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As faces do diabo na obra de um bruxo: uma releitura do diabo machadiano

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Academic year: 2021

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1 AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO:

UMA RELEITURA DO DIABO MACHADIANO.

Dissertação, na área de Teopoética, na linha de pesquisa TEXTUALIDADES HÍBRIDAS submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Literatura da

Universidade Federal de Santa Catarina (PPGLit/UFSC), como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz.

Florianópolis 2019.

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Leandro Henrique Scarabelot Campos de Pieri

AS FACES DO DIABO NA OBRA DE UM BRUXO: UMA RELEITURA DO DIABO MACHADIANO.

Esta Dissertação/Tese foi julgada adequada para obtenção do Título de Mestre em Literatura, área de concentração em Textualidades Híbridas, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em

Literatura.

Florianópolis, 18 de fevereiro de 2019. ________________________ Prof.ª Dr.ª Patrícia Peterle Figueiredo Santurbano

Coordenadora do Curso Banca Examinadora:

Orientadora: __________________________________ Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz

UFSC Membros:

__________________________ ______________________________ Prof.ª Dr.ª Silvana de Gaspari Prof.ª Dr.ª Tânia Regina Oliveira Ramos

UFSC (Presidente) UFSC

__________________________ ______________________________ Prof. Dr. Eli Brandão Prof. Dr. José Ernesto de Vargas

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Dedico esta dissertação às grandes mulheres de minha vida: Alvina Cechinel Scarabelot, minha bisavó; Lourdes Scarabelot Campos, minha avó; Viviane Scarabelot Campos, minha mãe; Salma Ferraz, minha orientadora; Marina Coelho Santos, minha amada.

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AGRADECIMENTOS

Meu agradecimento é direcionado a todas e todos que me auxiliaram ao longo desta grande jornada que venho trilhando desde a graduação. Sem vocês, podem ter certeza de que não teria conquistado nem a metade daquilo que agora me creio possuidor. A todos vocês, meus sinceros agradecimentos.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha família: - minha mãe, Viviane Scarabelot Campos, que sempre me auxiliou nos momentos mais difíceis;

- minha avó, Lourdes Scarabelot Campos, por sempre incentivar suas filhas e netos ao estudo;

- minha bisavó, Alvina Cechinel Scarabelot, pelo ―dinheirinho pra comprar um lanche na rua‖ que me dava na época em que ainda não tinha a bolsa de estudos.

Em segundo lugar, à professora Salma Ferraz, por absolutamente tudo que fez por mim, seja na época da graduação seja agora no período do Mestrado.

Em terceiro lugar, à CAPES, pela bolsa concedida no segundo ano do Mestrado, a qual me possibilitou não apenas a compra de novos livros para a minha dissertação, mas também o tempo ocioso, tão necessário para uma pesquisa séria e comprometida.

Em quarto lugar, ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da UFSC, tanto pela oportunidade de fazer parte do grupo discente, quanto pelo quadro de excelentes professoras e professores que disponibiliza aos seus alunos.

Em quinto lugar, à professora Telma Scherer e ao professor Stélio Furlan, pelos conselhos e indicações bibliográficas que me deram em minha qualificação.

Em sexto lugar, à professora Tânia Regina O. Ramos e ao professor Eli Brandão, por aceitarem participar de minha banca.

Em sétimo lugar, o último e mais importante, à Marina Coelho Santos, minha preciosa namorada, minha doce amada, por todo o apoio que me deu, por todas as vezes em que aguentou minhas crises existenciais e lamentações, meu medo e desespero; por todas as vezes que me motivou; pelos momentos agradáveis que passamos juntos fazendo nossas leituras; pelas nossas conversas, nossos diálogos sobre literatura e filosofia que sempre me levam a novas reflexões; enfim, por tudo o que vivemos.

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A um Bruxo, Com Amor Em certa casa da Rua Cosme Velho (que se abre no vazio) venho visitar-te; e me recebes na sala trastejada com simplicidade onde pensamentos idos e vividos perdem o amarelo, de novo interrogando o céu e a noite. Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro. Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada, uma luz que não vem de parte alguma pois todos os castiçais

estão apagados. Contas a meia-voz maneiras de amar e de compor os ministérios e deitá-los abaixo, entre malinas e bruxelas. Conheces a fundo a geologia moral dos Lobo Neves e essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para ciumentos. E ficas mirando o ratinho meio cadáver com a polida, minuciosa curiosidade de quem saboreia por tabela o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador. Olhas para a guerra, o murro, a facada como para uma simples quebra da monotonia universal e tens no rosto antigo uma expressão a que não acho nome certo (das sensações do mundo a mais sutil): volúpia do aborrecimento? ou, grande lascivo, do nada? O vento que rola do Silvestre leva o diálogo, e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco, tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná, mostra que os homens morreram. A terra está nua deles. Contudo, em longe recanto, a ramagem começa a sussurrar alguma coisa que não se estende logo e parece a canção das manhãs novas. Bem a distingo, ronda clara: é Flora, com olhos dotados de um mover particular entre mavioso e pensativo; Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);

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Virgília, cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida; Mariana, que os tem redondos e namorados; e Sancha, de olhos intimativos; e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora, o mar que fala a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina e das chinelinhas de alcova de Conceição. A todas decifrastes íris e braços e delas disseste a razão última e refolhada moça, flor mulher flor canção de manhã nova... E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe) o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica entre loucos que riem de ser loucos e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram. O eflúvio da manhã, que o pede ao crepúsculo da tarde? Uma presença, o clarineta, vai pé ante pé procurar o remédio, mas haverá remédio para existir senão existir? E, para os dias mais ásperos, além da cocaína moral dos bons livros? Que crime cometemos além de viver e porventura o de amar não se sabe a quem, mas amar? Todos os cemitérios se parecem, e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida apalpa o mármore da verdade, a descobrir a fenda necessária; onde o diabo joga dama com o destino, estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas. Um som remoto e brando rompe em meio a embriões e ruínas, eternas exéquias e aleluias eternas, e chega ao despistamento de teu pencenê O estribeiro Oblivion bate à porta e chama ao espetáculo promovido para divertir o planeta Saturno. Dás volta à chave, envolves-te na capa, e qual novo Ariel, sem mais resposta, sais pela janela, dissolves-te no ar. (Carlos Drummond de Andrade)

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RESUMO

O presente estudo visa investigar, em alguns textos de Machado de Assis, uma importante figura que faz parte do imaginário e da cultura ocidental, a saber, o Diabo. Ao abordar este ser dentro da obra do Bruxo do Cosme Velho, nosso intuito é observá-lo enquanto personagem literária. Para tal, propomo-nos a efetuar uma releitura de alguns escritos do autor de Dom Casmurro em que o Diabo figure explicitamente como personagem, tais como os contos ―A igreja do Diabo‖, ―Adão e Eva‖, a crônica do dia 5 de outubro de 1885, situada na série Balas de Estalo, a crônica ―τ Sermão do Diabo‖, publicada em A Semana, e o capítulo IX do romance Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. σossos objetivos com este estudo são: i) investigar as características utilizadas por Machado de Assis para descrever o Diabo em seus textos; ii) comparar o Diabo machadiano com o Diabo de alguns outros autores para, desta forma, perceber suas semelhanças e diferenças, e, assim, situá-lo dentro de uma tradição; iii) desdobrar alguns possíveis sentidos para esta personagem dentro de sua obra.

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ABSTRACT

The present study aims to investigate, in some texts of Machado de Assis, an important figure that is part of Western imagery and culture, namely, the Devil. In addressing this being within the work of the Bruxo do Cosme Velho, our intention is to observe him as a literary character. For this, we propose to re-read some of the writings of the author of Dom Casmurro in which the Devil explicitly figures as a character, such as the short-stories "A igreja do Diabo" and "Adão e Eva"; the chronicle of October 5, 1885, located in the series Balas de Estalo, the chronicle "O Sermão do Diabo", published in A Semana, and the IX chapter of the novel Dom Casmurro, titled "A Ópera". Our objectives with this study are: i) to investigate the characteristics used by Machado de Assis to describe the Devil in his texts; ii) compare the Machado‘s Devil with the Devil of some other authors in order to perceive their similarities and differences, and thus situate him in a tradition; iii) unfold some possible meanings for this character within his work.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01: Diabo. ... 40 Figura 02: Diablo. ... 40 Figura 03: Devil. ... 41 Figura 04: Teufel. ... 41 Figura 05: Pã. ... 42 Figura 06: Pã. ... 43

Figura 07: Pacto de Judas. ... 45

Figura 08: Detalhe de O Juízo Final. ... 46

Figura 09: Inferno. ... 48

Figura 10: A queda de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ... 49

Figura 11: Detalhe de O Juízo Final. ... 50

Figura 12: Miguel e o Dragão. ... 51

Figura 13: São Miguel e o dragão . ... 51

Figura 14: São Miguel e o Diabo. ... 52

Figura 15: Miguel e Lúcifer. ... 53

Figura 16: Satã triunfando sobre Eva. ... 57

Figura 17: Satã cobrindo Jó com úlceras malignas. ... 57

Figura 18: O grande Dragão Vermelho e a dama vestida de Sol. ... 58

Figura 19: O grande Dragão Vermelho e a Besta do oceano. ... 59

Figura 20: A revolta de Lúcifer e dos anjos rebeldes. ... 62

Figura 21: Satan. ... 63

Figura 22: Revolta do Inferno contra o Céu. ... 63

Figura 23: O anjo do mal. ... 65

Figura 24: O gênio do mal. ... 66

Figura 25: El ángel caído. ... 67

Figura 26: Detalhe de Lúcifer, de Botticelli. ... 144

Figura 27: Lúcifer, William Blake. ... 145

Figura 28: Morada de Lúcifer, de Gustave Doré. ... 146

Figura 29: Capa Ed. Ática. ... 151

Figura 30: Capa Ed. Objetivo. ... 151

Figura 31: Capa Porto Editora. ... 152

Figura 32: Capa Ed. Brasiliense . ... 152

Figura 33: Ilustração do Diabo. ... 152

Figura 34: Satã encontra sua prole, Pecado e Morte, nos portões do Inferno, de John B. Medina (1688). ... 161

Figura 35: Satã despertando os anjos rebeldes, de William Blake (1808). ... 162

Figura 36: Satã no Éden, de Gustave Doré (1866). ... 163 Figura 37: Mefistófeles voando sobre Wittenberg, de E. Delacroix

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(1828). ... 168

Figura 38: Wagner, Fausto e o cão negro, de Delacroix. ... 169

Figura 39: Fausto e Mefistófeles, de Delacroix. ... 172

Figura 40: Fausto, Margarida e Mefistófeles, de Delacroix. ... 173

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de Machado de Assis. ... 26

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SUMÁRIO

1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO ... 21

2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica ... 37

2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖ do Tinhoso. . 38

2.2. Revisão bibliográfica. ... 69

2.2.1 Falando em Machado... ... 72

2.2.1.1 Um homem célebre ... 72

2.2.1.2 Na selva da crítica. ... 81

2.2.2 Falando no Diabo... ... 90

2.3 Potencialidades da figura do Diabo na obra machadiana ... 97

3 CAPÍTULτ II: Com o Diabo no corpus… ... 101

3.1 Contos do Capeta: ... 102

3.1.1 ―Vá, pois, uma igreja...‖ – A Igreja do Diabo (1883) ... 102

3.1.2 ―Foi o Diabo que criou o mundo‖ – Adão e Eva (1885) ... 108

3.2 Crônicas infernais: ... 118

3.2.1 Um breve caso de possessão – Crônica de 5 de outubro de 1885 ... 118

3.2.2 O Evangelho segundo o Diabo – O Sermão do Diabo (1892) ... 122

3.3 Romance diabólico: ... 124

3.3.1 O mundo inteiro é um palco – Dom Casmurro. (1899) . 124 3.4 Uno, múltiplo ou múltiplo e comum? ... 129

4 CAPÍTULO III: Machado de Assis e a tradição diabólica. ... 133

4.1 O Diabo em autores da tradição – ―Pois o demo não é de todos??!‖ ... 137

4.1.1 ―Lo‟mperador del doloroso regno‖ – O Lúcifer de Dante. ... 137

4.1.2 Um Diabo zombeteiro – Gil Vicente e o Auto da Barca do Inferno ... 146

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4.1.3 Melhor ser rei no inferno do que servir no céu – O Satã de

John Milton ... 153

4.1.4 O gênio que sempre nega – O Mefistófeles goetheano . 163 4.1.5 Pedagogia satânica – O Satã de Macário ... 177

4.2 Uma (con)fusão dos Diabos… ... 183

5 Capítulo IV: Faces do Diabo na obra de Machado de Assis. ... 191

5.1 O Diabo tem sentido? ... 192

5.1.1 Narrativas da Criação: ... 193

5.1.2 Panaceias da humanidade. ... 200

5.1.3 O ethos diabólico. ... 206

6 Απο ά υψη: Juízo Final e απο α ά α ς. ... 229

REFERÊNCIAS ... 235

ANEXO A – A IGREJA DO DIABO ... 245

ANEXO B – ADÃO E EVA ... 253

ANEXO C – 5 DE OUTUBRO DE 1885 ... 259

ANEXO D – O SERMÃO DO DIABO ... 261

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1 NO PRINCÍPIO ERA... A INTRODUÇÃO

À barca, à barca, houlá! Que temos gentil maré!

(Gil Vicente)

Há um meio certo de começar uma dissertação de forma não trivial. É parodiar o escritor que se estuda. Faz-se isto, e aponta-se a paródia. Eis que não se tem mais a dura realidade da página em branco, pois, a partir daí, o gelo já foi quebrado e se pode prosseguir com as explicações. Fácil, não? Em verdade vos digo que nem tanto. Pode ser que a tática não funcione e, assim, lá se foi a entrada triunfal. Mas, convenhamos: não é a todos que cabe esta honra, certo? Em todo caso, ao menos o gélido branco da página já se extinguiu.

Conforme o título deixa transparecer, este estudo visa efetuar uma releitura do Diabo machadiano. Mas, por que estudar esta controversa personagem da cultura ocidental? E, ainda por cima, por que dentro da obra de um de nossos mais célebres escritores? Será que tudo que se poderia dizer sobre ela já não foi dito e redito pelos moralistas do mundo? Estas são questões que, por ora, deixo em aberto, mas que espero dar conta ao longo deste estudo. Neste momento, mesmo que não seja fundamental, parece interessante mencionar que essa ideia de releitura vem sendo não só pensada, mas também trabalhada desde a minha monografia1, na qual, visando perceber semelhanças e diferenças,

efetuei uma comparação entre o Diabo descrito na Bíblia e na Tradição Católica, mais especificamente no Catecismo da Igreja Católica, com aquele que foi descrito por Machado de Assis em dois contos seus, a saber, ―Adão e Eva‖ e ―A igreja do Diabo‖. σeste estudo, entretanto, embora ainda exista uma preocupação semelhante, o intuito é outro. Explico-me.

Enquanto na monografia a comparação era feita em relação à Bíblia e à Tradição Católica para buscar aquilo que o Bruxo do Cosme Velho2 retirava, mantinha ou acrescentava nesta personagem, aqui, em contrapartida, a comparação será feita dentre os próprios escritos machadianos ou, para ser mais preciso, dentre aqueles em que o Diabo

1

PIERI, Leandro H. S. C. de. O Bruxo e o Tinhoso: uma análise do Diabo em dois contos machadianos. Florianópolis, 2016.

2

O epíteto Bruxo do Cosme Velho vem por conta da homenagem prestada a Machado de Assis por Carlos Drummond de Andrade em seu poema intitulado

(22)

figure como personagem substancial, isto é, nos textos em que ele ganhe protagonismo ou destaque. Outra diferença que se faz presente é o fato de que aqui também se busca uma comparação entre o(s) Diabo(s) machadiano(s)3 e aqueles que estão inseridos naquilo que eu gostaria de

chamar de ―tradição diabólica‖, expressão que pretendo utilizar neste estudo com a finalidade de abarcar a grande quantidade de autores/artistas da cultura ocidental cujo Diabo, de alguma forma ou em algum momento, se fez presente em sua obra.

À guisa de exemplo de autores dessa tradição, é possível mencionar nomes como: Dante Alighieri (1265-1321), Gil Vicente (1465-1536), N. Maquiavel (1469-1527), C. Marlowe (1564-1593), W. Shakespeare (1564-1616), Calderón de la Barca (1600-1681), John Milton (1608-1674), Walter Scott (1771-1832), Marquês de Sade (1740-1814), William Blake (1757-1827), J. W. von Goethe (1749-1832), Irmãos Grimm (Jacob: 1785-1863 e Wilhelm: 1786-1859), E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Lord Byron (1788-1824), Victor Hugo (1802-1885), G. Flaubert (1821-1880), C. Baudelaire (1821-1867), Edgar A. Poe (1809-1849) Alexandre Herculano (1810-1877), Eça de Queiroz (1845-1900), Álvares de Azevedo (1831-1852), Machado de Assis (1839-1908), etc. Isso falando apenas de literatura e de autores canônicos ocidentais que escreveram até a data em que Machado de Assis viveu4. Se ampliarmos o escopo desta tradição e mencionarmos os

3 Deixo aberta a possibilidade de uso do singular ou do plural por conta da

hipótese de que o Diabo machadiano, isto é, a personagem que aparece em vários escritos de Machado de Assis com o nome de ―Diabo‖ não seja exatamente a mesma em todos eles. Abordarei este assunto um pouco mais adiante.

4 Para conhecer (ou lembrar de) outros autores que também poderiam ser

incluídos nesta lista, vale a pena conferir a antologia de contos organizada por Raimundo Magalhães Junior em 1974, intitulada O Diabo Existe? – As melhores histórias diabólicas de todos os tempos, dividida em dois volumes, na qual ele nos apresenta mais de 40 contos de diversos autores cujo tema seja o Diabo ou alguma manifestação demoníaca. Além disso, vale dizer que, caso fôssemos ultrapassar a época em que viveu Machado de Assis, poderíamos ampliar ainda mais este quadro citando autores como Paul Valéry (1871-1945), Thomas Mann (1875-1955), José Saramago (1922-2010) – para mencionar os europeus –, além de J. Guimarães Rosa (1908-1967), Rubem Braga (1913-1990), Luís Fernando Veríssimo (1936- ), Ariano Suassuna (1927-2014), etc. – para mencionar alguns brasileiros. Saindo do âmbito estritamente ocidental, poderíamos lembrar-nos de autores russos como F. Dostoievski (1821-1881), L. Tolstói (1828-1910), L. Andreiev (1871-1919), M. Bulgákov (1891-1940), etc.

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artistas plásticos/visuais que nos legaram alguma imagem do Diabo, seja na pintura seja na escultura, teremos nomes como: Giotto di Bondone (1266-1337), Fra Angelico (1395-1455), Sandro Botticelli (1445-1510), Antonio Pollaiuolo (1433-1498), Rafael Sanzio (1483-1520), Lorenzo Lotto (1480-1557), William Blake (1757-1827), Eugène Delacroix (1798-1863), Gustave Doré (1832-1883), Antoine Wiertz (1806-1865), Joseph Geefs (1808-1885), Guillaume Geefs (1805-1883), Ricardo Bellver (1845-1924), etc. Faz-se necessário explicar que quando utilizo a expressão ―tradição diabólica‖ não quero sugerir ou afirmar que o Diabo de um autor seja a causa/efeito de outro ou que estes autores dependam uns dos outros para concebê-lo, embora possam influenciar uns aos outros, mas no sentido de que todos têm algo em comum, isto é, que o Diabo está presente, de alguma forma, em suas obras.

Disse acima que pretendo efetuar uma releitura do Diabo machadiano e também o chamei de ―personagem‖. Faço isto tendo em vista que, aqui, não está em questão o estatuto ontológico do Diabo, isto é, se ele existe ou não existe, esta questão deixamos para Riobaldo5, nosso Fausto sertanejo. Sua existência, pelo menos naquilo que concerne a este estudo, é levada em conta a partir daquela que recebe no papel, e para ser ainda mais preciso, naquela em que aparece especificamente como um ser ficcional, como personagem literária6. Para um estudo mais aprofundado sobre o Diabo em alguns autores da literatura brasileira contemporânea, cf. a dissertação de José Oleriano Monteiro Filho, intitulada O Diabo tem três caras: as três faces do Diabo apresentadas em cinco contistas brasileiros contemporâneos (2012); sobre o Diabo na literatura nordestina de cordel, a dissertação de Estela Ramos de Souza de Oliveira, intitulada O Diabo ridicularizado na literatura de folhetos do nordeste (2013); sobre o Diabo nos contos dos irmãos Grimm, a tese de doutoramento de Filipe Marchioro Pfützenreuter, intitulada Entre o utilitário-pedagógico e o

poético-emancipatório: O Diabo dos irmãos Grimm e suas projeções sobre o leitor (2014); e, finalmente, para um estudo sobre o Diabo na literatura russa, a tese de doutoramento (em andamento), de Patrícia Leonor Martins, atualmente intitulada O Diabo fala russo. Também é válido mencionar que todos estes estudos foram orientados pela Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz.

5 Personagem/narrador da obra Grande Sertão: Veredas (1956), de J. Guimarães

Rosa.

6 Faço este esclarecimento, pois não se pode ignorar sua existência como conceito teológico, em sua condição de explicação para a existência do mal. Até porque, conforme aponta Jaziel Guerreiro Martins em sua Biografia do Diabo

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Sendo assim, antes de seguir adiante, parece pertinente explicar de forma mais clara aquilo que entendo por ―personagem‖.

Seguindo a indicação de Beth Brait em seu livro intitulado A personagem (2006), eu compreendo a personagem como ―um habitante da realidade ficcional‖, cuja matéria pela qual é feita e cujo espaço em que habita ―são diferentes da matéria e do espaço dos seres humanos‖, mas que, no entanto, ―mantém um íntimo relacionamento‖ entre essas duas realidades7. De forma semelhante, Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários (1988), indica que o termo personagem designa

no interior da prosa literária (conto, novela e romance) e do teatro, os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos: se estes são pessoas reais, aqueles são ―pessoas‖ imaginárias; se os primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço arquitetado pela fantasia do prosador. (MOISÉS, 1988, p. 396 – grifos meus)

Cabe salientar que, embora costumeiramente, devido à própria etimologia do termo, confundam-se os termos ―pessoa‖ e ―personagem‖, eles não designam a mesma coisa, tendo em vista que o primeiro designa um ―ser vivo‖ e o segundo um ―ser ficcional‖8. Conforme

aponta Beth Brait, ―o problema da personagem [literária] é, antes de tudo, um problema linguístico, pois a personagem não existe fora das palavras‖9; no entanto, conforme dito, embora possuam diferentes

realidades, ambos, ainda assim mantém um íntimo relacionamento, pois, ―as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção‖10. Assim, para a autora,

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí todos os tempos encontrou para explicar sua própria maldade e ignorância, medos e ódios, invejas e violências.‖ (MARTIσS, 2015, p. 14)

7 Cf. BRAIT, 2006, p. 11-12. 8

Cf. MOISÉS, 1988, p. 396-397.

9 BRAIT, 2006, p. 11.

(25)

pinçar a independência, a autonomia e a ―vida‖ desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço habitado pelas personagens, que poderemos, se útil e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto. (BRAIT, 2006, p. 11) O excerto acima é interessante e pertinente para este estudo por dois motivos: i) por indicar a forma pela qual se deve observar uma personagem, isto é, encarar frente a frente ―a construção do texto‖ e a forma como o escritor ―encontrou para dar forma às suas criaturas‖, e, somente a partir daí, tentar encontrar sua autonomia, sua independência, sua ―vida‖; e ii) por realçar que, ―se útil e necessário‖, também é possível ―vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto‖. Menciono isso, pois este estudo além de tentar proceder pela forma indicada por Brait, também tem a intenção apontar a utilidade e necessidade de se pensar o Diabo machadiano tanto em relação a, como também enquanto representação de uma realidade exterior ao texto, conforme será explicitado mais adiante.

Seguindo nessa direção, pode-se dizer que a novidade está em que além de investigar o Diabo como personagem literária dentro de alguns textos de Machado de Assis, isto é, de que forma ele é apresentado ao leitor, com suas características e traços peculiares, o presente estudo também visa desdobrar seus possíveis sentidos dentro deles. Para tal, conforme mencionado, busquei encontrar dentro dos escritos de nosso Bruxo do Cosme Velho aqueles textos em que o Diabo aparecesse de forma mais substancial, isto é, como uma personagem que recebesse algum protagonismo ou destaque. Esta delimitação foi necessária, pois, por incrível que pareça, o Diabo é constantemente mencionado nos escritos do autor de Dom Casmurro. Disse ―por incrível que pareça‖, pois para aqueles que não se debruçaram sobre este aspecto da literatura machadiana, o Diabo pode parecer uma figura esporádica, uma personagem que não é muito presente e que teria aparecido em apenas dois textos seus, a saber, ―A igreja do Diabo‖ e ―τ sermão do Diabo‖. σo entanto, ao reler as obras machadianas e efetuar um levantamento mais rigoroso, foi possível constatar que ele está bastante presente em seus escritos, seja como menção direta, alusão ou figura de linguagem. Apenas para dar uma ideia ao leitor, pode-se dizer que o Diabo ―aparece‖ nos seguintes escritos: a) Romances: Memórias

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Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires; b) Contos: ―τ anjo Rafael‖, ―A igreja do Diabo‖, ―Adão e Eva‖, ―τ sermão do Diabo‖; c) Crônicas: uma de 5 de outubro de 1885 (Balas de Estalo) e a outra de 5 de abril de 1888 (Bons Dias!); d) Poema: ―τ Casamento do Diabo‖11. Para apresentar tais dados de

forma mais clara, efetuei uma contagem e preparei uma tabela acerca das menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de nosso escritor.

Tabela 01: Menções do vocábulo ―Diabo/diabo‖ e de outros ―similares‖ nos romances de Machado de Assis.

Obra/ Nome Diabo/ diabo Lúcifer Satanás Demô-nio pobre-diabo Tinhoso trosOu-12 Total

Ressurreição 1 X X X X X X 1 A mão e a luva 1 X X 2 X X X 3 Helena X X X 1 X X 1 2 Iaiá-Garcia 2 X X X X X X 2 M.P.B.C. 21 X X X 2 X 2 25 Casa Velha 4 X X X 1 X X 5 Q. Borba 22 X X 2 5 X 1 30 D. Casmurro 12 X 6 X 2 X 2 22 Esaú e Jacó 14 X 2 X 1 X X 17 M. de Aires 11 X X X X X X 11 Total 88 X 8 5 11 X 6 118

Fonte: Obras Completas de Machado de Assis. 13

Note o leitor que, ao todo, foram encontradas 118 ocorrências. Caso deixemos a expressão ―pobre-diabo‖ de lado, ainda nos sobram por volta de 107 menções ao Tinhoso, e isso contando apenas nos romances de nosso autor. Dessas 107 menções, em λ6 delas o ―Coisa-Ruim‖ recebeu o nome ―próprio‖ (Diabo ou Satanás). Caso fôssemos

11 Raimundo Magalhães Jr. (1981, p. 191-193), no primeiro volume de sua

biografia sobre Machado de Assis, sugere que o poema seria uma imitação de um poema alemão, feita por Machado de Assis a partir da tradução de Henrique Fleiuss, e explica que ―o texto imitado não passava de uma cançoneta de Gustave σadaud‖.

12 Outros = diabólico (Helena e MPBC), endiabrado (Quincas Borba), diabrete

(Dom Casmurro), satânico (MPBC), satanista (Dom Casmurro), etc.

13 A contagem dos vocábulos e, por consequência, a elaboração da tabela foram

facilitadas pela disponibilidade das Obras Completas de Machado de Assis em formato digital; trabalho este que é fruto de uma parceria entre o Portal Domínio Público – a biblioteca digital do MEC – e o Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível no site < http://machado.mec.gov.br/index.php >. Acesso em: 14 jan. 2019.

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observar e contabilizar suas menções nos contos e crônicas, esse número provavelmente se mostraria ainda maior. No entanto, o objetivo aqui não é saber a quantidade de vezes que Machado de Assis menciona o Diabo em seus escritos; trouxe estes dados não apenas para apontar e justificar a relevância deste estudo, mas também para mostrar a necessidade de delimitação dos escritos machadianos diante da ubiquidade em que se mostra esta personagem.

Assim, de acordo com o critério estabelecido – isto é, o de escolher apenas os textos em que o Diabo apareça como uma personagem em posição de protagonismo ou destaque –, encontrei cinco textos, cinco escritos em que é possível observar esta característica. São eles: os contos: ―A igreja do Diabo‖, de 1κκ3, e ―Adão e Eva‖, de 1885; as crônicas: do dia 05 de outubro de 1885, situada na série Balas de Estalo, e ―τ sermão do Diabo‖, de 04 de setembro de 1κλ2; e, por fim, o capítulo IX de Dom Casmurro, intitulado ―A Ópera‖. Dito isto, cabe explicitar de forma mais clara, porém sucinta, quais são os objetivos deste estudo. De forma geral, o objetivo aqui é de estudar o Diabo enquanto personagem da obra de Machado de Assis. No entanto, dizer apenas isto é insuficiente, pois esta é apenas a base do edifício. Para delimitar melhor, é possível dizer que existem três objetivos principais, que, para prosseguir com a metáfora, são os pilares que sustentarão a estrutura.

Em primeiro lugar, o intuito é investigar de que forma o autor de Dom Casmurro descreve esta personagem, ou seja, de que forma Machado de Assis o apresenta ao leitor, quais são suas características. Essa investigação se faz pertinente na medida em que, se formos observar a história do ocidente, perceberemos que nem sempre o Diabo foi ―visto‖ da mesma forma. Neste sentido, vale trazer, mesmo que de forma bastante sintética, as constatações de quatro autores que confirmam essa afirmação e que, além disso, são, basicamente, os pilares de minha pesquisa acerca do Diabo. São eles: Luther Link, Robert Muchembled, Peter Stanford, Henry Ansgar Kelly14.

14 Além destes autores, também me baseio na tetralogia do historiador Jeffrey

Burton Russell, pioneiro nos estudos sobre o Diabo, e no livro de Carlos Roberto F. Nogueira, pioneiro nestes estudos feitos aqui no Brasil. Embora ambos sejam autores renomados, eles não constam especificamente como pilares desta pesquisa pelo fato de que o primeiro, embora tenha uma obra de bastante fôlego (quatro volumes), aborda o Diabo como uma personificação do Mal, seja ele de qualquer tipo, e por isso inclui outros tipos de manifestações maléficas como parte integrante de seu estudo. O segundo, por sua vez, é

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Em O Diabo: a máscara sem rosto (1998, p. 19), Luther Link vai argumentar sobre a ―descontinuidade da imagem do Diabo‖ ao trabalhar com as artes plásticas (pinturas e esculturas) do séc. IX ao XVI – aqui é preciso mencionar que, embora a iconografia de Jesus, de Maria e de outros também seja variável, diz Link, ela foi definida de forma mais precisa, enquanto que a do Diabo, nunca o foi. Além disso, ainda segundo este autor, ―[n]ossas ideias sobre o Diabo, embora não necessariamente sua imagem pictórica, derivam de três fontes: interpretações antigas do Novo Testamento, o herói rebelde criado por Milton e pela tradição literária romântica de Blake e Baudelaire e a tradição popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas.‖15.

R. Muchembled, em seu livro Uma história do Diabo: séculos XII-XX (2001), vai abordar como, ao longo de oito séculos, a figura de um Diabo mais humanizado, que poderia ser enganado, ludibriado e derrotado por cristãos espertos, vai se bifurcar em uma tradição que o aponta tanto como o soberano do Inferno quanto como uma besta imunda escondida nas entranhas de cada pecador; depois passa a ser apontado como o líder de seitas demoníacas, como a das feiticeiras dos sabbath‟s; em seguida, em como ele é reinterpretado pelos românticos na forma do grande rebelde; e, ainda, mais ou menos após o século XVIII, em como ele será cada vez mais interiorizado – ou seja, em como ele passa para dentro de cada indivíduo, seja dentro de si seja dentro do outro, isto é, daqueles que são considerados diferentes por determinado grupo (geralmente simbolizados por estrangeiros, comunistas, etc.).

Peter Stanford, em seu O Diabo: uma biografia (2003), trabalhando desde as antigas civilizações europeias até o século XX, argumenta que um esboço, um rascunho, um protótipo do Diabo cristão teria nascido com a tentativa dos povos egípcios, mesopotâmicos, cananeus (ou cananitas), gregos e persas de explicar o mal; teria entrado numa espécie de ―Jardim de Infância‖ com a cultura e as Escrituras hebraicas; em seguida, teria aparecido como um ―adolescente‖ no Segundo Testamento; depois, tornou-se o poderoso inimigo de Deus com as reinterpretações dos Pais da Igreja; e, por fim, seguiu sua trajetória sendo novamente reinterpretado conforme a necessidade, profícuo como introdução ao tema e como suporte, mas não especificamente como um pilar, tendo em vista que seus apontamentos são de cunho mais geral, não se aprofundando tanto nas questões. Para as referências completas, cf. a bibliografia ao final deste estudo.

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tornando-se sinônimo de todas as divindades e crenças rivais da cristandade.

Em seu Satã: uma biografia (2008), H. A. Kelly trabalha com a hipótese de que o Satã da Tradição Cristã é diferente do Satã/Diabo que é retratado na Bíblia, e para isso, ele começa sua trilha pelas Escrituras hebraicas, passa pelos livros apócrifos, segue pelo Segundo Testamento, comenta sobre a reinterpretação pelos Pais da Igreja, de suas novas reinterpretações pelas artes (literárias e plásticas), etc.

Ainda seguindo neste primeiro ponto, é preciso dizer que esta investigação se torna pertinente pelo fato de que, da forma como eu vejo, quando Machado de Assis utiliza o Diabo como uma personagem, ele nem sempre o faz da mesma forma. E não o faz da mesma forma em dois sentidos, tanto no de que sua descrição, isto é, as características que utiliza para a personagem não seriam as mesmas, quanto no de que o Diabo machadiano pode abarcar outros significados que aqueles convencionalmente abordados pela tradição teológica cristã, a saber, como um ser espiritual que renegou a Deus e que simboliza unicamente o Mal e tudo aquilo que nos impede de chegar a Deus16. Em meu juízo, essa possibilidade se torna uma probabilidade se levarmos em conta a interpretação e a argumentação de alguns estudiosos da obra machadiana, tais como John Gledson, Paul Dixon, etc. Estas constatações me levaram à hipótese de que o Diabo em cada um dos escritos machadianos não é exatamente o mesmo, e daí a possibilidade deixada em aberto (anteriormente e ainda agora) de não serem chamados de Diabo, mas de Diabos.

Em segundo lugar, o objetivo é comparar o(s) Diabo(s) machadiano(s) com outros Diabos explorados por outros autores daquilo que chamei de tradição diabólica. Dos inúmeros autores existentes, tive de optar por apenas cinco, tendo em vista que observar a todos seria uma tarefa (praticamente) infinita. Dentre os que foram mencionados, escolhi aqueles que, em minha visão, parecem ser os mais significativos, além de me serem os mais familiares, a saber, Dante Alighieri, Gil Vicente, John Milton, J. W. von Goethe e Álvares de Azevedo17. Outro motivo que me fez escolher estes autores para a comparação está no fato de que

16 Cf. CATECISMO Católico. 17

Os textos são, respectivamente, A Divina Comédia, O Auto da Barca do

Inferno, Paraíso Perdido, Fausto (Parte I) e Macário. Cabe ressaltar que, embora pareça uma tarefa imensa, ela não chega a ser tão grande assim, uma vez que meu intuito é levantar os traços da personagem de forma mais genérica, abordando suas principais características.

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Machado de Assis teria conhecido e lido as obras em que eles se utilizaram do Diabo como personagem, cabendo, portanto, uma comparação entre suas ―visões‖ acerca dele18.

Além disso, também se faz necessário esclarecer e frisar, no que tange às mencionadas obras desses autores, é que aqui não será feito um estudo exaustivo em relação ao personagem nelas apresentado, mas um levantamento geral sobre suas principais características a fim de efetuar uma comparação com as descrições machadianas do Diabo e, desta forma, perceber suas semelhanças e diferenças. Entendo que, mesmo trabalhando com apenas cinco autores, isso já parece uma tarefa enorme. No entanto, cabe reiterar que não me deterei em uma análise destas personagens, isto é, não pretendo colocá-las sobre a mesa de dissecação, esquartejá-las e observar suas partes. O intuito aqui será observá-las como ―modelos‖ e, assim, esboçar suas ―fisionomias‖, traçar um desenho, fazer um breve retrato para que se possa observar de forma mais acurada o que nosso escritor traz da tradição e no que ele se diferencia. Assim, pelo modo comparativo, ficará mais fácil de vislumbrar os possíveis diálogos e choques, laces e desenlaces, entranhamentos e estranhamentos que ocorrem com estas personagens. Essa comparação também é interessante pelo fato de que nos possibilitará perceber de forma mais clara a pluralidade nas representações de Machado de Assis para o Diabo, ou, dito de outra forma, para confirmar a hipótese de que não se trata de apenas um Diabo, mas de alguns.

Dito isto, podemos passar ao terceiro objetivo deste estudo, a saber, o desdobramento de alguns possíveis sentidos que o(s) Diabo(s) machadiano(s) pode(m) receber dentro de sua obra. Antes de tudo, é preciso esclarecer que o intuito aqui não é esgotar o sentido ou os sentidos que ele pode receber, mas sim, fugir daquele convencionalmente abordado pela tradição teológica cristã, e, a partir de outros olhares, isto é, a partir da Fortuna Crítica existente sobre os textos machadianos e sobre esta personagem dentro da obra de Machado de Assis, construir outra visão para ela. O interesse que subjaz a esse objetivo é o de buscar uma reflexão e uma possível explicação do porquê esses textos continuarem a nos tocar mesmo quando parecem

18 Dentre estes autores, o único que não consta na ―biblioteca de Machado‖ é

Álvares de Azevedo. No entanto, a partir de seus escritos como crítico literário é possível perceber e afirmar que Machado teve contato com sua obra. Baseio-me aqui na lista de livros catalogada por Jean Michel Massa e atualizada por Glória Viana (Cf. JOBIM (org.), 2008, p. 144-274).

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fazer referências a algo que não está mais ―aí‖. Menciono isto por conta de constatações como a de Luiz Costa Lima quando este afirma que ―a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade.‖19, bem como o fato

de que ―é sua poética que exige sua temporalização‖ 20, pois, sem essa

temporalização, ―desentendemos a presença da alegoria e concedemos a Machado o epíteto insosso de ‗o nosso primeiro clássico‘.‖ 21.

É evidente que em certa medida ele está com a razão, pois, sem essa temporalização, perdem-se algumas das sutilezas da obra machadiana, algumas de suas alegorias, e, principalmente, suas mais finas ironias, aquela pitadinha de sal que as deixa (ainda) mais saborosas. Mas, se fosse apenas por isso, não leríamos mais Machado de Assis. Suas narrativas já estariam ultrapassadas e seriam completamente enfadonhas, pois diriam respeito somente ao seu tempo e somente deleitariam aqueles que tivessem algum conhecimento histórico mais amplo, ou, pior, que vissem na obra do autor apenas um documento histórico e que buscassem nela somente apontamentos e explicações sobre sua época. No entanto, não é isso que ocorre. Machado de Assis é o nosso primeiro clássico, pois continua atual ainda hoje, pois continua a nos tocar. Além disso, força é dizer, quando o chamo de escritor clássico tenho em mente aquilo que Gadamer escreve em Verdade e Método I (2008) , a saber, quando afirma que um clássico é ―aquilo que se subtraiu às flutuações do tempo e do gosto‖, e quando completa sua afirmação explicando que ―[o] que nos leva a chamar algo de ‗clássico‘ é, antes, uma consciência do ser permanente, uma consciência do significado imorredouro, que é independente de toda circunstância temporal, uma espécie de presente intemporal contemporâneo de todo e qualquer presente.‖ 22. Essa explicação de

Gadamer, a meu ver, está em perfeita consonância com a sexta definição de Ítalo Calvino em seu texto ―Por que ler os clássicos?‖, na qual declara o seguinte: ―Um clássico é um livro23 que nunca terminou de

dizer aquilo que tinha para dizer.‖24. Sendo assim, chamar Machado de o

nosso primeiro clássico não é demérito algum. Pelo contrário, é dar a ele o que lhe é de direito. Precisamos, sim, dessa leitura histórica para

19 LIMA, 2011, p. 195. 20

LIMA, 2011, p. 220.

21 LIMA, 2011, p. 220 – grifo meu. 22

GADAMER, 2008, p. 381.

23 Ou texto, se quisermos aumentar o escopo. 24 CALVINO, 1993, p. 11.

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não perder de vista o horizonte de expectativas que estava em questão quando ele escreveu seus textos, mas, também precisamos lembrar que eles, os textos, transcendem sua época e que quem os lê atualmente, mesmo sem esse fundo histórico, ainda é tocado, ou, para utilizar mais uma das definições de Calvino, seus textos ―persiste[m] como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.‖ 25.

Feitas estas considerações, gostaria de abrir dois breves parênteses antes de explicar de que forma se constituirá a estrutura formal desta dissertação. Um deles concerne ao título deste estudo; o outro, à forma como venho me referindo e como irei me referir à personagem que será estudada. Começarei por este último ponto.

Sobre a forma como vou me referir à personagem, é preciso esclarecer que os termos para designar o Diabo provêm de uma tradição com diferentes interpretações; menciono isso, pois, os livros da Bíblia – tanto do Primeiro (ou Antigo) quanto do Segundo (ou Novo) Testamento – não foram escritos ao mesmo tempo e, por isso, cada livro bíblico já seria uma reinterpretação (a sua maneira) da tradição hebraica. Vale dizer que, se o leitor for procurar no Primeiro Testamento bíblico, não encontrará o Diabo propriamente dito. Terá, sim, uma personagem que é chamada de STN26 (adversário), termo este que, segundo o professor e

pesquisador Henry A. Kelly (2008, p. 11), é geralmente utilizado como um substantivo comum, e não como um nome próprio. Embora o Diabo do cristianismo tenha ―se baseado‖ no STN hebraico, os dois só se tornam o mesmo ser posteriormente. Em outras palavras, o Diabo, na forma como se consolidou no imaginário ocidental, é uma invenção posterior, uma interpretação cristã.

Sendo assim, também é pertinente mencionar que, etimologicamente27 falando, STN é um termo hebraico que significa adversário; que diabolôs – de onde provém o nosso termo Diabo – é a tradução deste termo para o grego e significa acusador ou difamador; que daemon, um termo que também é grego, refere-se a ―espíritos mediadores entre deuses e homens‖, os quais podem ser tanto bons quanto maus (vide o exemplo do daemon socrático); e que, por fim, o

25 CALVINO, 1993, p. 15. 26 Leia-se ―Shatan‖. 27

Sobre a etimologia dos principais nomes do Diabo é possível consultar os livros: O Diabo: a máscara sem rosto (1998), de Luther Link, e Satã: uma biografia (2008), de Henry A. Kelly. Para estes e outros nomes relacionados ao Diabo (Lillith, Azazel, etc.) conferir o Manual de demonologia (2011), de Carlos Augusto Vailatti.

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termo Lúcifer provém do latim e significa o portador da luz, o qual, a princípio, não se referia ao anjo que se rebela contra Deus, mas a um rei babilônico em uma passagem de Isaías (14: 12). De acordo com Luther Link, professor de história da arte,

Historicamente, a sequência dos três termos que conhecemos bem é: Satã, Diabo, Lúcifer, embora ao longo das eras estudiosos e escritores frequentemente tenham imaginado a sequência de outras maneiras. Chaucer, por exemplo, julgava que o anjo Lúcifer, depois de sua queda do Céu, tornou-se Satã. Teólogos medievais e renascentistas não apresentam um uso sistemático ou uniforme dos três termos. Além disso, embora todos os três refiram o mesmo ser, no uso inglês comum (e também em alemão, francês e italiano), esses termos ora são intercambiáveis, ora não. (LINK, 1998, p. 13)

Sendo assim, para facilitar a compreensão, darei preferência ao uso do termo Lúcifer como nome do anjo que se rebela contra Deus (e aqui independe se o seu pecado foi orgulho, concupiscência ou inveja em relação ao homem28), ou seja, como nome para o anjo antes de sua queda, e os termos Satã, Satanás, Demônio e Diabo como sinônimos para seu nome após a queda. Além disso, para não utilizar seu nome em todas as ocasiões, ele também poderá ser chamado de Cão, Capeta, Capiroto, Chifrudo, Coisa Ruim, Cramulhão, Maligno, Pedro Botelho, Tinhoso, nomes utilizados pela cultura popular. Vale dizer que, salvo em citações diretas, quando for me referir ao Diabo como uma personagem, seu nome (ou alguma de suas variações) será grafado com a inicial maiúscula. Passemos agora ao outro parêntese.

No que concerne ao título de minha dissertação – Faces do Diabo na obra de um Bruxo: uma releitura do Diabo machadiano –, ele aparece aqui como homenagem à minha orientadora, a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz, cuja tese de doutoramento é intitulada As faces de Deus na obra de um ateu. Presto esta humilde homenagem em virtude não só da acolhida que me deu enquanto orientadora, ou da amizade que se firmou entre nós – fatores que, por si sós, já seriam o suficiente –, mas também por me ter possibilitado a reconciliação com essa parte determinante da cultura

28 Sobre a divergência teológica acerca de qual teria sido o pecado de Lúcifer,

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ocidental, que é a tradição dos estudos bíblicos e teológicos e suas relações com a literatura. Lembro ainda da primeira vez que cursei a disciplina de Teopoética29 aqui na Universidade Federal de Santa

Catarina, sobre Humor e mau humor nas e sobre as narrativas bíblicas. Até então, eu não tinha a menor ideia de que se pudesse estudar a Bíblia enquanto literatura. Minha visão de ovelha desgarrada do rebanho impedia qualquer tipo de olhar para estas narrativas que – conforme explica Auerbach, no texto ―A cicatriz de Ulisses‖30 – são um dos dois

pilares da literatura ocidental, juntamente com a literatura greco-latina; ou que, na visão de Northrop Frye, citando William Blake31, são o ―grande código da arte‖. Tampouco podia apreciar as referências bíblicas, mesmo aquelas que a ironizavam, uma vez que não possuía parâmetros para tal. Assim, com essa singela homenagem, espero prestar meus agradecimentos a essa grande mulher. Feitos estes apontamentos e esclarecimentos, passo agora a explicitar de que forma este estudo será estruturado.

29 De acordo com a Prof.ª Dr.ª Salma Ferraz em sua apresentação para o site do

NUTEL (Núcleo de estudos comparados entre Teologia e Literatura), ―A Teopoética foi proposta por Karl Josef Kuschel e trata-se de um novo ramo de estudos acadêmicos voltado para o discurso crítico-literário sobre Deus, a análise literária efetivada por meio de uma reflexão teológica, o diálogo interdisciplinar possível entre Teologia e Literatura. Uma das principais perguntas da Teopoética é: qual o discurso dos autores sobre Deus dentro da Literatura do século XX? Sobre este assunto já existe um interessante estudo denominado Literatura do século XX e cristianismo: o silêncio de Deus, de autoria de Charles Moeller que investiga a importância de Deus nas obras de Albert Camus, André Gide e diversos outros escritores.‖. (Grifo meu) Disponível em: <http://teopoetica.sites.ufsc.br/>. Acesso em: 14 jan. 2019. Vale acrescentar que, não obstante a Teopoética – na visão de Kuschel e de Ferraz – privilegiar, em certa medida, o âmbito teológico, meu intuito aqui, pelo contrário, é privilegiar o âmbito literário a partir de um horizonte que possa se valer de reflexões teológicas em benefício do estudo da literatura. Em outras palavras, a teologia, aqui, será uma espécie de ferramenta que me irá auxiliar tanto a analisar quanto a efetuar uma releitura desta personagem que faz parte da cultura ocidental. Para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre a Teopoética a partir de meu ponto de vista, cf. o primeiro capítulo de minha já mencionada monografia (PIERI, 2016).

30 Situado como o primeiro capítulo de seu livro Mimesis: a representação da

realidade na literatura Ocidental, Ed. Perspectiva, 2009.

31 Conforme explica o autor em seu livro intitulado O código dos códigos: a

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σo primeiro capítulo, chamado ―Uma visão panorâmica‖, são tecidos alguns comentários sobre o Diabo enquanto uma figura artística, para, a partir daí, prover a abertura de que necessito sobre o tema. Ainda neste primeiro capítulo, será feita uma revisão bibliográfica da Fortuna Crítica de Machado de Assis, passando tanto por algumas de suas biografias, quanto por alguns dos principais estudiosos sobre sua obra como um todo, e ainda por alguns dos estudos feitos especificamente sobre o Diabo em sua obra. Esta revisão é fundamental para este estudo tendo em vista que muitos autores – sejam eles de renome ou não, com estudos de caráter mais geral ou mais específico – já se debruçaram sobre a obra machadiana, e não só não convém deixá-los de lado, como também seria um grande erro fazê-lo, uma vez que suas contribuições podem (e em muitos casos vão) me auxiliar a chegar ao ponto onde pretendo. Para concluir este capítulo, eu retorno ao Diabo, mas agora enquanto personagem da obra machadiana para sugerir algumas de suas potencialidades.

σo segundo capítulo, intitulado ―Com o Diabo no corpus‖, passo a abordar as narrativas selecionadas a fim de contemplar os aspectos, os traços, as características utilizadas por Machado de Assis para compor sua personagem. Em primeiro lugar, abordarei os contos ―A igreja do Diabo‖ e ―Adão e Eva‖;, para em seguida abordar a crônica do dia ―05 de outubro de 1κκ5‖, situada na série Balas de estalo, e a crônica ―τ sermão do Diabo‖; e, por último, o capítulo IX de Dom Casmurro, intitulado ―A ópera‖. Fiz a opção de agrupar os textos por gênero neste capítulo (conto, crônica e romance), pois, embora seja uma forma arbitrária, ainda assim me parece ser mais consistente (ou menos subjetiva. No final do capítulo encontram-se considerações parciais acerca do questionamento proposto, isto é, se o Diabo machadiano é uno, múltiplo ou múltiplo e comum.

σo terceiro capítulo, cujo título é ―Machado de Assis e a tradição diabólica‖, abordo cinco diferentes formas de representações do Diabo na literatura ocidental a partir de textos como o ―Inferno‖, de Dante Alighieri; O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Paraíso Perdido, de John Milton; Fausto (Parte 1), de J. W. von Goethe; e, Macário, de Álvares de Azevedo. O intuito deste capítulo é traçar comparações entre as diversas formas de representação do Diabo em alguns autores inseridos no cânone da literatura ocidental para, com isso, perceber as semelhanças e diferenças das características apresentadas entre seus textos e os textos machadianos, e assim perceber o que Machado de Assis traz dessa tradição e o que ele nos fornece de novo.

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No quarto capítulo, intitulado ―Faces do Diabo na obra de Machado de Assis‖, pretendo desdobrar os sentidos que se pode alcançar a partir deste outro olhar para o(s) Diabo(s) machadiano(s), pois, se em cada aparição do Diabo tivermos um Diabo diferente – mesmo que possua o mesmo nome ou apenas várias faces –, seu sentido pode ser outro, e, por isso, cada vez apontar para outro lugar, seja para o ―mundo real‖32 seja para o mundo da ficção, na forma de um

―confronto‖, um ―embate‖, com a própria tradição.

As considerações finais levam o título de Απο ά υψη33, pois é o

lugar onde se passa o juízo final e a απο α ά α ς34. Aqui encontra-se

não apenas a revelação daquilo que encontramos, mas também a redenção do Diabo, se é que ele irá querer ou precisar de alguma, e ainda sugestões para futuros estudos. Dito isto, é preciso que, como Lúcifer, filho da estrela d‘alva, subamos aos céus e ainda mais, até que estejamos acima das estrelas, pois só assim teremos Uma visão panorâmica...

32 σo sentido de que não é o ―mundo da ficção‖ ou o ―mundo do texto‖

(Ricoeur).

33 τ termo ―apocalipse‖, em grego, significa ―Revelação‖.

34 τ termo ―apokatástasis‖ ou ―apocatástase‖ provém de τrígenes de

Alexandria e sua teoria na qual, no final dos tempos, todos os seres teriam a possibilidade de redenção. Para maiores detalhes, cf. STANFORD, 2003, p. 95-96 e KELLY, 2008, p. 231.

(37)

2 CAPÍTULO I: Uma visão panorâmica

12 Como caíste do céu, ó estrela d'alva,

filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! 13 E, no entanto, dizias no teu coração: 'Hei de subir até o céu, acima das estrelas de

Deus colocarei o meu trono,

estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte. 14 Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.' 15E,

contudo, foste precipitado ao Xeol, nas profundezas do abismo.

(Livro de Isaías XIV: 12-15)35

Eis que estamos acima das nuvens, na posição necessária para que tenhamos uma visão panorâmica. Foi preciso subir a essa altura para que não fôssemos tragados para o Xeol – ou Inferno, dependendo da tradução bíblica que se use. Embora estejamos olhando de cima, Satã já caiu e se encontra nas profundezas do Abismo, outro dos nomes recebidos pelo lugar em que, segundo a tradição Católica, são lançados aqueles que se afastam dos caminhos da divindade. Esta subida, claro está, é metafórica. Ela apenas quer dizer que tomamos distância para maior ―objetividade‖, que vai entre aspas, pois já é lugar comum saber-se que não existe uma objetividade plena, mas, apenas certa objetividade. Eis que mal começamos e Satã nos desvia do caminho. Ou será que não? Afinal, é sempre válido lembrar que aquele que escolhe uma questão é tocado por ela, e assim, de alguma forma é difícil fugir plenamente da subjetividade. Mas, voltemos nosso olhar para baixo e vejamos de que forma a figura do Diabo foi explorada por alguns artistas da cultura ocidental.

35

Embora a passagem do Livro de Isaías refira-se a um rei babilônico em seu contexto original, eu a utilizo como epígrafe levando em conta a história de sua interpretação, que a identifica com a queda de Lúcifer.

(38)

2.1 Um Diabo diferente: algumas ―representações‖36 do Tinhoso. ―O Diabo é uma extraordinária mistura de confusões. Satã é uma criatura da teologia, da ideologia e política práticas e de tradições pictóricas estranhamente ligadas. O soberano do Inferno, o anjo rebelde, a contrapartida de Miguel na pesagem das almas e o perverso micróbio provocador pouco se sobrepuseram na esfera pictórica. Sem uma iconografia fixa, o Diabo pôde ser Godzilla, um Pã desvirtuado, uma peste peluda com ou sem asas, com ou sem chifres, com ou sem cascos fendidos, feroz ou cômico‖. (Luther Link – O Diabo: a máscara sem rosto)

Conforme mencionei na introdução37, em seu O Diabo: a máscara sem rosto (1998), Luther Link afirma que nossas concepções sobre a imagem do Diabo provêm de três fontes: 1) de interpretações da Bíblia38; 2) de John Milton e da literatura romântica; e 3) da tradição popular dos cultos satânicos e sabás de bruxas. Além disso, também mencionei que nem sempre o Diabo foi ―visto‖ ou, melhor dizendo,

36

O termo vai entre aspas, pois compreendo que seu uso seja problemático dentro dos estudos literários, uma vez que nos remete à ideia de mimese, isto é, de espelhamento, cópia ou imitação. No entanto, eu a utilizo aqui tanto no sentido daquilo que ―torna algo presente‖, quanto no sentido daquilo que ―desempenha um papel‖ (como nas representações teatrais), ou ainda daquilo que ―substitui algo ou alguém‖, tal como um advogado representa seu cliente. Estes outros sentidos são elencados pelo Novo dicionário da língua portuguesa (1986), de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

37 Cf. p. 28 desta dissertação.

38 Vale mencionar que, nem mesmo na Bíblia, o Diabo possui uma

caracterização única ou unívoca. Para que se tenha uma noção disto, basta mencionar que, mesmo dentro do Primeiro Testamento temos pelo menos quatro aparições de uma figura denominada STN na forma de um ente sobrenatural, as quais nem sempre dão exatamente a ―mesma forma‖ à personagem. Para uma explicação mais detalhada sobre as aparições/descrições de Satã na Bíblia – seja para o Primeiro e o Segundo Testamentos ou para os livros apócrifos –, consultar a obra de Henry A. Kelly, Satã: uma biografia (2008).

(39)

―concebido‖ da mesma forma na cultura ocidental. Para embasar esta afirmação trouxe sinteticamente os argumentos de estudiosos como Luther Link, Robert Muchembled, Peter Stanford e Henry Ansgar Kelly. No entanto, embora perdesse em academicidade, também poderia ter solicitado à leitora ou ao leitor que me respondesse a seguinte questão: de que forma você imagina o Diabo? É possível que cada qual tivesse sua própria concepção sobre a aparência do Tinhoso, o que nos proporcionaria diversas formas para ―representá-lo‖. Mesmo que fôssemos seguir a sua descrição consolidada pela cultura popular39, isto é, a partir da descrição na qual ele consta como uma figura antropomórfica, de pele vermelha ou preta, segurando um tridente, com rabo pontiagudo, manco40, com um casco fendido no lugar dos pés,

barba e chifres de bode, com cheiro de enxofre (ou muito perfumado, para disfarçar o cheiro), ainda assim teríamos margem para muitas variantes.

Falei em descrição consolidada pela cultura popular, pois, de acordo com Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão, a partir da Idade Moderna,

duas imagens de Satã coexistem: uma popular e outra erudita, esta, de longe, a representação mais trágica, pois o Demônio, nas consciências populares, é uma entre outras tantas sobrevivências míticas que uma conversão imposta não conseguiu exterminar. O Diabo popular é uma personagem familiar, às vezes benfazeja, muito menos terrível do que o afirma a Igreja, e pode ser, inclusive, facilmente enganado. A mentalidade popular defendia-se, desse modo, da teologia aterrorizante

39 Sobre o Diabo na cultura popular, cf. Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão. (1986),

40 Segundo Carlos Roberto F. Nogueira, em seu O Diabo no imaginário cristão., ―τutra característica desenvolvida na tradição popular é que o Diabo é coxo, como resultado de um ferimento recebido quando foi precipitado dos céus. Disso resulta a crença de que se o corpo de uma criatura é defeituoso, isso é um claro sinal da deformidade de toda a sua natureza; crença que é levada para o cotidiano, em prejuízo de homens e mulheres que serão levados à justiça como agentes do Diabo unicamente por possuírem deformidades físicas, deduzindo-se de sua monstruosidade material a sua monstruosidade espiritual.‖ (1986, p. 59 – grifo meu).

(40)

– e muitas vezes incompreensível – da cultura erudita. (NOGUEIRA, 1986, p. 76 – grifo meu) Para constatar a pluralidade de suas representações, efetuei uma busca na internet por imagens disponibilizadas pelo vocábulo Diabo (ou de seus cognatos em outras línguas: diablo, devil, Teufel, etc.). Veja o leitor as imagens abaixo (Imagens 01, 02, 03, e 04) e assim terá uma noção do que digo, embora o que figure aqui seja uma versão mais modernizada do Capiroto.

Figura 01: Diabo.

Fonte: https://www.altoastral.com.br/5-formas-como-diabo-conhecido/ Acesso em: 14/01/2019.

Figura 02: Diablo.

Fonte: https://sipse.com/novedades/diablo-satanas-como-es-satan-arte- cristianismo-diablo-cristiano-mal-maldad-biblia-religion-pintura-cuernos-como-es-el-diablo-204076.html Acesso em: 14/01/2019.

(41)

Figura 03: Devil.

Fonte:

https://vignette.wikia.nocookie.net/vampirediaries/images/4/4d/Devil.jpg/revisi on/latest?cb=20130508215710 Acesso em: 14/01/2019.

Figura 04: Teufel.

Fonte: https://i.mmo.cm/is/image/mmoimg/bigview/teufel-deluxe-set--104540-devil-deluxe-make-up-kit-teulfe-deluxe-set.jpg Acesso em: 14/01/2019.

(42)

Conforme podemos observar, essas imagens (Figuras 01, 02, 03 e 04) possuem características que não deixam de ter certa semelhança com o deus Pã e os sátiros (Figuras 05 e 06). Peter Stanford (2003) constata que a imagem de Pã serviu de inspiração para a produção iconográfica do Diabo. Carlos R. F. Nogueira, em sua obra supracitada, possui a mesma opinião, e afirma sem meias palavras que

O grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de Pã e dos sátiros: criaturas meio homem, meio bode, com chifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas pontiagudas. A essa combinação a imaginação cristã acrescenta um ingrediente essencial: as asas de um anjo. Contudo, como se tratava de anjos caídos, as asas não poderiam ser de um pássaro que voa à luz do dia, e sim as de um morcego, que ama as trevas e, de um modo absolutamente diabólico, vive de cabeça para baixo. (NOGUEIRA, 1986, p. 58 – grifos meus)

Figura 05: Pã.

Fonte: https://escamandro.wordpress.com/2012/02/29/shelley-hinos-de-apolo-paAcesso em: 14/01/2019.

(43)

Figura 06: Pã.

Fonte: http://arcanoteca.blogspot.com.br/2017/02/menu-mitologia-grega-pa-e-constelacao.html Acesso em: 14/01/2019.

Em certa medida, eles até que estão com a razão, pois esta imagem realmente se alastrou pelo imaginário cristão. Apesar disso, Luther Link discorda parcialmente dessa opinião. Embora o autor admita que Pã tenha realmente influenciado na concepção do Diabo dentro do imaginário cristão, ele explica – e demonstra a partir de diversas obras de arte – que ―imaginar que Pã foi o protótipo do Diabo não corresponde aos fatos‖41, pois nem todos os Diabos que foram

esculpidos42 ou pintados43 – do séc. IX ao XVI, pelo menos – possuem as características do deus Pã. Embora de forma não tão completa ou detalhada quanto a de Luther Link, é por esse caminho que vamos trilhar a partir de agora44.

41 LINK, 1998, p. 55. 42 LINK, 1998, p. 55. 43 LINK, 1998, p. 61.

44 Por motivos de concisão e de foco – uma vez que esta dissertação não é sobre

o Diabo na cultura ocidental, mas sim, na obra de Machado de Assis –, não poderei abordar todas as representações já feitas do Diabo. Esta exposição aparece aqui apenas para ilustrar este ponto de vista, a saber, a descontinuidade nas representações do Diabo. Ao leitor interessado em mais representações pictográficas do Diabo, remeto à obra de Luther Link.

Referências

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