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O HOMOEROTISMO EM CAIO FERNANDO ABREU: UM CENÁRIO DE PRECONCEITO E VIOLÊNCIA EM TERÇA-FEIRA GORDA

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O HOMOEROTISMO EM CAIO FERNANDO ABREU: UM CENÁRIO DE PRECONCEITO E VIOLÊNCIA EM TERÇA-FEIRA GORDA

Cecília Luíza de Melo Rezende Cláudia Campolina Tartáglia Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora

Resumo: Vivemos numa sociedade em que a questão da homossexualidade é geradora de

repressão, discriminação e preconceito quanto aos valores sociais, históricos e éticos ditados por uma classe dominante heterossexual em detrimento ás minorias homossexuais. Este artigo aborda o conto Terça-feira gorda extraído do livro Morangos mofados (2005). Tem como objeto de estudo refletir, analisar e evidenciar no conto a marginalização, a perseguição sexual e moral sofrida por homossexuais e como isso reflete na nossa realidade. Por outro lado propôr a legitimidade de diferentes identidades sexuais, de forma que a orientação sexual escolhida tenha uma esfera de aceitabilidade para todos. Esta obra é carregada de subjetividade, em que o envolvimento afetivo e sexual entre duas pessoas é confrontado com a repressão e o preconceito sexual.

Palavras-chave: Repressão; Preconceito; Homossexuais; Violência; Moral.

O encontro de dois homens pode ser apenas um encontro, mas, também pode ser uma possibilidade de diálogo e abertura para o mundo, desafio maior de todo discurso minoritário, alguma vez discriminado [...] A experiência gay nada tem de redutora, classificadora, se assim o quisermos, é um mistério insondável, um ponto de partida, uma pergunta mais do que uma resposta.

Denílson Lopes

Introdução

Apesar do novo milênio estar iniciando assiste-se a uma crise humana global. O homem busca redefinições quanto aos valores éticos, sociais e pessoais. E neste movimento, a pessoa torna-se impotente face a tantas informações.

Sentimentos de solidão surgem e o ser humano mergulha em uma grande dor ao perceber sua existência. Passa a viajar por este universo humano buscando a felicidade, o prazer em sua essência. Ficcionista da geração dos anos 70 Caio Fernando Abreu expressa, sobretudo em seus livros, as crises existenciais de jovens que viveram, ao mesmo tempo, a ditadura militar, a queda dos ideais

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esquerdistas e a liberalização dos costumes. Sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma marca própria, justamente com uma linguagem fora dos padrões tradicionais vigentes.

O lado avesso da sociedade é reconhecido pela ironia da repressão acontecer no carnaval, justamente no período em que são toleradas determinadas práticas, mas não a homossexualidade.

Vê-se que a visão preconceituosa da sociedade heterossexual continua em qualquer situação, seja ela uma festa desregrada como o carnaval ou em encontros sociais formais e faz-se presente até os dias atuais.

Morangos mofados

A obra Morangos mofados de autoria de Caio Fernando de Abreu, foi publicada em 1982, produzida num contexto autoritário ,em que a censura, a repressão e a perseguição política eram constantes. Mesmo assim o autor apresenta através de seus contos aspectos sociais, históricos e sexuais vivenciados pelos personagens.

É uma literatura que suscita questões sociais vivenciadas pelos indivíduos acerca de seus valores, identidades, condutas e ideologias de acordo com os valores tradicionais das sociedades conservadoras e autoritárias e convida os leitores a uma postura crítico-reflexiva em relação ao posicionamento preestabelecido pela classe dominante.

O livro é composto por dezoito contos, dividido em três partes, cuja organização é dialética: a primeira (tese) é intitulada “O mofo”, a segunda (antítese) chama-se “Os morangos” e a terceira (síntese) é nomeada pelo conto que dá título ao livro, Morangos mofados. Nessa coletânea de contos, em alguns a temática é o homoerotismo, outros em que centraliza a repressão política ou o processo de escrita. Seus contos são permeados de poesia, lirismo e sonhos. Entretanto, a dor se configura como elemento predominante na narrativa.

O conto Terça-feira gorda situa-se na primeira parte do livro intitulada “O mofo”, que sugere através da temática dos textos uma metáfora para a “putrefação” e o mascaramento de parte da sociedade. Por um lado, muitos personagens usam máscaras para dissimular seu caráter preconceituoso, agressivo e opressor, enquanto outros, que são vítimas das ações inescrupulosas e violentas daqueles, não têm coragem de vestir máscaras. Desta forma, este conto está denunciando um lado repressor da sociedade, em que o “mofo” é o elemento essencial que determina o caráter discriminativo e violento do contexto social.

É importante salientar que existe uma conexão entre o contexto social em que o conto foi produzido e a postura dos personagens. Os agressores no conto adotam uma posição ideológica favorável às ideias autoritárias e preconceituosas difundidas no período de publicação do livro Morangos mofados, em 1982. Este período embora de transição da ditadura para um regime democrático deixa marcas que são reproduzidas nas relações sociais entre os indivíduos.

Àqueles que tem a coragem de romper com os padrões tradicionais são severamente perseguidos e punidos como ficou demonstrado no conto Terça-feira gorda pelos personagens homossexuais. Já os

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detentores das regras morais e conservadoras, agem de acordo com o sistema de forma opressora, repressora e violentadora de todos os que “desrespeitam” os valores morais e éticos da sociedade. Morangos mofados apresenta uma linguagem considerada vulgar, mas que é colocada no mesmo plano da culta, em que o autor constrói seus contos explorando a posição do narrador ou a ausência dele, numa narrativa que é fragmentada e lacunar, densa e complexa.

Terça-feira gorda: contextualização da obra literária

Este conto aborda questões relacionadas com a festa do carnaval, da discriminação sexual, da violência verbal e física, do uso de drogas, do espaço público, das máscaras e fantasias, de forma que os personagens são envolvidos num cenário carnavalesco, próximo a praia. Nesta obra, o lirismo está presente na prosa e o drama caracteriza o tom dessa história.

O conto é narrado em primeira pessoa, em que se apresenta uma história de amor e desejo entre dois homossexuais através do qual um se sente atraído pelo outro desde o primeiro momento em que se olham. Ao relatar o acontecimento que ocorria entre eles, o narrador-personagem acentua de subjetividade a história, fazendo com que o envolvimento afetivo e sexual entre eles torna-se cada vez mais forte, como é relatado no início da narração um “reconhecimento” entre os dois amantes. Esse reconhecimento se dá pela confirmação dos movimentos dos corpos seja através da (dança, sorriso, olhar) e não pelas palavras.

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico (ABREU, 2005, p. 56).

Nota-se que o processo de identificação é vivenciado entre eles tanto no plano do prazer quanto no sexual de forma que eles adotaram uma postura pública livre de preconceitos que envolveram pessoas do mesmo sexo. Essa liberdade de opção sexual é descrita na passagem do conto:

Tínhamos pêlos, os dois. Os pêlos molhados se misturavam. Ele estendeu a mão aberta, passou no meu rosto, falou qualquer coisa. O quê, perguntei. Você é gostoso, ele disse. E não parecia bicha nem nada: apenas um corpo que por acaso era de um homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele, falei qualquer coisa. O quê, perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era apenas um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também (ABREU, 2005, p. 57).

Observa-se pela descrição erótica descrita dos personagens, demonstra que essa relação homoerótica de desejo, de atração sexual entre eles perpassa toda a narrativa. Note-se que o outro é apresentado com o estereótipo de homem, com características masculinas: forte, com pêlos, malhado, carnes rijas e duras, pele morena ao sol, que por acaso gosta de um outro corpo, que por acaso é de outro homem. Desta forma o corpo masculino desperta desejo e este será tratado de acordo com Lopes abaixo:

O desejo é uma forma de pertencimento, de encontro, mesmo quando não de inclusão. O encontro entre dois homens se dá sutil e inesperadamente. As palavras não são

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pronunciadas não pela recusa ao dizer, mas para se aprender com o corpo. Os olhares são físicos, não de voyeur. Olhares não se desviam, falam (LOPES apud MARQUES FILHO; CAMARGO, 2007, p. 80).

Por um lado é esse olhar físico que fala tudo o que as palavras ocultam dizer neste momento é que causa a sedução, o desejo, a vontade de ficarem juntos a um estado homoafetivo e homoerótico entre os dois personagens. Por outro lado, o olhar homofóbico dos “outros” que não respeitam a identidade e liberdade dos homossexuais fica atrelada a uma manifestação de vozes que julgam e condenam-nos como mostra o fragmento a seguir:

passou a mão pela minha barriga. Passei a mão pela barriga dele. Apertou, apertamos. As nossas carnes duras tinham pêlos na superfície e músculos sob as peles morenas de sol. Ai-ai, alguém falou em falsete, olha as loucas, e foi embora. Em volta, olhavam (ABREU, 2005, p. 57).

Fica evidente que mesmo numa festa de carnaval em que é permitido culturalmente agir de uma maneira livre, nesses momentos é que se percebe como a sociedade age hipocritamente em que critica as pessoas por não terem sua liberdade sexual tolhida. Estes personagens não usavam máscaras para se esconder e disfarçar as suas identidades sexuais, ao contrário poderiam utilizar da festa de carnaval para cobrir o rosto e o perigo de suas escolhas. A máscara vem do italiano, maschera, trata-se de um objeto utilizado em bailes de máscaras e serve para enfeitar o rosto e propiciar uma dissimulação. A máscara simboliza o sentido de assumir-se socialmente (posições, emoções) para quem não as utiliza. O fragmento a seguir ilustra a como o carnaval apesar de ser considerado um período de liberdade total, perpassa por momentos de repressão e violência diante da falta de máscara dos amantes:

veados, a gente, ainda ouviu, recebendo na cara o vento frio do mar. A música era só um tumtumtum de pés e tambores batendo. Eu olhei para cima e mostrei olha as Plêiades, só o que eu sabia ver, que em raquete de tênis suspensa no céu. Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, e eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no Carnaval (ABREU, 2005, p. 58).

Esses personagens não escondiam atrás das máscaras a sua sexualidade, o seu desejo, o medo do olhar reprovador “dos outros” que denigre a escolha alheia. Eles se assumiram, e procuraram viver com intensidade e liberdade aquele momento de satisfação que estavam sentindo um pelo outro, num período de regime militar onde as marcas são a repressão e opressão.

Nesse conto os personagens são construídos a partir de uma não identidade, isto é, eles se conhecem, se aceitam sem saberem pelo nome, idade, profissão e moradia um do outro, pois o que importa para eles é desfrutar o prazer, o corpo, o momento amoroso que estão compartilhando juntos. Observa-se através do trecho no conto essa não-identificação de ambas os personagens: “...não vou perguntar teu nome, nem tua idade,teu telefone, teu signo ou endereço, ele disse... [...] O que você mentir eu acredito, eu disse, que nem marcha antiga de Carnaval” (ABREU, 2005, p. 59).

À medida que eles se entregam plenamente na praia, a narrativa adquire uma linguagem homoerótica referente à união e fusão dos dois corpos em um, de forma que nessa entrega completa através do ato pleno de amor como demonstrado no fragmento abaixo:

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a gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro. Tão simples, tão clássico. A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor. E brilhamos (ABREU, 2005, p. 59).

Nessa passagem, observa-se que o contato físico e erótico entre os personagens acontece em ambiente público. Dessa forma, eles assumem diante da sociedade um comportamento que causa impacto e transgressão aos padrões morais vigentes em relação ao espaço privado por estarem nus. Eis que surge novamente um grupo de rapazes mascarados diante dos dois e começam a agredi-los com palavras de baixo calão e pontapés inesperados como é demonstrado no trecho abaixo:

Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta, Ai-ai, gritavam, olha as loucas. Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos (ABREU, 2005, p. 59).

Nesse momento observa-se que as cenas de perseguição e repressão sexual contadas pelo narrador-protagonista apresentam fatos de violência física, psicológica, causando no leitor comoção ao ver o companheiro ser cruelmente espancado até a morte.

Segundo Marilene Chauí (1991, p. 9) a repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de interdições, normas, valores, regras estabelecidas históricas e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade. Nesse sentido entendemos que o grupo agressor se apodera desse conjunto de fatores característicos da repressão sexual para comandar a sexualidade dos personagens.

A violência psicológica seria traduzida na forma do “ai, ai, gritavam, olha as loucas” fazendo referência aos dois enquanto a agressão física está relacionada com “o pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão [...] o brilho de um dente caído na areia” (ABREU, 2005, p. 59).

Segundo Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) o grupo social que causou a agressão física seguida de morte a um homem do par homoerótico, corresponde ao interesse homofóbico de impedir o homoerotismo e impôr fidelidade ao heterossexismo1. Ambos os autores referem ao grupo social com

controle e poder preponderante sobre o “outro” no caso o par homossexual, devido às questões culturais, históricas e morais envolvidas na nossa sociedade.

A homofobia cumpre com três propósitos narrativos no discurso social:

1) serve para legitimar as ideologias sociais que se circunscrevem em torno do heterossexismo compulsório2;

1 Heterossexismo: segundo a perspectiva de Foster (apud PORTO, 2002, p. 5) ele considera o heterossexismo a legitimidade somente da relação sexual binária entre homem e mulher, característica do patriarcado e prestigiada pela sociedade.

2 Heterossexismo compulsório: é o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com intuito de reforçar ou dar legitimidade às premissas heterossexuais (FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 2).

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2) exclui da sexualidade legítima todos aqueles indivíduos sociais que não cumprem com as normas do heterossexismo compulsório;

3) funciona para narrar sua própria inexistência, ao negar a dinâmica da discriminação sexual (FOSTER apud CALEGARI, 2010, p. 6-7).

No final termina com uma metáfora poética fazendo alusão a morte de um dos personagens: “a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos”. A metáfora suaviza a discriminação, os rótulos, e a intolerância entre o grupo de pessoas homofóbicas que violentaram cruelmente um dos personagens homossexuais.

Terça-feira gorda de carnaval: cenário de preconceito e violência

Neste conto surge espaço para as vozes marginalizadas, pois a questão social é enfocada e centralizada pelo autor. Diante disso faz-se necessário a utilização de um conceito de Hutcheon (1991, p.170), que segundo ela, “as vozes ex-cêntricas representam as vozes minoritárias quanto à classe social, raça, etnia, identidade sexual diante de um poder hegemônico branco, masculino, heterossexual e burguês”. Essas vozes, no conto Terça-feira gorda de carnaval, apresentam personagens centrais discriminados social e sexualmente, vozes que experienciam situações de desrespeito, intolerância e violência física até culminar na morte.

A festa de carnaval, considerada a maior festa popular brasileira e a mais grandiosa manifestação folclórica que envolve um grande público, é um período de exposição do corpo, de valorização da dança, da fantasia e extrapolação da sexualidade, marcada pela orgia e “liberdade”. A tônica do carnaval é o “desregramento”, a postura de liberdade e ousadia, própria da cultura carnavalesca, sendo que as vozes maldosas e irônicas dos personagens no conto adotam uma posição de condenação e ruptura frente aos homossexuais, levando a narrativa à constatação de um paradoxo social. Nesse sentido, a proposição de Franco Jr. (apud PORTO; PORTO, 2004, p. 71) e bastante elucidativa: “O carnaval, em Terça-feira gorda, alegoriza a própria tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser alegre irresponsável e brutal.”

A terça-feira é o último dia de carnaval, dia de despedida da orgia, que antecede a quaresma e por outro lado é chamada de Terça-feira gorda dada ao título do conto porque era o último dia em que os cristãos comiam carne antes do jejum da quaresma, na qual também havia a abstinência de sexo e até mesmo das diversões, como circo, teatro ou festas.

Nota-se no conto que o preconceito tem a ver com as circunstâncias em que a discriminação ocorre: durante uma festa carnavalesca. Frente a esta festividade pondera-se que:

O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas se nele, e vive-se conforme as suas leis estas vigoram, ou vive-seja, vive-vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l’envers) (BAKHTIN, 1981, p. 105).

O autor aponta que o carnaval se caracterizaria por proceder a uma inversão de valores do cotidiano, ou seja, deveria corresponder à vida desviada de seu curso normal.

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De acordo com essa inversão de valores, os sujeitos sociais deveriam aceitar à manifestação de práticas homoeróticas, no entanto, não é isso que ocorre: a sociedade identifica os homossexuais, estabelece um limite entre eles e os demais e os expulsa por estarem profanando as normas dos heterossexuais, pois o que prepondera são as regras estabelecidas pelas convenções sociais.

No conto, aparecem várias cenas de agressão verbal e física frente ao desejo dos personagens de exercerem suas escolhas e poderem vivenciar sua opção afetivo-sexual naquele momento. Eles são surpreendidos violentamente durante a narrativa tanto psicologicamente, socialmente, moralmente e fisicamente tendo como saldo negativo as experiências vividas pelos homossexuais, tais como

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os encontros frustrados, a liberdade de escolha reprimida e os projetos de sonhos inacabados.

Em Terça-feira gorda de carnaval, Abreu dá vozes àqueles que estão à margem dos processos sociais, abrindo espaço para a reflexão e discussão sobre o discurso da minoria. Com isso o autor coloca ao leitor através da representação desse conto, um leque de questionamentos referentes a valores, condutas e regras sociais, levando-o a ter um posicionamento crítico e induzindo-o a construir um ponto de vista em torno da temática da homossexualidade. O desfecho do conto culmina em violência física, sendo que o autor relata esse fato social de modo metafórico.

Fechando os olhos então como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois a Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos (ABREU, 2005, p. 59).

A produção de conhecimentos sobre a homossexualidade

O homossexual do século XIX tornou-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade [...]... agora o homossexual é uma espécie (FOUCAULT, 2009, p. 50).

O ser humano na sua existência é dividido em classes essenciais quanto à sexualidade: dualidade heterossexualidade/homossexualidade. Essas classes seriam meras identidades socioculturais que condicionam as maneiras das pessoas de viver, sentir, pensar, amar, sofrer, etc. e não uma lei universal da diferença de sexos. Consequentemente, o homossexual não é um sujeito que existe ou existiu independente do hábito cultural e descritivo que o criou. Segundo Costa (apud NUNAN, 2003, p. 25-26) “propõe que os conceitos homossexualidade e homossexualismo sejam substituídos pelo termo homoerotismo referindo-se à possibilidade que certos sujeitos têm de sentir diversos tipos de atração erótica ou de relacionar fisicamente com outros do mesmo sexo biológico”. O vocábulo homossexualismo surgiu no século XIX, e não será utilizado porque o sufixo “ismo” remete à categoria de doença. Já os termos homossexualidade, homossexual e gay, estes dois últimos considerados sinônimos, são palavras carregadas de preconceito e remetem aos séculos XVIII e XIX. No século XVIII, por exemplo, a medicina classificava os homossexuais como invertidos sexuais. Com isso, a homossexualidade passou a ser vista, dentro do contexto religioso e moral como inserido por ideias de

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pecado, perversão e anomalia, enfim, de forma a transgredir a heteronormatividade3 (FOSTER apud

CALEGARI, 2010, p. 2).

O preconceito contra homossexuais é chamado de homofobia, apesar de o termo heterossexismo também aparecer na literatura especializada. A homofobia é um termo cunhado por George Weinberg apud (NUNAN, 2003, p. 78) definido como uma aversão ou medo irracional de homossexuais.

Os homossexuais são frequentemente taxados de anormais, imorais, pecadores, marginais, pedófilos, promíscuos, doentes, efeminados, complicados e pouco confiáveis (SIMON; WOLFE apud NUNAN, 2003, p. 79).

Embora seja correto afirmar que a epidemia da AIDS acelerou a expansão dos estudos sobre a homossexualidade no Brasil durante os anos de 1990, ela é considerada uma “doença gay”, e é comum ouvir dizer que a epidemia “ veio para punir esses pervertidos”.

O discurso homofóbico apresenta o homossexual como uma espécie de criatura contraditória e impossível, pois é, ao mesmo tempo, um ser inadaptado socialmente, uma espécie de “monstro” raro antinatural, um ser que representa o fracasso moral e, sobretudo, um pervertido sexualmente (MARQUES FILHO; CAMARGO, 2007, s.p.).

Esse discurso homofóbico perpassa uma concepção degenerativa da imagem e da identidade homossexual que se reflete na discriminação, na intolerância e na violência.

Considerações finais

Segundo a análise do conto Terça-feira gorda, Abreu em seus escritos aborda no espaço narrativo a questão da sexualidade e do relacionamento pessoal com o contexto cultural, político, religioso e social vigente.Sua obra contribui para abrir o espaço da discussão homoerótica tanto no âmbito literário quanto no público/social.

Caio Fernando Abreu ressalta neste conto que os personagens homossexuais são grupos minoritários marginalizados da sociedade sendo acusados muitas vezes de transgressores das regras sociais e morais impostas pela elite conservadora.

O livro Morangos mofados foi escrito nos anos 70, mas os acontecimentos que são retratados na narrativa persistem na atualidade.

Os movimentos militantes dos direitos civis das minorias ganharam força nos últimos anos sendo que os homossexuais foram atendidos na reivindicação de alguns destes direitos. Entretanto a luta contra uma sociedade homofóbica que veicula um discurso ideologicamente elaborado sobre a imagem e a identidade do homossexual ainda persiste tanto pelo desrespeito e violência quanto pela ausência de políticas públicas para reverter aquele quadro.

3 Heteronormatividade: entende-se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família nuclear.

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Referências:

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.

CALEGARI, Lizandro Carlos. O homoerotismo em Caio Fernando Abreu: a perspectiva queer em

Morangos mofados. Disponível em:

<http://www.fw.uri.br/publicacoes/linguaeliteratura/artigos/16_10.pdf.>. Acesso em: 25 out. 2009.

CHAUI, Marilena. Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida. 12. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

COSTA, Mireile Pacheco França. Terça-feira grávida: o parir da violência. Revista Literaturas, Artes,

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Acesso em: 20 set. 2009.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 19. ed. São Paulo: Graal, 2009.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MARQUES FILHO, Adair; CAMARGO, Flávio Pereira. Identidade homossexual e homoerotismo em “Terça-feira gorda”, de Caio Fernando Abreu. Revista OPSIS, v. 7, n. 8, p, 68-85, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.catalao.ufg.br/historia/revistaopsis/.../069_opsis2007_OPSIS2007.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2009.

NUNAN, Adriana. Homossexualidade: do preconceito aos padrões de consumo. Rio de Janeiro: Caravansarai, 2003.

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PORTO, Ana Paula Teixeira. Preconceito, repressão sexual e violência em Caio Fernando Abreu.

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Referências

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