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O TERRITÓRIO GUARANI NO LITORAL SULCATARINENSE: OCUPAÇÃO E ABANDONO NO LIMIAR DO PERÍODO COLONIAL

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Academic year: 2021

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SULCATARINENSE: OCUPAÇÃO E ABANDONO NO

LIMIAR DO PERÍODO COLONIAL

Rafael Guedes MILHEIRA* Paulo DEBLASIS**

Resumo

O território Guarani no litoral sulcatarinense: ocupação e abandono no limiar do período colonial

Este trabalho apresenta um modelo arqueológico de ocupação regional dos grupos Guarani no litoral sul do Estado de Santa Catarina, mais especifica- mente na área que envolve o município de Jaguaruna. Com base em dados provenientes de prospecções, escavações, datações e análise dos vestígios coletados foi possível construir uma narrativa sobre o processo de ocupação e abandono dos grupos Guarani naquela área, de forma a contribuir para a história indígena regional. O modelo busca, de um lado, explorar aspectos da territorialidade Guarani na região, com base na articulação sistêmica dos sítios na paisagem regional e uma robusta cronologia radiocarbônica; de outro, examinar os processos de ocupação e abandono deste território no limiar do período colonial.

Resumen

EI territorio Guaraní en la costa surcatarinense: la ocupación y el abandono en el umbral de la época colonial

Este trabajo presenta un modelo arqueológico de ocupación regional de los grupos guaraníes en la costa sur dei estado de Santa Catarina, específica- mente en los alrededores de la ciudad de Jaguaruna. Basado en datas de prospecciones, excavaciones, dataciones y análisis de los rastros recogidos fue posible construir una narrativa sobre el proceso de ocupación y aban- dono de los grupos guaraníes en esta zona con el fin de contribuir a la histo-

* Universidade Federal de Pelotas.

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ria indígena regional. EI modelo busca, por un lado, la exploración de los aspectos de la territorialidad en la Guaraní en la región, con base en la arti- culación sistémica de los sitios en el paisaje regional y una robusta cronolo- gía radio carbónica, y de otro lado, examinar los procesos de ocupación abandono dei territorio en el comienzo de la época colonial.

Abstract

The Guarani territory on the southern coast of Santa Catarina: occupation and abandonment on the threshold of the colonial period

This article presents an archaeological model for the Guarani occupation of the southern coastal plains of Santa Catarina, specifically the area that sur- rounds the small town of Jaguaruna. Data from regional surveys, intra-site investigations, dating and artifact analyses, made it possible to describe the occupation and abandonment processes of the Guarani groups in the area, thus contributing to the elaboration of a deeper and clearer history of the indigenous societies of southern Brazil. Besides modeling the regional set- tlement pattern of the Guarani at the southern coastal lowland landscapes using a robust radiocarbon-derived chronology, this study also aims to exam- ine occupation and abandonment patterns at the local level at the threshold of the colonial period.

Résumé

Le territoire des Guarani sur la côte sud de Santa Catarina: /'occupation et l'abandon au seuil de la période coloniale

Cet article présente un modele archéologique pour l'occupation par des groupes régionaux Guaranis de la côte sud de l'État de Santa Catarina, plus précisément dans la région entourant la ville de Jaguaruna. Basé sur des données provenant d'enquêtes, de fouilles, la datation et l'analyse des objets recueillis, il a été possible de décrire le processus d'occupation et d'abandon de la région par le groupe Guarani, contribuant ainsi à une meilleure com- préhension de l'histoire autochtone du sud du Brésil. Le modele cherche, d'une part, à explorer des aspects de territorialité dans la région Guarani, basée sur l'articulation systémique des sites dans un paysage régional et d'une chronologie radiocarbone robuste, et deuxlernernent, à examiner le processus d'occupation et d'abandon du territoire au seuil de la période colo- niale.

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Introdução

Durante muito tempo o foco das pesquisas arqueológicas no litoral sul- catarinense esteve direcionado ao estudo dos numerosos e monumentais sambaquis ali presentes (p. e. Beck 1972, Hurt 1974, Fish et ai., 2000,

DeBlasis et ai., 2007), em detrimento dos demais contextos culturais pré- coloniais encontradiços naquela mesma região. Alternativamente, a pre- sente pesquisa desloca o olhar, por tanto tempo entretido com as socieda- des sambaquieiras, para os numerosos assentamentos Guarani distribuídos por toda a zona costeira do sul catarinense. Esta abordagem tem seus antecedentes nas pesquisas de João Alfredo Rohr (1969, 1976, 1984 ), que sempre demonstrou grande interesse no estudo das popu- lações indígenas pré-coloniais daquela área, atentando ao descaso em relação aos sítios Guarani da região de Laguna e Jaguaruna, pois, segun- do ele (1976, p. 360), "os geólogos e arqueólogos limitaram-se a estudar e registrar apenas os sambaquis, sem se preocuparem com outros sítios arqueológicos, que não chamassem, tão prontamente, a atenção. Em vista disto, não possuímos, ainda, uma noção clara e completa da realidade arqueológica de Laguna".

Assim, este artigo sintetiza algumas características gerais da ocupação Guarani no município de Jaguaruna, sul de Santa Catarina, estudadas por Milheira (201 O) em sua tese de doutorado.1

Com base nas características formais e estruturais dos sítios pesquisa- dos; na análise das coleções exumadas e de um conjunto de datações ra- diocarbônicas, assim como em dados históricos e analogias etnográficas, as estratégias de assentamento dos grupos Guarani na paisagem litorânea foram examinadas e, atentando-se para a articulação entre diferentes áreas do território de domínio, função de sítio e aspectos da organização social, que, neste texto, serão apenas sintetizados (para detalhes ver Milheira 201 O). O foco do presente artigo recai mais especificamente em certas ca- racterísticas específicas do registro arqueológico encontrado em alguns sí- tios Guarani da região. Tais características, juntamente com os dados cronológicos obtidos nesse estudo, permitem abordar um aspecto da história Guarani pouco documentado arqueologicamente, que diz respeito aos pro- cessos de abandono e ao momento de cantata cultural com os colonizadores de origem europeia. Neste sentido, o artigo tem a intenção de contribuir para uma perspectiva mais abrangente, embasada em estudos arqueológicos,

1 O estudo de Rafael Milheira (201 O) sobre a ocupação Guarani no litoral sul catarinense foi

desenvolvido no âmbito do projeto temático de longa duração Sambaquis e Paisagem

(FAPESP 2004/11038-0), com bolsa da mesma instituição, tornando-se sua tese de doutora-

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sobre a ruptura abrupta que o modo de vida tradicional dessas sociedades conheceu quando da chegada dos europeus e de seu estabelecimento na recém-fundada colônia.

A ruptura cultural e o abandono forçado de seus territórios a que as sociedades nativas foram submetidas a partir de meados do século XVI

configura um momento muito importante para a história dos grupos indíge- nas no Brasil. A historiografia tem insistido no fato de que este cantata deflagra um processo de depopulação das sociedades indígenas por todo o continente, aspecto este que vem sendo trabalhado a partir da perspecti- va da análise da documentação escrita disponível para aquele período (Monteiro 1992, 2005; Fausto 1992). No entanto, sob uma perspectiva ar- queológica, a indicação da existência de algum cantata cultural entre índios e brancos é baseada, geralmente, na presença de elementos da cultura material europeia (por exemplo, louça, instrumentos em ferro e vestígios de roupas) no registro arqueológico; dificilmente estes vestígios são conside- rados de uma perspectiva da história das sociedades indígenas. De fato, basta uma leitura rápida dos trabalhos arqueológicos que se debruçaram sobre a questão dos cantatas culturais entre os grupos indígenas e euro- peus para se perceber que o assim chamado "cantata" foi sempre pensado de forma superficial, raramente extrapolando a noção óbvia de que houve um cantata mais ou menos súbito entre dois universos culturais bastante distintos, e que esse cantata se deu ao longo de uma extensão geográfica considerável (Schaden 197 4, Prous 1991, Fausto 2000, Rogge 2005, Fu- nari e Noelli 2009).

Faz-se necessário que o estudo do fenômeno do cantata entre as cultu- ras europeias e americanas extrapole a perspectiva eurocêntrica que, infe- lizmente, ainda prepondera nas abordagens arqueológicas sobre esta questão. É importante que este tema de pesquisa adentre a agenda arque- ológica, de forma a contribuir de fato para a construção de uma história indígena. Temas como depopulação, violência, conflitos belicosos, escravi- zação e parcerias políticas escravagistas com as próprias sociedades indí- genas, concernentes principalmente aos primórdios do período colonial do Brasil, também devem ser abordados pela arqueologia, de maneira a con- tribuir para a construção de uma perspectiva propriamente indígena destas questões. A prática de uma "arqueologia do conflito" ou da "ocupação eu- ropeia da América" deve estar apta a superar as dificuldades (ideológicas e metodológicas) que se interpõem em seu caminho e aceitar o desafio, já encarado por historiadores e bioantropólogos, de construir uma história indígena para além das perspectivas ocidentais, para além da mera obser- vação de elementos típicos da cultura material europeia articulados a con- textos históricos muito bem conhecidos. Esta é a direção para a qual aponta este artigo.

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A região de estudo

A área de pesquisa concentra-se na região de paleodunas pleistocênicas pediplanadas existentes no entorno dos municípios de Jaguaruna e Morro Grande, litoral sul de Santa Catarina (uma área com aproximadamente 350km2), onde os levantamentos de Rohr (1969, 1984) haviam já apontado a

existência de um considerável adensamento de sítios arqueológicos cultu- ralmente associados aos grupos falantes da língua Guarani documentados histórica e etnograficamente no sul do Brasil (Fausto 1992, Garlet 1997, Monteiro 2005). Este recorte geográfico, acompanhado pela linha de praia com uma orientação geral sudoeste a nordeste, é delimitado pelas lagoas da Garopaba e da Jaguaruna ao norte. Enquanto, a oeste, estabeleceu-se um limite arbitrário representado pela rodovia BR-101, que bordeja o piemonte da encosta catarinense em sentido, grosso modo, paralelo à linha de costa. Ao sul o limite é a margem esquerda do rio Urussanga, que separa os muni- cípios de Jaguaruna e Içara. Esta área compreende uma série de localida- des como Camacho, Morro Grande, Morro Bonito, Olho D'água, Laranjal, entre outras, que emprestaram seus nomes aos sítios arqueológicos nelas situados.

Do ponto de vista geológico, a região é composta por uma série de even- tos sedimentares distintos, mas interdependentes, de origem eólica, lagunar e marinha (ancorados em afloramentos cristalinos, braços de serra ou anti- gas ilhas, hoje incorporados ao continente), que se configuram na forma de quatro tipos de sistemas deposicionais interatuantes: lagunar, barra- barreira, planície costeira (strandplain) e eólico (Giannini 1993 e 2002, Kneip 2004, Sawakuchi 2003). Ao norte e nordeste a região é delimitada por um extenso complexo lagunar intercomunicante que se estende até a região de lmbituba, área esta com a maior incidência de sambaquis de porte mo- numental do Brasil (DeBlasis et ai., 2007, Assunção 2010, Giannini et ai 2010). A vegetação é do tipo Floresta Ombrófila Densa, mata pluvial da costa atlântica, da planície litorânea à encosta da Serra do Mar (GA- PLAN/SC 1986). As chuvas se mantêm amenas no inverno e bem distribuí- das ao longo do ano, o que garante a presença de cobertura florestal nesta região subtropical do Brasil, distinguindo-se aí duas zonas de ocorrência, ou formações. Segundo Lavina (2000), a formação Submontana desenvolve-se sobre terrenos com altitude entre 30 e 400m, sendo por isso, mais comum na encosta da serra catarinense do que na área aqui examinada. A forma- ção de Terras Baixas é bastante típica de planícies úmidas, adaptando-se às condições edáficas.

Dos três tipos de floresta de baixada descritos por Klein (1978), o predo- minante nos terrenos arenosos mais elevados e pediplanados das dunas mais antigas, onde se encontra a maior parte das aldeias Guarani, é a flores- ta de solos bem drenados, estando as matas de brejo à beira de lagoas nun-

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ca muito distantes. O que predomina nas baixadas planas, arenosas e úmi- das são as formações de mata de restinga, hoje, infelizmente, praticamente extintas na região.

Abordagem metodológica

Com base em uma correlação muito produtiva entre a pesquisa acadêmica e estudos de licenciamento ambiental, identificou-se no litoral de Jaguaruna 41 sítios Guarani, dos quais nove receberam algum tipo de intervenção arqueo- lógica. Através destas intervenções pôde-se perceber, de forma geral, que se trata de sítios razoavelmente bem preservados, guardando ainda grande variedade e densidade de vestígios (manchas de terra preta, indicadores de estruturas arquitetônicas e contextos cerâmicos e líticos) em bom estado de conservação. O levantamento de sítios foi realizado em duas etapas, se- guindo métodos distintos.

Em um primeiro momento, atendendo às exigências do estudo de licen- ciamento, realizou-se um levantamento sistemático intensivo com cobertu- ra total numa faixa de domínio de 200 metros para cada lado da rodovia SC 487 (a Estrada Geral do Camacho, cujo asfaltamento motivou o estu- do). Nesta etapa a faixa de domínio foi prospectada por meio de uma mal- ha de testes de subsuperfície equidistantes em 50 metros, o que levou ao cadastramento de 16 sítios Guarani, quatro sambaquis e dois sítios históri- cos (Farias e DeBlasis 2008, 2009). Posteriormente buscou-se cobrir o restante da área de pesquisa com levantamentos oportunísticos através de informações de moradores, da procura pelos sítios já mapeados por Rohr (1969) e prospecção em áreas de alto potencial indicado pelas característi- cas ambientais. Desta forma foram cadastrados outros 26 sítios Guarani, a maioria em áreas de dunas e próximos das estradas e das vilas do municí- pio.

Ainda durante a etapa de licenciamento fez-se o resgate de sete destes sítios, localizados à margem da estrada geral. Estas intervenções foram desenvolvidas com uma metodologia padrão que, mais tarde, foi aplicada também aos demais sítios escavados. O primeiro passo foi delimitar o sítio através de coleta sistemática de superfície, observando e mapeando as áreas de concentração de vestígios e a extensão e morfologia das manchas de terra preta. Em seguida procedeu-se à aplicação de alinhamentos ortogo- nais de testes de subsuperfície, com o objetivo de examinar as dimensões, densidade e profundidade das estruturas. Eventualmente estas intervenções foram setorizadas, de modo a facilitar a intervenção, por exemplo, quando havia uma cerca de difícil transposição em meio ao sítio. Na malha de pros- pecção, as escavações foram feitas com cavadeira manual ou enxada, obe- decendo a uma estratificação arbitrária de 10cm.

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Figura 1. Mapa geológico com a localização dos sítios Guarani identificados na

Área Piloto. Elaboração: Raul Viana Novasco.

Após a delimitação das estruturas arqueológicas e definição das di- mensões do sítio foram escavadas trincheiras em geral demarcadas com unidades de escavação de meio metro de largura, posto que os sítios Gua- rani, via de regra, sejam pouco profundos - mantendo sempre os níveis arti- ficiais de 10cm. Estas trincheiras foram estrategicamente posicionadas de modo a atravessar as manchas de terra preta e outras estruturas arqueológi- cas, permitindo detectar e descrever as características formais e distributivas dos sítios como estratigrafia, áreas de concentração de vestígios/atividade, dimensões das manchas, etc. Quando de interesse, esta investida foi acom- panhada da abertura de pequenas superfícies de exposição horizontal, de modo a melhor evidenciar os contextos detectados pelos cortes longilíneos. Esta abordagem possibilitou detectar os contextos de ocupação Guarani com grande eficácia, revelando a composição estratigráfica dos sítios e das manchas de terra preta, a distribuição diferencial dos vestígios, e a relação sistêmica entre os espaços de ocupação e processos de reocupação. Possi- bilitou ainda exumar os diferentes tipos de artefatos de uso cotidiano, identi- ficar estruturas arqueológicas funcionais (estruturas arquitetônicas, de combustão e de deposição de refugos) e processos pós-deposicionais.

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Tabela 1

Coordenadas geográficas dos sítios e datações em escala AP e AD com informação do tipo de amostra processada e número de protocolo

do laboratório. Para informações específicas sobre as datas radiocarbônicas ver legenda do Gráfico 1

Data

Data (AP) (AP)

Ma[!_a Sítio Coordenadas Data (C'1 1a 2a Beta

Jabuticabeira 22J 1 4 698064/6836589 X X X X 22J 2 Encruzo 691910/6835037 X X X X Riacho dos 22J 3 Franciscos 1 700003/6833329 X X X X Riacho dos 22J 4 Franciscos 2 700811 /6833030 X X X X Riacho dos 22J 5 Franciscos 3 700504/6832738 X X X X Morro Bonito 22J 520 ± 50 C'4 340- 6 1 609077 /6833937 (carvão) 500-540 620 262753 Morro Bonito 22J 430 ± 40 C'4 320- 7 2 697129/6833686 (carvão) 336-501 510 262754 Morro Bonito 22J 696340/ 510 ± 40 C'4 460- 8 3 6833244 (carvão) 498-530 550 262755 Morro Bonito 22J 9 4 698650/6834316 X X X X Morro Bonito 22J 10 5 698456/6833956 X X X X Morro Bonito 22J 11 6 698595/6834588 X X X X Morro Bonito 22J 12 7 697808/6834415 X X X X Morro Bonito 22J 13 8 0696050/6832600 X X X X Morro Bonito 22J 14 9 697989/6832294 X X X X Morro Bonito 22J 15 10 697350/6833662 X X X X 22J 16 Sam a e 702781 /6832549 X X X X Sibelco 22J 550 ± 60 C'4 450- 17 (Unimim) 695611 /6832335 (carvão) 500-560 640 262752 Cerâmico 22J 440 ± 40 C'4 320- 18 Laranjal 1 701597/6832366 (carvão) 339-504 510 262751 Cerâmico 22J 19 Laranjal 2 702185/6832251 X X X X Cerâmico 22J 20 Laranjal 3 700993/6832429 X X X X

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Continuação Tabela 1

Data

Data (AP) (AP)

Mae_a Sítio Coordenadas Data (C'j 1a 2a Beta

Cerâmico 22J 21 Laranjal 4 699271 6829441 X X X X Cerâmico 22J 22 Laranjal 5 699343/6829452 X X X X Cerâmico 22J 23 Laranjal 6 699507 6829595 X X X X Cerâmico 22J 24 Laranjal 7 695957 6828063 X X X X Arroio 22J 25 Corrente 1 693854 6826920 X X X X Arroio 22J 26 Corrente 2 693326 6827328 X X X X Arroio 22J 27 Corrente 3 692699 6826787 X X X X Arroio 22J 28 Corrente 4 692626 6825302 X X X X Arroio 22J 470 ± 40 C'4 330- 29 Corrente 5 691901 6825308 (carvão) 466-519 540 280654 Arroio 22J 30 Corrente 6 0693657 6825105 X X X X Campo 22J 31 Bom4 688393 6824414 X X X X Campo 22J 32 Bom 5 686029 6825335 X X X X 22J 33 Riachinho 2 693486 6829626 X X X X 22J 34 Riachinho 3 693663 6830145 X X X X 22J 35 Riachinho 4 693422 6830444 X X X X 22J 36 Riachinho 5 694050 682864 7 X X X X 22J 37 Jaguaruna 4 692520 6832583 X X X X Olho D'água 22J 560 ± 40 C'4 490- 38 1 675956 6813757 (carvão) 514-548 620 280652 Olho 22J 920 ± 60 C'4 440- 38 D'água 1 675956 6813757 (donax) 479-590 630 280653 Olho 22J 39 D'água 2 678615 6816241 X X X X Olho 22J 40 D'água 3 680214 6817362 X X X X Olho 22J 41 D'água 4 682657 6823373 X X X X

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Quadro cronológico para a região lagunar do sul catarinense e adjacências 1000 7500 --- 1000 7000 900 --- 1100 6500 800 ... 1200 6000 700 5500 ···--- 1300 e, 600 ·2 5000 -c .., 1400 "ê i'.J 500 o o 4500 ;;- 1500 ~ Q.. ;!: 400 -c 4000 -c ...l 1600 < ···•· u 3500 300 --- 1700 3000 200 ... 1800 2500 100 ---···-···· ---···--- --- --- 1900 2000 o

S,belco MOO"o Bonito 1 Arroto Corrente V Morro Bonito O 1500

Olhod'água MorroBoni.tom 1..raJ.11alIV 1000

500 Guarani

o

Gráfico 1. As barras à esquerda mostram o período de ocupação das culturas pre- sentes na região, representado em cada caso pelo conjunto de datações 14C calibradas disponíveis. O gráfico menor mostra as datações disponí- veis para os sítios Guarani individualmente; o ponto representa a idade convencional, a barra o(s) intervalo(s) dos valores calibrados. As data- ções 14C foram calibradas com o software Calib 6.1 utilizando a curva MARINE09 (Reimer 2009) para a amostra de origem marinha, e a curva SHCAL04 (McCormack et ai 2004) para as amostras de origem terrestre, considerados os valores em to. Os dados utilizados neste gráfico se en- contram na Tabela 1.

As aldeias Guarani e suas características composicionais

A distinção funcional entre aldeias e acampamentos foi definida a partir de três parâmetros principais: a comparação da densidade diferencial de mate- riais arqueológicos identificados nos sítios, sua localização e ainda a pre- sença ou ausência de estruturas (arquitetônicas, de combustão, de deposição de refugos, etc.) associadas. Tais vestígios ocorrem, ou são acen- tuados, quanto maior for o período e/ou intensidade de ocupação, sendo, portanto, bons indicadores funcionais (Binford 1982 e 1983, Noelli 1993, Milheira 2008). O artefatual cerâmico também difere em ambos os tipos de assentamento. Nas aldeias, por um lado, ocorre maior variabilidade artefa- tual, envolvendo vasilhas com dimensões e perfil funcional diversificados; quanto maior a diversidade e maiores as dimensões, maior também a pro-

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Figura. 2. Sequência metodológica de prospecção: ( 1) malha de testes no sítio

Riacho dos Franciscos I; (2) retificação de perfil no sítio Morro Bonito I; (3) abertura de trincheira no sítio Arroio Corrente V.

Figura 3. Sequência metodológica de escavação de trincheira e ampliação da área

de escavação no sítio Morro Bonito 1: (1) evidenciação do piso de habi- tação; (2) finalização da escavação e desenho de perfil; (3, 4) contextos cerâmicos associados a concentrações de carvão e (5, 6) feições (esta- cas e esteios) no piso de habitação.

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Figura 4. Planta baixa esquemática dos sítios aldeia da área de pesquisa. Em

linhas pontilhadas representa-se a área aproximada de dispersão do sí- tio; em linhas contínuas as manchas de terra preta; em linhas retilíneas as trincheiras e sondagens de intervenções nos sítios; e, em linhas si- nuosas preenchidas representam-se os rios, riachos e lagoas.

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babilidade de se estar diante de um assentamento com atividades diversifi- cadas e/ou ocupado mais longamente. São características, neste caso, va- silhas usadas para preparar alimentos (panelas do tipo yapepó e caçarolas do tipo riaetá), para produzir cauim e armazenar líquidos (talhas do tipo

cambuchí guaçú), para servir alimentos (pratos do tipo flaembé) e para servir

bebidas (copos ou tigelas do tipo cambuchí caguãbá). Nos acampamentos, por outro lado, o perfil artefatual é menos diversificado, predominando for- mas mais versáteis e de menores dimensões (Rogge 1997 e 1999, Milheira 2008).

Dos sítios Guarani escavados na região de Jaguaruna, oito podem ser caracterizados como aldeias, com um perfil artefatual e tecnológico compatí- vel com as características tecnológicas e formais observadas em outras regiões (Silva, Novasco e Farias 2008, Alves e Farias 2010, Milheira 2010). Através das análises tecno-tipológicas foi possível perceber que a totalidade das vasilhas foi confeccionada com a técnica de roletes, com exceção de poucos fragmentos de base modelada. A espessura das peças demonstra que nos sítios Morro Bonito 1, Morro Bonito li, Sibelco, Riacho dos Francis- cos I e Arroio Corrente V há predomínio de vasilhas com espessura mediana e fina, entre 0.5 a 0.75cm. Somente no sítio Laranjal I houve predomínio de fragmentos com 0.75cm a 1cm. Quanto ao tempero os materiais são bastan- te homogêneos, predominando o antiplástico mineral (quartzo) seguido de caco moído (chamote). Provavelmente houve uma escolha das oleiras em explorar bancos de argila com grande frequência de elementos antiplásticos naturais, não havendo a necessidade de agregar à massa de argila outros tipos de materiais. Em todos os sítios o tratamento de superfície externo alisado predomina, seguindo-se as peças com tratamento corrugado, ungu- lado, corrugado-ungulado e variações de tratamentos cromáticos em menor quantidade. Apenas nos sítios Morro Bonito I e Sibelco há variação, em que o tratamento ungulado predomina em relação ao corrugado. Mas, embora haja baixa variação no tratamento de superfície, é interessante notar a pre- sença de um grande leque de escolhas estilístico/decorativas, fator este bastante típico de aldeias, onde se encontram vasilhas de muitos tipos e arranjos. No que tange aos padrões de queima das vasilhas, a padronização é bem menor. Em Morro Bonito I e Laranjal 1, por exemplo, predomina quei- ma do tipo uniforme clara (oxidante), enquanto que em Sibelco, Morro Bonito li, Riacho dos Franciscos I e Arroio Corrente V a predominância é do tipo núcleo escuro (redutora). Antes de representar variabilidade tecnológica, estas diferenças mais provavelmente significam variações circunstanciais e idiossincráticas no processo de queima das vasilhas (Orton, Tyers e Vince 1993).

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Outra característica importante das aldeias Guarani são as assim cha- madas estruturas anexas que, segundo Noelli (1993, pp. 100-101 ), "seriam os locais multifuncionais, cobertos ou não, utilizados para processar ali- mentos, cozinhar, depositar gêneros, instalar o tipiti, produzir objetos diver- sos, lazer, etc. Arqueologicamente poderiam ser reconhecidos como oficinas de lascamento lítico, locais de cacção de vasilhas cerâmicas, oca- sionalmente contendo estruturas de combustão, marcas de peças de ma- deira e teares, moquéns estantes, etc. ( ... )". Assim, segundo este autor, as manchas de 5m de diâmetro estudadas por Luciana Pallestrini e por lgor Chmyz, nos anos 1970 e 1980 respectivamente, e interpretadas como fun- dos de cabana podem não ser habitacionais, mas áreas de atividade exter- nas às casas. Neste estudo definiu-se a diferença entre estruturas anexas e pisos de habitação pelo diâmetro das manchas e pela frequência de ma- teriais a elas associados. As estruturas anexas teriam em torno de 8m de diâmetro, com coloração acinzentada menos intensa que nos pisos de habitação, e relativamente pouca quantidade de materiais cerâmicos e líticos.

As aldeias ocupam, de maneira recorrente e estratégica, os terrenos are- nosos pediplanados mais elevados das antigas dunas de idade pleistocêni- ca, cortados pelos rios Jaguaruna e Urussanga e seus afluentes menores. Estes terrenos aplainados eram certamente florestados quando da chegada desses grupos e, a partir deles, pode-se acessar toda a gama de ambientes e recursos diversificados que a região propicia, próximos das lagoas e lagu- nas interligadas que compõem a paisagem litorânea, nunca muito longe da orla marítima, e mesmo a pouca distância das áreas mais densamente fio- restadas da zona montanhosa do pé da serra catarinense. Estes terrenos planos mais antigos, conquanto arenosos, permitem a produção de pratica- mente toda a gama de cultivas, como mandioca, milho, cucurbitáceas, entre outros, pertencentes ao seu repertório de cultivares. As aldeias distam entre si em torno de 500 a 700m, formando grandes adensamentos distribuídos de maneira aparentemente bastante regular. Segue uma descrição sintética de cada uma das aldeias estudadas (para mais detalhes ver Novasco e Farias 2009, Milheira 201 O).

Morro Bonito I

O sítio Morro Bonito I localiza-se na confluência entre os terraços arenosos e o banhado do vale do riacho dos Franciscos. Foram identificadas três man- chas de terra preta, sendo duas delas interpretadas como pisos de habita- ção: uma com formato elíptico de 18m x 1 Om. A outra com formato irregular, como uma espécie de "sola de sapato", com um eixo de 25m x 17m. A outra mancha, interpretada como piso de uma estrutura anexa, tem formato circu-

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lar com 8m de diâmetro. Além da coleta de superfície foram escavados 111 poços-teste, de modo a controlar com rigor as dimensões do sítio (aproxima- damente 40,000m2) e a distribuição das manchas e áreas de concentração

dos vestígios cerâmicos. Os pisos de habitação e a estrutura anexa foram cortados por trincheiras totalizando 15. 75m2, permitindo perfilar todas estas estruturas. O sítio foi datado em 520 ± 50 AP.

Morro Bonito li

Este sítio situa-se a 2km do vale do riacho dos Franciscos. É composto por três estruturas onde se nota a presença de sedimento escuro, fragmentos de cerâmica e carvão. As manchas de terra preta exibem dimensões variadas, não possuindo, no entanto, uma quantidade expressiva de material cerâmi- co. Todas as manchas foram interpretadas como pisos de habitação, tendo a primeira 16m x 20m; a segunda 32m x 20m; a terceira 12m x 10m. Neste sítio foram escavadas sete sondagens de um metro quadrado e cinco trin- cheiras totalizando 14.5m2 de área escavada, o que possibilitou estimar que

o sítio tenha aproximadamente 16,900m2 de área. A datação pelo método radiocarbônico situa este sítio em 430 ± 40 AP.

Morro Bonito Ili

O sítio situa-se a 2.6km do vale do riacho dos Franciscos. É composto por uma única estrutura de terra preta relativa a um piso de habitação e mate- rial cerâmico associado. Através de intervenções subsuperficiais foi possí- vel perceber que se trata de uma estrutura de 15m x 8m, com um pacote arqueológico pouco espesso e baixa densidade de material arqueológico. Esta estrutura foi escavada com duas trincheiras paralelas que totalizam 7.5m2• O sítio tem uma área aproximada de 10,000m2 e foi datado em 510

± 40 AP.

Laranjal I

O sítio Laranjal I localiza-se a aproximadamente 700m da lagoa do Laranjal. Além da coleta de superfície foram realizadas escavações de 228 poços- teste ao longo do sítio, permitindo identificar quatro manchas de terra cinza escuro/preta. Uma delas foi interpretada como um piso de habitação com 25m x 11 m, e as restantes como estruturas anexas de menores dimensões. Esta estrutura evidenciou em torno de 3,600 fragmentos de cerâmica, e dife- rentes tipos de materiais líticos. A área total do sítio é de aproximadamente 25,000m2 e foi datado em 440 ± 40 AP.

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Riacho dos Franciscos I

O sítio Riacho dos Franciscos I situa-se em um flanco dos terrenos aplaina- dos de paleodunas, sobranceiro à planície charcosa do Riacho. Após a cole- ta de superfície escavou-se 30 sondagens de 50cm2, o que permitiu

identificar uma mancha de terra preta de formato elíptico com um eixo maior estimado em 42m x 20m. Esta mancha, [foi] interpretada como um piso de habitação, foi investigada com três trincheiras e uma área de 4m2, totalizan-

do 16m2 de intervenção. Além disso, escavou-se uma trincheira de 2m x

0.50m numa área próxima do piso de habitação, onde foi identificado um pacote com aproximadamente 20cm de espessura com conchas, interpreta- do como um refugo secundário (lixeira), restos de alimentação jogados na periferia (talvez nos fundos) da casa, na área de declive do terreno em di- reção ao banhado do riacho. A área total do sítio não pôde ser medida devi- do ao grande impacto causado pela abertura da estrada. No entanto, a área de dispersão dos vestígios ultrapassa 30,000m2• Não houve datação adequada para este sítio.2

Sibelco (UNIMIN)

O sítio Sibelco situa-se numa linha de paleo-praias a 2km da malha urbana de Jaguaruna. Após a coleta de superfície, realizou-se a escavação de 435 poços-teste com escavadeira manual ao longo do terreno, o que possibilitou identificar cinco manchas de terra preta e uma área de concentração de cerâmicas. Quatro das manchas foram interpretadas como pisos de habi- tação, a principal delas com um formato irregular em forma de "sola de sapa- to", com 23m x 11 m. As demais manchas têm dimensões que variam entre 8m e 32m de eixo maior. Apenas uma destas manchas foi interpretada como estrutura anexa com um diâmetro de 8m. A área do sítio aproxima-se de 42,500m2, tendo sido datado em 550 ± 60 AP.

Arroio Corrente V

O sítio localiza-se numa região de dunas estabilizadas de 2a e 3a geração entrecortadas pelo Arroio Corrente. Seguindo a coleta de superfície foram escavados 113 poços-teste com escavadeira manual. Com as prospecções

2 Uma amostra de carvão proveniente da quadra 1005N/1030L (nível 5) da Trincheira 2 deste

sítio foi datada em 110±40 AP (cal 1705 a 1953 AD, Beta 262756). Como se trata de um lo- cal historicamente ocupado de longa data, esta datação provavelmente indica a ocupação açoriana na região, ou mesmo a ocupação subatual.

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foi possível identificar uma mancha de terra preta com presença de material cerâmico e fragmentos de carvão e uma área de concentração de cerâmica. A mancha de terra preta foi interpretada como uma estrutura anexa, sendo a concentração de cerâmica, talvez, um piso de habitação bastante impactado pelas ações do arado. Segundo os proprietários do terreno, a área da con- centração de cerâmica atualmente não tem sedimento cinza escuro/preto em virtude do arado frequente. Com uma trincheira de oito metros de extensão (4m2) foi possível delimitar o diâmetro da mancha, de 5m. O sítio mede apro-

ximadamente 22.500m2 e foi datado em 470 ± 40 AP.

Figura 5. Perfil estratigráfico da trincheira escavada no piso de habitação do sítio

Olho D'água 1. Nota-se que nos primeiros 5m de extensão ocorrem as camadas de terra preta intercaladas, indicando um evento de cheia do rio Urussanga e evidenciando um momento de abandono e reocupação da habitação.

Figura 6. Materiais dispersos na superfície do sítio Arroio Corrente VI, sem a for-

mação de concentrações de vestígios arqueológicos ou composição es- tratigráfica em profundidade.

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Olho D'água I

O sítio arqueológico Olho D'água I localiza-se na margem esquerda do rio Urussanga. Como o sítio havia sido arado recentemente, a perfeita visibili- dade do solo permitiu a identificação de cinco manchas de terra preta. A principal delas, interpretada como um piso de habitação tem formato circu- lar com 15m de diâmetro e foi escavada por uma trincheira de 15m x 0.50m, totalizando uma área escavada de 5.5m2• No perfil estratigráfico do

corte foi possível observar que, neste sítio, o habitual pacote de terra preta encontra-se intercalado por uma camada de até 10cm de espessura de sedimento arenoso homogêneo e amarelado de indubitável origem fluvial, certamente o registro de um evento excepcional de cheia do rio Urussan- ga. A julgar pela continuidade do pacote de terra preta imediatamente abaixo e acima desta camada, entretanto, seu impacto parece ter sido me- ramente circunstancial, tendo-se, aparentemente, abandonado a habitação momentaneamente e a reocupado em momento imediatamente posterior. As demais manchas de terra preta (dois pisos de habitação e duas estrutu- ras anexas) têm dimensões que variam entre 6 e 20m de diâmetro, e a área do sítio mede aproximadamente 32,000m2• O sítio foi datado em 570

± 40 AP.

Discussão

Uma primeira questão diz respeito ao período de ocupação das aldeias. O registro arqueológico homogêneo e monocomponencial que caracteriza os sítios Guarani da região representa uma única ocupação contínua, até seu abandono final, ou se trata de loci abandonados e reocupados frequente- mente? Vários exemplos arqueológicos e etnográficos indicam que as áreas habitacionais são utilizadas por um determinado período, abandona- das e posteriormente reocupadas, rearticulando-se com frequência os es- paços domésticos e territoriais. Fausto (2001) propôs um modelo de ocupação para as aldeias dos Parakanã Orientais, que abandonam suas aldeias em média num período de três anos, procurando novas moradias próximas dos grandes rios. Eventualmente os indígenas reocupam as mesmas localidades anos depois, o que também foi sugerido por Posey (1986) que, de uma perspectiva etnobotânica, vê que o interesse em reocupar os mesmos locais de antigas aldeias se encontra na existência prévia de controle territorial sobre a área (faz parte do território de domí- nio), sendo já bem conhecida do grupo e apresentando traços vestigiais (mudas de plantas nas hortas, restos de construções, etc.) que tornam a área familiar e atraente. Noelli (1993), através da sistematização da litera- tura arqueológica e etnohistórica, corrobora esta ideia, sugerindo que as aldeias eram ocupadas ao longo de 3 a 5 anos em média e depois aban-

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donadas, podendo ser reocupadas anos mais tarde. Este processo de abandono e ocupação dos mesmos espaços causa um efeito no registro arqueológico que deve ser entendido como um palimpsesto, em que vestí- gios materiais de ocupações anteriores seriam mascarados por ocupações posteriores, gerando um pacote arqueológico com indícios de ocupação permanente, de longa duração, com traços discretos, até mesmo inexisten- tes, dos períodos de abandono (Binford 1982, 1983).

No que se refere às aldeias estudadas em Jaguaruna, as escavações nas manchas de terra preta demonstraram que a composição estratigráfica pa- drão é uma única camada de terra preta, homogênea e contínua, um registro monocomponencial que pode ser interpretado como um indicador de per- manência nos sítios - a qual, segundo os autores acima citados (Posey 1986, Noelli 1993 e Fausto 2001), pode ser entendida como aldeias que foram ocupadas ao longo de várias gerações, mas que, eventualmente, fo- ram abandonadas por períodos mais ou menos curtos de tempo e reocupa- das anos mais tarde. Isto aponta para uma ocupação permanente por um período razoavelmente longo (e/ou intenso) de ocupação - que, ainda assim, é por demais exíguo para o padrão de precisão das datações radiocarbôni- cas.

O sítio Olho D'água I apresenta uma interessante evidência estratigráfi- ca que lança alguma luz neste processo. Neste sítio a mancha de terra preta é intercalada por uma camada natural de sedimentação fluvial, indi- cando um episódio de abandono súbito seguido de reocupação. Esta se- quência de eventos se deu em um lapso de tempo inacessível para os métodos de datação tradicionais; não se pode, sequer, afirmar que a aldeia tenha sido, de fato, abandonada. No entanto, não fora a intercalação evi- dente de sedimentos exógenos ao processo de acumulação antrópica, a interrupção do processo ter-se-ia tornado imperceptível ao olhar dos ar- queólogos. Neste sentido, a plausibilidade de que os pacotes homogêneos de terra preta possam de fato representar mais de um episódio de ocu- pação intercalados por episódios de abandono programado se torna bem mais evidente.

No que se refere às demais aldeias, parece razoável a interpretação de que tenham sido ocupadas permanentemente ao longo de algumas ge- rações. Os solos arenosos da área possuem considerável potencial agrícola, sobretudo para as espécies adequadas, bem conhecidas dos Guarani. Ainda hoje, depois de muito cultivados por numerosas gerações ao longo dos dois últimos séculos (pelo menos), exibem uma produtividade nada desprezível, incluindo produtos como milho, feijão e mandioca, certamente familiares aos Guarani, além de cana-de-açúcar e outras coisas. Assim, baixo potencial agrícola não seria razão para o abandono do território, ainda mais conside- rando o uso do sistema de rotação das áreas agricultáveis, prática habitual desses grupos (Noelli 1993). O abandono das aldeias poderia ocorrer even-

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tualmente por outras razões, mas provavelmente não implicaria no abandono completo da região; seria, antes, uma rearticulação da dinâmica social e econômica de ocupação do mesmo território.

Os acampamentos Guarani e suas características composicionais

Os acampamentos estão instalados em áreas que integram o sistema de assentamento Guarani e são extremamente importantes para a economia e exploração dos recursos no âmbito de um território de ocupação. Seu reco- nhecimento confere uma perspectiva sistêmica para a ocupação do território que encontra ressonância nos estudos etnográficos, onde estas áreas de acampamento foram descritas como essenciais à economia aldeã (Novaes 1983, Noelli 1993, Assis 1996, Fausto 2001, Milheira 2008).

Os acampamentos Guarani identificados na região da pesquisa se locali- zam predominantemente em campos de dunas ainda ativas, sendo periodi- camente recobertos e em seguida expostos, o que provoca alterações na configuração do registro arqueológico. São em geral compostos por poucos objetos líticos e fragmentos de cerâmica relativa a vasilhas de aspectos fun- cionais e pequenas dimensões esparsos no terreno, sem que se identifiquem estruturas arqueológicas em profundidade. Os cinco sítios desta categoria cadastrados (Laranjal li, Laranjal V, Laranjal VI, Laranjal VII e Arroio Corren- te VI), sugerem certa articulação sistêmica com as aldeias, em virtude da proximidade com as mesmas. Infelizmente estes sítios não foram datados devido à ausência de carvões contextualizados.

Estes acampamentos indicam áreas de ocupação não intensiva, mas nem por isso inconstante, que, associadas às aldeias e outras áreas de ocu- pação, evidenciam os processos de ocupação do território, e sua história (Zederio 1997). São marcas na paisagem que ajudam a identificar a nature- za e a amplitude da agência dos grupos Guarani na área e sua dinâmica histórica, evidenciando uma estrutura articulada de apropriação de diferentes nichos da paisagem. Em outras palavras, são correlatos materiais do modo como um determinado grupo se organiza na paisagem e a constrói social- mente (Zederio 1997 e 2000, Nelson 2000).

Um modelo regional: ocupação e desocupação do território Guarani

A ocupação dos grupos sambaquieiros na região se estende de 7500 a 1200 AP aproximadamente (De Blasis et ai., 2007, Assunção 2010), sendo o final da era sambaquieira pouco conhecido na área - uma lacuna presente, de fato, na arqueologia de sambaquis em todo litoral brasileiro. No Rio de Janei- ro, por exemplo, segundo Gaspar et ai. (2007), a sociedade sambaquieira teria colapsado, de maneira eventualmente violenta, pela expansão das po- pulações ceramistas Tupinambá sobre as áreas costeiras, ocupando a re-

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gião dos Lagos a partir de aproximadamente 2600 AP. Posteriormente teria havido a chegada dos grupos Jê, conhecidos regionalmente como Goitacá, que ocuparam a costa em torno de 1065 AP.

No litoral sul de Santa Catarina a ocupação sambaquieira conhece trans- formações significativas a partir de 2000 AP aproximadamente, quando os processos de construção de montículos vão se modificando gradualmente e incorporam, por volta de um milênio depois, elementos característicos da cultura Jê do sul, desaparecendo pouco depois de maneira aparentemente súbita (Farias e DeBlasis 2006). Mais ou menos na mesma época (cerca de 1000 AP) grupos Jê estão provavelmente presentes também na encosta, onde alguns sítios a eles associados foram datados por volta do mesmo período (Farias 2005). Há evidências indubitáveis da ocupação Jê no alto da serra, onde são conhecidas suas aldeias relacionadas às características casas subterrâneas e danceiros (Piazza 1966, Corteletti 201 O), datadas ali em torno de 600 anos atrás - grosso modo contemporâneas, portanto, à presença Guarani na costa. Até o momento, entretanto, não foram encontra- das aldeias destes grupos Jê na área litorânea, ainda que sua presença seja certa em sítios funerários por volta da passagem do segundo para o primeiro milênio antes do presente (Farias e DeBlasis 2006).

Os grupos Guarani, por sua vez, parecem ter ocupado a região litorânea de forma súbita e massiva, expandindo-se rapidamente sobre os terrenos altos e firmes das paleodunas e ocupando também as lagoas, dunas e ma- tas num período de apenas 150 anos aproximadamente, em um processo de expansão interrompido pela chegada dos colonizadores europeus. Este ce- nário é confirmado pela cronologia disponível, como se vê na Tabela 1 e Gráfico 1, que mostra o início da ocupação em torno de 1360-1470AD (Olho D'água 1), estendendo-se ao início do período colonial, em torno de 1449- 1614 AD (Morro Bonito li). Esse processo relativamente rápido e maciço de ocupação Guarani pouco antes da chegada dos europeus parece exemplifi- car bastante bem (com ressalvas, ver adiante) o modelo de expansão territo- rial que Brochado (1984) chamou de "enxameamento". Em síntese, este modelo considera que os grupos Guarani expandem seu território dividindo as aldeias em células, que se subdividem em novas células e assim por diante, de forma a ocupar um amplo território a partir de focos de adensa- mento populacional. São descritos na literatura vários motivos culturais e naturais que condicionam e exigem a expansão territorial, por exemplo: doenças, economia de plantio, ethos guerreiro, fugas, presságios, adensa- mento populacional, busca da terra sem males e padrões de higiene (Scha- den 1974, Susnik 1979-1980, Brochado 1984, Noelli 1993, Soares 1996, Milheira 2008).

Na medida em que os dados cronológicos sugerem que a planície costei- ra do sul catarinense estava praticamente desocupada (ou pouco habitada) quando da chegada dos grupos Guarani na região, conflitos interculturais

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não devem ter ocorrido senão de maneira pontual e tido resolução rápida, também por conta da reconhecida capacidade belicosa dos grupos Guarani (ver, por exemplo, Garlet 1997 e Fernandes 2006[1952]), ao contrário do cenário proposto para a região dos Lagos, no litoral norte do Rio de Janeiro (Gaspar et ai., 2007).

No litoral sul catarinense o "vazio" demográfico teria facilitado a expansão e ocupação daquela área muito rapidamente (umas poucas gerações), o que explicaria, pelo menos em parte, o grande adensamento de sítios Guarani em uma faixa de território bastante ampla em tão pouco tempo, gerando um registro arqueológico radiocarbonicamente "contemporâneo".

A ocupação dos grupos Guarani não se limitou à região de Jaguaruna, pois sítios semelhantes aos aqui descritos são conhecidos ao longo de toda faixa litorânea do sul catarinense. Ao observar o mapa gerado com base nos trabalhos de Lavina (2000) e Lino (2007), fica evidente que a ocupação Gua- rani no vale do rio Araranguá tem relação direta com o restante da ocupação do litoral de Jaguaruna. A distância das aldeias em ambas as regiões não ultrapassa 50 km, o que se enquadra perfeitamente no modelo de território de domínio (teko'á) proposto por Noelli (1993) e Milheira (2008).

Esta instantaneidade da chegada dos grupos Guarani na região costeira do sul catarinense (caracterizada por sua aparição massiva e "repentina" no registro arqueológico) leva a supor um modelo diferente, alternativo talvez, de ocupação Guarani, em relação ao processo descrito como "enxameamen- to" por Brochado ( 1984 ). A presença Guarani no litoral sul catarinense talvez não seja, afinal, o resultado de um adensamento populacional gradual e paulatino, mas sim, produto de um "projeto" de ocupação daquele território coordenado estrategicamente por lideranças de grupos situados em alguma região interiorana do meio oeste catarinense ou, mais provavelmente, em outras localidades do litoral ainda mais ao sul. Este processo de ocupação territorial estaria possivelmente vinculado ao relativo "vazio" encontrado na- quela região, e à necessidade dos Guarani de ocupar novos territórios para o desenvolvimento da vida tradicional, envolvendo novas áreas de plantio e de captação de recursos diversificados.

Após o estabelecimento preliminar, estratégico de algumas aldeias ou células do sistema de assentamento na região, o processo de adensamento populacional tradicional ter-se-ia iniciado, garantindo a plena ocupação do território litorâneo - aparentemente esvaziado naquele momento - no espaço de algumas poucas gerações. Assim, novas aldeias, novas roças, novos locais de acampamento, novos ambientes teriam sido incorporados ao terri- tório de domínio Guarani de maneira relativamente rápida, um processo captado arqueologicamente na forma de um registro bastante homogêneo e regularmente disposto por uma área bastante extensa, e quase concomitan- te em termos da cronologia radiocarbônica.

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De onde teriam vindo? Talvez a hipótese mais robusta aponte para os vales férteis dos grandes rios do planalto, com cobertura vegetal de matas deciduais ou semi-deciduais, áreas propícias para o modo de vida ribeirin- ho e agrícola dos Guarani e reconhecidamente "guaranizadas" por volta do século XIV da era cristã (Noelli 1999-2000 e 2004, Lavina 2000, Rogge 2005). De fato, dados etnohistóricos permitem vislumbrar que as regiões interioranas se encontravam densamente ocupadas pelos Guarani, e tam- bém por outros grupos indígenas. O relato da viagem de Cabeza de Vaca (1999[1555]) pelo interior de Santa Catarina, Paraná e Paraguai traz indi- cações consistentes de que não havia vazios demográficos significativos ao longo da rota por ele estabelecida; ao contrário, todo o caminho perco- rrido pela armada espanhola estava repleto de aldeias nas margens dos ríos.3 Este adensamento demográfico nos planaltos do oeste catarinense, a

necessidade estrutural de expansão econômica e social dos Guarani (Noe- lli 1999-2000, 2004) ajudam a explicar o processo de expansão em direção ao litoral, corroborando o modelo proposto inicialmente por Brochado (1984).

Por outro lado, cabe lembrar que a faixa litorânea apresenta condições perfeitamente adequadas e propícias para as práticas de manejo florestal dos Guarani, assim como é também perfeitamente compatível com seu vasto conhecimento ecológico (Noelli 1993, 2004; Rogge 2005; Milheira 2008). Desse modo, como aventado anteriormente, estes conquistadores podem ser oriundos de zonas ribeirinhas situadas mais ao sul como, por exemplo, o entorno do Guaíba (RS) e lagoas adjacentes, ou a região de Osório, que já teriam sido ocupadas anteriormente (Noelli 1999-2000). Neste caso, apesar de sua grande capacidade de se adaptar a diferentes situações, ocupar o litoral catarinense não teria sido um grande desafio. Não se pode esquecer também que os cantatas entre estes grupos se davam por grandes distân- cias, envolvendo relações econômicas estruturadas em amplas redes sociais (Lavina 2000, Milheira 2008). Neste sentido, cantatas por via litorânea no sentido sul/norte seriam facilitados por transcorrerem em territórios guarani- zados. Os cantatas leste/oeste, ao contrário, seriam mais dificultosos, pois teriam de atravessar os territórios serranos que a esta época encontravam- se densamente dominados pelos grupos Jê.

É bem verdade que este viajor espanhol deve ter seguido informantes Guarani e, por esta razão, percorrido principalmente territórios guaranizados. Ainda assim, a perspectiva de que haveria poucos vazios populacionais nas áreas planálticas se sustenta, inclusive, de uma perspectiva arqueológica (por exemplo, Noelli 1999-2000, Noelli 2004 ), sobretudo ao longo dos grandes vales férteis mais para oeste, além da zona serrana, mais baixos e quentes.

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Etnohistória Guarani e os vestígios de violência e abandono

A ocupação Guarani no litoral sul de Santa Catarina foi, como se viu acima, bastante expressiva. Segundo Ulyssêa (1956), a presença dos Carijó (de língua Tupi-Guarani) se estendia do rio Biguaçu (rio dos Patos) até muito além das águas do Mampituba, já nas planícies do Rio Grande. Foram jus- tamente estes grupos os primeiros a entrar em cantata com os recém- chegados europeus, a partir do século XVI. Na região sul catarinense isso ocorre possivelmente já no ano de 1526, quando marinheiros da nau de Don Rodrigo de Acuüa, desgarrada da esquadra de Jofré de Loaysa, desembar- cam no porto de Laguna.

A busca por escravos indígenas ganha impulso a partir do fim do século

XVI e início do xvu, quando a expansão vicentina varre toda costa litorânea de Santa Catarina acompanhada de uma leva colonizadora, entre os anos de 1676 e 1684. Nesse período foi fundada a povoação de Santo Antonio dos Anjos da Alaguna (atual Laguna) pelo vicentista Domingos de Brito Peixoto, porta de entrada para a colonização da faixa costeira, até então ainda ocupada pelos grupos indígenas. Os índios passaram a "mesclar-se" na sociedade em surgimento, inicialmente como escravos e depois como trabalhadores livres nas fazendas de gado e/ou como mão-de-obra na cons- trução civil (Ulyssêa 1956, Monteiro 2005). De acordo com Hobold (2005), foi a partir de 1535 que se iniciou o projeto missioneiro na região, através da vinda de cinco franciscanos espanhóis que seguiam em direção a Buenos Aires, tendo por superior frei Bernardo de Armenta. A pequena expedição fez-se ao mar em 1537, encontrando abrigo no porto de São Francisco do Sul. Ao desembarcar encontrou um pequeno grupo de espanhóis que já falavam a língua dos índios e, com a ajuda deles, Frei Bernardo iniciou a evangelização dos Carijós. Após os resultados satisfatórios destes primeiros cantatas com os indígenas, foi escolhida a área sulina de Santa Catarina, precisamente lbiaçá, hoje Laguna, como centro das operações catequéticas (Hobold 2005, p. 28).

Em 1605 os brancos já buscavam índios além do porto de Laguna, mais precisamente na região dos rios Araranguá e Mampituba (Monteiro 2005). O depoimento do português Brás Arias, de outubro de 1549, caracteriza bem a ganância criminosa dos exploradores ao promoverem o trágico aniquilamen- to do centro missionário de lbiaçá. O padre Manoel da Nóbrega faz referên- cias ao mesmo acontecimento. Comenta que era prática comum em 1548 caravelas portuguesas aportarem em lbiaçá e promoverem o aliciamento dos índios que, ao entrarem nos barcos, eram aniquilados ou apreendidos. "Em seguida apoderam-se dos moradores restantes arrasando-lhes a igreja, a casa dos missionários e todas as demais casas, mesmo situadas a certa distância, exterminando-lhes também as grandes roças, estendidas para todos os lados, amanhadas pelos índios para garantir a manutenção" (Leite

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As entradas contavam com auxílio dos indígenas locais. Lideranças como Tob-anharõ e seus três ou quatro irmãos eram muito estimadas pelos bran- cos por serem eficientes na captura de índios. "Cristóvão de Aguiar confessa que ele o fez o principal e o assentara naquela cadeira, sendo estimado dos brancos, mas isto por ser ele um grande ladrão de índios para brancos" (Lei- te 1940). Tob-anharõ conseguiu criar uma grande rede de tráfico de escra- vos índios desde a lagoa dos Patos até Laguna, deixando seu irmão no controle da passagem de Mboipetiba (Mampituba) e outro no passo do Ara- ranguá. Através deste trajeto, milhares de índios eram embarcados em La- guna e remetidos a São Paulo. Em 1634 o padre Inácio de Siqueira fez uma expedição, constatando que "deste porto de Laguna até o do Rio Grande, que dista para o sul 70 léguas, não há onde possam entrar embarcações, e por isso aqui ficam todas ancoradas e nele achamos sessenta e duas de portugueses que de várias capitanias tinham lá ido este ano de 1635, ao resgate dos miseráveis Carijós. Destas, eram quinze navios de alto bordo e as demais, canoas muito possantes, as quais, feitas listas pelos mantimen- tos que levavam e pelo porte das embarcações, esperávamos os portugue- ses trazer acima de 12 mil carijós cativos" (Leite 1940 apud Hobold 2005, p. 33).

O agressivo processo de captura, somado à disseminação de doenças contagiosas, faz com que, já no século xvu, a presença indígena passe a escassear na região. Os que sobraram fugiram para o interior, nas proximi- dades do rio da Prata e seus afluentes. Em 1721 Manoel Gonçalves de Aguiar, nas suas informações ao governador do Rio de Janeiro, já assegura- va que as costas de Santa Catarina e Rio Grande"( ... ) são pouco habitadas de gentio e só ao pé da serra e antes de chegar a ela se veem bastante fumaça de gentio bravio, mas este não comercia com ninguém" (Hobold 2005, p. 21 ).

Além de indicar uma expressiva ocupação do litoral pelos grupos Guara- ni no momento do contato, estes dados demonstram que a conquista euro- peia trouxe um impacto depopulacional muito forte e rápido. O comportamento violento dos bandeirantes nas aldeias indígenas é repeti- damente relatado na documentação histórica e, segundo Monteiro (2005, p. 73), esta prática se tornou cada vez mais comum a partir dos anos 1620. "Segundo o relato de um jesuíta, o método usual dos paulistas consistia em cercar a aldeia e persuadir seus habitantes, usando de força ou de ameaças, a acompanhar os colonos de volta para São Paulo. Um destino terrível reservava-se às aldeias que ousassem resistir. Nestes casos, os portugueses 'entram, matam, queimam e assolam ( ... ) e casos houve em que se queimaram povoações inteiras só para o terror e espanto dos que ficavam vizinhos'". Como se vai ver a seguir, há na região alguns indicado- res arqueológicos desse processo.

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Figura 7. Imagem de satélite com a localização dos sítios arqueológicos identifica-

dos em nossa pesquisa (círculos em vermelho) e dos sítios identificados e publicados na pesquisa de Lino (2007) (quadrados verdes).

Figura 8. Nível 3 da trincheira 1 e nível 3 da trincheira 2 do sítio Laranjal 1. Nota-se

a grande quantidade de peças cerâmicas que compõem o contexto. Trata-se de potes de diferentes tipos, tamanhos, formas e decorações que sugerem um "kit doméstico" completo abandonado rapidamente.

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Durante as escavações nos sítios Guarani causou impressão a grande quantidade de carvões encontrada em alguns deles, sobretudo Laranjal 1, Morro Bonito I e Sibelco. A terra tisnada, o cheiro de cinza queimada e a grande quantidade de carvões de tamanhos variados indicava claramente que o fogo esteve intensamente presente no processo de formação do re- gistro arqueológico, não apenas como parte de um contexto doméstico ou de produção, mas como elemento dominante, definidor mesmo da configu- ração do registro. Por outro lado, chamava atenção também a grande quan- tidade de materiais ( cerâmica, sobretudo) articulados às feições arqueológicas como negativos de fogueiras, de postes, esteios e estacas. O sítio que mais impressionou neste aspecto foi Laranjal 1, onde foi evidencia- do um piso repleto de potes cerâmicos de diversos tamanhos e categorias funcionais articulados entre si, sugerindo que a casa teria sido abandonada rapidamente.

De um ponto de vista teórico, práticas de abandono podem ser percebi- das em termos de processos ou eventos, e em diferentes escalas, local e regional (Brooks 1993, Zedefío 1997, Nelson 2000). Brooks (1993) propõe três conceitos fundamentais muito úteis para discutir as práticas de aban- dono no contexto Guarani: (1) as diferenças no registro arqueológico e nos padrões observados podem depender da natureza dos processos de aban- dono; (2) processos de abandono operam em diferentes escalas: individual, local e regional, com efeitos distintos em cada caso; (3) atividades de aban- dono nem sempre representam eventos planejados, em que as decisões são tomadas coletiva ou individualmente. Ao contrário, o abandono é causado às vezes por eventos não planejados, operados por causas naturais ou cultu- rais. É o caso de eventos catastróficos que forçam o abandono de um de- terminado local ou região como, por exemplo, uma erupção vulcânica ou uma guerra. O abandono planejado de uma determinada área de atividade, assentamento ou região é, por outro lado, um processo que geralmente se estrutura em um sistema de relações e atividades envolvendo mobilidade do grupo e estratégia de ocupação do território. Pode estar relacionado a razões econômicas, comerciais, militares e, não menos importantes, religio- sas ou míticas. Por ser organizado, dificilmente deixará, no registro arqueo- lógico, a impressão de que os ocupantes "saíram correndo", deixando todos os seus pertences para trás.

Considerando os processos de abandono na paisagem, Tomka (1989) distingue três escalas temporais (evento episódico, sazonal e permanente) relacionadas a duas escalas sócio-espaciais (household e assentamento) e duas formas de operacionalização comportamental (planejado e não plane- jado ). Os processos de abandono planejados envolvem decisões coletivas relacionadas ao manejo e gerenciamento de áreas de atividade econômica, residencial, e até mesmo do grupo como um todo, e geralmente não são processos promovidos de maneira abrupta. O abandono não planejado, por

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outro lado, não necessariamente implica na ausência de decisões coletivas, mas, como no caso, por exemplo, de fuga ou doenças, são exigidas de- cisões com uma dinâmica diferenciada de situações normais. Este pode bem ser o caso dos grupos Guarani da região de Jaguaruna, vítimas de proces- sos súbitos e devastadores de grande impacto social como epidemias e guerras de escravização, que motivaram a depopulação indígena em larga escala.

O efeito das epidemias sobre as populações nativas já é bem conhecido. Garlet (1997, p. 40) afirma que foram um instrumento "( ... ) muito mais efi- ciente e devastador que o próprio poder das armas. Em muitas circunstân- cias, seus efeitos antecipavam-se à chegada dos colonizadores, uma vez que podiam ser disseminadas entre povos isolados a partir das relações inter-tribais ( ... )". Entre os Mbyá as epidemias foram motivo de evasão do território tradicional: "( ... ) seus habitantes deveriam associar a doença ao espaço, como procedem os Mbyá no presente. Se a doença se manifesta é porque também o espaço se tornou doente, sendo necessário abandoná-lo em substituição a outros, onde pudessem novamente encontrar equilíbrio e segurança".4 As epidemias foram verdadeiras armas biológicas que, em

muitos casos, evacuaram as populações nativas de extensas áreas, liberan- do amplos territórios aos colonizadores (Noelli e Soares 1997).

Conforme Garlet (1997, p. 41), "os efeitos das doenças comumente cau- savam o medo das populações indígenas com relação às populações euro- peias, motivando o abandono das antigas ocupações em busca de espaços cada vez mais afastados das frentes de expansão, em busca de novas te- rras". Fausto (2001 ), ao mapear historicamente a movimentação das aldeias do grupo Parakanã em seu território de domínio, identifica os motivos do abandono das aldeias, citando entre os fatores mais frequentes guerras, doenças, pestes e manejo das roças. Esses fatores condicionam as práticas de abandono do grupo em escala regional havendo, por vezes, a segmen- tação de uma aldeia em duas células aldeãs integradas. Ribeiro (1996), por sua vez, relata situações de epidemias que solaparam comunidades inteiras entre os Urubus-Kaapor na bacia do rio Gurupí (divisa entre os estados do Maranhão e Pará), forçando os poucos sobreviventes a tomarem a decisão de abandonar suas aldeias e partir em busca de novas áreas de moradia dentro do território conhecido.

Tendo em vista, por um lado, o processo de violência conhecido histori- camente na região sul do litoral de Santa Catarina causado pela conquista e colonização europeia a partir do século XVI, e, por outro, a cronologia tardia

da ocupação Guarani na região, é possível relacionar ambas as evidências

Para Susnik (1984-1985, p. 77 apud Garlet 1997, p. 40) os locais destituídos de mata, po- voados e estranhos, poderiam ser entendidos pelos antigos Mbyá como espaço do mbá e

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em uma interpretação do registro arqueológico peculiar identificado em al- gumas das aldeias dessa área, envolvendo o contexto de conflito entre os nativos e os conquistadores do velho mundo. As datações radiocarbônicas indicam que alguns dos sítios da área (Laranjal I e Morro Bonito li, por exemplo) foram abandonados exatamente nessa mesma época, entre os fins do século xv e início do século XVI, o que os coloca precisamente na cena do conflito. A configuração do registro arqueológico nesses sítios, com grande quantidade de carvões e objetos queimados, além de um contexto repleto de materiais domésticos deixados in situ, revela, em nosso ponto de vista, um padrão de abandono dramático, atípico em relação às demais aldeias da região, e mesmo de outras áreas.

Assim, o argumento é que estes sítios documentam processos de aban- dono súbito causados pela presença dos conquistadores vicentinos e suas razzias em busca de escravos, tal como documentado por cronistas da épo- ca. Embora mais estudos sejam recomendáveis, de modo a melhor docu- mentar este tipo de contexto arqueológico ainda pouco explorado e conhecido, o conjunto de evidências disponíveis, de natureza histórica, ar- queológica e cronológica, permite a formulação de uma interpretação destes contextos de conflito interetnico articulada através de uma abordagem inter- disciplinar que, por esta mesma razão, se apresenta fortemente embasada e robusta.

Conclusão

Os padrões arqueológicos apresentados neste artigo, assim como os dados cronológicos e históricos sugerem fortemente que os espaços habitacionais representados por estes sítios tenham sido abandonados rapidamente, em função de eventos repentinas e altamente perturbadores. O efeito da ação "meiga e carinhosa" dos caçadores de escravos vicentinos encontra-se, ao que parece, representado no registro arqueológico dessas aldeias, conquis- tadas e queimadas de maneira brutal, tal como se descreve nas crônicas históricas quinhentistas e seiscentistas. Por outro lado, o abandono súbito dessas aldeias pode também ter sido causado pelo horror do alastramento de doenças epidêmicas e letais, com grande impacto no grupo. A queima, neste caso, estaria relacionada à "purificação" de um local tomado pelo mal, logo abandonado e destruído. Estes fatores, histórica e etnograficamente documentados, teriam forçado os aldeões a abandonar suas casas em bus- ca de outras moradias, primeiramente buscando localidades mais seguras no âmbito do seu próprio território de domínio e/ou territórios contíguos, fami- liares; na medida, entretanto, que os efeitos deletérios da conquista europeia foram tomando dimensões mais amplas, os remanescentes destas popula- ções costeiras se foram evadindo para regiões mais distantes e remotas, em direção ao interior.

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Esta forma de abandono encontra-se replicada em outros sítios arqueo- lógicos da região, mostrando que não se trata de uma prática rara ou inco- mum nesse período, relacionando-se, portanto, aos eventos bem conhecidos das chamadas fugas Guarani, amplamente descritas na literatura histórica (Garlet 1997). Assim, embora uma variedade de razões possam influenciar as decisões relativas ao ato da fuga (Noelli 1993, Garlet 1997, Fausto 2001 ), parece certo que o registro arqueológico das aldeias Guarani do sul catari- nense revela eventos não planejados de abandono causados, muito prova- velmente, por episódios de violência e terror protagonizados pelos colonizadores. Nestes eventos os indígenas se viram obrigados a abandonar suas casas rapidamente deixando toda tralha doméstica para trás, juntamen- te com suas aldeias e territórios, assolados pelo fogo das bandeiras que expandiram as fronteiras do Brasil colonial.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos numerosos colegas que participaram das pes- quisas no sul catarinense (numerosos demais para serem citados nominal- mente) pelo companheirismo e eventuais insights arqueológicos compartilhados. Cabe um agradecimento especial aos colegas: Dra. Deisi Scunderlick Eloy de Farias pelo apoio científico e logístico para o desenvol- vimento da pesquisa; ao Lic. Tiago Atorre, pelas suas valiosas contribuições em campo e na produção de gráficos e textos e ao colega Lic. Raul Viana Novasco pelo mapa da área de pesquisa. Este estudo foi possível graças ao auxílio à pesquisa da FAPESP (projeto temático 04/11038-0, coordenado por Paulo DeBlasis) e à bolsa de doutoramento concedida pela mesma agência a Rafael Milheira (processo 2008/57797-0).

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