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AS LUTAS PELO RECONHECIMENTO: DISPOSITIVOS LEGAIS, INSTITUIÇÕES E TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS Fernanda Mara Borba 1

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AS LUTAS PELO RECONHECIMENTO:

DISPOSITIVOS LEGAIS, INSTITUIÇÕES E TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS Fernanda Mara Borba1

Introdução

O reconhecimento da propriedade dos remanescentes das comunidades dos quilombos passou a ser assegurado pela Constituição Federal de 1988, ficando a cargo da Fundação Cultural Palmares (FCP), ligado ao Ministério da Cultura, e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, os procedimentos para a certidão de auto definição e a titulação das terras envolvidas. Ainda de acordo com o texto constitucional, a preservação dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas de antigos quilombos ficam sob responsabilidade do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), ligado ao referido Ministério da Cultura. Em Santa Catarina, existem 13 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, das quais três foram inventariadas pela Superintendência Regional do Iphan, no âmbito do patrimônio imaterial. Com o intuito de compreender os mecanismos do Instituto nestas comunidades, faz-se necessário inicialmente entender como seu deu a criação dos dispositivos legais para o reconhecimento desses territórios e das instituições responsáveis, considerando as lutas sociais mobilizadas e o cenário brasileiro que permitiram essas ações.

Assim, para esse trabalho, algumas etapas foram pensadas para discussão e norteiam igualmente a escrita que se segue. Primeiramente, se discute a constituição, pelo poder executivo, da Fundação Cultural Palmares por meio da Lei n. 7.668 em 1988, e suas respectivas delegações junto aos remanescentes quilombolas. Em seguida, se considera o estabelecimento, em 2003, do Decreto n. 4.887, e da Instrução Normativa n. 57, de 2009, que passaram a incumbir o Incra, na esfera federal, pela titulação desses territórios, regulamentando os procedimentos necessários. Por último, se tem ainda no texto constitucional providências sobre a preservação dos documentos e sítios associados aos antigos quilombos, sob responsabilidade do Iphan. Por fim, citam-se as primeiras experiências do Instituto no âmbito da materialidade e imaterialidade, acerca do patrimônio de matriz africana ou ainda especialmente associado às

1 Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), fernanda.soet@gmail.com. O trabalho em tela faz parte de uma pesquisa de doutorado em andamento que conta com uma bolsa do Programa de Monitoria da Pós-Graduação (Promop), da referida universidade.

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comunidades quilombolas. A análise contempla igualmente outros documentos legais como decretos, portarias e instruções, encarregados de regulamentar a atuação das instituições estatais citadas e propor diretrizes para os trâmites do reconhecimento das comunidades quilombolas no Brasil.

1. A Fundação Cultural Palmares e o Incra para os territórios quilombolas

Os debates acerca dos territórios quilombolas no Brasil se fortaleceram com a promulgação da Constituição Federal de 1988 ao possibilitar um espaço de discussão e negociação em torno da temática. O processo de regularização de terras das comunidades remanescentes de quilombos, viabilizado pelo Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição em 1988, fez emergir movimentos e organizações coletivas em torno da luta pelo reconhecimento das comunidades tradicionais. Neste, consta que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (BRASIL, 1988a). De acordo com Mombelli, o artigo passou a ter uma configuração atípica e foi aprovado ao final da Constituinte considerando a existência de poucas situações a serem incluídas na referida lei no país. A mesma coloca que

desde a promulgação da Constituição, existiam dúvidas se o artigo 68 da ADCT seria autoaplicável ou não. As discussões foram impulsionadas somente a partir de 1995, quando um projeto de lei com a intenção de regulamentar o artigo foi proposto pelos deputados federais Alcides Modesto e Domingos Dutra, com o apoio da Senadora Benedita da Silva. Os anteprojetos foram apresentados no contexto de debates que envolviam as comemorações organizadas por instâncias de governo e pelos movimentos sociais para o tricentenário da morte de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares, Dia Nacional da Consciência Negra (MOMBELLI, 2009, p. 54).

Assim o Artigo 68 seria o resultado de uma série de reinvindicações presentes no Brasil articuladas pelo movimento social negro que, de acordo com a antropóloga, desde os anos de 1970 se reapropriou do quilombo como representação política e de luta contra a discriminação racial. Nesse período, o movimento buscava também uma representação dentro do governo e associada a cultura afro-brasileira, o que ocorreria somente em 1985, com a criação do Ministério da Cultura (MinC) e da assessoria da Cultura Afro-brasileira. Ainda na década de 1980, a militância negra se reorganizou em torno dos projetos políticos, ao passo que mais brasileiros negros ocupavam os ambientes universitários, criando uma geração de intelectuais.

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De acordo com Mombelli (2009), com a retomada da democracia no país, em 1985, o estado se aproximou dos movimentos sociais negros, a partir da sua própria estrutura, dos partidos políticos e dos dispositivos legais (como por exemplo, a criminalização do racismo com a regulamentação da Lei n. 7.716 de 1989 (BRASIL, 1989).

Caminhando nesse sentido, uma outra importante instituição foi criada: a Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao MinC. Esta, viabilizada pelo Decreto n. 7.688 de 1988, tem ainda como finalidade, entre outras ações,

realizar a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a correspondente titulação; [...] [e] promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira (BRASIL, 1988b).

Com seu estatuto aprovado pelo Decreto n. 418 de 1992, a FCP surgiu com propósito de “formular, fomentar e executar programas e projetos em nível nacional com a finalidade de reconhecer, preservar e difundir os valores e práticas das culturas africanas na formação da sociedade brasileira” (WEB, 2016a). Na atualidade, as práticas contemplam ações de preservação, produção de projetos nacionais voltados ao reconhecimento e a divulgação da cultura africana na sociedade brasileira.

Atualmente a FCP conta, entre outras estruturas, com a Diretoria de Proteção do Patrimônio Afro-brasileiro (DPA), que procede o registro das declarações de auto definição apresentadas pelas comunidades, assiste à regularização fundiária e desenvolve ações, por exemplo, suportadas pelo Decreto 6.040 de 2007. Este instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com a função também de apoiar projetos de revitalização e preservação dos terreiros de religiões de matriz africana; assim como à elaboração de inventários e de políticas públicas. A concessão de certidões de reconhecimento faz parte da abertura do processo de regularização fundiária como quilombo e, de acordo com a FCP, atualmente foram mais de 2.600 registros expedidos. O documento reconhece os direitos das comunidades quilombolas e dá acesso aos programas sociais do Governo Federal, servindo como referência na promoção, fomento e preservação das manifestações culturais negras. Outras estruturas foram criadas como o Departamento de Fomento e Promoção da Cultura Afro-brasileira (DEP) e o Centro Nacional de Informação e

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Referência da Cultura Negra (CNIRC). Com o intuito de estar presente na sociedade e ampliar as ações de preservar e promover a cultura afro-brasileira, a FCP, desde 2001, atua por meio das representações regionais filiadas em Brasília, contemplando representações nos estados de Alagoas, Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (que abarcam os demais).

Outro importante mecanismo para o reconhecimento do território quilombola se refere a atuação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), uma autarquia federal, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, cuja missão prioritária seria de executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional. O Instituto foi criado pelo Decreto n. 1.110 de 9 de julho de 1970 e, como a FCP, se faz presente no território nacional por meio das superintendências regionais. A sua associação com as comunidades quilombolas se deu a partir de 2003, com o Decreto n. 4.887, que regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, presente no referido Artigo 68 do ADCT. De acordo com o Artigo 3o:

Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (BRASIL, 2003).

Para o Decreto, são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida2. Esse Artigo se faz importante uma vez que a

caracterização deve ser atestada mediante auto definição da própria comunidade. Segundo Mombelli (2009), o Decreto evidencia a consciência da identidade coletiva e a necessidade de uma presunção da ancestralidade negra, mesmo que alguns membros incluídos ao grupo ao longo de sua história apresentem outras ancestralidades. E ainda, deve-se apontar um histórico de resistência coletiva a opressão sofrida, um vínculo histórico próprio e relações territoriais

2 A mesma definição pode ser encontrada na Instrução Normativa n. 57 de 2009, que regulamenta os

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específicas, sendo o território o vínculo que os membros da comunidade, conformando assim uma comunidade quilombola.

A titulação dos territórios quilombolas pode ocorrer por iniciativa do próprio órgão, a pedido da comunidade ou de qualquer outro interessado. A certificação de auto reconhecimento da identidade quilombola da comunidade deve ser incialmente expedida pela FCP e encaminhada ao Incra que irá proceder o relatório antropológico, presente em todos os processos de reconhecimento dos territórios das comunidades quilombolas. Este deve apresentar o levantamento da história e características socioculturais da comunidade e a proposta da delimitação da área necessária à reprodução física, econômica e cultural da comunidade. A definição dos limites, a medição e a demarcação das terras são realizadas pelo Incra, levando-se em consideração os critérios dos próprios quilombolas e estudos do relatório antropológico, que levantam as famílias quilombolas da comunidade, a situação fundiária das terras tradicionais e, ainda, a existência de ocupantes não-quilombolas nos territórios envolvidos. Neste caso, o Incra procede a desapropriação ou arrecadação da área particular para depois titulá-la em nome da associação da comunidade. Ou se de existirem ocupantes na terra quilombola, o Incra providencia o reassentamento, caso sejam público objeto da reforma agrária.

De acordo com o sítio do Instituto, foram 207 títulos emitidos no Brasil, regularizando 1.040.506,7765 hectares em benefício de 148 territórios, 238 comunidades e 15.719 famílias quilombolas, entre os governos presidenciais de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (WEB, 2016b).

2. O Iphan e o patrimônio quilombola

Dentro das políticas públicas de patrimônio cultural, o reconhecimento das comunidades quilombolas se deu inicialmente pelo tombamento que, embora instituído em 1937 para ser aplicado no âmbito do atual Iphan, passou a ser viabilizado em territórios quilombolas a partir de 1988 com a Constituição Federal. Esta, no Artigo 216, explicita: “ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos” (BRASIL, 1988c). Especialmente considerando as restrições legais implicadas pelo tombamento e ainda o caráter vivo e dinâmico das comunidades, as ações patrimoniais do Iphan se deram de forma mais significativa pela imaterialidade (tombados no Brasil, tem-se somente

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o Quilombo de Palmares na Serra da Barriga em 1986, em Alagoas, e o Quilombo de Ambrósio, em 2002, em Minas Gerais). Destaca-se aqui os quilombos presentes na Constituição Federal de 1988 como “remanescentes”, “antigos” e “reminiscências”, como sobras de um passado que não mais existe. Num parecer do Iphan elaborado naquele ano, a sua atuação aparece restringida às situações em que fossem encontrados vestígios materiais de existência dos antigos quilombos, sendo esses concebidos como “as comunidades auto-excluídas da sociedade nacional durante o período colonial até a abolição da escravatura, formados originalmente por negros escravos fugidos das áreas urbanas ou rurais onde existiam práticas de exploração escravista” (VAZ, 2014, p. 34). Estabelece-se então uma discussão a respeito dos antigos quilombos versus os quilombos contemporâneos (ou os remanescentes de quilombos), refletindo na preservação do patrimônio cultural dessas comunidades, uma vez que depois de Ambrósio, nenhum outro espaço passou pelo mecanismo do tombamento3.

Apesar da inovação, a aplicação dos artigos constitucionais ganhou força, segundo Mombelli (2009), somente na década de 1990, com as discussões sobre os procedimentos de regulamentação do Artigo 68 da ADCT. Nesse período, foi criado o Departamento de Identificação e Documentação (DID), em 1995, ligado ao Iphan, que realizou experiências de inventários de referências culturais em cidades de Minas Gerais que reuniam diversas edificações tombadas. Ainda de acordo com a autora, houve destaque, em 1997, do lançamento da Carta de Fortaleza ao reunir as diretrizes para a formulação de uma política de patrimônio imaterial no país. Entre as recomendações do documento, tinha-se o aprofundamento dos estudos sobre a temática e a criação de um novo instrumento legal para proteger os bens de natureza imaterial. Em seguida, em 1998, foram criadas pelo governo a Comissão e o Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial (GTPI), para realizar um estudo no âmbito nacional e internacional, e pensar novas formas de proteção e apoio ao patrimônio imaterial. Como resultado dos trabalhos do GTPI, criam-se o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, por meio o Decreto n. 3.551 de 2000.

Assim, para contemplar outros patrimônios sem acionar o tombamento, o Iphan passou

3 Antes de 1988, tem-se o tombamento de Palmares por meio de uma visão genérica do que seria um quilombo: um território que abrigava negros escravos fugidos durante o período da escravidão. A partir da previsão constitucional do tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, foram abertos 11 processos de tombamento no âmbito do Iphan. Dentre esses, apenas o Quilombo de Ambrósio resultou no tombamento por não constituir no presente uma comunidade quilombola.

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a usar os registros dos saberes, das celebrações, das formas de expressão e dos lugares, incluídos no Programa e no Registro. Estes viabilizaram projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio, implementando a política do inventário, registro e salvaguarda. Nesse contexto, tem-se o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) que passou a identificar os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, “constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social” (BRASIL, 2000). Como parte do registro, o INRC identifica os domínios da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, “constituem marcos e referências de identidade para determinado grupo social”. O Inventário se destaca ao passo que as referências culturais são indicadas como patrimônio pelas próprias comunidades envolvidas, diferentemente da identificação do patrimônio cultural em períodos anteriores, norteada pelos agentes estatais.

Por outro lado, a criação do registro do patrimônio imaterial não garantiu, inicialmente, o reconhecimento das comunidades quilombolas, considerando que houve a prevalência dos bens ligados a matriz cultural associada à imigração europeia no sul do Brasil. Nessa questão, Mombelli (2009) situa que essa questão não foi diferente com o registrado no restante do país. A autora menciona Santa’Ana (2003) que, ao realizar uma análise do Livro Tombo do Iphan, revela uma exclusão de tipos de bens culturais, expondo que “essa estratégia produziu um ‘retrato’ da nação que termina por se identificar à cultura trazida pelos colonizados europeus, reproduzindo a estrutura social por eles aqui implantadas” (FONSECA, 2003, p. 64). Dessa forma, seria necessária uma revisão na condução do processo para que a função do patrimônio se realize no sentido de que diferentes grupos sociais possam se reconhecer nesse repertório. Ademais, o ato aponta para a necessidade de uma mudança nos procedimentos das políticas de proteção dos patrimônios culturais que garantam a efetiva participação da sociedade no processo de construção e de apropriação desse patrimônio. Pode-se afirmar que o patrimônio no Brasil seguiu uma política de exclusão em que nem todos os grupos foram contemplados na representação da formação da diversidade cultural brasileira.

Posteriormente e em menor número, ainda, associada à imaterialidade afro-brasileira, foram registrados no Brasil, o Samba de Roda na Bahia, o Samba do Rio de Janeiro, o Tambor de Crioula no Maranhão e o Jongo no Sudeste, como formas de expressão, e o Ofício das Baianas do Acarajé e dos Mestres de Capoeira como saberes. Ainda nos estados da Bahia,

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Pernambuco, São Paulo, Maranhão, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, outros instrumentos de reconhecimento, salvaguarda e promoção como a identificação e levantamento foram estabelecidos.

Esses e outros saberes e práticas foram previstos de acordo com o Livro de Registro de Saberes, onde serão inscritos conhecidos e modos de fazer enraizado no cotidiano das comunidades; o Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; o Livro de Registro das formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; e o Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturas coletivas. Para fins metodológicos, o INRC classifica esses bens em cinco categorias: 1) celebrações: comemorações e festividades de cunho religioso ou profano;
2) formas de expressão: manifestações e performances culturais de finalidade comunicativa, mas de natureza não-lingüística como, por exemplo, artesanato, danças, artes plásticas, músicas etc.; 3) ofícios e modos de fazer: atividades e processos afeitos aos conhecimentos tradicionais vinculados à produção de bens ou serviços de sentido prático ou ritualístico, como por exemplo, as benzeduras, técnicas construtivas tradicionais, os modos de fazer artesanal e o etnoconhecimento; 4) Lugares: locais de significação histórica ou cultural para as populações que deles se apropriam simbólica, prática e/ou territorialmente. Não necessariamente edificados pelo homem (cachoeira, paisagens, quadras de escolas de samba etc);
e 5) Edificações: Estruturas físicas construídas por grupos sociais associadas à memória social ou a práticas cotidianas, sagradas ou profanas, tais como igrejas, mercados etc. 


Por fim, o Inventário prevê três fases de realização: 1) o levantamento preliminar que define a área a ser inventariada por meio de critérios sociopolíticos, jurídicos ou temáticos e prevê a reunião e a sistematização de conhecimento prévio existente a respeito da área e eventuais visitas preliminares para a observação direta, a coleta de dados de contato e o relacionamento com a comunidade; 2) a identificação, com base no conhecimento anterior, procede ao aprofundamento do conhecimento sobre as referências culturais da área, através da realização de um inventário exaustivo e pormenorizado, por meio do registro de entrevistas e de vídeos a respeito desses bens; e 3) a documentação que sistematiza, para fins de divulgação e de publicização, o conhecimento produzido nas etapas anteriores, envolvendo a produção de

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artigos ou livros de cunho autoral, de registros audiovisuais e documentários etc.

Em Santa Catarina, nesse aspecto, criou-se o Projeto “Comunidades Negras de Santa Catarina” com a aplicação do Inventário pela Superintendência do Iphan, e referentes às comunidades quilombolas Sertão de Valongo, Invernada dos Negros e São Roque. Estes contemplam registros dos saberes, das celebrações, das formas de expressão e dos lugares, e identificam diversos aspectos da vida social aos quais são atribuídos sentidos e valores pelas comunidades. O Projeto buscou, por meio do Inventário, identificar, proteger e promover o patrimônio cultural vinculado à ancestralidade negra em suas diversas dimensões, dentre elas a arqueológica, a arquitetônica, a paisagística e a imaterial. Ao entender os saberes e os modos de vida das comunidades tradicionais e demais comunidades negras como elementos fundamentais na constituição das memórias, a ação permitiu a exposição de parte dessas contribuições, tentando possibilitar o conhecimento dessa parcela da população, tradicionalmente invisibilizada na história catarinense. De acordo com o órgão, futuramente, as informações reunidas no inventário constituirão uma base de dados de acesso público, com a finalidade de fornecer subsídios para a elaboração de políticas públicas em consonância com as culturas locais (GODOY; RABELO, 2008).

Algumas considerações

A patrimonialização no âmbito da imaterialidade tem-se voltado à salvaguarda das representações culturais populares e tradicionais, de forma diversa e ampla, incluindo na cultura nacional as manifestações pouco alcançadas pelo tradicional instrumento do tombamento. Em Santa Catarina, o Projeto “Comunidades negras de Santa Catarina” iniciou um importante trabalho ao reunir informações acerca das comunidades quilombolas, certificadas pela FCP e em processo de titulação de seus territórios. Por outro lado, não seriam os inventários, vistos como políticas de preservação, etapas que resultariam nos registros do patrimônio cultural imaterial? Assim, e considerando a inexistência destes últimos, espera-se que, posterior ao importante levantamento feito junto com as comunidades, de fato, o Iphan possa efetivar o reconhecimento dos saberes diversos apontados (se assim as comunidades desejarem). E ainda, que essas ações possam comtemplar, futuramente, outras comunidades já certificadas como remanescentes de quilombos em Santa Catarina e que, certamente, apresentam práticas e produções de significância e importância, no âmbito do patrimônio cultural.

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Para finalizar, um desafio ainda mais difícil foi posto recentemente. Essa proposta foi elaborada anterior a reforma ministerial do Presidente da República, em exercício, Michel Temer. Com a Medida Provisória n. 276 de 12 de maio de 2016, o Ministério da Educação e da Cultura (MEC), revogada pela recente Medida n. 728 de 23 de maio que retoma o Ministério da Cultura (extinto dias anteriores), deve assistir e acompanhar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra nas ações de regularização fundiária, para garantir a preservação da identidade cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Para este último ministério, cabia a delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos e determinação de suas demarcações, a serem homologadas por decreto. Mais recentemente, o presidente, por meio do Decreto 8.780 de 27 de maio de 2016, transferiu a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário para a Casa Civil da Presidência da República. Assim, considerando que esta proposta surgiu como parte de uma pesquisa em andamento, acerca dos percursos do reconhecimento dos territórios quilombolas catarinenses e as práticas patrimoniais implantadas nesses espaços, se faz necessário tempo para pensar sobre os efeitos dessas novas mudanças e as articulações das comunidades, movimentos sociais e organizações diversas levantadas nos últimos momentos.

Referências

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_______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; Centro Gráfico, 1988c.

______. Casal Civil. Lei n. 7.668, de 22 de agosto de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988b.

______. Casa Civil. Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Brasília: Diário Oficial da União, 1989.

______. Casa Civil. Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003. Brasília: Diário Oficial da União, 2003.

______. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Inventários Nacionais de Referências Culturais (INRC): Manual de aplicação. Brasília:

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FONSECA, Maria Cecília Londres. Para Além da Pedra e Cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (org.). Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 56-76.

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES (FCP). Disponível em: http://www.palmares.gov.br. Acesso em: 20 de mai. 2016.

GODOY, Clayton Peron Franco de; RABELO, Marcos Monteiro. Comunidades negras de

Santa Catarina: narrativas da terra, ancestralidade e ruralidade. Florianópolis: Iphan – 11a

Superintendência Regional, 2008.

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA). Disponível em: http://www.incra.gov.br. Acesso em: 20 mai. 2016.

MOMBELLI, Raquel. Visagens e profecias: ecos da territorialidade quilombola. Florianópolis, 2009. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.

VAZ, Beatriz Accioly. Quilombos e Patrimônio Cultural:
Reflexões sobre direitos e práticas no campo do patrimônio. 2014. Dissertação (Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 2014.

Referências

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