Castro Osório, Anna de
A
Garrett no seu primeiro
centenário
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of
Toronto
A
GARRETT
SEU
PRIMEIRO
CENTENÁRIO
4-2-1799=4-2-1899
Aoseuimmenso talentoegloria
immorredoira.
HOMENAGEMDE
ANNA
DE CASTRO
OSÓRIO
E
PAULINO
DE
OLIVEIRA
Imprensa
df
L'RaN'8-]
Rua
<iA GARRETT
NO
SEU PRIMEIRO
CENTENÁRIO
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A
GARRETT
SEU
PRIMEIRO
CENTENÁRIO
4-2-1799
=
4-2-1899
Aoseuimmenso talentoegloria
immorredoira.
HOMENAGEM DE
ANNA
DE
CASTRO
OSÓRIO
E
PAULINO
DE
OLIVEIRA
1899
Imprensa
de
Libanio
da Silva
8-]
Rua
do Norte, io3Fallar
de
Garrett é amais
difficil tarefa eao
mesmo
tempo
amais
grata e fácilde quantas nos
podem
sobrevirno
caminho
das lettras.Difficil,
porque
tudo
quanto
d'elle sepossa
dizernão
corresponde
nunca
aoque
sentimos
ao
lêl-o, aoencanto
com
que
folheamos
os seus livros e oencontramos
sempre
novo
—
gracioso aqui e alli,mas
d'uma
graçamuito
sua,muito
litteraria,muito
pouco
para
agargalhada
vulgar,uma
graça
filigranadaem
sorrisosque não consegue desenrugar
a fronte
do
leitor ignorante;—
grandiosamente
trágico,d'uma
grandeza
marmórea
e esculptural,que impressiona
e
commove
todos, ignorantes e sábios, crianças e velhos,porque
estána
forma
real e palpável das attitudes,do
gesto,
da
simplicidadehumana,
mais
aindado
que
na
phrase.
Pois
ha
quem
leia epossa
esquecer
aquelletremendo
momento
d'incertezaesustodeque nos
livrao santoPaio
A GARRETT
Pois ha
ahiquem
fique impassível ante a figura d'essemesmo
bispo,orgulhoso
epoderoso
como
verdadeirose-nhor
feudal, arrastandono pó do
tardioarrependimento
aaltiva cabeça,
que
bem
pouco
antes se erguiacom
desafio ante a cólera justiceirado
rei, sóporque
as lagrimas eso-luços
d'um
generoso
emoço
coração
ochamam
d vida,chamando-o
ao
remorso
?!
O
quê, poisha
quem
esqueça
aquellemomento
únicoque
fazdo
Alfageme
um
campeão
da independência
eli-berdade
d'esta terra?!
E
ha
coração
de
genteque
não estremeça
ante adu-vida, tão
humana,
de
Magdalena
de
Vilhena,não
querendo
acreditar
na desgraça
que
a precipitainesperadamente
do
alto
da sua
felicidade, tantosannos
sonhada
egosada
sem-pre
com
receio,supplicando ao esposo
queridoque
a oiça,que
duvide,que
aindapôde
ser mentira. .. e é o outroque
se enleva n'essa
voz
amada
epensa
esonha
que
écom
elle?!...
Pois
será possível olvidaco
velho frei Diniz,abrindo
os
braços
ecurvando
acabeça para
receber amorte
dasmãos
do
próprio filho! ?E
Camões
seguindo
até ásombria
crypta o féretrodes-conhecido, que, ao abrir-se, pela derradeira vez, lhe
mos-tra a face pallida
da
que
em
vida fora a sua vida?!. . .E
tanta, tanta coisaque
seriapreciso citar,que nos
estána
alma
econservamos
na
retinacomo
grupo
em
mármore
que
o
cinzelde
Rodin
tivessevincado fortemente
n'uma
contracção
ultima e definitiva.Mas
é fácil e grato fallar d'elleporque,
basta folhearintelle-PRIMEIRO
CENTENÁRIO
ctuaes
que
anós
própriospodemos
dar—
c depois, tirandoao
acaso, transcrever oque
ellepensou
e disse,que
nin-guém
o fezcom
mais
estranhasensibilidade emais
requin-tada arte.O
est}'!©com
que
nos
falia é colorido e quente,como
senas
suas múltiplas facetas batesse obom
sol d'esta terra,que
elleamou
tanto e tanto epor
diversasformas
serviu.A
sua
palavra decorre tão fresca eperfumada
e deleitosacomo
aquelle seu Vallede
Santarém
—
<íem queasplantas^o ar^ a situação,
tudo
estáiiuma
harmonia
suavíssima eperfeita...»
Sobre
todos osassumptos
podemos
procurar
n'elleins-piração e conselho, á
simelhança dos
livros mysticos, que, abertos ao acaso,dão
sempre
a respostaadequada
á ânsiada
alma que
os procura.. .Sendo
assim, equerendo nós
votar aoimmortal
Artistauma
simpleshomenagem
—
que
não
énada
do que
anossa
admiração
e anossa
alma
nos
pediam
—
entendemos
que
amelhor
maneira
de
a realisar era escolherpequenos
fra-gmentos
d'algumas
das suasobras
e publicá-lascomo
feixede
rosas,que
lheofferecemos para
a sua festa.O
que
ahivae nosso
são os singelos bule-bules emyosotis
com
que
éd'uso
acompanhar
as flores primaciaes.^ig.V-í/J
^m
^^^^^w
líiriiiiiiiiiiiiiii^M
)J^
m3
1
^^^
^^g^
^m^^
S
S
^^^Ê^
^m
A
vida da carne étamcurta paraohomem delettras! ... a daglórianá»
lhe põem termooshomens. Garrett.
Grande
entre os grandes, ebem
cedo
Vão-se
apagando
as linhas portentosasDo
teu radioso vulto...Até
parece
—
Tanto
no
olvido ingratovem
cahindo
Teu nome
glorioso—
Que em
era járemota
íioreceste.No
entanto,oh
vate excelso, és quasi d'hôje,Pouco
dobar de
tempo
sehá
dobado
Desde
que
a friacova
te acolheu,E
o teu estrosublime
interessou-seCom
as questõesque
aindaagora
agitam
E
aquecem
nossos
peitos,nossos
lábios.. .Os
teusassumptos
favoritos.As mesmas
bravas
luctas,sonhos
áureos,Anseios
fortespor melhores
dias,E
sedesde
Justiçanão
estancadas,Todos
esses ideaesque
commoveram
E
enthusiasmaram
o teuverbo
altivo12
A
GARRETT
Ainda
agora
os préliossempre
abertos,Dos que
pensam
e solírem pelejando.Talvez por
issomesmo
éque
tevotam
A
um
frio e injustoesquecimento;
Talvez
que
recordar a tuaobra
Pareça qualquer cousa de
fatídico,Juntar quiçá
de
lenha justiceira...N'este pcriodo
sem
côr,sem
brios,De
amarga
e desastrosa impenitencia,Trazer de
novo
á luzTanta
facúndia e tanta graça gastasA
rir e a castigar,demolidoras,
Ridiculos e heroes
apregoados,
É
como
seapontasse
aum
criminoso
As
passadas da ronda
vigilanteE
avoz
pausada d'um
juiz austero.A
glória otlicial, portanto, é lógica:Ou
fingeque
te olvidaOu
aífecta risonha indifferença. ..
Evitando,
porém,
comprometter-se
De
todo. . . quiz prestar-teum
nobre
preito,E
foi render-to, alfim,em
plena rua.Como
a tantos inúteis venturosos.Não
teergueu
éverdade triumphalmente
Na
glória céos adentrod'uma
estátua.Mas,
em
compensação
alta efamosa,
Foi
pregar
o teunome
n'uma
esquina.Justiça, exulta!
Oh
Arte, estaes vingada!. . .A
multidão
que
passa tumultuante
N'essa
artériade
chic^de bom-tom^
Não
perderá
de todo, aomenos,
Teu
nome
na
memoria.
. .Nada
importa
PRMEIRO CENTENÁRIO
i3Que
as escolasnão
leiam,não
recitemA
tuaprosa
linda e os teuspoemas.
. .Que
os theatros sefechem
aos fulgoresDas
tuas criações, enem
um
sóOstente na
portadacomo
tituloTeu nome
immorredoiro.
. .Que
esseConservatório que
criasteNão
telembre
e teimponha
como
deve.. .E
que não merecesse
inda o teucorpo
A
sagração
suprema
de
Paníheon
—
Esse
mesmo
Pantheon
que
reclamaste!.. .Á
glorióla das gentesdominantes
Bastam-lhe
as letrasgordas
n'uma
placaDe
rua concorrida e barulhenta,Nome
immortal no
transcorrerdos
séculos!
Quantas
vezes ergueste a tuavoz
Clamando
por
justiça n'esta terra,E
os teuscarmes
carpiram lamentosos
A
ingratidãoda
Pátriapor
Camões
!
Chegou
a tua hora. Artista ingente,Que
foste opensamento
nobre
e lúcido,A
forma
modelar,
a graça esvelta,A
sonorosa
musa,
um
theatro inteiro,Toda
uma
litt'raturarenovada
Plena de
vida ede
opulências cheia !Chegou
a tua vez.Para
maior
Seres
entre os maiores,para
emfim
Seres condignamente
coroado.Apenas
te faltava «opremio
pily>Da
injustiça cruelda
inditferençalTeu
nome
e teurenome
todaviaNão
hãode
ser,de
todo, postergados.14
A
GARRETT
O
cultodos
que
teamam
do
recônditoDa
suaalma
enternecida: Elles telembram,
elles te festejam.As
suashomenagens,
de
amorosas
E
de
suavemente
m.oduladas,Como
êxtases de crenças e desvelos,Mais
direis orações, pios louvores,Que
enthusiasmos de
quem
acclama
ebrada
Em
festivaes alegresde
triumphos.Embora!
Muito
embora
Sem
fátuos espaventos,sem
ruidosDe
procissões,sem
multidões ignarasQue
unicamente
buscam
vãos
folguedos,—
Melhor! Melhor!...
—
elles teadoram.
Génio
superno,
elles tepõem
alto,Mais
altodo
que
as torres e asmontanhas
Perto
do
céo,toucadas
d'astros!Da
obra de Garrett
Menina
!
Telmo
Maria
«Menina
emoça
me
levaram de
casade
meu
pae:»
éo
princípio d'aquelle livrotam
bonitoque
minha
mãe
dizque
não
intende: intendo-o eu.—
Mas
aquinão ha
menina
nem
moça;
e vós,senhor
Telmo-Paes,
meu
fiel escudeiro, «faredes oque
mandado
vos é.«—
E
não
me
repliques,que
então altercamos, faz-se bulha, e
acorda
minha mãe,
que
éo
que eu não
quero. Coitada!Ha
oito diasque
aquiesta-mos
n'esta casa, e é a primeira noiteque
dorme
com
so-cêgo.
Aquelle
palácio a arder, aquellepovo
a gritar, ore-bate dos sinos, aquella scena toda. . .
oh
!tam
grandiosa esublime,
que
amim me
encheu
de maravilha,que
foium
espectáculo
como
nunca
vi outrode
egualmajestade
!. . .á
minha
pobre
mãe
atterrou-a,não
se lhe tirados
olhos:vai a fechá-los
para
dormir, e dizque
vê aquelíasi8
A
GARRETT
para
o ar, e adevorar
tudo
com
fúria infernal...O
retrattode
meu
pac, aquelledo quarto de
lavortam
seu favorito,em
que
elle estavatam
gentilhomem,
vestidode
cavalleirode Malta
com
a sua cruzbranca
no
peito- aquelle retrattonão
sepôde
consolar deque
lh'onão
salvassem,que
sequeimasse
alli.Vès
tu ? ellaque
não
criaem
agouros,que
sempre
me
estava areprehender
pelasminhas
scismas, agoranão
lhe saida cabeça
que
aperda do
retratto épro-gnostico fatal
de
outraperda
maior
que
está perto,de
al-guma
desgraça
inesperada,mas
certa,que
atem
de
sepa-rar
de
meu
pae.—
E
eu
agora
éque
façode
forte eassi-zada,
que
zombo
de agouros
e de sinnas...para
a animar, coitada!...que
aqui entre nós,Telmo,
nunca
tive tanta fén^elles. Creio,
oh
se creio!que
são avisosque
Deus
nos
manda
para
nos
preparar.—
E
ha. ,. oh!ha grande
des-graça a cahir sobremeu
pae...
decerto! e sobreminha
mãe
também,
que
éo
mesmo.
Tei.mo, disfarçando o terror deque estátomado
Não
digaes isso...Deus hade
fazê-lopor melhor,
que
lh'o
merecem
ambos.
(Cobrando
animo
e exaltando-se)^'osso pae,
D. Maria,
éum
portuguez
ás direitas.Eu
sem-pre o tive
em
boa
conta;mas
agora, depoisque
lhe vifa-zer aquella acção,
—
que
o vi,com
aquellaalma
de
portu-guez
velho, deitar amão
ás tochas, e lançar ellemesmo
o fogo á sua própria casa-,
queimar
e destruirn'uma
hora
tanto
do
seu haver, tanta coisade
seu gosto,para dar
um
exemplo
de liberdade,uma
licçãotremenda
a estes nossos tyrannos. . .oh
minha
querida filha, aquillo éum
homem.
A
minha
vidaque
elle queira é sua.E
aminha
pena,toda
a
minha
pena
éque
onão
conheci,que
onão
estimeisem-pre
no que
elle valia.Maria
PRIMEIRO
CENTENÁRIO
19dos três 7'etratlos que estão
no fundo;
eapontando
para
o
de
D.
João) de
quem
é este retratto aqui,Telmo?
Telmo, olha, eviraa cara derepenle
Esse
é. ..hade
ser. . . éum
da
família,destes
senho-res
da
casa deMmioso
que
aqui estão tantos.Maria, ameaçando-o com o dedo
Tu
não
dizes a verdade,Telmo.
Telmo, ^«,.75/offendido
Eu
nunca
menti,senhora D. Maria
deNoronha.
Maria
Mas
não
diz averdade
toda osenhor
Telmo-Paes;
que
é
quasi omesmo.
Telmo
O
mesmo!.
. . Disse-vos oque
sei, e oque
éverdade:
é
um
cavalleiroda
familia demeu
outroamo
que
Deus
. ..
que
Deus
tenhaem
bom
logar.Maria
E
não
tem
nome
o cavalleiro?Telmo, inibaraçado
Hade
ter:mas
eu éque.
..
Maria, como quem llievaitapara bòcca
Agora
éque
tu iasmentir
de todo: cala-te.—
Não
seipara
que
são estes m3^sterios:cuidam
que eu
heide sersempre
criança!—
Na
noiteque
viemos
para
esta casa,no meio
de
toda
aquelladesordem, eu
eminha
mãe
en-trámos
por
aqui dentro sós eviemos
ter a esta sala.Es-tava alli
um
brandão
acceso, incostado auma
d'essas ca-deirasque
tinham
postono meio da
casa;dava
todoo
A gakui:tt
pela
mão,
põe dcrcpcntc
os olhos iVellc, edá
um
grito,oh
meu
Deus
!. . . licoutam
perdidade
susto,ou
não
seide
què,
que
me
iacahindo
em
cima. Pergunto-lhe oque
é;não
me
respondeu
: arrebntada
tocha, eleva-me
com
uma
força...
com uma
pressa a correrpor
essas casas,que
parecia
que
vinhaalguma
coisamá
atrazde
nós.—
Ficou
n'aquelle estado
em
que
atemos
vistoha
oito dias, cnão
lhe quiz fallar
mais
em
tal.Mas
e3te retrattoque
ellanão
nomeia
nunca
dequem
é, e só dizassim
ás vezes:«O
ou-tro, o outro. . .M este retratto, e o de
meu
pae
que
sequei-mou,
sãoduas
imagens que
lhenão
sahem
do pensamento.
Tki.mo,com anciedade
E
ésta noite ainda lidoumuito
n'isso?Maria
Não:
desde
hontem
pela tarde,que
cá esteve otio FreiJorge e a
animou
com
muitas
palavras deconsolação
ede
esperança
em
Deus,
eque
lhe dissedo
que contava
abran-dar osgovernadores,
minha
mãe
ficou outra; passou-lhede
todo, aomenos
até agora.—
Mas
então,vamos,
tunão
me
dizesdo
retratto?Olha
:(Designando
o d'el-reiD.
Se-bastião) aquelle
do
meio,bem
sabes se o conhecerei: éo
do
meu
querido eamado
reiD.
Sebastião.Que
majes-tade!
que
testa aquellatam
austera,mesmo
d'um
reimoço'
e sincero ainda, leal, verdadeiro,
que
tomou
ao serioo
cargo
de reinar, e jurouque
hade ingrandecer
e cobrirde
glória o seu reino! Ello alli está...
F
pensar
que
haviade
morrer
ásmãos
de
mouros, no
meio
de
um
deserto,que
n\ima
hora
se haviade
apagar
toda a ousadiarefle-ctida
que
está n'aque!les olhos rasgados,no
apertar d'aquellabócca!...
Não
pôde
ser,não
pôde
ser.Deus
não podia
consentir
em
tal.Telmo
Que
Deus
te ouvisse, anjodo
céuPRIMEIRO
CENTENÁRIO
Maria
Pois
não
ha
propheciasque o
dizem?
Ha,
eeu
creion'ellas.
E
também
creio n'aqueiroutroque
alli está; (Indicao
f^etratíode
Camões)
aquelle teuamigo
com
quem
tuan-daste lá pela Índia, n'essa terra de prodígios e bizarrias,
por
onde
elle ia. . .como
é? ah, sim.. .Nua
mão
sempre
aespada
e n'outra apenna.
..Telmo
Oh!
omeu
Luiz, coitado!bem
lh"opagaram. Era
um
rapaz,
mais
moço
do
que
eu,muito
mais. . equando
o
vi a ultima
vez...
foino
alpendrede
San'Domingos
em
Lisboa
—
parece-me que
o estou a ver—
tam mal
trajado,tam
incolhido. ... elleque
eratam
desimbaraçado
ega-lan. . . e então velho! velho alquebrado,
—
com
aquelle olhoque
valiapor
dois,mas
tam
summido
eincovado
já,que eu
dissecommigo
:«Ruim
terra tecomerá
cedo,corpo
da
maior
alma que
deitouPortugal
!»—
E
dei-lheum
abraço...foi
o
último... Ellepareceu
ouvir oque
me
estavadi-zendo
o
pensamento
cápor
dentro, e disse-me :«Adeus,
Telmo
!San'Telmo
sejacommigo
n'estecabo da
navega-ção. . .
que
já vejo terra,amigo»
—
eapontou para
uma
cova
que
alli se estava a abrir.—
Os
fradesrezavam
o of-ficiodos
mortos
na
egreja... Elle entroupara
lá, e eufui-me
embora.
D'ahi aum
mez, vieram-me
aqui dizer:«Lá
foiLuiz
deCamões
n'um
lençolpara
Sant'-Anna.))E
ninguém
mais
fallou n'elle.Maria
Ninguém
mais!...
Pois
não
lem
aquelle livroque
épara
darmemória
aosmais
esquecidos?Telmo
O
livro,sim
: acceitaram-n'ocomo
o tributo deum
despre-A
GARRETT
zam
tudo
oque não
são as suas vaidades,tomaram
o livrocomo
uma
coisaque
lhes fizesseum
servo seu epara
honra
d'elles.O
servo,acabada
a obra, deixaram-n'omor-rer ao
desamparo
sem
lheimportar
com
isso...Quem
sabe
sefolgaram
?podia
pedir-lhesuma
esmolla—
escusa-vam
de
seincommodar
a dizerque
não.Maria, com entlntsiasmo
Está
no
céu.—
Que
océu
fez-separa
osbons
epara
os infelizes,
para
osque
já cáda
terra oadivinharam
!—
Este
lia nos mysteriosde
Deus
; as suas palavras sãode
propheta.
Não
telembras
oque
lá dizdo nosso
reiD.
Se-bastião?. . .como
haviade
elle entãomorrer
?Não
mor-reu.
(Mudando
de
tom)
Mas
o outro, o outro...quem
é este outro,Telmo
?Aquelle
aspectotam
triste, aquellaex-pressão
de
melancholia
tam
profunda.
. . aquellasbarbas
tam
negras
e cerradas.. . e aquellamão
que descança na
espada
como
quem
não
tem
outro arrimo,nem
outroamor
n'esta vida. . .
Telmo, deixando-seswprehender
Pois
tinha,oh
se tinha. ..
(FREILUIZDESOUSA,IIacto,scciíaI).
Oh
gruttade Macáo, soidáo querida,Onde
tamdoces horas de tristeza,De
saudadepassei! grutta benignaQue
escutastemeus
languidos suspiros,Que
ouvisteminhas queixas namoradas;
Oh
fresquidão amena, ohgrato asylo,Onde
me
ia acoitar de acerbas mágoas,Onde
amor, onde apátriame
inspiraramOs maviosos sons e ossons terriveis
Que
hãode affrontar os tempos e a injustiça!Tu
guardarásno seioosmeus
queixumes,PRIMEIRO
CENTENÁRIO
23Os
segredos d'amor queme
escutaste,E
tu dirás aingratos Portuguezes Se portuguez eu fui, seamei a pátria. Se, além d'ella e d'amor, por outro objectoMeu
coraçãobateu, luctoumeu
braçoOu
moduloumeu
verso eternos carmes. Pátria, pátria, rival tufoste á'Ella!
Tu me
ficaste só,não desamparesQuem
por Ella e por tisoffreuconstante,Quem
porti só agorao fio extremo Ténueconserva da existência affiicta...Rosad'amor, rosa purpúrea e bella,
Quem
entre os goivos teesfolhou da campa?(CAMÕES,canto v).
um
rochedo
em
que
me
eu
sente aopôr
do
sol
na gandra
erma
eselvagem,
vestidaapenas de
pastiobravo, baixo, e
tosqueado
renteda
bôcca
do
gado
—
diz-me
coisas
da
terra edo
ceoque
nenhum
outro espectáculome
diz
na
natureza.Ha
um
vago,um
indeciso,um
vaporoso
n'aquelle
quadro que não
tem
nenhum
outro.Não
é osublime
da
montanha,
nem
oaugusto
do
bos-que,nem
oameno
do
valle.Não
ha
ahinada
que
sedeter-mine bem,
que
sepossa
definir positivamente.Ha
asoli-dão que
éuma
idea negativa. . .Eu amo
a charneca.Mas
foicomo
se os fizesse, os versos,como
se osesti-vesse fazendo,
porque
me
deixei cahirn'um
verdadeiroes-tado poético
de
distracção, demudez
—
cessou-me
a vida toda de relação^ enão
sentia existirsenão
por
dentro.24
A GARRETT
amargura
e desconsolação,dos
tremendos
sacrifícios aque
foi
condemnada
esta geração,Deus
sabe para
quê
—
Deus
sabe
separa
expiar as faltasde nossos
passados, separa
comprar
a felicidade denossos vindouros
...
(VIAGENSNAMINHATERRA).
Os
cinco sentidos
São bellas
—
bem
o sei, essas esirellas, Milcores—
divinaestèem essasflores;Mas
eu não tenho,amor,olhosparaellas:Em
todaa naturezaNãovejo outra belleza
Senãoa ti^
—
a ti1
Divina
—
ai! sim, será a voz que affinaSaudosa
—
naramagem
densa, umbrosa. Será;mas
eu do rouxinol quetrinaNãooiço a mellodia,
Nem
sinto outra harmonia Senãoa ti—
a ti!
Respira
—
n'aura que entre as floresgyra, Celeste—
incenso de perfume agreste. Sei... não sinto: minhaalma nãoaspira,Não
percebe, não toma Senãoo doce aromaQue vem
deti—
de tiIFormosos
—
são ospomos
saborosos,E um mimo
—
de néctar o racimo:E
eu tenhofomee sede... sequiosos,Famintos
meus
desejosEstão... masé debejos,
E
sóde ti—
de tiPRIMEIRO
CENTENÁRIO
Macia
—
deve a relva luzidiaDo
leito—
ser porcertoem
queme
deito.Mas
quem
aopé de ti,quem
poderiaSentir outrascaricias,
Tocar n'outras delicias
Senão
em
ti—
em
tiIA
tiI ai, a ti só osmeus
senridosTodos
n'um confundidos. Sentem, ouvem,respiram,Em
ti,por tideliram.Em
tia minha sorte,A
minhavidaem
ti;E
quandovenha a morte, Serámorrerporti.(folhascahidas).
PêroÇafio
Passareis, passareis,
senhor
dassaudades
; passareiscomo
quizerdes,mas
não
sem
voseu
conhecer.Que
por
estas
madrugadas,
por
aqui, etam
recatado. . sóum
ho-mem
que eu conheço
—
um
louco d'atrevidospensamentos
e
desmesurada
confiança... só elle eninguém
mais.—
Ide, ide,
que
este último capituloda
Menina
emoça
não
estápara durar muito
eDeus
queiraque
não
acabe
mal
!
BernardimRibeiro, desimbitçando-se eimbainhando a espada
Amigo,
poisque
me
conheceste,—
que
me
não
posso
incobrir
de
ti—
amigo,
tem
compaixão,
não
me
percas.Confio
da
tua lealdadeque
m'a
guardarás
amim
desgra-çado
e desvalido, amim
omais
infeliz. . .(dá
com
os olhosnimi
annel que íra^ no d-^do^ beija-o repetidas ve\es epro-segiie
em
tom
differente)Antes
omais
afortunadohomem
26
A
GERRETT
nevoeiros aquellas serras,
viçarem
essesarvoredos
tam
bcl-los—
tam
bellosetão verdescomo
asminhas
esperanças!...—
Pêro,
meu
amigo,
eu
sempre
em
ti descobri,com
todaessa tua galhofa e
zombaria,
uma
alma
elevada,um
pen-_samento
grande,capaz de
comprehender
ascoisas altas.—
Conhecem-te
por
cantaresnos
autosde
Gil A'icente eem
similhantes
momos,
não
sabem
de
timais que
os tregeitos e ledicescom
que
tanto ri essa cortesem
alma. essasda-mas sem
espirito, esses fidalgossem
coração.Mas
o teu épara
muito.Pêro:
tu éscapaz de
me
intender.Para mais
é a poesia
da
tuaalma
que
para
ade
teumestre
GilVi-cente...
que
otenho
em
muito
emuito
vale;mas
pêza-me
que
se avalie elleem
tam
pouco.
—
Pêro,
tusabesque
nin-guém
épor
mim,
que
me
não posso
fiar deninguém
;que
só, isolado
no
mundo.
. . vivocom
minha
saudade,
epara
ella e
por
ella. ..Pêro,
eu preciso deum
amigo:
queres
sé-lo tu?
Pêro
Precisas
de
um
amigo,
deum
amigo
que
te intenda,com
uma
alma
grande,capaz..
.não
seide
quê
—
de
su-bir, de trepar até á tua, aos teus
pensamentos,
á altezade
tuas
sublimes
inspirações—
enão
seique
mais
coisasde
versos e de trovadores,
que
ahiimbrulhaste
em
prosa,mas
que
soam
como
cascavéisde
coplas!— Assim
costu-mais sempre.
—
Ora
traduzámos
istoem
romance,
id est^em
lingua vulgar, evem
a dizer:—
Bernardim-Ribeiro,
ho-mem
de
prol e cavalleirode
ousadas imprezas,
metteu-seem
camisa de onze
varaspor
certosamores
que
lh'o diabometteu na
cabeça;andou
asonhar
—
ou
a trovarque
éo
mesmo
—
por
essas serrasde
Cintra, falloucomas
mouras
incantadas
do
castello,incommendou
se áSenhora
da
Pena,
esconjurou a luaem
verso, as estrellasem
prosa.. .Ninguém
lhe acudiu.E
vendo-se
extraordinariamentein-tallado,
em
vez de
tomar
a única resoluçãoprudente
ede
siso
que
em
tal casopodia tomar.
.PRIMEIRO
CENTENÁRIO
Bernardim
Qual
era?Pêro
Ir de passeio
por
Collares fóra,esperarmaré
propícia,—
e atirar
comsigo da
Pedra
cCalvidrar abaixo—
únicotermo
verdadeiro de seus phantasticos e desvairados
amores.
Bernardim,com itnpaciencia
Ah!
Pêro
Sim,
senhor.O
deus do amor,
e todas aquellasn3-m-phas
edeusas
que nos mostra
ca,em
seus autos ecome-dias
famosas, o
amigo
Gil-Vicente, viriam reconhecê-lo; epassaria vida alegre e ditosa
em
terra. . . terra não,que
acoisa era
no
mar
—
mas
entre genteda
sua egualha, coisasdo
outromundo
;que
trovadores epoetasnão
são naturaesd'este
nem
andam
correntespor
ca.Bernardim
E
bem
certo o dizes,amigo.
Um
mundo
devaidades
efingimentos,
um
mundo
árido e falso,em
que
a fortuna cega, os sórdidos interesses, as imaginarias distincçõescor-rompem, quebram
o coração;—
cujas leis iniquasfazem
violência á liberdade natural das
almas
;—
em
que
aami-zade
éum
tráfico—
e o próprioamor,
omais
nobre,o
mais sublime
aífectohumano,
émercadoria
que
sevende
e troca pelas vis e
mesquinhas
conveniênciasda
terra. . .Oh!...
28
A GARRETT
Camões
naufrago
Cedendoá fúria de Neptuno irado
Sossobra a nau que ogran' thesoiro incerra; Lucta co'a morte na espumosa serra
O
divinocantordoGama
ousado.Ai do canto
mimoso
a Lysia dado!.. .Camões, grande Camões, embalde a terra
Teu
braçoforte, nadadorafferra Se o canto lá ficou nomar
salgado.Chorae, Lusos, chorae!
Tu
morre, ó Gama,Foi-se a tua glória... Não;lá vai
rompendo
Co'a dextra o mar, na sestraa lusafama.
Eterno, eterno íicarávivendo:
E
a torpe inveja,que inda agora brama,No
abysmo cahirá do Averno horrendo.Angra
—
i8i5.O
prelado cavalleiro, á frente de seu batalhão délite^parecia reviverde sua vida antiga,
saudar
alegre osperi-gos da
peleja, aturbulenta ebriedadedos
combates
em
que
fora criado.
Mas
sónos
olhos, sóno
palpitar violentodos
seioses-tava toda a excitação.
Mudos,
quedos,
fixos, elle etodos osseus, avista
cravada
nas portasque
chammejavam
etremiam,
provavam
que
a suacoragem
era reflectida e segura,aguar-dando
assim
tranquillos omomento
decisivo esupremo.
Não
tardou elle muito.Uma
das portas cahiuem
milpedaços
ardentes,centelhando
em
faíscas.. . eos sitiantesde
levantarum
tremendo
clamor de
: «Victoria, victoria!»PRIMEIRO
CENTENÁRIO
29No
mesmo
instante,por
entre achuva de
brazidoque
ainda cahia,
porcima
dosmontes
de carvãoescaldando que
rechiavam na
humidade
do
chão,rompeu
sem
mais
ordem,
cega, louca e
amouca
de seu furor eenthusiasmo,
uma
im-mensa
massa
de povo,
que, aosom
dos
vivas e dosmor-ras, entrou pelo átrio densa, confusa,
apertada
eimpu-chada
dasmuito maiores
massas
que
atraz e atrazvinham
sem
soluçãode
continuidade. . .E
vinham
evinham,
ede
seu próprio
peso
se precipitavam,abatendo
eprostrando
quanto
se lhespunha
de deante.(arco de sant'anna,IIvol.).
Preito
É
leido tempo, Senhora,Que
ninguém domine agoraE
todos queiram reinar.Quanto vale n'esta hora
Um
vassallobem
sujeito, Leal de homenage e preitoE
fácil de governar?Pois otal soueu, Senhora:
E
aqui juro e firmo agoraQue
aum
despótico reinarMe
rendo todo n'esta hora,Que
aliberdade sujeito...Não
a reis!—
outro émeu
preito:Anjos
me
hãode governar.3o
A
GARRETT
Nun'Ai.vakes, íornando asi, esentando-se
Alda!
—
Foi aespada de
meu
pae
: a justiça erapor
ella.
(Levantando-se
em
pé.)Náo
estou ferido:o
poder
d'aquella
espada
me
derribou eme
fez cahirem
mim.
Soisum
homem
honrado, Alfageme.
—
Alda,
perdôa-me,
per-doa
a teuirmão.
. .que
náo
é já. . .que
hade
vir anáo
ser...
mais
que
teu irraáo.—
A
minha
espada,Fernáo
Vaz.
Ai.fageme
Ei-la aqui,
senhor
cavalleiro.Nun'Alvares,beijando-a muitas vejes
Espada
de
meu
pae,que
tam
bem
começas
a servir-me!Tu
serásna minha
máo.
. .Alfageme,com enthusiasmo
Um
raiode
glória!
Alda, do
mesmo modo
Um
symbolo
de
honra
! AlfagemeA
defensáo
de Portugal
! FroilãoA
victoriade
Christo !Alfageme, comestase
Sereis o primeiro
homem
de
Portugal,D.
Nuno
Alva-res Pereira!
Náo
vos pêze,não
vos pejeisde
servencido
do
pobre Alfageme.
Foi essa espada,que
tem
ocondão
de dar
sempre
a victoria aquem
aimpunhar
pela virtude.Essa
espada
é de incauto.Nunca
vilamina
assim.Boas
íadas a
fadaram
;ou
antes,no
rioJordão por
mãos
de
an-jos foi
temperada.
Tenho
feito,tenho
corrigidomuita
PRIMEIRO
CENTENÁRIO
3iquaes
essa deita.Essa
espada
vos fará grande, vosdará
titulos, honras, vos fará. . .
conde,
condestaveldo
reino.. .e digno de
tudo
isso!(ALFAGEME DE SANTARÉM,aCtOIII,SCenaXII).
Joanninha
não
era bella, talveznem
galante siquerno
sentido
popular
e expressivoque
a palavratem
em
portu-guez,mas
era otypo da
gentileza, o idealda
espirituali-dade.
Poucas
mulheres
sãomuito mais
baixas, e ella pareciaalta:
tam
delicada,tam
elancée era aforma
airosado
seu corpo.E
não
era ogarbo
teso eaprumado
da
perpendicular miss inglezaque
parece
fundidade
uma
sópeça;
não,mas
flexível eondulante
como
a hástea jovenda
árvoreque
é direitamas
dobradiça, forteda
vidade
toda a seivacom
que
nasceu, e tenraque
a estallaqualquer
ventoforte.Era
branca,mas
não
d'essebranco
importuno
das loi-ras,nem
do branco
terso, duro,marmóreo
das ruivas—
sim
d'aquellamodesta
alvurada
ceraque
se illuminade
um
pallido reflexo de rosade
Bengalla.E
d'outras rosas, d'estas rosas-rosasque
denunciam
toda a
franqueza de
um
sangue
que passa
livre pelocora-ção
e corre á suavontade por
artériasem
que
osnervos
não dominam,
d'essasnão
as havia n'aquelle rosto: rostosereno
como
é sereno omar
em
diade calma, porque
dorme
o vento. . .AUi
dormiam
as paixões.Que
se levante amais
ligeira brisa, basta o seumacio
bafejo
para
increspar a superfícieespelhada
do mar.
Sussurre
omais ingénuo
esuave
movimento
d'alma
no
A
GARRETT
primeiro acordar das paixões, e verão
como
sesobresaltam
os
músculos
agora
tam
quietosdaquella
face tranquilla.O
nariz ligeiramente aquilino: abôcca
pequena
edel-gada
não
cortejavanem
desdenhava o
sorriso,mas
a suaexpressão
natural e habitual erauma
gravidade
singelaque
não
tinha amenor
aspereza
nem
doutorice.Ha
umas
certasboquinhas
gravesinhas eespremidi-nhas
pela doutoriceque
são amais
abborrecidinha coisa e amais
pequinha
que Deus
permitte fazer as suas creatu-ras fêmeas.Que
votos,que
novenas
senão
fazem
aSan'Barome-tro
nas
vésperas
de
um
bailepara
lhe pediruma
atmos-phera
sçcca ebenigna
que
deixe conservar, até á quartacontradança
aomenos,
a preciosaobra
de carrapito e ferroquente, de
macassar
emandolina
que
tanto trabalho etanto
tempo,
tantos sustos ecuidados
custou!Em
geral, asmulheres
parecem
terno
cabello amesma
fé
que
tinhaSansão
: oque
n'elle se iaem
lh'os cortando,cuidam
ellasque
se lhes vaiem
lh"os desannellando? Tal-vez: eeu
não
estou longede
o crer:canudo
inflexível,mulher
inflexível.(viagensna minha terra).
Oh
!magasillusões,oh! contos lindos,Que
áslongas noites tie comprido hynvernoNossos avós felizes intertinheis
Aopé
do amigo lar,ao crebro estalloDa
saltante castanha,e appetitosoCheiro do grosso lombo, que volvendo Pingae rechia sobre abraza viva!.,
.
Pimponices de andantescavalleiros
PRIMEIRO
CENTENÁRIO
33Malandrinices de Merlin barbudo, Travessuras de lépidosduendes,
E
vós, formosas moirasincantadas,Na
noite desan'João aopé da fonteÁureastranças
com
pentes d'oiro fino Descuidadas penteando—
emquanto o orvalhoNas esparsasmadeixas arrocia
E
os lúcidos anneis de perlas touca.. .Oh
I magas illusÕes,porque não possoCrer-vos euco' a fé viva d'outra edade.
Em
que de bôcca aberta esem respiro.Sem
pestenejoum
só,de olhos e orelhasNo
Castello escutava aboa BrígidaSuaslongas historiasrecontando D'almas brancas trepadaspor figueiras, D'expertasbruxas de unto besuntadas
Já pelas cheminés fazendo vispere. Já indo. ásdúzias,
em
casquinha d'ovo A' índia de passeio n'umanoite. . .E
ai! seo gallo cantou, queá fatal hora Incantos quebram, e opoder lh'acaba.(d.branxa,canto iii).
Conde
Nillo
Conde
Nillo, conde Mllo Seu cavallovai banhar;Em
quanto o cavallo bebe.Armou
um
lindo cantar.Com
o escuroque fazia Elreinão o pôde avistar.Mal sabe a pobre dainfanta
Se hade rir, se hade chorar.
—
nCalla,minhafilha, escuta.Ouvirás
um
bel cantar:Ou
são os anjos no ceo,34
A
GARRETT
—
«Não são os anjos no ceo,Nem
a sereia no mar:E'oconde Nillo,
meu
pae,Que commigo
quer casar.»—
«Quem
falia no conde Nillo,Quem
se atreveanomear
Esse vassallo rebelde
Que
eu mandei desterrar?»—
«Senhor, a culpa é só minha,A
mim
deveis castigar:Não
possoviver sem elle.. .Fui euque o mandei chamar.»
—
«Calla-tc, filha traidora,Não
te queirasdeshonrar. Antesque o diaamanheçaVe-lo-has ira degollar.»
—
«Algozqueo mattar a elle,A
mim me
tem demattar;Adonde
a cova lhe abrirem,A
mim me
tèemde interrar.»Por
quem
dobra aquellacampa,Por
quem
estáa dobrar.''—
«Morto é o conde Nillo,A
infanta já a expirar,Abertas estãoascovas.
Agora osvão interrar: Elle no adro da egreja,
A
infanta aopé do altar».De
um
nasceraum
cypreste,E
do outroum
laranjal;
Um
crescia,outro crescia, Go'as pontas seiam beijar. Elrei apenas tal soube.Logo
osmandara cortar.Um
deitava sangue vivo,O
outro sangue real;De
um
nascerauma
pomba,De
outroum
pombo
torquaz. Senta-seelrei a comer,Na
mesa lhe iam poisar:PRIMEIRO
CENTENÁRIO
35E
malhaja tanto amar!Nem
navidanem
na morte Nuncaospude separar.»(romanceiro,IIIvolume)
Ao
acaso
A
litteratura é filhada
terra,como
os Titansda
fabula,e
á sua terra sedeve
deitarpara
ganhar
forçasnovas
quando
se sente exhausta.. . .
tudo nos
tem sempre
assim
idoem
Portugal, cujofado é
começar
asgrandes cousas do
mundo,
vê-lasaca-bar por
outros—acordarmos
depois á luz—
distante Já—
do
fachoque accendêramos,
olhar ároda de
nós,—
enão
ver
senão
trevas!A
calúmnia
écomo
as trevas,quanto
mais
grossassão,menos
se vê.... as pretensões clericaes,
por
lá epor
cá,por
toda aparte
vão levantando
uma
cabeça
que
ninguém
diriase-não
que
esta gentevem
dos
antípodas—
ou que
são os«sette
dormentes da Grécia»
que
acordaram
agora
enão
sabem
oque por
cá foi, n'este último século sobre tudo.A
virtude e o méritode
uma
mulher
são a coisamais
36
A
GARRETT
... tu sabes o
que
é sentar-seum
foragido nas ribeirasde
terra extranha, a olharpara
aquellescampos
que não
são seus, a vêr aquelles rostos
que não conhece,
a ouvir aquellas faliasque não
intende e sentir-sc.. . sentir-se cahiro
coraçãode
desapego
e desconforto?. . .
Nos
assumptos
nacionaesporém,
aomenos
para
nós,
ha
um
terrenoalém
do
qual a scenanão supporta o
verso.
D.
Sebastião é talvez o último character histórico aquem
aindapodessemos
ouvir recitarhendecassylabos
:Antes do
centenário
GARRETT
4-2-1799=4-2-1^99
Telmo.
—
«Oh, oli! Livropara damas ecavalleiros e para todos, um livro
que serve paratodos, comonão ha
outro...»
FreiLuiz de Sousa.
Isto disse elle, pelabocca do seu humilde, fiel ebondoso
Telmo
Paes, do grandelivro nacional: os Lusíadas.
E
quem
odisse já porventura,com
amesma
justiça,dasuaobra? D'essa obra que, parecendo por vezes até frágil e superficial, á força de singeleza e delicada arte, é aomesmo
tempo tãoextraordi-nariamente vigorosa e vasta; d'essa obra, a mais variada e a mais completa de todas quantas se hão levantado na nossalingua,
em
todosos ramos sempre alta,
em
todos osgéneros superior sempre; d'essaobra que evocouopassado e o fez reviver a nossos olhos,
como
pre-viu tantavezo futurocom
uma
presciência genialI...
Nas memorias de Garrett, dizia ha dezesete annos o seu amigo
mais fervoroso, o seu admirador mais incondicional: Francisco
Go-mes d'Amorim
—
queum
quarto de século decorrido sobre a suamorte seria o bastante parafazer calaros resentimentos e as invejas, e levantara plenaluz a gloriosafigura do immortalpoeta.
Mas
não foi!
Então, eram alguns amigosque sustentavam o fogo sagrado;hoje,
serão, quando muito,
uma
dúzia d'intellectuaes, queoamam
evene-ram e a cada passo o recordam,
mas
timidamente,como
vozes isola-das dequem
se sente mal entre as multidões barulhentas e banaes.40
A
GARRETT
tão alto, o veneram e querem
com
taes extremos de carinho, que chegaa seradoração.Mas
é preciso mais!Se
bem
que a litteratura de Garrett,por muitointellectualque'
é, pela graça e maneiras, quasi sempre fidalgamente artísticas,não tenha podidopopularisar-se, é precisoque Portugalinteirooconheça; que os nossos filhos se acostumem a Ic-lo desde pequeninos e que decorem aquelles seus ronitinccs d'uma toada lluente e tão portu-gueza,
como
murmúrio de ribeira límpida que vae a caminho domar
. .Que
os nossos actores ocomprehendam
e interpretem; queas
nossas plateas se descubram religiosamentedeante da immortalobra d'arte
—
grande e genialem
todo omundo
—
o seu Frei Lui^ de Sousa; que todos saibam rircom
as suas comedias, orad'uma gra-ciosidade fina e aristocrática,oracascalhadamente satyricas,castiga-doras de defeitos e ridículos.
Que
todos aprendam a conheceros typos evocados ou creados ao sopro do Mestre inegualavel, e que serão, jáagora, typosimmor-redoíros,
como
elle próprio,como
todaa sua obra. 'Estamos
em
fins de dezembro de 1898; faltaum
mez
—
apenasum
mez
!—
para o centenário do seu nascimento.E
preciso clamarjustiça, rompera muralha degelo que encobreo seu vulto gigantesco a este miserável povo, d'olhos fitos na terra, para onde vae tom-bandç!..
.
E
preciso... Masquem
o faz?Lá de tempos a tempos
uma
pequena noticia nos jornaes, es-condida ecomo
que envergonhada,vem
dizer-nos que alguémha que não esquece o Mestre.Mas
essas,como
a nossa, são vozes isoladas, quepouco ou nadaconseguem.
Onde
uma
commissaoorganisadora da suafesta—
quefaça publi-car os seus livrosem
successivas e baratas edições; que obrigue osjornaes a interessarem-se por esteassumpto de
bem
maiorutilidadedo que muitos que os entreteem; quelhe levante
uma
estatua; queespalhe os seus retratos e o seu busto; que o levepara
um
tumulodigno da sua obrae do seu
immenso
talento?!...Esse tumulo, está na consciência de todos, só pôde ser os
Jero-nymos.
Quando
foi da glorificação de João de Deus, disseum
jornalde rapazes—
pouco mais oumenos
estas palavras, queme
ficaramdememoria por
me
parecerem entãoum
despertar de energia n'este paiz de covardes resignações: «Herculano e João de Deus estãonopantheon nacional, mas falta Garrett, a
quem
se fará justiçabreve-mente; depois Anthero e Camillo. Hão-de paralá ir todos,ainda que
sejam levados aos hombros dos novos».
Mas
essas palavras não representaram maisdo queum
enthusias-mo
de occasião. Perderam-se na confusão de momento, e amocidade,como
o povo,como
Portugal inteiro,vae á tôa, d'olhosfechados,paraonde a
chama
o clamor de mais apregoadas glorias.Queremos
Garrettnos Jeronymos. Se Herculano o mereceu, elletem o
mesmo
direito.cons-PRIMEIRO
CENTENÁRIO
41ciênciaportugueza ter
um
dia sido escutada, segue-se quenuncamais o possavir ser?Pois melhor do que o sombrio historiador estava entre osbrancos
e leves mármores dosJeronymos o tumulo do maiorartistaque tem
nascido
em
terrasportuguezas.O
seu estylo de correcção eelegânciasem egual não desdizia da sumptuosa e ao
mesmo
tempo leve ebrin-cada architectura do templo.
E' n'esse monumento,querepresenta a nossa grandeza passada,
que concretisa, por assim dizer, o génio portugueze a sublime
aven-turaque nos conservaránahistoria,queelle tem o seu logardedireito.
Não
em
capella suja,forrada depannos e coroas artificiaes e de-botadas,cheirandoamortee a tristeza; masem
capellaespecial,muitoclara,alta,vasta, e trabalhada, ao
mesmo
tempo simpleserequintada-mente artística
como
asua obra, que respira avida, agraça, a elegân-ciada nobre ehumana
artegrega.O
seunome como
o seu talento requerem muito!Mas, a nãose lhe fazero que elle merece, deixá-lo estar onde
es-tá,
em
tumulo deempréstimo, modestoe resignado.Se a suaapothéose não forcondignamente feita, deixem.
Elle—
como
Victor Hugo, hoje quasi esquecido,podeesperar, na phrase deum
escriptor francez.Elle
—
como
Camões, terá a sua hora de justiça.Setúbal,3o dedezembrode1898.
Anna
deCastro Osório.[Século,deLisboa,n." 6:109,dei2-i."-iS99).
GARRETT
E
O SEU
CENTENÁRIO
Camões, levantado do seu tumulo de três séculos pelo esforço
d'um núcleo de publicistas esteados por
um
conjuncto de forçasde-mocráticas então
em
irrompentese ingénuos rebates de vida,teveem
1880a suaverdadeirahora de resurgimento.De
envoltacom
a apothéose do génio dos Lii^^iadas, pareciair-se abriruma
nova era de bellas e saudáveis luctas, rasgar horisontesmais amplos
em
que ospulmões d'umanacionalidade anemicarespi-rassem melhor... Essasfloridas esperanças,porém,murcharam cedo.
Eram
pordemais platónicas e cândidas para poderem dar fructo.Mas
a própria porção, que a houve, de ensinamento civico,deestímulos de vida, de orientação intellectual,
—
com
quetodas as so-ciedades, sejam quaes forem os seus systhemas de viver, só teem a lucrar—
fracassou totalmente.Não
obstante tal fracasso,—
e é isto o que aomomento convém
frisar
—
aobra de sagração precisae de justiça tardia fez-se.Ossadas, authenticas ou não, tiveram as honrarias solemnes da entrada dosJeronymos
42
A
GARRETT
A
intenção éque vale, a intenção salva tudo.João de Deus. o doce Ivrico do (lampo deFlores^o fácil e
aben-çoado mestre da Cartilha Maternal, teve, mais feliz do queo gran-dioso cantor dasnossasépicas grandezas, a suaconsagração ainda
em
vida.
Morto, pouco depois, a celebração reaffirmou-se, calorosa, na
ardência do enihusiasmo da mocidade das escolas generosa e bo-hemia...
.
O
seu corpo, embalsamadocomo
um
inútil grande—
senhor, é verdade que semumifica n'uma capella lóbrega, namá
companhia detarrapos bolorentos, o quefaz acceitar os desejos d'aquellequeo pre-feria ver, ao ingénuo inspirado do nossolead,cá fora,sepultado
em
plena natureza, entre as gorgeadas pastoraes dos passarinhos e as thuribulações de canteirosde rosas..Mas emfim lá está, na intenção apotheotica, feito
um
dosraros santos do Fios sanctorwn da arte e do pensamento portuguezes..
Para breve
—
como
não bastando taes manifestações coroadoras—
projecta-seuma
romarianova, arelembrar o gloriosomorto. Herculano, embora não levantado nos escudos deuma
grandecommemoração
nacional, teve, mais feliz do queambos
aquelles,a alterosahomenagem
deum
monumento
fúnebre seue so seu,monu-mento lindo
em
mármore
branco n'uma capella própria toda de branco, que respira o quer que seja da pureza e da solemnidadedoprosador-poeta das Lendas eAarratn'as.
E
Garrett?!...Onde
está elle?Eu
próprio não o sei, e para conhecer o seu paradeiro tenho que irfolhearas grossasMemoriaspiedosas de
Gomes
de Amorim.Pois o poeta adoráveldas Folhascahidas,essalyrica extraordiná-ria dos seus cincoenta annos; o dramaturgo único da nossaterra,que
trabalhou essa
commovedóra
e formidável angustia, grandecomo
as grandes criações do theairo épico de Sliaktpeare^ não merece,como
João de Deus, a honra posthuma de Pantheon? Pois ao evocador, ao
mesmo
tempo monumental e gracioso, de tantapagina histórica; aovate grandíloquo do Camões, que só Garrett poderia cantar
condigna-mente; ao ressuscitador do Romanceiro; nãoseergue
um
monumento
fúnebre,
como
a Herculano,um
monumento
digno donome
de Gar-rett eda sua obratãn complexa e sempre sublime?Que
justiça é esta então, quese escancara amável e premiadôra parauns, e se fecha,vendada e muda, para os outros, pelomenos
tãodignos da
mesma
homenagem
nacional?Em
que se entreteemoshomens
de lettras d'esta terra, afora osseus mesteres quotidianos obrigados ao consolofinal do chá e torra-das e da somneca
com
barrete de algodão.''E
a mocidade, a rapaziada enthusiastaquejurou transportaraosseus hombros
—
andores três vezes santos—
os talentos que,com
Garrett á frente, teem jús á entrada triumphal sob as laçarias de
Santa Maria de Belém, o que faz, o que faz ella?I...
Não faz nada. Ninguém parece mexerse.. .
E
o Porto continuade braços cruzados, n'uma apathia que é mais do que
um
crime, o Porto, cidade de trabalho e de pensamento, a terra natal de AlmeidaGarrett
—
cuja obra certamente valeum
pouco mais do que o coração deD. Pedro4.»..PRIMEIRO
CENTENÁRIO
48Nem
monumento
que lhe seja jazidatriumphal,nem
festejosquesejam manifestaçõespublicas de consagração gratae justiceira.
O
pouco, o quasi nada que começa agora a despontar, á ultimaho'a, sem já haver tempo material para nada de geito e de tomo,
como
que envergonhadamente, amodos
dequem
esfrega ainda osolhos a disfarçar o compromettimento de
quem
sevè acordado tão tarde.. . esse pouco é talvez unicamente devido aum
homem,
ãum
poeta, que vive longe, que,de lá, aborrece e
ama
a saudosa pátriaem
resvalo misérrimo...
Esse
homem,
que muitosdetractores chasqueiam, é útil; sabe, aocontrario dos seus chasqueadores, fazer convergir sobre as nossas cousas aindauns olhares curiosos de estrangeiros..
.
E
Joaquim de Araújo.E
vae vêr-se, provavelmente, este caso edificante: a Itália, a França, aAUemanha
talvez,a festejar mais o poeta da D. Branca edoCamões
do que a própria cidade do Porto edo que aprópria capital do reino portuguez.
Quem
escreveestaslinhasnãoveiumaiscedo á rua, aclamarestas eoutrasverdades, luctuosas de muito tristes,sangrentas de palpitante sinceridade e de justificada revolta, porquenão sesentiacom
—
vá aphrase consagrada
—
a auctoridade bastantepara o fazer.Mas n'este caso ainda,
como
em
outros, oshomens
para a acçãoteem que sahir da fileiracerrada daspraçasdepret.Oschefes ficam- se
commodamente
em
penates,prompto? a adherirao primeiro instante victorioso, já apromptando ascabeçasveneráveis para enfiar ascoroas delouros.. .Pela minha parte trabalharei,embora já tarde. Trabalho, quando
mais não seja,paraformação do
meu
protesto.Paulino de Oliveira.
(Districto,de Setúbal,n." SgS,de8-i."-i8q9)
CENTENÁRIO
GARRETT
No
dia 4 de fevereiro secompleta oprimeiro centenário donas-cimento do eminente litterato e poetaVisconde de Almeida Garrett.
Gostosamente publicámos no primeiro logar da nossa folha, o
artigo que, a este respeito, nos,enviou o, sr. Paulino de Oliveira, conhecido litterato da pátria de Elmano.
É
um
brado eloquente da justiçacom
que devera celebrar-se a manifestação do centenário deGarrett, fazendo repercussãod'este