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-Jejoko e -jepota: controle e desejo entre os Guarani Mbya

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Academic year: 2021

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-Jejoko e -jepota: controle e desejo entre os Guarani Mbya

Vicente Cretton Pereira Doutorando em antropologia PPGA - UFF

Resumo

Este trabalho é uma tentativa de colocar o desejo como uma questão central da etnografia guarani mbya, articulando, para isso, contextos em que ele aparece como crucial para a manutenção da saúde e do ponto de vista humano, bem como contextos em que é justamente por desejar “demais” que o sujeito perde sua perspectiva humana. Para tanto privilegiarei a apresentação de cinco mitos escolhidos nos clássicos trabalhos de L.Cadogan e C.Nimuendaju relacionando-os com situações observadas durante o trabalho de campo com os Guarani Mbya que ora habitavam a Região Oceânica de Niterói (RJ), e que se mudaram recentemente para Maricá (RJ). Tentarei mostrar que há uma lógica do “conter-se” (-jejoko) atuando tanto na etiqueta mbya, ordinariamente, como em posturas xamânicas capazes de ligar cada indivíduo com as divindades. Contrariamente, a manifestação incontida de desejo por algo ou o desejo por coisas que não são “adequadamente” desejáveis para os Mbya, pode, no limite, alterar a pessoa a ponto de, junto com sua perspectiva humana, ela perder também seu corpo humano, transformando-se em animal (-jepota). Saber o que e como querer (-pota, -xe, regua) seria, portanto, fundamental tanto na ética como no xamanismo guarani mbya.

Palavras-chave: Guarani Mbya; etnologia sul americana; xamanismo e desejo

1.Introdução.

O presente trabalho é parte da minha tese de doutoramento, ainda em fase de elaboração, e é um dos resultados de um contato com os Guarani Mbya iniciado em 2008 e que persiste até os dias de hoje (embora bem menos frequente do que nos períodos de trabalho de campo efetivo). No referido ano ocorreu uma mudança de um grupo Mbya – uma família “extensa”, melhor dizendo – de Paraty para Niterói, ocasião a partir da qual pude me aproximar deles de forma frequente, já que era morador de Niterói desde sempre. A “aldeia das sementes” (Tekoa mbo’y ty), como viria a ser chamada, era formada por praticamente uma parentela, ou seja, um casal cabeça – Pedro e Lidia - com seus filhos – Tupã, Iracema, Jéka, Zenico, Minju, Jaxuka’i e Kerexu’i (com seus respectivos cônjuges) - e netos e bisnetos, perfazendo um total de mais ou menos 60 pessoas.

A idéia que me levou a escrever este artigo, como se verá, surgiu durante um estado “doente” (-mba’eaxy) de um dos filhos de Lidia, bem como durante o processo de cura, o qual

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para ser levado a cabo totalmente, exigiu cuidados sobre o doente (e dele sobre si mesmo) durante cerca de três meses. Junto com o processo, a explicação dada pelo irmão mais velho do convalescente sobre os motivos do outro estar passando por aquilo (o que poderia ser traduzido como os motivos pelos quais os Mbya passam por –mba’eaxy, de forma geral) levaram-me a ler alguns mitos do clássico Ayvu Rapyta, de Léon Cadogan sob a ótica da transformação da pessoa, do perspectivismo e da Ética, tendo o desejo como foco. Assim, apresentarei, num primeiro momento, uma breve análise dos mitos, para em seguida passar à etnografia do referido processo. Na parte final busco relacionar as experiências e conceitualizações dos Mbya com noções acerca da ética segundo Espinoza e Deleuze (comentando o primeiro).

2.Desejo e transformação da pessoa

Gostaria de introduzir, portanto, cinco mitos (quatro deles retirados do clássico Ayvu Rapyta de Leon Cadogan (1959) e um do Lendas de criação... de Curt Nimuendaju, 1987) me privando de escrevê-los na íntegra, de modo que fiquem em destaque as partes que interessam ao raciocínio que pretendo expôr. Os mitos são, portanto: 1 – Karai Jeupie e o dilúvio (cap.VI, p.57); 2 – Kochire ojepotava’e (cap. XVIII, p.155); 3 – Kapitã Chiku (cap.XVI, p. 143) e por último o mito dos gêmeos no cap.VIII, p.69 mas também em Nimuendaju e segundo me contaram mais de uma vez os próprios Mbya com quem convivi durante o campo. No mito 1, Karai Jeupie casa-se com sua tia paterna, um casamento dravidianamente “legal”, tido porém pelos Mbya como “incestuoso” ou ojeavy Nhanderu Tenonde kuérype (“errou para com os nossos primeiros pais”) como está no texto original. Acontece o dilúvio e Karai, junto com sua esposa esforça-se em reza-canto, dança, e por final consegue atingir sua morada “incorruptível” (marã e’ÿ), e tornar-se um Nhanderu Mirim (“pequeno deus”). O “sogro” não aparece, e o desejo por sexo, se exigiu um “teste” de Karai (pois ele ficou na terra em vez de divinizar-se antes do dilúvio, como ocorreu com outros que onhembo’e porã’i va’ekue – “aqueles que praticavam/se excercitavam/ rezavam bem”) não o impediu de alcançar o ijaguyje, i.e., a sua morada celeste sem passar pela prova da morte.

O mito 2 é bem maior que o primeiro e possui muito mais pormenores. Um primeiro detalhe está no título, Kochire ojepota va’ekue guu oñe’eapo e’ÿ vy, e sua tradução por Cadogan “El que se prendó de uma marrana, por Haber desobedecido a su padre”, já que –jepota, atualmente pelo menos, significa transformar-se em animal, ou alterar-se no sentido “sub-humano”. Mas compreende-se porque da tradução “se prendó” (se enamorou, se apaixonou, etc) posto que –pota é o verbo querer, desejar e je é o reflexivo (“se”).

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Literalmente, portanto, -jepota significaria “querer-se”, i.e., ceder ao desejo, no caso em questão, entregando-se a um devir-animal, a uma fascinação por algum bicho, “dono” (ija), ou algo semelhante (“maus devires”, enfim, como diz Lima, 2011, p.633), que se apresentam, logicamente, sob a forma de uma bela pessoa. O que nos conta o mito é que um rapaz “desobedeceu” (-nhe’eapo e’ÿ, “não fazer o que foi dito para fazer” - de novo uma transgressão dá início à passagem ou à caminhada/teste do personagem principal) ao pai e foi atrás do rastro do koxi, porco-do-mato. Ao encontrar o bando ele é obrigado a casar-se, sob ameaça de morte, porém não compartilha alimentos com a esposa. É levado à morada (amba) do “dono” dos koxi, Karai Ru Ete (que é uma divindade do panteão mbya, um “pai de almas” – nhe’e ru ete – por assim dizer) e é alimentado por ele com farinha de amendoim. Mesmo assim, ele “não se alegra” (ndovy’ai) e quer voltar para casa. Após longa peripécia chega e sua mãe, ao vê-lo, morre enquanto ele próprio se transforma em Koxiu (uma ave) ao lembrar-se1

do amba (“altar”, “morada”) de Karai Ru Ete. Neste mito o desejo que não é contido no início e que dá propulsão ao movimento da história não é o desejo por sexo, como no anterior, mas por carne de caça (de koxi), pois é para comer que o herói vai atrás do rastro do animal, porém acaba tendo que casar-se com um.

No mito 3 temos um sogro supervisionando o genro Kapitã Chiku, afim de que este alcance a imortalidade (marã e’ÿ). Num primeiro momento, Chiku está “quase” (suas mãos já estão cheias de orvalho) mas logo ele “se senta” na casa de reza (opy’i) com a esposa, entenda-se, faz sexo com ela, e aí suas mãos secam e ele volta a estar longe do marã e’ÿ. O sogro o expulsa da opy’i e o faz passar, junto com a esposa, por uma série de provações (-mbopy’a ra’ã): é morto, revive, a esposa é morta, revive também, no filho encarna-se a alma de um animal, Tupã Kuéry (“os Tupã”) ajudam na cura, ele é preso por brancos... Ao final de tudo, Chiku é “posto a entrar” (-gueroike) na floresta pelos Tupã Kuéry e aí alcança ijaguyje, numa completa transfiguração de seu corpo: flores, brilho de chamas e orvalho, figuras da transformação em infinito.

Por último cito o mito dos “gêmeos” no qual a figura do “sogro canibal” (Viveiros de Castro, 2011, p.176) aparece com maior clareza como (Cadogan, 1959) Charia ou Anhãy (Nimuendaju, 1987): ele come o irmão menor (Jaxy, ou Lua), briga com o irmão maior (Kuaray ou Sol), espanca o filho de Kuaray, tem relações sexuais com a filha de Kuaray contra a vontade dela, etc. Na verdade, é somente na versão Apapokúva (em Nimuendaju) que Kuaray e Jaxy se casam com as filhas de Anhãy, o qual, em determinado momento, os irmãos

1 O que pode ser lido como, novamente, -nhe’eapo e’ÿ, “desobedecer” já que durante sua estadia com os porcos, sua esposa lhe fala para, caso consiga voltar para casa não se lembrar da morada de Karai Ru Ete quando trovejasse, o que é exatamente o que ele faz momentos antes de se transformar em animal.

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chamam de tuty (tio materno – doadores de mulheres dravidianamente “legais”)2. Entre

Kuaray e Jaxy há uma assimetria fundamental, já assinalada em diversas etnografias, desde Lévi-Strauss (1993), a qual, sugiro, opera uma divisão nos modos de desejar. O conflito vivido pelos demais protagonistas míticos, ou seja, entre cumprir desígnios e ordens ou seguir o próprio desejo, é dividido entre Kuaray e Jaxy de modo que o primeiro encarna sempre as boas escolhas, o controle sobre os desejos e o segundo, ao contrário, causa toda sorte de infortúnio aos irmãos justamente, por desejar demais. Se Kuaray consegue ressucitar a mãe, através de seus ossos, Jaxy, por querer mamar a faz morrer novamente, a qual está fraca (devido à recente ressurreição) e não consegue ainda –mokambu (“fazer mamar”). Se Kuaray marca com irmão, no dia seguinte, Jaxy não comparece na hora marcada porque esteve “bulindo”, (-povyvy) durante a noite com sua tia paterna. E assim por diante.

Sendo predação, passagem, como diz Viveiros de Castro (2011, p.174), e o que parece estar sendo ressaltado em todos os mitos apresentados é justamente a passagem de um estado a outro da pessoa, num caminhar que envolve sempre a predação do afim. Entre os Mbya, sugiro, predação é passagem entre transgressão e transformação, processo mediado pela alteridade pré-cosmológica ou a afinidade potencial (Idem) posicionada de diferentes formas nos mitos: desde o sogro generoso até o sogro canibal, propriamente dito. A transgressão pode ser entendida nos termos de um desejo que, por alguma razão se exacerba fazendo a pessoa jogar com/desafiar a “moral” e as “regras internas” (Wagner, 2010, p.144) da sociedade (um casamento incestuoso, a desobediência ao pai, sexo durante esforços “espirituais”, etc). A transformação final, seja em animal (ojepota) ou em “pequeno deus” (nhanderu mirim), constitui-se na alteração - destino, portanto, da pessoa mbya – do Eu, passando de mesmo (consangüíneo, parente, Mbya) a Outro - inimigo (animal, espírito, etc) ou afim atual (“pequenos deuses”). Vejamos agora como esta passagem se desenrola distintamente (usarei o mito dos gêmeos como mito de referência aqui) em cada um dos mitos:

Em 2 o desejo por carne de koxi, desejo de comer (que poderia ser “contido” pela “obediência” –ñe’eapo - ao pai, o que não ocorre) em última análise, resulta na transformação 2 Vale lembrar, a título de nota, que Macedo (2009, p.90, a partir de Susnik, 1983:85) comenta que a nomenclatura mbya para tios e tias pode indicar um possível dravidianato no passado pois que os irmãos do meu pai (xeru) eu chamo de xeruvy, e as irmãs da minha mãe (xexy) eu chamo de xexy’y. A diferença está marcada mais claramente nas irmãs do meu pai (xejaixe – com quem Karai Jeupie se casou no mito 1) e nos irmãos da minha mãe (xetuty – o “sogro canibal” da história dos gêmeos segundo os Apapokúva). Afora os aspectos terminológicos, nada mais nos remete ao modelo dravidiano: primos são, para os Mbya, irmãos, parentes próximos demais para que o casamento seja possível. A busca por cônjuges, aliás, em uma “distãncia” ideal (Heurich, 2011, cap.1) para casar é uma das principais causas da mobilidade de jovens entre aldeias.

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do herói em animal (bem como na morte de sua mãe). De forma análoga, o canibalismo ostensivo de Anhãy (no mito dos gêmeos segundo os Apapokuva) resulta em sua morte. Em 1 e 3 o desejo por sexo resulta em (ou ainda que “incorreto” não impede a) divinação de Karai Jeupie e Kapitã Chiku. Da mesma forma o desejo sexual de Jaxy (Lua – irmão menor) por sua tia paterna (no mito dos gêmeos segundo os Mbya, em Cadogan, 1959) resulta em (ou não impede a) divinização.

Assim, o desejo de comer (carne de animal ou de gente), conduz, como o tupixua (traduzido pela autora como “espírito da carene crua”) de que fala H.Clastres (1978), ao ijaguyje amboae (Cadogan, 1959, p.57), fazendo a pessoa alcançar “completudes dessemelhantes”3 (Lima, 2011, p.632), e, no limite, a morte (caso de Anhãy, em Nimuendaju).

Contudo, o desejo por sexo, ainda que tido pelos Mbya (com quem convivi) como um obstáculo quase que “intransponível” nos dias de hoje para a obtenção do ijaguyje, aparece nos mitos como um “causador de evento” que põe em jogo as engrenagens necessárias para a divinização, ensejando a passagem para a condição marã e’ÿ (“imortal”, “incorruptível”) da pessoa. Assim, o que a análise destes mitos parece nos mostrar é que há uma assimetria entre “desejo de comer” e “desejo por sexo”, onde o primeiro tornaria o sujeito mais suscetível às transformações “dessemelhantes” ou “inadequadas” do que o segundo. Se colocamos os dois desejos em termos de “captura de comida” e “captura de cônjuges”, entendendo o casamento como “predação sexual consentida” (Viveiros de Castro, 2011, p.175), percebemos a positividade da predação como princípio (Idem, p.178) de (des)organização da pessoa e da sociedade Mbya: se por um lado “querer ser” predador de carne de porco-do-mato (pois o consumo efetivo de carne não acontece, mas em vez dele, o casamento com o animal) resulta em –jepota, por outro a “predação sexual”, ainda que “inadequada” (Kapitã Chiku) e incestuosa (Karai Jeupie), resulta em ijaguyje. Mas passemos, por assim dizer, do mito à práxis.

3.Mba’eaxy: doença por “não saber viver” e doença por feitiço

Em 2012 um filho de Lidia de 25 anos, aproximadamente, certa noite se aproximou da mãe reclamando de dor na garganta bem como de dificuldade para respirar e para falar. A kunhã karai (“pajé mulher”) logo acendeu o petyngua (“cachimbo”) e começou a –moataxï (“benzer”, “rezar”, lit.: “enfumaçar”) o corpo do filho, principalmente no pescoço, área

3 Ou seja, transformações indesejadas (ijaguyje, “perfeição”, ou “estado de imortalidade”; amboae, “outro”), no sentido sub-humano, -jepota, portanto.

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supostamente mais dolorida ou mais atingida pelo mal. Ao terminar ainda deu alguns comprimidos de Dipirona para ele tomar antes de dormir e nos pediu (a mim e a Minju, outro filho dela) para levarmos um pouco de pipi (guiné) na casa dele. No dia seguinte pela manhã ele estava “pior” (nda’evei ve, como disseram), então, de manhã cedo foram “rezá-lo” na sua casa. Quando acabou o –moataxï, estávamos eu e Jéka (irmão mais velho do convalescente) conversando ao pé da cama do doente e ele começou a me explicar o porque do irmão estar passando por aquilo.

Jéka disse que ele mesmo já havia passado pelo mesmo processo e ficou tal e qual o irmão estava até a mãe tirar do seu corpo o mba’eipe’a (algo que se “abre”, se tira, separa do corpo da pessoa – uma pedrinha, pedaço de pau, agulha, espinho, etc -, o feitiço, propriamente dito). Até então andava distraído, demorava a responder o que lhe perguntavam, escutava coisas que vinham de longe, de onde ele não podia ver. Disse que tal acontece quando ndereiko kuaai (“você não sabe viver”), e aí Nhanderu teste ojapo, havy primeira coisa ma kunhã... Nderejejoko kuaai ramo já era (“Nhanderu – deus - faz teste e a primeira coisa é mulher4... se você não souber se segurar, já era”). O primeiro sintoma é o –moangeko, um

incômodo durante a noite, com dificuldade para dormir e com sonhos ruins. Depois sente-se dificuldade para engolir a comida, a garganta (jyryvi) se fecha. Contudo, mesmo errando (ou “não sabendo viver”) a pessoa deve “pedir para Nhanderu” (-porandu Nhanderu pe) e assim melhora.

O teste posto por Nhanderu sempre resultaria em “viver mais” (-iko ve), seja melhorando e voltando a ter “saúde” (-exaï), seja transformando-se em animal (-jepota). Na fase final de seu processo Jéka viu umas fotos que haviam trazido da aldeia de Jaraguá de um rapaz que estava ju’i ramo (“como perereca”) com dedos compridos e escamosos, orelhas compridas, dentes de piranha, etc. Ele disse que por isso teïke jaiko kuaa (“tem que saber viver”), porque ja nhane nhe’e ma iky’a va’erã e’ÿ, xó nhanderete ma iky’a ky’a’i, rejavy raí ramo Nhanderu ndoexaxei, inhe’e oeja (“já nossa alma não se sujará, somente nosso corpo tem pequenas sujeiras, e se você erra muito Nhanderu não quer ver, a alma deixa [vai embora]”). Concluindo, Jéka comentou que Nhanderu omoï (coloca) ordem, qual seja, de que é preciso “saber viver” (-iko kuaa), caso contrário a pessoa morre ou vive como ojepota va’e

4 Antes do que uma condição moral, a “castidade” representa, sugiro, o mesmo Mar que é cantado nos hinos como o obstáculo a ser vencido para se alcançar a terra divina – yvy ju mirim -, e sobre o qual Pierre Clastres (1978, p.121) comentou: “(...) povo de loucos orgulhosos que se estimava o suficiente para desejar colocar-se na fileira dos divinos, os índios guaranis vagabundeavam ainda outrora, à procura de sua verdadeira terra natal, que eles supunham que sabiam situada lá longe, do lado do sol nascente (...). E muitas vezes chegados lá, nas praias, nas fronteiras da terra má, quase a vista da meta, o mesmo ardil dos deuses, a mesma dor, o mesmo fracasso; obstáculo à eternidade, o mar indo com o sol” (grifo do autor). Não fazer sexo, não comer comida de branco, não comer carne, não sentir raiva, etc, são coisas tão impossíveis quanto condições para a eternidade, da mesma forma que o é atravessar o Mar sem sofrer danos ou morrer.

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(transformado em animal), destinos convergentes não só porque a transformação só se completa com a morte, ou porque a morte transforma a pessoa em uma potência maléfica para os vivos, mas porque ambos põem em questão a perspectiva humana (mbya) nos termos do “viver entre si” e “viver entre outros”.

4.Posturas xamânicas: entre a saúde e a doença

Pode-se pensar, a partir da noção exposta por Jéka de -jejoko (“controlar-se”, “dominar-se”, “bloquear-se”, “se segurar”, etc), o xamanismo (ou a “função xamânica” como coloca Pissolato, 2007,p.339) mbya exatamente como o modo pelo qual se pode evitar aproximações indesejadas através de posturas como –kuaa pota (“querer saber”), -iko kuaa (“saber viver”), -nhemoarandu (“se fazer inteligente/sábio”), -japyxaka (“prestar atenção”), -endu (“ouvir/sentir”), -karu kuaa (“saber comer”), etc. Ao contrário, posturas como –nhembotavy rei (“se fazer errar á toa”), -ate’ÿ (“ter preguiça”), -akãte’ÿ (“ter ciúme/mesquinhez”), -vai (“ter raiva”), -vy’a e’ÿ (“estar triste/com saudades”), etc, colocariam a pessoa numa posição vulnerável á transformação em Outro. Tal como Macedo (2012, no prelo) que trabalha com a dualidade da pessoa entre vetores vai (eixo horizontal: mau, ruim, feio,...) e porã (eixo vertical: belo, bom, bonito,...) bem como muitos outros autores que dividiram a pessoa guarani em duas, também proponho que a função xamânica, enquanto possibilidade individual de adquirir sabedoria e poderes provindos das divindades, divide potencialmente a pessoa em hexaï (“saudável”) e imba’eaxy (“doente”).

Colocado como “primeira coisa” quando de um “teste” posto por Nhanderu, -jejoko, i.e., “se segurar” é o primeiro movimento daquele que passará pela prova por meio do “bom caminho” (tape porã), caminho xamânico por assim dizer. É interessante notar que meu conhecimento acerca do verbo –joko, antes da exposição de Jéka, era simplesmente sob a acepção de “bloquear”, tal como se bloqueia, por exemplo, um animal em fuga. Tendo este significado em mente, ao escutar o verbo precedido pela partícula reflexiva je- não demorei a associar o conceito à tão comentada “tranqüilidade” e “autocomedimento” associados aos Guarani na literatura. Visto que é preciso antes a fuga de um animal para acionar o “bloqueio”, o –jejoko é, mais do que um ideal ascético, que preza pela tranqüilidade e auto-controle: é uma forma de voltar as atenções para este “animal em fuga” que é o desejo.

Mas, desejo de que?, poderia-se perguntar. Fundamentalmente por comida e sexo, mas também por todas as pequenas coisas que nos chegam com poderes de sedução de naturezas distintas: uma peça de roupa, um celular, um dvd, uma lanterna, etc, afinal, como diz Sant’anna “as coisas nos convidam e incitam o desejo humano com a mesma maestria que um belo corpo incita o desejo de outro” (2001, p.115). E, em que pese a ética do –jejoko, os

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desejos vão sendo satisfeitos na medida das possibilidades, mas também das recomendações xamânicas, afinal se há uma preocupação em satisfazer os desejos também há a preocupação em não sucumbir ao –jepota e ao –mba’eaxy. Tudo se passa como se o comedimento, etiqueta comum e generalizada entre os Mbya, temperasse o desejo, impedindo sua expressão mais ostensiva. Querer algo ostensivamente é, para dizer o mínimo, coisa dos outros, e não dos Mbya, daí a transformação em animal ser referida como –jepota. O termo é traduzido por Macedo (2012, mimeo) como “ser desejado por”, assumindo, porém que a tradução de seus interlocutores era outra: “se encantar em”.

Embora concorde que a transformação em animal envolva estes dois aspectos, a saber, desejar e ser desejado, sugiro que –jepota queira dizer exatamente “se querer em”, já que aquele que “se quer” (ojepota va’e), “se quer” sempre “em” alguma coisa: ojepota ju’i re (“se quer/transforma em rã”), ojepota ra’e xivi re (“se quis/transformou em onça”), etc. O “querer” parece aqui ter a mesma dimensão de “transformar”, e a pessoa vai se tornando Outro, na mesma medida em que seu desejo por este Outro vai construindo um corpo composto pelo humano e pelo animal. Contrastando com o witsixuki (desejo alimentar) dos Wauja, no qual é a insatisfação de um desejo o fator que desencadeia o processo de adoecimento e perda da alma (Barcelos Neto, 2007), o “rapto da alma” (e, por isso, a transformação corporal), para os Mbya, ocorre devido á satisfação de um desejo ostensivo ou excessivo. Encontros íntimos com o animal “desejado” (como parceiro sexual, por exemplo) são simultâneos à hábitos antisociais no ambiente familiar da aldeia: conversar pouco, não comer junto com os demais, não participar das atividades comuns, etc. O ojepota va’e (“aquele que está se querendo/transformando”) é, neste sentido o análogo guarani mbya da perverse child (“criança perversa”) de Gow (1989), ou seja, aquele que pela satisfação descomunal de um desejo, se põe de fora da sociedade. Esta, por ser produtora e consumidora de seu alimento (desprezando todo um sistema de reciprocidades que tem o desejo mútuo entre homens e mulheres como causa), aquele por saciar-se na companhia de outros, o que no nível de um canibalismo ontológico (Viveiros de Castro, 2011) pode ser entendido também como “ser comido”, i.e., ser subjetivado pelo Outro. Eis a razão pela qual vários mitos mbya sublinham a não-comensalidade entre o protagonista e os seres não-humanos que ele encontra nos percalços de sua jornada.

5.Conclusão

Há, portanto uma dialética entre desejar e saber controlar os desejos, a qual poderia ser entendida nos termos de uma Ética, tal como Espinoza a formula: “uma tipologia dos modos

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de existência imanentes” (Deleuze, 2002, p.29) ou uma “ordem de composição das relações” (Idem, p.120). Comentando a filosofia de Espinoza, Deleuze explica que a Ética espinosista nada tem a ver com uma moral, pois não há uma oposição pré-definida entre Bem e Mal, de modo que “fenômenos que agrupamos sob a categoria do Mal (...) são deste tipo: mau encontro, indigestão, envenenamento, intoxicação, decomposição de relação” (p.28). Por outro lado o bom encontro tem lugar quando “um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso e com (...) uma parte de sua potência aumenta a nossa” (Idem). Assim, uma questão fundamental tanto no pensamento de Espinoza, como no dos Mbya parece concernir à natureza dos encontros e a pergunta “o que pode um corpo?” pode muito bem tomar a forma de “o que podem os encontros?”, afinal, a potência de ser afetado não se separa do afeto em si. Voltemos brevemente ao mito 2, apresentado na segunda seção deste trabalho, no qual a caminhada do protagonista resulta efetivamente em um –jepota: ele se transforma em pássaro. A desobediência (clara) e o desejo de comer carne (implícita) ocasionam um encontro com a presa (talvez já transfigurada em predador, visto o desenrolar da história) – o koxi, porco-do-mato -, mau encontro, note-se, pois que decompõe o protagonista: ir atrás do rastro do koxi e depois casar-se com uma porca fazem dele algo diferente do que um Mbya – ele é, para dizer o mínimo, um Mbya em devir-porco. Para pensar como Deleuze (e Espinoza), as relações essenciais que o compunham enquanto Mbya, foram desfeitas, em alguma medida, pelo encontro com os porcos e seu corpo foi afetado de tal forma que nem seus esforços de não-comensalidade conseguem evitar sua transformação final em animal. O desejo ostensivo é, para falarmos como Espinoza, uma “afecção má”, ou seja, contrária à natureza de um corpo (Spinoza, 1979, p.298) – de um corpo mbya, pelo menos. Por outro lado, o mito 3, nos traz a história de uma (re)composição de relações que elevam um corpo humano ao nível divino. Kapitã Chiku tem um “mau encontro” com a esposa, o que faz os dois passarem por diversas provas – todas “encontros” que não cessam de informar aos protagonistas sobre a possibilidade de sua recomposição. Pequena série de mortes e ressurreições (de Chiku, da esposa, do filho, etc) que levam o protagonista ao “bom encontro” final com Tupã kuéry, e à passagem a um corpo marã e’ÿ (‘incorruptível”). A diferença entre um bom e um mau encontro reside, portanto, justamente na qualidade do Outro com quem um Mbya irá compôr, i.e., trata-se sempre de saber quem é o sujeito quando eu sou o outro dele, ou melhor, de saber por quem se vai ser subjetivado. A posição de outro das divindades é ideal para os Mbya, de modo que quando a posição de sujeito da relação passa dos deuses a um animal, há uma decomposição de relações essenciais para a vida – um processo de doença pode se instalar. Compôr, ou recompor, com os deuses, eis a forma do bom encontro para os Mbya. Assim,

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segurar os próprios desejos, ou seja, -jejoko, é a forma pela qual os Mbya tentam evitar os “maus encontros”, enquanto que um ojepota va’e (“que se transforma em animal”) é alguém que foi (ou está sendo) levado por eles.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

Referências

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