ISSN 2176-1396
E ATITUDES HETERÔNOMAS1
Bernadete Machado Serpe2 - IFC
Eixo: Psicologia da Educação Agência financiadora: CAPES e CNPq
Resumo
Este texto resulta do recorte da pesquisa de doutorado sobre a relação entre construção de valores e processo de aprendizagem escolar. A investigação de origem envolveu 624 sujeitos, os quais fizeram parte de quatro grupos: crianças e adolescentes atendidas em instituições de contraturno social; educadores sociais dessas instituições; professores e pedagogos das escolas em que os primeiros estavam matriculados; e os pais e/ou responsáveis legais por essas crianças. O presente estudo tem como propósito analisar a abordagem de desenvolvimento moral expressa por parte da família. A pesquisa de campo consistiu na visita domiciliar a 49 famílias, previamente selecionadas e informadas sobre a realização do trabalho de pesquisa, após a aprovação do termo de consentimento livre e esclarecido – TCLE – foram entrevistados indivíduos como: mães, pais, madrasta, padrasto, avós, tio, responsável sem parentesco. As entrevistas, após transcritas, geraram um corpus de análise do qual constitui esse texto somente a questão direcionada a forma de educação adotada para os filhos e filhas desses sujeitos. Além dessa questão, também são elencados os dados censitários que servem para distinguir e nominar os sujeitos. Como instrumento para a análise foi utilizado o software SPSS a fim de realizar a abrangência e tabulação cruzada dos dados. O referencial teórico que problematiza as informações refere-se ao estudo da construção do juízo moral realizado por Piaget e seus colaboradores. As informações, após serem problematizadas revelam que embora haja prevalência de sanções por reciprocidade, há ainda forte influência de elementos unilaterais e heterônomos nas atitudes adotadas pelos sujeitos na educação de seus filhos.
Palavras-chave: Família. Obediência. Respeito.
1 Agradeço a colaboração do Prof. Dr. Ademir José Rosso (UEPG) e especialmente da Prof.ª Dr.ª Elizabeth
Trejos-Castillo (Associate Professor, Human Development & Family Studies. Texas Tech University – TTU – Lubbock, Texas – USA) na colaboração para a análise das informações e revisão textual.
2 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professora EBTT do Instituto
Introdução
A pesquisa de doutorado foi desenvolvida com quatro grupos de sujeitos: crianças e adolescentes, pais e/ou responsáveis legais, educadores sociais, e professores e pedagogos das escolas públicas na cidade de Ponta Grossa, Paraná (SERPE, 2015). O recorte apresentado expõe as respostas específicas a uma questão em que era exposta a abordagem dos familiares para sancionar a criança e/ou adolescente, expressando assim a forma de desenvolvimento moral desses indivíduos. As informações obtidas resultam de entrevista semiestruturada. O propósito da entrevista foi conhecer os universos familiares das crianças e adolescentes participantes da investigação, bem como analisar como acontece a construção moral desses a partir do relacionamento familiar.
O referencial teórico que serviu de base para as discussões e análises se refere a Jean Piaget com a discussão sobre o juízo moral. O recorte aqui apresentado tem como objetivo analisar a abordagem de desenvolvimento moral expressa por parte da família. Para a análise o conteúdo foi processado pelo software SPSS3 e a análise realizada foi a de tabulação cruzada ou correlação entre as variáveis.
Com a discussão das informações pelo referencial teórico é possível validar que mesmo que os sujeitos expressem um esforço de pensamento voltado a atitudes que desenvolvam a autonomia de seus filhos e filhas, quando há necessidade dessa efetividade, as práticas são reduzidas à coerção favorecendo ações heterônomas que resultam em desgaste emocional por parte desses sujeitos. Nas linhas consecutivas apresentamos o percurso desse estudo.
O processo de construção moral dos indivíduos
O desenvolvimento moral é tratado pela perspectiva piagetiana como algo construído nas relações sociais estabelecidas. Piaget demarca que a criança ao nascer está envolta pela anomia, caracterizada pela ausência de normas, mas no decorrer de seu desenvolvimento o indivíduo vai se apropriando das normas por meio das relações estabelecidas primeiramente em seu meio familiar (PIAGET, 1994).
Para o autor, essa construção pode se realizar de duas maneiras: uma que envolve a heteronomia, e outra a autonomia. As relações mediadas pela heteronomia são resultados de
atitudes normativas arbitrárias em que o indivíduo é submetido à norma, mas sem necessariamente compreender o seu conceito, ou seja, o papel do sujeito é suprimido àquele que pratica o ato, no caso desse estudo os pais e/ou responsáveis legais. A característica principal da heteronomia é o desenvolvimento do respeito unilateral, em que o indivíduo apenas obedece por medo de algo que possa vir a acontecer, dessa forma as medidas tomadas equivalem a sanções coercitivas, a que Piaget (1994) denomina expiatórias e que estão alheias à consciência de quem recebe o ato.
O segundo modo de desenvolvimento da moralidade é representado pela autonomia, e essa tem por característica central a construção da consciência entre o ato e seu resultado, promovendo o entendimento da norma. Para isso, os mecanismos de controle incluem sanções por reciprocidade que “[...] fazem compreender ao culpado o significado de sua falta.” (PIAGET, 1994, p. 162). Os elementos utilizados nessas sanções envolvem a cooperação entre os indivíduos gerando um sentimento de solidariedade e respeito mútuo, dessa forma as trocas interindividuais promovem relações mais estreitas e valorização recíproca entre os indivíduos. A partir dessa perspectiva desenvolvemos a análise das informações, pressupondo que o sentido das sanções elaboradas pelos pais e/ou representantes legais, nem sempre correspondem ao significado esperado por esses sujeitos.
Procedimentos para análise das informações
Os dados analisados referem-se a 49 respostas à questão: Descreva como educa a criança e/ou adolescente. O conteúdo e as informações censitárias dos sujeitos foram processados pelo software SPSS, e a análise selecionada para esse estudo foi a de tabulação cruzada entre as variáveis. Essa análise colabora no sentido da realização de comparação entre as variáveis e proporciona uma visão global do conteúdo averiguado. A seguir apresentamos os dados censitários dos sujeitos.
Tabela 1 – Caracterização censitária das famílias participantes da pesquisa Total da Amostra N= 49
Faixa etária Total %
1981 a 1989 13 26,5 1966 a 1979 27 55,1 1948 a 1964 9 18,4 Sujeito entrevistado Pai 4 8,2 Mãe 37 75,5
Madrasta e/ou padrasto 2 4,1
Responsável com parentesco 5 10,2
Responsável sem parentesco 1 2,0
Estado Civil Casado (a) 17 34,7 Convivente 6 12,2 Solteiro (a) 19 38,8 Separado (a) 3 6,1 Viúvo (a) 4 8,2 Escolarização Não alfabetizado 1 2,0 1ª a 4ª série 21 42,9
Ensino Fundamental completo 20 40,8
Ensino Médio completo 7 14,3
Fonte: A autora.
As principais características dessas informações se referem à situação familiar dos sujeitos e a escolarização, esses dois conjuntos de dados nos revelam o perfil dos indivíduos os quais possuem um nível baixo de escolaridade devido à falta de oportunidades para realizar os estudos por necessidade de trabalho desde a infância. Em relação ao estado civil, os dados nos mostram que 46,9% dos sujeitos possuem um relacionamento estável, mas isso não garante que essa especificidade venha a refletir no modo de educação da criança e/ou adolescente.
Especificamente em relação às sanções para tratar e analisar os dados, o corpus foi dividido em três características: sanções expiatórias, sanções retributivas, e sanções expiatórias e retributivas. Essa última revelando os sujeitos que em suas falas denotam um pensamento voltado a atitudes comunicativas, mas ao expressarem suas ações essas evidenciam atitudes extremamente normativas. A tabela a seguir nos ajuda nessa explicitação.
Tabela 2 – Caracterização das sanções
Sanção Frequência %
Não toma providências 1 2,0 22,4
Expiatória 11
Retributiva 26 53,2
Expiatória e Retributiva 11 22,4 Fonte: A autora.
Gráfico 1 – Caracterização das sanções
Fonte: Relatório de análise emitido pelo software SPSS, 2017.
Os dados nos mostram que os encaminhamentos disciplinares são mais comumente praticados por meio das sanções retributivas, as quais caracterizam a proximidade entre os indivíduos, desencadeando o entendimento da norma. No entanto, o que nos chama a atenção são os sujeitos que se utilizam do discurso autônomo, porém suas ações seguem os princípios de heteronomia, como é o caso do Sujeito 29: “A gente tenta, falar, explicar, dar uns gritos, só que não é fácil.”
No entanto, conforme o conteúdo da interlocução dos sujeitos, as estratégias utilizadas por esses sujeitos têm por características não somente reprimir seus filhos e filhas, mas também ensiná-los que suas ações precisam ser pensadas. No entanto, as ações coercitivas podem favorecer somente a obediência pura, sem contribuir para o entendimento dessa sanção, é o que demonstrado pelo Sujeito 24: “Eu sempre falo que ela deve ser educada, não falar palavrão, ou quando ela fala, eu surro.” Essa sanção envolve a princípio a reciprocidade, mas é finalizada pela expiatória.
Há aqueles sujeitos que se valem somente dos princípios do respeito unilateral e suas ações envolvem tão somente o emprego de atitudes coercitivas, como é o caso do Sujeito 13 quando expõe que:
Têm horas que eu tenho que cadear eles no quarto, porque que está demais. Um começa a cutucar o outro, um começa a bater no outro [...] Tem horas que eu tenho que fechar no quarto e colocar ela de castigo, aí ela fica quieta, quando eu abro, acabou a bagunça.
Ademais, quando se trata do desenvolvimento moral, há os sujeitos se valem das sanções retributivas que exigem um contato mais estreito e afetivo (PIAGET, 1994) entre pais
e filhos, o que é demonstrado pelo Sujeito 09: “Conversando primeiro, porque às vezes eles fazem algo de errado, e eu já falo que eles têm que pensar antes de fazer.” Há também os sujeitos que se utilizam, em seus atos, dos princípios inerentes à reciprocidade como é expresso pelo Sujeito 21: “Conversamos muito, conversamos e eu sempre procuro colocar ele lá no lugar do outro para depois ele voltar no lugar dele.”
Entretanto, vale ressaltar que muitos sujeitos utilizam-se da conversa, mas em muitos casos essa ainda tem forte característica unilateral, com atitudes heterônomas e coercitivas (PIAGET, 1973; 1994) por parte dos pais e responsáveis: “Conversando, eu mais grito do que surro. Surrar é muito raro, só quando fazem algo de muito errado.” (Sujeito 40).
Com essa exposição é perceptível que os pais e/ou responsáveis legais possuem diferentes formas de sancionar os atos de seus filhos e filhas, entretanto as sanções por reciprocidade tendem a gerar sujeitos que compreendam melhor o resultado de seus atos e que reflitam sobre esses (PIAGET, 1994).
Considerações finais
A finalidade desse estudo esteve em realizar uma análise das atitudes dos pais e/ou responsáveis legais ao que se refere a construção da moralidade de seus filhos e filhas. Com a verificação das respostas desses sujeitos ao questionamento sobre suas atitudes para educarem seus filhos e filhas, foi possível constatar que os indivíduos nem sempre possuem clareza sobre a repercussão de seus atos nesse processo educacional.
Com base no referencial teórico de Piaget, sobretudo sua obra “O juízo moral na criança”, na qual o autor realiza seu estudo sobre a construção da moralidade a partir da observação de como as crianças se relacionam e constroem as regras nos jogos. As premissas elencadas pelo teórico nos ajudaram a compreender o processo de constituição das normas realizado pelos sujeitos nas distintas maneiras como são praticadas.
Nesse recorte da pesquisa, fica explícito que os indivíduos, por vezes, agem de modo automático conforme as situações, e isso tende a gerar atitudes heterônomas que nem sempre são recebidas de modo passivo pelo outro. Isso pode resultar no desgaste emocional entre as partes envolvidas. Além disso, são as atitudes voltadas a sanções por reciprocidade que conduzem a elaboração do sentimento de obrigação daquele a quem o ato é destinado, esse sentimento envolve o respeito mútuo entre os indivíduos. (PIAGET, 1994).
Assim, vale ressaltar que não é a intencionalidade do ato que tem a capacidade de gerar atitudes que demonstrem a consciência da norma, mas sim o modo como essa norma é desenvolvida e assimilada por aquele que a recebe.
Referências:
PIAGET, Jean. Estudos Sociológicos. Tradução de Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. Tradução de Elzon Lenardon. 2. ed. São Paulo: Summus, 1994.
SERPE, Bernadete Machado. Educação, escola e instituições de contraturno social na
cidade de Ponta Grossa: entrecruzamentos de valores e representações por diferentes vozes.
2015. 271f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2015.
