cidades, e aquilo que o autor denomina de proletarização dos camponeses. É, nesse sentido, um bom exemplo da pulsão mercantil na Europa, frente ao declínio do feudalismo.

5 De acordo com Frota (1983), as especiarias eram transportadas por terra até Alexandria ou

Constantinopla. Desses lugares, seguiam pelo Mediterrâneo, através dos navegadores genoveses e venezianos, até Lisboa, um dos principais portos de distribuição.

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expansão de mercados a que se propunha a Europa, “se insere no processo de superação das barreiras que se antepuseram, no fim da Idade Média, ao desenvolvimento da economia mercantil” (NOVAIS, 1968, p. 56). O Brasil descoberto, nesse contexto expansionista, igualmente “revelou a esperança de novos caminhos dentro do pisado quadro mercantilista”, como pontua Faoro (2012, p. 117).

Como se pode depreender até o momento, as descobertas marítimas – incluindo aí a colonização de novas terras, bem como o surgimento de uma crescente tecnologia à época6 – podem ser observadas como um dos muitos estágios da pulsão econômica que se iniciava na Europa. Para Prado Júnior (1979, p. 14-15),

Tudo que se passa são incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV e que lhes alargará o horizonte pelo Oceano afora. Não tem outro caráter a exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das Ilhas pelos portugueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América, e exploração e ocupação de seus vários setores [...] É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as circunstâncias do momento em que se achavam [...] Tudo isso lança muita luz sobre o espírito com que os povos da Europa abordaram a América. A ideia de povoar não ocorre inicialmente a nenhum. É o comércio que interessa.

No enredo da expansão comercial da Europa, o lucro foi a força motriz que impulsionou a colonização, não apenas do Brasil, mas da América Latina, de modo geral. Tendência linear do ponto de vista histórico, que pode ser apreendida, como vimos, nos fatores que fizeram a Europa Feudal transitar para a Europa Mercantil, os ganhos podem ser compreendidos, portanto, como o objetivo de todo o processo de ocupação das terras latino-americanas. As próprias expedições ultramarinhas, bem como as tecnologias que as proporcionaram, serviram a esse intento. Entretanto, a riqueza, que certamente também era objeto a ser alcançado na Europa, diferiu na forma de se procurar obtê-la no chamado Novo Mundo por uma peculiaridade dos povos ibéricos em relação a outros países do Velho Continente, bem explicada por Holanda (1977, p. 18): “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”7.

6 Conforme Villar (1975), o período das chamadas Grandes Navegações, assim como o que o precede, é

marcado pela ultrapassagem das técnicas industriais e das voltadas ao desenvolvimento mercantil em relação às agrícolas.

7 Convém ressaltar que autores como Bomfim (2005) explicam que, mesmo na Europa, em especial na

Península Ibérica, o enriquecimento através da aventura, como saques e vantagens através de espólio de guerras, era comum, a ponto de figurar como regra. A explicação para isso, segundo esse mesmo autor,

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Nesse sentido, Todorov (1991, p. 128 – colchetes nossos), ao analisar as relações de diferença e reconhecimento entre colonizadores e nativos da América Latina, fornece um indício desta espécie de preferência pelo método da aventura, ao destacar que “Cortez [conquistador espanhol] interessa-se pela civilização asteca e, ao mesmo tempo, mantém-se completamente estrangeiro a ela”. Ora, o fato de manter-se completamente estrangeiro – nesse caso, à América Espanhola –, indica necessariamente a intenção de regresso à Europa, onde, em tese, a fortuna conquistada poderia ser gozada. Essa característica, contudo, não se resumia ao conquistador espanhol, mas, sim, retratava o que Bomfim (2005, p. 89) classificou como pensamento ibérico: “Não há que se separar o pequeno reino português – a história é a mesma”.

Assim, embora a exploração das novas terras pelos conquistadores ibéricos pareça indicar não um “empreendimento metódico [... mas realizado] com desleixo e certo abandono” – como destaca Holanda (1977, p. 12 – colchetes nossos) – devido às características inerentes da aventura, por outro viés é possível identificar não apenas a racionalidade frente ao objetivo – a riqueza –, mas também o cálculo para se chegar ao objeto de desejo. Essa mesma racionalidade, calculada, moldou toda a forma em que se assentou a colonização do território brasileiro, incidindo decisivamente nos primeiros fatores de legitimação da desigualdade social no Brasil.

Tal racionalidade, aqui abordada, está relacionada ao que Pinker (2013) classifica como cálculo hobbesiano, ou seja, a decisão sobre determinado objeto de interesse medida pelas circunstâncias nas quais os benefícios superam os custos. Segundo este autor, somente políticas de dissuasão, amparadas na credibilidade da retaliação proposta, têm poder para remover o incentivo da invasão pelo ganho, já que, desse modo, o custo se sobreporia ao benefício8.

decorre do fato de que, por aproximadamente doze séculos, o território que hoje corresponde a Portugal e Espanha foi palco para sucessivos e praticamente ininterruptos conflitos. Cultivar o solo, nesse sentido, era uma atividade arriscada, muito embora essa atividade também tenha sido, como tônica do Medievo de maneira geral, de fundamental importância à região. Afinal, os cerca de mil e duzentos anos a que este autor alude são compreendidos entre os últimos séculos do domínio romano e a integralidade da Idade Média, marcada pela íntima ligação de senhores e vassalos com a terra, conforme Bedin (2008). Além disso, convém ressaltar o entendimento de Todorov (1991), ao apontar a necessidade de velocidade no ato de enriquecer, no que se refere, sobretudo, às primeiras décadas de interação dos povos ibéricos na América – pilhando –, à distância desta para o ponto de origem dos conquistadores – a Europa. Vale aqui, também, o comentário de Holanda (1977, p. 15): “Essa pouca disposição para o trabalho sem compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Ingre, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável frequência, o aspecto negativo no ânimo que gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes?”.

8 Pinker (2013) dá como exemplo do equilíbrio gerado por uma política de dissuasão eficaz a Guerra Fria.

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Ocorre que, se pesarmos a equivalência entre conquistadores europeus e povos nativos da América, é possível observar que, na iminência do enriquecimento veloz proposto pelos europeus, os índios não possuíam qualquer política de dissuasão eficaz9, ou seja, não poderiam retaliar à altura, facultando o incentivo necessário de acordo com o chamado cálculo hobbesiano. Nesse sentido, é possível observar que, após o primeiro contato entre os dois lados – cujo saldo corresponde às primeiras espoliações –, a distância prevista no cálculo ibérico tornou-se tão gritante que, segundo Todorov (1991, p. 171-172), o conquistador-soldado ficou em segundo plano:

E tudo é calculado [...] Uma nova espécie de trindade substitui, ou melhor, coloca em segundo plano - pois é preciso sempre estar pronto para intervir - o antigo conquistador-soldado: é formada pelo douto, pelo padre e pelo comerciante. O primeiro colhe informações acerca do estado do país; o segundo possibilita sua assimilação espiritual; o terceiro garante os lucros.

Assim, se, em um primeiro momento, o cálculo hobbesiano referiu-se às possibilidades de vantagens maiores frente ao custo, em seguida a racionalidade em favor da conquista e do enriquecimento migrou a um estágio mais sutil que a violência empregada de início, mas não menos eficaz do ponto de vista dos objetivos ibéricos. Mais uma vez, recorremos a Todorov (1991, p. 170 – parênteses do autor), citando texto atribuído ao frei Bartolomé de Las Casas10:

Tratar-se-á de obter informações sobre as várias nações, línguas, seitas e grupos de naturais que há na província assim como sobre os senhores a quem essas populações obedecem. Feito isso, usando a troca e o comércio como disfarce, estabelecer-se-ão com eles relações amistosas, manifestando muito amor, lisonjeando-os e distribuindo alguns presentes e pequenos objetos que possam interessar-lhes. E, sem demonstrar cobiça, estabeleceremos laços de amizade e faremos alianças com os chefes e senhores que pareçam ser os

contrário através da promessa de retaliação – custo – superior ao ganho – benefício. Esse conceito, especificamente no contexto da colonização, parece importante, pois é preciso salientar que não havia ainda um modelo individualista de sociedade, mas, sim, organicista, em que o Estado é anterior e superior aos indivíduos (BEDIN, 2002). Evidentemente, nessa conformação política, prevaleciam os interesses do Estado, e não dos indivíduos. Somente após a inversão desse modelo – as Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) são os dois grandes modelos dessa inversão – é que políticas próprias de dissuasão perderam importância, sobretudo porque os direitos passaram a alicerce do Estado, em detrimento dos deveres.

9 Assim como os negros cativos, posteriormente.

10 Conforme Bueno (2008, p. 11), “Bartolomé de Las Casas foi autor de dezenas de livros implacáveis

onde narrou, com minúcia de detalhes, o macabro processo de conquista dos territórios do Caribe, América Central, México, Colômbia, Venezuela e Peru”. Contudo, a imagem de Las Casas, associado a defensor e protetor de todos os povos indígenas, como resenha este autor, merece ressalvas, conforme Todorov (1991, p. 171), ao demonstrar que, para o religioso, não era o plano de conquista que deveria ser revisto, mas, sim, o modo: “O interesse global não é modificado: continua a ser a submissão daquelas terras à coroa espanhola”.

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mais aptos a facilitar a pacificação daqueles países. (...) Para que os índios possam ver a fé com mais temor e reverência, os padres devem sempre trazer o crucifixo nas mãos e devem andar vestidos pelo menos com uma alva ou uma estola; que diga aos cristãos que escutem a pregação com muito respeito e veneração, de modo que seu exemplo induza os fiéis a aceitarem a instrução. Se parecer desejável, os padres podem chamar a atenção dos infiéis utilizando música e cantores, encorajando-os assim a se unirem a eles. (...) os padres devem pedir os filhos sob o pretexto de instruí-los, e mantê-los como reféns.

Contudo, ao passo que tais passagens parecem dar conta somente do cálculo hobbesiano espanhol, é conveniente destacar que, conforme já mencionado ao recordar a lição de Bomfim (2005), espanhóis e portugueses, no que se refere à conquista e à colonização, assemelhavam-se. Nesse sentido, observa-se, em especial no que se reserva ao contato inicial com os índios, cálculo semelhante através dos portugueses, trocando o trabalho no corte de pau-brasil11 por objetos de pouco valor, ou formando exércitos em seu favor a partir de tribos inimigas à época da chegada ao Brasil. Através da persuasão ou da violência, de igual modo, o lucro e a vantagem eram os objetivos que, sem as anteriormente referidas políticas de dissuasão eficazes, fez avançar o jugo português sobre os nativos, representando, para estes, uma...

[...] verdadeira catástrofe. Vindos de muito longe, com enormes embarcações, os portugueses, e em especial os padres, foram associados na imaginação dos tupis aos grandes xamãs (pajés), que andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profetizando e falando-lhes de uma terra de abundância. Os brancos eram ao mesmo tempo respeitados, temidos e odiados, como homens dotados de poderes especiais. Por outro lado, como não existia uma nação indígena e sim grupos dispersos, muitas vezes em conflito, foi possível aos portugueses encontrar aliados entre os próprios indígenas, na luta contra os grupos que resistiam a eles. Por exemplo, em seus primeiros anos de existência, sem o auxílio dos tupis de São Paulo, a Vila de São Paulo de Piratininga muito provavelmente teria sido conquistada

11 Nos primeiros anos da colonização, o pau-brasil era o objeto mais valioso, do ponto de vista europeu,

no Brasil. Diferentemente dos espanhóis, que de início passaram à exploração de metais preciosos, “o descobrimento do Brasil não provocou, nem de longe, o entusiasmo despertado pela chegada de Vasco da Gama à Índia. O Brasil aparece como uma terra cujas possibilidades de exploração e contornos geográficos eram desconhecidas. Por vários anos, pensou-se que não passava de uma grande ilha. [... Por isso,] as primeiras tentativas de exploração do litoral brasileiro se basearam no sistema de feitorias, adotado na costa africana. O Brasil foi arrendado por três anos a um consórcio de comerciantes de Lisboa, liderado pelo cristão-novo Fernão de Loronha ou Noronha, que recebeu o monopólio comercial, obrigando-se em troca, ao que parece, a enviar seis navios a cada ano para explorar trezentas léguas (cerca de 2 mil quilômetros) da costa e a construir uma feitoria. O consórcio realizou algumas viagens mas, aparentemente, quando em 1505 o arrendamento terminou, a Coroa portuguesa tomou a exploração da nova terra em suas mãos. Nesses anos iniciais, entre 1500 e 1535, a principal atividade econômica foi a extração do pau-brasil [... Nesse sentido,] não devemos imaginar porém que, no século XVI, o Brasil proporcionasse riquezas consideráveis aos cofres reais. Pelo contrário, segundo cálculos do historiador Vitorino Magalhães Godinho, em 1558 a arrecadação proveniente do Brasil representava apenas algo em torno de 2,5% das rendas da Coroa, enquanto ao comércio com a Índia correspondiam 26%” (FAUSTO, 1996, p. 22-26 – colchetes nossos; parênteses do autor).

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pelos tamoios. [...] Entre 1500 e 1535, a principal atividade econômica foi a extração do pau-brasil, obtida principalmente mediante troca com os índios. As árvores não cresciam juntas, em grandes áreas, mas encontravam-se dispersas. À medida que a madeira foi-se esgotando no litoral, os europeus passaram a recorrer aos índios para obtê-la. O trabalho coletivo, especialmente a derrubada de árvores, era uma tarefa comum na sociedade tupinambá. Assim, o corte do pau-brasil podia integrar-se com relativa facilidade aos padrões tradicionais da vida indígena. Os índios forneciam a madeira e, em menor escala, farinha de mandioca, trocadas por peças de tecido, facas, canivetes e quinquilharias, objetos de pouco valor para os portugueses (FAUSTO, 1996, p. 21-23 – parênteses do autor).

Desse modo, é possível verificar que o contato de índios e portugueses visou, essencialmente, o benefício mercantil que a relação poderia oferecer. Como o pau-brasil era, inicialmente, o principal atrativo, e o escambo com os povos nativos era a maneira mais eficaz de obtê-lo, essa prática imperou nas primeiras décadas da colônia. Contudo, como visto através da lição de Fausto (1996), a dominação portuguesa foi além, utilizando-se dos povos nativos para outros fins, como a manutenção da soberania da metrópole frente às constantes invasões, sobretudo de franceses e holandeses, atrás, também, do pau-brasil:

Três foram os ataques sérios que sofreu o Brasil colonial – dos franceses, ao Norte e ao Sul, e dos holandeses, em Pernambuco; e foi sempre com o auxílio decisivo das populações naturais, principalmente dos índios, que os portugueses puderam repelir os invasores: “Mais de 2 mil indígenas lograram os chefes Jerônimo de Albuquerque e Diogo de Campos – anexar à sua expedição (contra os franceses no Maranhão), ao passo que os portugueses não passavam de 600”. Ao Sul, no Rio de Janeiro, todo o esforço dos portugueses era no sentido de chamar a si as populações índias, das quais uma parte – Tamoios – estava aliada aos franceses. Só quando o indígena veio prestar mão forte às gentes da metrópole, puderam elas vencer os seus competidores. Salvador Correia, o capitão lusitano, salvo, pelos índios intrépidos e generosos, de afogar-se quando investia contra os navios franceses nos mares do Sul, é o símbolo de Portugal defendido e salvo pelo americano, sua vítima e sustentáculo. Na luta contra o holandês, o mesmo fato se nota(BOMFIM, 2005, p. 139 – parênteses do autor).

Assim, delimita-se, não apenas pelo escambo, mas por “uns tantos serviços acessórios” (BOMFIM, 2005, p. 138), o parasitismo da metrópole, inicialmente voltado às populações nativas. Essa não foi, contudo, uma peculiaridade do colonizador português, primeiramente frente aos índios, mas voltada, posteriormente, aos negros e demais populações desfavorecidas, ou do europeu, de modo geral, mas, sim, uma

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característica encontrada inclusive na América pré-colonização12, reforçando a tese do cálculo hobbesiano.

Entretanto, essa característica que perpassa as sociedades humanas ao longo do tempo, já demonstrada no contato entre portugueses e índios na esteira da conquista, não se resumiu apenas à troca de determinados objetos pelo pau-brasil – primeira mercadoria de interesse comercial encontrada no território brasileiro –, ou à utilização do contingente nativo com a finalidade militar de proteger o território frente às investidas de concorrentes europeus. As tentativas de exploração das comunidades indígenas foram além, no intuito de extrair o máximo que a colônia poderia oferecer em termos de expansão mercantil. Assim, podemos fazer referência, ainda, a dois aspectos da relação entre portugueses e índios: primeiro, a intenção em escravizá-los e, depois, o retrocesso dessa iniciativa a partir da observação – cálculo hobbesiano13 – de que os ganhos com tal prática seriam inferiores aos custos, apontando desvantagem, principalmente sob o ponto de vista comercial.

Nesse sentido, convém ressaltar o contexto histórico em que essa relação se deu. Conforme Fausto (1996, p. 25), ainda no início da colonização, a Coroa Portuguesa, no intuito de proteger as novas terras, fatiou o território que lhe coube através do Tratado de Tordesilhas em quinze extensões entre representantes da pequena nobreza, burocratas e comerciantes ligados à própria Coroa. Tal medida, ao passo que deu origem ao latifúndio, constituiu-se em uma bem-sucedida “tentativa de integrar a

12 Subjugar os mais fracos, de fato, parece constituir-se em uma característica essencialmente humana,

não se configurando, portanto, como uma peculiaridade europeia ou, principalmente, portuguesa. Esse é um fator importante, pois afasta, de início, a ideia que vincula a desigualdade a uma suposta elite má (SOUZA, 2009). Ser bom ou mau parece, antes, a imposição diante de um determinado contexto. Afinal, conforme Todorov (1991, p. 124-177), entre os astecas – depois subjugados pelos espanhóis – havia por exemplo, desigualdade: “Há muita gente pobre que, nas ruas, nas casas e nos mercados, implora aos ricos, como fazem os pobres na Espanha”. Além disso, este autor faz alusão ao canibalismo entre os nativos da América Central, comparando conquistados e conquistadores em suas respectivas práticas: “Difícil perceber a diferença de civilização entre queimar vivo e comer morto”. Já Pinker (2013, p. 224) salienta que “durante a maior parte da história da civilização, a prática da escravidão foi regra e não exceção. Foi permitida nas Bíblias hebraica e cristã e justificada por Platão e Aristóteles como instituição natural e essencial à sociedade civilizada. A chamada Atenas democrática na época de Péricles escravizou 35% de sua população, e o mesmo fez a república romana”. Nesse sentido, cumpre ressaltar que, embora o cálculo hobbesiano fosse empregado, inicialmente, em desfavor do nativo americano e, posteriormente, sobretudo contra o negro escravizado na América, com o intuito de enriquecer, a prática de subjulgar os mais fracos não pode ser considerada nem como uma peculiaridade europeia, nem como algo que se aplica de um povo a outro, mas como a ação que, diante de uma política de dissuasão ineficaz, avança frente à possibilidade de ganho maior.

13 Necessariamente, o cálculo hobbesiano não depende da relação de custo-benefício com a guerra ou a

violência. O escambo na obtenção do pau-brasil também implica cálculo, bem como as estratégias propostas por Las Casas (Todorov, 1991) para submeter os índios à vontade dos espanhóis.

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colônia à economia mercantil europeia”, não obstante tenha se constituído, também, em uma importante proteção contra invasores:

O rei – a modo de quem dispõe de um bem sem outra atitude – pegou deste imenso Brasil [...] dividiu o achado [...] e passava a embolsar todo o ano uns tantos mil cruzados de dízimos, sem outras despesas, sem ônus, nem cansaço de nenhuma sorte [Contudo,] Breve, a metrópole reconheceu que ainda poderia tirar maiores proveitos. Pouco tempo depois, viu que isto aqui não era tão nulo como a princípio lhe parecera, e achou melhor converter todo o país numa vasta capitania sua; acabou com os feudos, mandou um feitor-mor para cá – imagem do rei absoluto, soldados seus, justiça, cobradores seus. Proibiu-se a comunicação dos colonos de uma capitania com os das outras, proibiu-se o aportar onde não houvesse alfândegas; estabeleceram-se estancos e régias, monopolizou-se para o Estado o comércio do sal, diamantes, tabaco e pau-brasil, proibiu-se a construção de navios, regulamentou-se a agricultura... Em suma, a metrópole apossou-se diretamente da colônia; daí por diante, o Brasil tornou-se literalmente uma fazenda de Portugal na América (BOMFIM, 2005, p. 153 – colchetes nossos; grifo do autor).

Essa fazenda observada por Bomfim (2005), capaz de produzir comercialmente a ponto de interessar enquanto monopólio à Coroa14, evidentemente, necessitava de trabalhadores para estabelecer-se como fonte de riquezas. Contudo, embora alguns donatários trouxessem colonos15 para explorar as terras concedidas, havia uma série de questões diante do objetivo do lucro, sobretudo o lucro rápido, relacionado à aventura observada por Holanda (1977), que tornavam esse tipo de mão de obra pouco atraente ou insuficiente diante do objetivo. E é desse contexto que surge a segunda fase, já mencionada, da relação entre portugueses e índios.

De acordo com Fausto (1996), trabalhadores eram necessários, mas a metrópole não dispunha de contingente para tal16; além do mais, instalados em vastos territórios,

14 Convém observar que, conforme Fausto (1996), no momento da retomada das capitanias através da

Coroa Portuguesa, as relações comerciais nas Índias passavam por uma profunda crise. Nesse sentido, diante da necessidade de expansão mercantil, a colônia passa a ser percebida de modo diferente, sobretudo depois das primeiras três décadas após a chegada de Cabral. Ainda segundo este autor, o retorno do que se convencionou como capitanias hereditárias à Coroa se consolida com o Marquês de Pombal, entre os anos de 1752 e 1754.

15 Fausto (1996) cita como exemplo Pero do Campo Tourinho, que antes de vir para o Brasil, vendeu

propriedades e trouxe consigo seiscentos colonos. Contudo, parece ter sido uma exceção.

16 Embora essa tese seja mais facilmente encontrada, sobretudo entre historiadores, como Fausto (1996),

por exemplo, bem como em clássicos, como a História Econômica do Brasil, de Caio Prado Júnior (1979, p. 31), que afirma que, devido a pouca população de Portugal, “realizar o povoamento de uma costa imensa como a do Brasil era tarefa difícil”, Faoro (2012, p.119-123) apresenta uma hipótese diferente, destacando que, em “Portugal, a nobreza, a burocrática e a da terra, os capitalistas e os comerciantes, estimulados pelos lucros do Oriente, tornam-se mais ricos e mais ostentatórios na exibição de seu luxo, enquanto o povo, mais numeroso, faz-se mais pobre e mais consciente de sua miséria. A condição das massas populares deteriora-se francamente, com a instabilidade de emprego, a indigência, a mendacidade”. Tal quadro, para este autor, teria feito do Brasil uma promessa voltada ao controle diante

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diante das imensas possibilidades em uma terra pouco povoada, os colonos poderiam buscar outros meios para levar a vida, que não os inclinados aos interesses da Coroa. Portugal, então, voltou-se para a escravidão dos índios, como reflexo do cálculo hobbesiano17, frente a seus interesses meramente mercantis. De acordo com Prado Júnior (1979, p. 34-35 – grifo e colchetes nossos):

Com a grande propriedade monocultural18 instala-se no Brasil o trabalho

escravo. Não somente Portugal não contava com população bastante para abastecer sua colônia de mão de obra suficiente, como também, já o vimos, o português, como qualquer outro colono europeu, não emigra para os trópicos, em princípio, para se engajar como simples trabalhador assalariado do campo. A escravidão torna-se assim uma necessidade [...] No Brasil se recorreu, a princípio, ao trabalho dos indígenas. [... Entretanto,] se o índio, por natureza nômade, se dera mais ou menos bem com o trabalho esporádico e livre da extração do pau-brasil, já não acontecia o mesmo com a disciplina, o método e os rigores de uma atividade organizada e sedentária como a agricultura. Aos poucos, foi se tornando necessário forçá-lo ao trabalho, manter vigilância estreita sobre ele e impedir sua fuga e abandono da tarefa que estava ocupando. Daí para a escravidão pura e simples foi um passo. Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva do Brasil e do estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente em toda parte.

Entretanto, conforme Fausto (1996, p. 28), “a escravização do índio chocou-se com uma série de inconvenientes, tendo em vista os fins da colonização”. Entre esses inconvenientes – relacionados, sobretudo, à possibilidade de maior ganho frente à colônia –, estavam, segundo Prado Júnior (1979, p. 35), lutas prolongadas que prejudicavam o empreendimento: “De toda esta agitação eram os índios naturalmente que levavam a pior; mas nem por isso os colonos deixaram de sofrer muito. São inúmeros os casos conhecidos de destruição total dos nascentes núcleos”19.

de um mundo que já apresentava claros sinais de esgotamento. De qualquer forma, contudo, Portugal não envia colonos, em número significativo, ao menos, ao Brasil.

17 Novamente, é possível fazer alusão ao chamado cálculo hobbesiano, em que uma ação é desencadeada

após a observação do benefício superior ao custo. Aqui, como o cálculo mostrou aos portugueses que o trabalho através de colonos trazidos da Europa poderia incorrer em efeitos negativos frente às pretensões de lucro, optou-se pelo trabalho escravo.

18 Conforme Prado Júnior (1979, p. 34), “a grande propriedade será acompanhada no Brasil pela

monocultura; os dois elementos são correlatos e derivam das mesmas causas. A agricultura tropical tem por objetivo único a produção de certos gêneros de grande valor comercial, e por isso altamente lucrativos. Não é com outro fim que se enceta, e não fossem tais as perspectivas, certamente não seria tentada ou por isso logo pereceria”.

19 Conforme Fausto (1996, p. 28), “outro fator importante que colocou em segundo plano a escravização

dos índios foi a catástrofe demográfica. Esse é um eufemismo erudito para dizer que as epidemias produzidas pelo contato com os brancos liquidaram milhares de índios. Eles foram vítimas de doenças como sarampo, varíola, gripe, para as quais não tinham defesa biológica. Duas ondas epidêmicas se destacaram por sua violência entre 1562 e 1563, matando mais de 60 mil índios, ao que parece, sem

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Nesse sentido, a escravidão indígena, finalmente diante de uma política de dissuasão eficaz na lógica do cálculo hobbesiano, conclui como “[...] frustradas as primeiras tentativas de emprego do braço indígena” (HOLANDA, 1977, p. 17), já que os custos passaram, por seu turno, a superar os ganhos. Isso, entretanto, não significou o fim da escravidão, mas, sim, sua adaptação dentro da mesma racionalidade. Ou seja, do fracasso com os índios, pensou-se nos negros, buscando, enfim, benefícios superiores em relação aos custos. Assim...

[...] em 1758 a Coroa determinou a libertação definitiva dos indígenas. Mas, no essencial, a escravidão indígena fora abandonada muito antes pelas dificuldades apontadas e pela existência de uma solução alternativa. Como vimos, ao percorrer a costa africana no século XV, os portugueses haviam começado o tráfico de africanos, facilitado pelo contato com sociedades que, em sua maioria, já conheciam o valor mercantil do escravo. Nas últimas décadas do século XVI, não só o comércio negreiro estava razoavelmente montado como vinha demonstrando sua lucratividade. Os colonizadores tinham conhecimento das habilidades dos negros, sobretudo por sua rentável utilização na atividade açucareira das ilhas do Atlântico. Muitos escravos provinham de culturas em que trabalhos com ferro e a criação de gado eram usuais. Sua capacidade produtiva era assim bem superior à do indígena. O historiador americano Stuart Schwartz calcula que, durante a primeira metade do século XVII, nos anos de apogeu da economia do açúcar, o custo de aquisição de um escravo negro era amortizado entre treze e dezesseis meses de trabalho e, mesmo depois de uma forte alta nos preços de compra de cativos após 1700, um escravo se pagava em trinta meses (FAUSTO, 1996, p. 29).

Portanto, o tráfico de escravos africanos, fundamental às pretensões portuguesas, decorreu do cálculo hobbesiano frente aos índios. Por sua vez, constituiu-se na grande força capaz de tornar, finalmente, a colônia um negócio altamente produtivo através da agricultura monocultural, já que, conforme Furtado (1959), o Brasil não figurava, inicialmente, como favorável à extração de metais preciosos. Desse modo, de acordo com Teixeira e Dantas (1979, p. 50-51 – grifo nosso),

Portugal é o pioneiro na montagem de uma empresa de exploração colonial de base agrícola, de alta rentabilidade e segurança, produtora de um fluxo permanente de bens para o comércio europeu [...] Contando com razoável experiência técnica, com boa cobertura financeira, aos colonizadores resta apenas a solução de um último problema para o sucesso da empresa, o da mão de obra. O deslocamento maciço de mão de obra europeia é de todo inviável. Não há perspectiva imediata de salários compensadores, nem o reino dispõe de um excedente demográfico exportável. A solução definitiva é

contar as vítimas do sertão. A morte da população indígena, que em parte se dedicava a plantar gêneros alimentícios, resultou em uma terrível fome no Nordeste e em perda de braços”.

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encontrada no recurso à utilização de grandes contingentes de escravos negros de origem africana, mão de obra que melhor se adapta às condições técnicas rudimentares da empresa açucareira. Além disso, o tráfico africano permanente resolve em grande parte o problema do alto custo do transporte marítimo entre as regiões coloniais e o mercado europeu20.

Dessa maneira, é possível verificar que a mão de obra de cativos africanos atendeu a duas demandas entrelaçadas: tornar a terra rentável, mesmo diante da ausência de metais preciosos de início, diferentemente da América Espanhola21, e, assim, financiar – e lucrar – com a necessária ocupação frente à concorrência de outros povos europeus22: “Somente assim seria possível cobrir os gastos de defesa dessas terras” (FURTADO, 1959, p. 16).

Contudo, se a indústria açucareira23 constituiu-se como solução à ocupação das terras, em cálculo voltado, inicialmente, à cobertura dos custos que essa iniciativa empregava e, posteriormente, ao lucro, fazendo girar um mercado não apenas português, mas também europeu, ofereceu, por outro lado, um sentido à colônia. Conforme Novais (1968, p. 59):

O sistema de colonização que a política econômica mercantilista visa desenvolver tem em mira os mesmos fins mais gerais do mercantilismo e a eles se subordina. Por isso, a primeira preocupação dos estados colonizadores será de resguardar a área de seu império colonial face às demais potências; a administração se fará a partir da metrópole, e a preocupação fiscal dominará todo o mecanismo administrativo. Mas a medula do sistema, seu elemento definidor, reside no monopólio do comércio colonial. Em torno da preservação desse privilégio, assumido inteiramente pelo Estado, ou reservado à classe mercantil da metrópole ou parte dela, é que gira toda a política do sistema colonial. E aqui reaparece o caráter de exploração

20 É oportuno salientar que, do ponto de vista comercial, a indústria açucareira que se instala como a base

monocultural no Brasil não foi apenas um bom negócio para Portugal, ao encontrar uma solução para a exploração das terras recentemente ocupadas na América, sobretudo diante da crise nos negócios que envolviam as Índias e que, conforme Fausto (1996), correspondiam a mais de um quarto das receitas da Coroa Portuguesa, à época. A indústria do açúcar, ao ser desenvolvida à base do trabalho escravo de africanos, fez girar toda uma engrenagem mercantil na Europa. Amsterdã, segundo Teixeira e Dantas (1979, p. 51), encarregou-se, de início, da distribuição do produto no Velho Continente. Depois, avançou também para o financiamento da produção e refino. Além disso, “a burguesia flamenca tem em Amsterdã um poderoso centro financeiro, de onde sai grande parte do capital que Portugal aplica no transporte de colonos, equipamentos, na montagem dos engenhos e no fornecimento de escravos africanos”.

21 Essa questão fica clara, já que, na iminência de proteger o território, a Espanha, largamente mais rica

que Portugal à época, concentra esforços apenas no México e no Peru (TEIXEIRA e DANTAS, 1979).

22 Portugal e Espanha achavam-se donos das terras, mas países concorrentes da Europa alegavam que a

propriedade era vinculada à ocupação (TODOROV, 1991). Nesse sentido, muito embora a finalidade da colônia fosse mercantil, o povoamento constituiu-se, também, como uma necessidade de cunho bastante objetivo.

23

Tratamos, aqui, mais especificamente da indústria do açúcar, pois foi através desse empreendimento que Portugal passou a utilizar a mão de obra escrava negra. Salientamos, contudo, que o tabaco, o algodão e, no século XVIII, a mineração, refletiram a mesma condição de exploração de uns e favorecimento de outros.

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mercantil que a colonização incorporou da expansão comercial, da qual foi um desdobramento.

Assim, o monopólio comercial surgido da bem-sucedida indústria açucareira, cuja mão de obra cativa desempenhou papel fundamental, criou, segundo Bomfim (2005, p. 150-151), uma via de mão-dupla, mas igualmente voltada ao privilégio estatal e das elites mercantis:

Em matéria de vida econômica, só se permitia às colônias: o praticarem a agricultura e a mineração de certos produtos, contanto que tudo fosse comprado e vendido à metrópole, por meio de intermediários da metrópole, depois de tiradas as contribuições imediatas do fisco. O regime era tal, que toda a produção da colônia tinha que passar para a metrópole; não havia como reter, como furtar uma parte que fosse. E tudo foi de modo que, no fim de três séculos de exploração aturada, de produção intensiva e trabalho escravo, tocado a relho, a América Latina se achou tão pobre como no dia que os aventureiros luso-espanhóis pisaram aqui, ou mais pobre ainda.

Entretanto, a pobreza predita por este autor não se fez em toda a colônia. Afinal, conforme Prado Júnior (1963, p. 26), o Brasil se diferenciou, diante de outras sociedades coloniais tradicionais, ao ajustar o povoamento à exploração da indústria do açúcar24. Isso, sem dúvida, foi favorável a alguns: “Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão de obra que precisa: indígenas ou negros importados”. Assim, embora todos esses elementos humanos – brancos, negros e índios – estivessem, evidentemente, envolvidos no mesmo projeto, voltado ao comércio e à exploração da colônia, uns participavam deste enredo lucrando, enquanto outros, trabalhando e, à medida que se tornavam incompatíveis com a demanda – caso dos índios frente à empresa açucareira – relegados à marginalização25.

É esta a síntese da vida econômica das novas nacionalidades por todo o tempo de colônia: o senhor extorquindo o trabalho ao escravo, o negociante, o padre, o fisco e a chusma de subparasitas, extorquindo ao colono o que ele roubara ao índio e ao negro. Trabalhar, produzir, só o escravo o fazia (BOMFIM, 2005, p. 147).

24 O Brasil se diferencia porque, ao contrário do latifúndio instalado em solo brasileiro, voltado à

monocultura, a América Inglesa foi fatiada em pequenas extensões de terra: enquanto os portugueses não tinham gente disposta a migrar, a Inglaterra tinha. Por isso, a colônia portuguesa não deixa de ser, de certo modo, original (FURTADO, 1959).

25 Conforme Silva (1990, p. 39), a incompatibilidade do índio frente ao objetivo português na lavoura de

cana-de-açúcar levou à marginalização: “Como não aceitavam a escravidão, constituiu-se rapidamente o mito da incompatibilidade do gentio com a agricultura e da preguiça da raça”.

Referências

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