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Como pudemos depreender da primeira parte deste capítulo, a lógica colonial, delimitada pelos monopólios comerciais em benefício da metrópole, coadunou-se ao movimento de expansão marítimo-comercial iniciado no século XV. A colonização visou, portanto, a atender aos propósitos mercantilistas dos Estados europeus, extraindo, do ponto de vista comercial, o máximo que a colônia poderia render. Desse modo, tanto a mão de obra escrava indígena quanto negra29 foram fundamentais nessa empreitada. A

27 Desse período, também contribui para a desigualdade na contemporaneidade brasileira a chamada

herança ibérica, sobretudo o patrimonialismo, fator que será melhor abordado no item 1.3 deste capítulo.

28 Fernandes (1968) ainda salienta que, de modo geral, a colonização implicou em um regime estamental

– alongado à Primeira República – devido, sobretudo, à grande plantação, ao próprio trabalho escravo e à expropriação colonial.

29 Importante destacar que a exploração de mão de obra barata era tão fundamental às expectativas da

metrópole que, com as invasões holandesas no nordeste brasileiro e o controle dos centros de distribuição de escravos na África também pelos holandeses, Portugal, que já havia concluído pelo prejuízo do braço indígena do sistema monocultural, incentiva as Bandeiras, movimento caracterizado pelas incursões ao

organização da colônia girou, portanto, “em função de seu melhor aproveitamento econômico” (TEIXEIRA E DANTAS, 1979, p. 121), frente às necessidades – e tendências – do mercantilismo europeu e da posição ocupada por Portugal nesse contexto.

Contudo, esse empreendimento, extrativista em um primeiro momento, mas, pela própria conjectura da competição entre os Estados europeus, também voltado ao povoamento, à defesa e à produção através do sistema monocultural tocado à base de mão de obra escrava, encontrou no crescimento de seus próprios sistemas – bem como na crise do mercantilismo europeu –, seus fatores de declínio:

Os mesmos instrumentos responsáveis, anteriormente, pelo desenvolvimento colonial, acabam impondo sua maior função exploradora, determinando, a partir daí, o princípio da decadência da colônia. As relações e interesses entre a colônia e a metrópole começam a mostrar todas as suas contradições [...] A progressão do processo explorador provoca, como reação, o crescimento da resistência colonial [Além disso,] o mercantilismo entra em crise no final do século XVIII, contestado pelos teóricos do liberalismo econômico, que denunciam o intervencionismo do Estado absoluto na vida econômica, e pressionado pelo contínuo crescimento do capitalismo industrial europeu, que exige liberdade de iniciativa e concorrência. Dessa forma, se o regime econômico do mercantilismo, do qual até agora dependeu o próprio sistema colonial, está em crise e à beira do colapso, pode-se deduzir que as Metrópoles devem estar sofrendo o mesmo processo de desgaste interno – no que diz respeito à decadência do regime absoluto – como reflexos diretos sobre sua política colonial (TEIXEIRA E DANTAS, 1979, p. 148-150 – colchetes nossos).

Assim, é possível destacar que, se até o século XVIII, a economia colonial sustentou o capitalismo europeu sem qualquer sinal de crise30, o liberalismo europeu chocou-se com o modelo vinculado ao absolutismo, provocando, consequentemente, fissuras nas relações entre metrópole e colônia, fazendo surgir ideais de liberdade econômica, política e cultural. Contudo, de maneira semelhante à França Revolucionária31, tais ideais vinculavam-se às insatisfações de uma elite já constituída

centro do país para a captura de índios, visando à substituição do escravo africano. Entretanto, com a retirada dos holandeses destes pontos considerados estratégicos, a captura de indígenas perde valor, reaquecendo o mercado e a utilização de mão de obra escrava negra (TEIXEIRA e DANTAS, 1979), invertendo os polos do cálculo hobbesiano de acordo com os contextos de cada momento.

30 Segundo Teixeira e Dantas (1979), do início da colonização até a segunda metade do século XVIII, os

conflitos, as crises entre a metrópole e a colônia, não colocaram em xeque a natureza da relação entre ambas. Tal se dá somente com o surgimento e o fortalecimento de uma elite nacional.

31 Conforme Corrêa (2006, p. 62-63 – destaque do autor), os revolucionários de 1789 compunham o

chamado Terceiro Estado, formado por banqueiros, industriais, grandes comerciantes, a pequena e a média burguesia e, finalmente, o imenso contingente de pobres de toda natureza. Com a Revolução Francesa, há uma inversão na perspectiva em que o poder se legitimava, passando a ser exercido a partir do povo, tomado, em tese, como livre e igual. Contudo, longe dessa teoria revolucionária, “com a

na colônia, não congregando, desta forma, os anseios de uma sociedade em que, segundo Gomes (2010, p. 55), “de cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo”.

Isso fica claro na análise de Costa (1987, p. 07), ao observar os limites do liberalismo brasileiro, à época da independência em relação à metrópole. Mesmo sem negar as influências liberais europeias no que se refere aos anseios de desvinculação entre Brasil e Portugal, esta autora pontua que...

[...] as elites brasileiras que tomaram o poder em 1822 compunham-se de fazendeiros, comerciantes e membros de sua clientela, ligados à economia de importação e exportação e interessados na manutenção das estruturas tradicionais de produção, cuja base era o sistema de trabalho escravo e a grande propriedade [...] A presença do herdeiro da casa de Bragança ofereceu-lhes a oportunidade de alcançar a Independência sem recorrer à mobilização das massas.

Assim, enquanto as teorias liberais estavam assentadas nos ideais de liberdade e igualdade política, a economia da colônia, fosse a serviço da metrópole ou das novas elites que aqui se constituíram, era essencialmente embasada no modelo escravocrata, de modo que a liberdade almejada resumia-se em emancipar da tutela e do fisco português em relação ao comércio – e não exatamente à liberdade das pessoas32 – mesmo já diante dos contornos que assinalavam a passagem de um Estado organicista para um Estado individualista.

Desse modo, a composição social do período que separa as fases estritamente colonial e republicana do país – o Império –, pouco ou nada mudou as estruturas sociais locais. Ao contrário: as características de personalismo e, consequentemente, de patrimonialismo e clientelismo33, típicas da colônia, permanecem enraizadas nas novas

implantação do emergente sistema capitalista no campo da economia e com a consolidação do Estado liberal-burguês no campo da política, esse discurso se tornou ‘...uma máscara humanista e lógica para a tomada do poder pela burguesia em seu único proveito’”. Ou seja, por trás da teoria revolucionária, “estavam escondidos os interesses de uma classe social que se tornou dominante na França”.

32 Conforme Costa (1987, p. 226), os teóricos liberais, no Brasil, estavam basicamente associados aos

grupos dominantes. Em outras palavras, a ascensão social destes, via de regra, os bacharéis, era o ponto de encontro entre os interesses dos senhores agrários e desta pretensa elite intelectual: “os intelectuais, vivendo na órbita das oligarquias, limitam-se a interpretar o ponto de vista dos setores mais progressistas, e quando ultrapassam esses limites são incapazes de formalizar outros tipos de aliança e seu radicalismo se esgota num verbalismo pouco eficiente”.

33 Conforme Souza (2009), as teses do personalismo, do patrimonialismo e do clientelismo, adotadas

positivamente por Gilberto Freyre e, negativamente, por Sérgio Buarque de Holanda, não são referenciais robustos o suficiente para explicar o fenômeno da desigualdade no Brasil contemporâneo. Entendemos, contudo, que, embora evidentemente tais características não possam explicar a questão no todo, essa espécie de herança colabora para a perpetuação do fenômeno na atualidade. Afinal, essas características,

elites e na relação desta com o restante da população brasileira. Ou seja, como os grupos dominantes do país “contaram com D. Pedro [...] na criação de um governo que desse continuidade aos empreendimentos produtivos escravistas e que garantisse a ordem social”34 (VICENTINO, 1999, p. 146), livrando-se apenas dos inconvenientes fiscais e comerciais que Portugal impunha, qualquer traço de cidadania, ainda que pálido, dependia das oligarquias rurais35. Por isso, referindo-se à estrutura patriarcal e à clientela do país após a independência, Costa (1987, p. 209-210) salienta que os grandes proprietários mantinham não apenas o poder político, mas, também, o controle administrativo:

Os senhores rurais gozavam de independência absoluta em seus domínios, estendendo, como no passado, o seu poder às aglomerações urbanas, cuja população passava a integrar a sua clientela. A política na cidade não diferia da política da zona rural. [...] Os negócios públicos não chegariam nunca a atingir o tom de impessoalidade necessário à eficácia da administração. Eram pouco definidos os limites entre as coisas públicas e privadas. Os melhoramentos públicos frequentemente resultavam da doação de proprietários que, por sua vez, faziam uso das verbas públicas em função de seus interesses pessoais. O político não representava o povo. Aparecia como seu benfeitor. Regida pelos critérios de clientela, a burocracia era instável e ineficiente, sendo sua própria instabilidade essencial ao sistema de clientela, reforçando a dependência dos grupos urbanos em relação aos proprietários que continuavam a dominar o país dentro do novo quadro institucional. Dentro desse regime, os critérios de competência perdiam sentido. [...] Encerradas dentro de um sistema que lhes retira toda e qualquer iniciativa e as coloca na dependência das oligarquias rurais, as populações urbanas e das regiões do interior do Brasil caracterizam-se pela falta de iniciativa e apatia.

Tanto a apatia quanto a falta de iniciativa – características observadas por esta autora que se estenderam da Colônia ao Império – também caracterizaram os primeiros passos da República, conforme Carvalho (1987, p. 09), ao recordar o conteúdo de uma

da Colônia à República, são perfeitamente observáveis nos cabides públicos de emprego, por exemplo, bem como no traço de caridade que se revestem as políticas públicas propostas em períodos eleitorais. Como bem pontua Bedin (2008, p. 07), “não há rupturas sem heranças”. Estas questões serão melhor observadas na última parte deste capítulo.

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D. Pedro II também manteve tal conformação. Com ele, “foram esmagados um a um os movimentos de descontentamento popular mais rebeldes e ameaçadores, a exemplo da Revolução Praieira (1848-1850), consolidando o Brasil imperial escravista, aristocrático e atrelado à Inglaterra” (VICENTINO, 1999, p. 146 – parênteses do autor).

35 Costa (1987) lembra, por exemplo, das Santas Casas de Misericórdia: geralmente financiadas por uma

espécie de benfeitor associado às elites agrárias e administradas por uma pretensa caridade católica, os rudimentares serviços hospitalares da época atendiam às populações a partir da ideia de favor, e não alicerçadas nos modernos conceitos de cidadania. Além do mais, esses locais geralmente eram voltados, sobretudo, ao atendimento dos escravos de propriedade – objetos caros para se perder – do benfeitor do local.

carta à imprensa36, de Aristides Lobo, propagandista republicano, desapontado com a “maneira pela qual foi proclamado o novo regime. Segundo ele, o povo, que pelo ideal republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talvez uma parada militar”.

Nesse ponto, contudo, é importante não perder de vista – na intenção de dar sentido a essa espécie de paradoxo inicial da república – não apenas a recente libertação dos escravos, em 1888, mas também as profundas mudanças ocorridas na sociedade, sobretudo em relação à imigração europeia e à transição de uma classe proprietária aristocrático-escravista em uma elite burguesa e moderna (TEIXEIRA e DANTAS, 1979). Conforme a lição de Furtado (1959), podemos depreender da conjunção desses fatores os contextos, ao menos em parte, que levaram à apatia popular frente à República, já que, para este autor, o ex-escravo via no “trabalho uma maldição” e, no “ócio, um bem inalcançável”, de modo que...

[...] o homem formado dentro desse sistema social [escravidão] está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos [...] Por toda a primeira metade do século XX, a grande massa dos descendentes da antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de “necessidades”, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país (FURTADO, 1959, p. 167 – colchetes nossos; aspas do autor).

Assim, é possível pensar essa forma de sociabilidade – a escravidão – além de suas características negativas inerentes, como a mera privação da liberdade, por exemplo, observando-a a partir de seus efeitos: condicionado a um regime que, por séculos, sempre moldou o cativo como um ser absolutamente passivo, o ex-escravo defrontou-se com um mundo – e seguramente com uma concorrência, sobretudo diante do imigrante europeu – para o qual não estava preparado, principalmente nos novos centros do poder, deslocados para o Sudeste, devido ao café. Talvez por isso, nesse sentido, Furtado (1959, p. 166 – grifo nosso) pontue “as vantagens que apresenta o trabalhador europeu, com respeito ao ex-escravo”, como “demasiado óbvias para insistir sobre elas”. Entretanto, se essas foram barreiras na região cafeeira, é preciso recordar, ainda na esteira de Furtado (1959), que, sobretudo no Nordeste, ou seja, na já decadente indústria

36 Segundo Carvalho (1987, p. 165 – grifo do autor), a carta foi enviada ao jornal Diário Popular em

açucareira37, as terras facilmente agricultáveis já estavam ocupadas por imensos latifúndios, impedindo – ou, na melhor das hipóteses, dificultando – formas de sobrevivência a partir de culturas de subsistência por parte dos ex-escravos. Ou seja, em ambas as regiões, havia dificuldades de adaptação para grande maioria da população brasileira, à época. A República não altera a vida das pessoas, de modo que...

O fim da escravidão [...] não escapou às acomodações exigidas pelas estruturas de exploração e pelos interesses estabelecidos: a grande maioria dos ex-escravos continuou sendo alvo de discriminação, sofrendo a sujeição econômica, política e cultural. Em outras palavras, os ex-escravos continuavam excluídos das vantagens de tudo o que se produzia no Brasil, desde bens, poderes e saberes, porém sob o novo estatuto de homens livres (VICENTINO, 1999, p. 147 – grifo do autor).

Além disso, nas regiões urbanas, fruto da transmutação de uma elite aristocrática agrária em burguesa e moderna, já havia um excedente populacional desde o começo do século XIX que, associado à imigração europeia, engrossou, conforme Carvalho (1987, p. 16), “o contingente de subempregados e desempregados”. Referindo-se especificamente ao Rio de Janeiro, capital da recente República, este autor pontua que:

Consequência do rápido crescimento populacional foi o acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa. Domésticos, jornaleiros, trabalhadores em ocupações mal definidas chegavam a mais de 100 mil pessoas em 1890 e a mais de 200 mil em 1906 e viviam nas tênues fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade, às vezes participando simultaneamente de ambas. Pouco antes da República, o embaixador português anotava: “Esta cidade do Rio de Janeiro está cheia de gatunos e malfeitores de todas as espécies”. Em proposta para a regulamentação do serviço doméstico, feito à Intendência Municipal em 1892, Evaristo de Moraes observava que havia na capital “gente desocupada em grande quantidade, sendo notável o número de menores abandonados” (CARVALHO, 1987, p. 17-18 – aspas do autor).

Contudo, se até aqui podemos delimitar o contexto que explica a apatia popular e as dificuldades de adaptação às transformações históricas no período que marca o início da República, também é possível encontrar os traços constitutivos de aversão popular frente ao novo regime. Isto porque, conforme Carvalho, (1987), a substituição de um modelo político por outro ocorreu quando o Império gozava, muito provavelmente – e, em certo sentido, paradoxalmente –, de alta popularidade entre as camadas mais baixas

37 Uma das causas apontadas por Furtado (1959) para a decadência da indústria do açúcar é a inversão do

capital voltado a esse setor para Cuba que, politicamente independente, passou a gozar de privilégio no mercado, sobretudo na relação comercial com os Estados Unidos da América.

da sociedade brasileira, sobretudo, devido à alforria dos negros que, como vimos recentemente em Gomes (2010), compunham significativa parcela da população do país, à época.

Entretanto, se, ao passo que essa ilusão de liberdade e reconhecimento38 aproximou a população que compunha a base da pirâmide social brasileira da monarquia, por outro contribuiu para a aversão à República o fato de que, nos primeiros anos do novo regime, sobretudo no mandato de Floriano Peixoto, havia uma espécie de reação governista contra as camadas mais pobres39, ou seja, negros, moradores de cortiços e prostitutas40, por exemplo, visando atender às expectativas das novas elites, que dependiam de uma determinada ordem para desenvolver suas propostas mercantis (CARVALHO, 1987). De igual modo, para Costa (1987, p. 314 – colchetes nossos), o prestígio da monarquia foi mais ligado à aversão à República que à alforria dos negros:

O fato de não haver sido a República uma aspiração popular se deve menos ao amor e respeito pela Monarquia do que ao conteúdo vago do programa do Partido [Republicano], que não consultava os interesses populares, não traduzia reivindicações de caráter econômico, não tocava nos problemas da terra ou do trabalho, nem atendia às reivindicações burguesas.

Independente da questão que envolve a relação de proximidade entre a população – sobretudo escravos libertos – e a monarquia, fato é que a República, nos seus passos iniciais, não foi, ao carregar heranças do período colonial e do Império, caracterizada

38 Tratamos aqui a alforria dos escravos como ilusão porque tal não se deu em razão de um respeito às

liberdades dentro dos moldes teóricos do liberalismo, mas por uma condição econômica favorável a essa iniciativa, em articulação semelhante ao cálculo hobbesiano que fez os colonizadores escravizarem os índios, posteriormente marginalizá-los e substituí-los pelo braço negro e, através das Bandeiras, inverter essa lógica quando da ocupação dos holandeses em locais considerados estratégicos para o mercado escravagista. Conforme Costa (1987), mesmo com a intenção das elites agrárias que promovem a passagem da Colônia ao Império, o século XIX é marcado, também no Brasil, pela substituição do capitalismo comercial pelo industrial. A escravidão, nesse sentido, seria um entrave ao desenvolvimento dessas mesmas elites que, acomodando-se ao novo modelo, foram, aos poucos, substituindo a mão de obra escrava pelo imenso contingente de imigrantes europeus. Além disso, merece destaque nesse cenário a dificuldade em importar negros, devido à proibição inglesa em relação ao tráfico de escravos, em 1850. Ou seja, com quase meio século de atraso em relação à nova conjuntura mundial, o Brasil alforriou seus escravos ao perceber que a escravidão, do ponto de vista econômico, não era mais vantajosa.

39 “João do Rio verificou, ao visitar a Casa de Detenção, que, ‘Com raríssimas exceções, que talvez não

existiam, todos os presos são radicalmente monarquistas. Passadores de moedas falsas, incendiários, assassinos, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, são ferrenhos apóstolos da restauração’. [...] Essa extraordinária revelação confirma o abismo existente entre os pobres e a República e abre fecundas pistas de investigação sobre um mundo de valores e ideias radicalmente distinto do mundo das elites e do mundo dos setores intermediários” (CARVALHO, 1987, p. 31 – destaque do autor).

40 Carvalho (1987) encontra exemplos na literatura brasileira para ilustrar o descontentamento dessa

parcela da população em relação à República, citando, por exemplo, o escritor Lima Barreto e sua obra. Entretanto, convém ressaltar que tal sentimento antirrepublicano parece não ter sido exclusivo ao Brasil junto às classes populares. Em Os Maias, obra talvez de maior expressão do realismo literário português, seu autor, Eça de Queiroz (2005), traz na prostituta Consuelo uma fervorosa defensora da monarquia.

pela ampliação da cidadania, favorecendo o distanciamento de significativa parcela da população:

O peso das tradições escravista e colonial obstruía o desenvolvimento das liberdades civis [...] Os acontecimentos políticos eram representações em que o povo comum aparecia como espectador ou, no máximo, como figurante. Ele [o povo] se relacionava com o governo seja pela indiferença aos mecanismos oficiais de participação, seja pelo pragmatismo na busca de empregos e favores, seja, enfim, pela reação violenta quando se julgava atingido em direitos e valores por ele considerados extravasantes da competência do poder. Em qualquer desses casos, uma visão entre cínica e irônica do poder, a ausência de qualquer sentimento de lealdade, o outro lado da moeda da inexistência de direitos. A lealdade era possível em relação ao paternalismo monárquico, mais de acordo com os valores da incorporação, não em relação aos valores do liberalismo republicano (CARVALHO, 1987, p. 162-163 – colchetes nossos).

Assim, nos primeiros passos do novo regime, há uma espécie de continuísmo em relação à questão da cidadania – ou a falta dela. Merece destaque, nesse sentido, a lição de Sales (1992, p. 28 – parênteses e aspas da autora):

Quando, na passagem do século, aboliu-se a escravidão e implantou-se a república em nosso país, o domínio do liberalismo enquanto doutrina pouco ou nada contribuiu para a instauração de direitos elementares. O liberalismo dos senhores de terra neste país, como bem afirma Weffort (1985)41, sempre

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